Resenha

LITURATERRA [Resenha: 2018, 3] As oscilações do sistema penal juvenil uruguaio: um estudo de caso sobre o retrocesso punitivo na América Latina

LITURATERRA [Reseña: 2018,3]

LITURATERRA [Review: 2018,3]

LITURATERRA [Compte rendu: 2018,3]

文字国 [图书梗概:2018,3]

Gabriel Souza Cerqueira *
Universidade Federal Fluminense, Brasil

LITURATERRA [Resenha: 2018, 3] As oscilações do sistema penal juvenil uruguaio: um estudo de caso sobre o retrocesso punitivo na América Latina

Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 10, núm. 2, pp. 323-328, 2018

Universidade Federal Fluminense

Universidade Federal Flumiennse
ABELLA Rosana, FESSLER Daniel. El retorno del “estado peligroso”: los vaivenes del sistema penal juvenil. 2017. Montevideo. Casa Bertold Brecht – Grupo de Estudios sobre Infracción, CSIC – UDELAR. 165pp.

Recepção: 10 Março 2018

Aprovação: 24 Abril 2018

Resumo: As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan1, para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.

Resumen: Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura de la terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.

Abstract: The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.

Résumé: Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.

摘要: Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。

O conjunto de artigos compilados, na forma de livro, por Rosana Abella2 e Daniel Fessler3 apresenta um panorama das pesquisas realizadas em comum pela Casa Bertold Brecht e pelo Grupo de Estudos sobre Infração Adolescente da Universidad de la República (UdelaR). Seus trabalhos abarcam, desde a perspectiva do caso uruguaio, um problema corrente na arena política latino-americana: a lei penal aplicada aos menores de idade. Ou melhor, como bem menciona Emílio Garcia Méndez no prefácio à obra, os problemas relativos ao funcionamento do Estado Democrático de Direto, suas instituições e estratégias, para lidar com crianças e adolescentes (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 7).

A ação do Estado para com os menores de idade tem oscilado constantemente, em nosso continente (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 142), entre uma postura tutelária e uma postura repressiva que operam de forma quase simultânea. Sabemos hoje que esse modelo de ação não tem sido eficiente em gerar políticas públicas capazes lidar com os problemas de uma juventude atravessada pelos efeitos de intensa urbanização, da extensão da pobreza, da ausência do Estado enquanto provedor de serviços públicos adequados e oportunidades, e, no caso brasileiro, da capilaridade de organizações criminosas nas periferias e favelas com suas ofertas de ganho rápido e “fácil” (BATISTA, 2003). Diante da imensa complexidade que esse quadro apresenta a resposta que historicamente tem sido dada é a do recrudescimento do aparelho repressivo (legal e policial). Não espanta que, de tempos em tempos, o centro do debate sobre política criminal seja deslocado para a redução da maioridade penal (que foi alvo de um plebiscito nacional no Uruguai em 2014). Esse pequeno livro vem, pois, em boa hora, nos oferecer, através de análises do caso uruguaio, instrumentos teóricos e heurísticos para pensar essa questão tão difícil e urgente, diante de uma conjuntura de claro avanço conservador.

Em seu artigo, Daniel Fessler e Luís Eduardo Morás4 analisam a transição histórica dos modelos de interpretação da conduta infratora e do delito: do modelo de interpretação do delito ancorado em circunstâncias estruturais, com ecos dos determinismos característicos do século XIX, para a interpretação contemporânea que tende a individualizar os atos, sustentado a culpa nos próprios atos dos sujeitos – desprovido de qualquer aporte sociológico. A figura do adolescente infrator, o “menor abandonado/delinquente” esteve, nos modelos da assistência social de fins do século XIX e início do XX, a promover políticas públicas (ainda que encabeçadas por instituições religiosas com um controle estatal difuso) calcadas no binômio proteção/controle e na “doutrina da situação irregular” (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 13). Com a guinada mencionada, a política criminal passa a recorrer a interpretações que enfatizam o cálculo racional e a “falta de valores” como epicentros da criminalidade da juventude pobre, em um processo de explicações individualizadas que geram efeitos de deterioração, nos marcos legais, dos direitos fundamentais, como o de liberdade. A disputa ideológica vai esvaziar o sentido socioeducativo das políticas públicas para crianças e adolescentes em detrimento do discurso jurídico penal com ênfase nas penas de prisão (e seu prolongamento). Uma nova agenda de controle social vai se impor, construindo a pena de privação de liberdade como a única culturalmente aceitável (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 23).

As pressões da “opinião pública” e a participação dos veículos de comunicação na exploração de casos concretos e dando forte destaque às vítimas contribuem para a construção de uma atmosfera de medo que que vai sustentar o recrudescimento punitivo das legislações penais relativas à infância e juventude. Há, segundo Rosana Abella et al.5 a forte presença de um estigma do adolescente em conflito com a lei, construído e propagado pelo discurso hegemônico (com papel central dos grandes meios de comunicação) (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 81). Esse quadro de hegemonia ideológica conservadora contemporâneo, contudo, não se sustenta diante dados estatísticos reais da justiça uruguaia. O artigo de Lucía Vernazza6 explora a maneira como a institucionalidade uruguaia tem respondido à construção do espaço privilegiado que a temática do adolescente infrator ganhou no debate público, ainda que estatisticamente os dados não deem suporte à tal inflexão punitiva (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 48).

O Código de la Niñez y la Adolescencia (CNA), de 2004, talvez tenha sido o mais importante instrumento jurídico a versar sobre os direitos das crianças e adolescentes uruguaias. Construído de modo a se adequar à Convenção sobre os Direitos das Crianças, promulgada em 1989 no âmbito das Nações Unidas, o CNA buscava resolver a problemática de estender o Estado de Direito aos menores de idade, garantindo-lhes direitos elementares. Um bom histórico do processo de criação do CNA está escrito, nesta obra, pela defensora pública Carina Gomez Heguy. De 2004 para cá diversas leis modificaram em extensão e grau o CNA, a mais recente, a Lei 19.055 de 2013.

Precisamente por meio da análise de casos referentes à aplicação dessa Lei nº 19.055 de 2013, que estabelece um maior rigor penal a crimes de roubo por parte de adolescentes, Carolina Gonzlález Laurino e Sandra Leopold Costábile7 ressaltam a construção histórica desse recurso legal com apoio político e institucional largo. Os operadores do sistema penal juvenil do Uruguai e os modelos conceituais de responsabilização engendrados por estes são alvo do capítulo. É especialmente interessante notar como, nos autos dos processos analisados (e nos materiais de suporte técnicos, como laudos de psicólogos e assistentes sociais), emergem dentro do aparato conceitual dos operadores judiciais (especialmente de juízes e membros do ministério público) as noções de “culpa”, “arrependimento” e “confissão” (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 61). Essas noções de corte claramente religioso vão compor o centro argumentativo das sentenças, em maior ou menor rigor, ao mesmo tempo em que abarcam uma percepção do indivíduo responsável, sintetizada na estrutura psíquica do sujeito da ação penal.

Daniel Díaz e Martins Fernández,8 por sua vez, analisam os aspectos constitucionais pertinentes à Lei 19.055. Os autores argumentam que a referida lei se encontra em flagrante inconstitucionalidade por violentar direitos básicos. Com o objetivo de ampliar o alcance das políticas de controle social à juventude pobre, afetou, desde sua promulgação, cerca de 1455 adolescentes, cujo processo e condenação estão em desacordo com a constituição (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 137).

Questões relativas a gênero, por sua vez, não passam desapercebidas. Em Genero(s) de adolescência. El tratamento de adolescente mujeres em el Sistema Penal Uruguayo, vemos uma reflexão sobre como as noções de adolescência, autonomia e gênero, são observadas nas intervenções técnicas que compõe as práticas de controle social do Sistema Judiciário uruguaio (ABELLA; FESSLER, 2017, p. 93).

As temáticas e abordagens compiladas nesta obra feita a muitas mãos, mais do que nos dar, a nós brasileiros, um panorama das transformações, teorias e interpretações da política criminal uruguaia para crianças e adolescentes, levanta uma série de questões sob a quais podemos observar a nós mesmos. Ao nosso próprio caso. Não passa o Brasil agora por um grave momento de inflexão da política e da vida social pela via repressiva? Não passamos, nós também, por um momento já prolongado de retrocesso punitivo? O Rio de Janeiro sob Intervenção Militar, a política de drogas tratada como confronto, guerra, (umbilicalmente ligada ao destino histórico traçado pelas classes dominantes brasileiras para a juventude pobre), a recidiva do debate sobre redução da maioridade penal, o discurso da criminalização para solução dos problemas e conflitos da política, o abandono neoliberal aos serviços que compõe a rede de seguridade social do Estado, a emergência de um ativismo judicial que radicaliza o populismo penal às custas da ignorância casuística do texto constitucional... Diante desse quadro pode-se avaliar a importância desse trabalho: primeiro porque explicita que a conjuntura contemporânea é bem mais extensa do que nosso próprio caso; segundo, por nos fornecer, como estudo de caso comparado, ferramentas para interpretar e agir sobre tal fenômeno e as particularidades do caso brasileiro.

Referências

ABELLA, Rosana; FESSLER, Daniel (comp.). El retorno del “estado peligroso”: los vaivenes del sistema penal juvenil. Montevideo: Casa Bertold Brecht – Grupo de Estudios sobre Infracción, CSIC – UDELAR, 2017.

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Notas

1 Lacan, Jacques. Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro; versão final Angelina Harari e Marcus André Vieira; preparação de texto André Telles, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 11-25. [Lacan, Jacques (2001). Autres Écrits, Paris: Éditions de Seuil.
2 Coordenadora de projeto da Casa Bertold Brecht.
3 Professor da Universidad de la República, Uruguay.
4 Faculdade de Direito, UdelaR.
5 Tatiana Magriños, Verónica Silveira, Loren Vizcaíno. Integrantes da equipe de trabalho em Sistema Penal Juvenil da Casa Bertold Brecht.
6 Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO), Argentina.
7 Ambas professoras da Faculdade de Ciências Sociais, UdelaR.
8 Professores da Faculdade de Direito, UdelaR.

Autor notes

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

E-mail: gabrielscerqueira@gmail.com. Orcid ID: https://orcid.org/0000-0001-9309-0444

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