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O direito de aldeia: Reflexões sobre o caso da Aldeia Imbuhy
The right to the village: Reflections on the Imbuhy cas
El derecho de aldea: reflexiones sobre el caso de la aldea Imbuhy
Le droit au village : réflexion sur le cas d’Imbuhy
乡村法权:对英布伊居民村拆迁案的反思
O direito de aldeia: Reflexões sobre o caso da Aldeia Imbuhy
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 11, núm. 1, pp. 64-78, 2019
Universidade Federal Fluminense
Recepción: 27 Agosto 2018
Aprobación: 18 Noviembre 2018
Resumo: O artigo tem como objeto a crítica da remoção judicial dos moradores da Aldeia Imbuhy, uma comunidade tradicional litorânea do Rio de Janeiro, tendo como pretexto a servidão militar ao redor do antigo forte D. Pedro II edificado na Ponta do Imbuhy, dentro da qual supostamente nenhum pescador pode residir ou trabalhar. É com base neste argumento que a União Federal obteve judicialmente a reintegração de posse contra 32 famílias que viviam dentro da Aldeia. Duvidando metodologicamente desta versão oficial, buscaremos construir uma genealogia possível do conflito sociojurídico ali instaurado, trazendo novas fontes de pesquisa e outros elementos de análise capazes de proporcionar uma nova interpretação sobre a questão debatida nos tribunais sobre aquela comunidade tradicional.
Palavras-chave: Direito, comunidade tradicional, Aldeia Imbuhy, remoção, União Federal.
Abstract: The following article sets out to criticize the legal removal of the residents of Imbuhy, a traditional coastal community on the Rio de Janeiro coast, under the pretext of military easement around the former fort of Pedro II built on Imbuhy Point, within which no fisherman is allegedly allowed to reside or work. The basis of the argument hinges on the Federal Government’s obtaining of a legal order for the repossession of the homes of 32 families living in the village. With methodological misgivings on the official version of events, we sought to shape a possible genealogy of the consequent socio-legal conflict, providing fresh sources of research and other items of analysis able to provide a new interpretation of the traditional community’s case as debated in the courts.
Keywords: Law, traditional community, the village of Imbuhy, removal, Federal Government.
Resumen: Este artículo pretende ser una crítica a la obligación judicial de retiro de los habitantes de la aldea Imbuhy, una comunidad tradicional de la costa de Rio de Janeiro, llevada a cabo con el pretexto de que se encuentra en una zona militar que rodea al antiguo fuerte D. Pedro II, edificado en Ponta do Imbuhy, dentro de la cual supuestamente no puede residir ni trabajar ningún pescador. Con este argumento, el Gobierno Federal de Brasil obtuvo una orden judicial para recuperar la titularidad de la propiedad y desalojar a 32 familias que vivían dentro de la aldea. Ante las dudas sobre la metodología aplicada que genera esta versión oficial, buscaremos construir una posible genealogía del conflicto sociojurídico suscitado, aportando nuevas fuentes de investigación y otros elementos de análisis que proporcionen una nueva interpretación de la cuestión debatida en los tribunales relativa a esta comunidad tradicional.
Palabras clave: Derecho, comunidad tradicional, aldea Imbuhy, retiro, Gobierno Federal de Brasil.
Résumé: Cet article a pour objet la critique de l'expulsion judiciaire des habitants du village d’Imbuhy, une communauté traditionnelle du littoral de Rio de Janeiro, sous le prétexte de la création d'une servitude militaire autour de l'ancien fort D. Pedro II, édifié sur le cap Ponta do Imbuhy et autour duquel aucun pêcheur ne serait censé résider ou travailler. C'est sur la base de cet argument que la République fédérative obtint en justice l’expulsion des 32 familles vivant sur les lieux. Cette version officielle étant méthodologiquement douteuse, nous chercherons à construire une généalogie possible du conflit sociojuridique ici instauré, en faisant intervenir de nouvelles sources de recherche et autre éléments d'analyse à même de permettre une nouvelle interprétation de la question de cette communauté traditionnelle débattue dans les tribunaux.
Mots clés: droit, communauté traditionnelle, village d’Imbuhy , expulsion, République fédérative.
摘要: 该文旨在批评里约热内卢的沿海地区一处名叫英布伊(Aldeia Imbuhy)居民村的司法拆迁案。该居民村被司法判决为强制拆迁,其借口是该村位于英布伊海角(Ponta do Imbuhy)的佩德罗二世(D. Pedro II)炮台的军事管制区范围之内。据法律规定,禁止任何渔民在该地工作或居住。正是在这一条例的基础上,联邦政府司法部门决定对居住在该村内的32个家庭进行强制拆迁。我们从方法论角度质疑这个官方决定,我们将构建该地区的社会-法律冲突谱系,使用新的资料来分析该案件,对法院就该传统社区的拆迁问题所举行的辩论提供新的解释。
關鍵詞: 法律, 传统社区, 英布伊村, 拆迁清除, 联邦部门.
O jurisconsulto português Manuel de Almeida e Sousa (1744-1817) afirmou certa vez ser um “letrado de aldeia”. Ele ficou notabilizado pelo nome de “Lobão”, toponímico com o qual entrou para a história do direito luso-brasileiro. Com efeito, acrescentar o toponímico dos lugares ao próprio nome era comum em Portugal até o século XVIII, onde os jurisconsultos se denominavam jurisconsultus lusitanus, jurisconsultus olyssiponensis, penamacorensis, campomaiorensis etc. Porém, ser um “letrado de aldeia” tinha em Lobão um significado um pouco diferente, ou seja, havia um propósito bem específico para isso. É que Lobão não é o nome do lugar exatamente onde ele nasceu. Na verdade, ele era natural de Vouzela. Lobão era o nome de uma pequena aldeia também do distrito de Viseu, mas em Tondela, onde ele escolheu para viver e trabalhar até a sua morte. Lugar, enfim, da sua inteira predileção, carregado de afeto. Ele se apresentou como um “letrado de aldeia” no prefácio das Segundas Linhas sobre o Processo Civil (LOBÃO, 1868), a livro escrito já bem perto de falecer, comentando outro livro, as Primeiras Linhas sobre o Processo Civil (SOUSA, 1872), escrito por outro jurisconsulto português, Joaquim José Caetano Pereira e Sousa (1755-1813). Este último era advogado da Casa de Suplicação de Lisboa e por isso Lobão se dizia um “letrado de aldeia”, em contraposição àquele “da supplicação, na superior jerarchia” (LOBÃO, 1868, p. VII). Ele pretendia com isso fazer transparecer dois pontos de vista opostos: o dele, da periferia ou “da aldeia”, e o dos tribunais oficiais do Reino. Ser um “letrado de aldeia” ali, portanto, era quase uma provocação, uma diabribe. Significava a afirmação de uma interpretação insurgente da lei e do direito que não era a hegemômica, oficial. Com uma boa dose de ironia retórica, Lobão expunha o ponto de vista jurídico da “aldeia” em contrariedade à interpretação ortodoxa do direito feito pela “hierarquia superior”, no caso específico, aquele representado por Joaquim José Caetano Pereira e Sousa. Ele se insurgia contra esta interpretação situacionista, rebelando-se: “Sousa escreveu tudo como certo e solido, sem indicar opiniões contrarias” (LOBÃO, 1868, p. VII).
Lobão já havia feito algo semelhante ao comentar a obra de Pascoal José de Mello Freire (1738-1798), expressando-se da seguinte maneira: “Quem sou eu para me apregoar a fazer Notas de Uso prático, e Crítico, Addições, Illustrações, e Remissões de Doutores, ainda na mais mínima parte dos escriptos do grange, e nunca assaz louvável Papiniano deste Reino?” (LOBÃO, 1847, p. 3) Papiniano foi um jurisconsulto romano no tempo do imperador Sétimo Severo (193-211). A obra por ele deixada foi compilada durante o período bizantino e faz parte do Corpus Juris Civilis. Manuel de Almeida e Sousa de “Lobão” opunha-se jocosamente aos “Papinianos” da sua temporalidade, como Pascoal José de Mello Freire e Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, demonstrando uma outra maneira de interpretar o direito português e é isso que nos interessa neste momento. Eu proponho aqui também um outro modo de ver as coisas – “opiniões contrárias”, diria Lobão – no tocante ao caso da Aldeia Imbuhy, numa perspectiva anticolonialista de um direito de aldeia, um direito que não é “menor”, mas que é tantas vezes inferiorizado. Assim como Manuel de Almeida e Sousa “de Lobão”, o meu intuito é apresentar as “opiniões contrárias” que a Aldeia Imbuhy tem a oferecer, indicando outros elementos argumentativos que não foram até agora considerados pelos nossos tribunais nas disputas travadas no âmbito do poder judiciário sobre o conflito sócio-jurídico naquela comunidade tradicional. O meu intuito aqui é refutar a versão oficial do Exército Brasileiro e da União Federal sobre a titularidade e a posse pública da área, ancorada numa história daquela localidade que também é uma história oficial. Na prática, o direito afirmado pelo Exército e chancelado nos tribunais é legitimado por uma determinada história que ele próprio construiu e impôs como sendo a verdadeira.
Disse o aldeão Manuel de Almeida e Sousa “de Lobão”, na última obra antes aqui mencionada, que “a Jurisprudência, em qualquer dos seus diversos ramos, é uma vasta seara; e ainda que Mello nos seus compendios fasciculou quasi toda a nossa legal, e em todos os seus ramos, não podia deixar de lhe cahirem, ou escaparem algumas espigas” (LOBÃO, 1847, p. 3). Não feremos outra coisa senão recolher algumas “espigas” que escaparam aos olhares dos “Papinianos” de hoje. O que importa é trazer à luz tudo o que até agora foi deixado necessariamente de fora do debate jurídico, como se não houvesse qualquer outra versão dos fatos controvertidos além do discurso oficial do Exército. Quer dizer, a história oficial do Exército. Entretanto, ao invés de ser removida dali, a comunidade tradicional da Aldeia Imbuhy deveria ser protegida pelo Estado em virtude do que preceituam os artigos 215 e 216 da Constituição da República (BRASIL, 1988), e o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 (BRASIL, 2007). Trata-se de uma comunidade tradicional e extrativista marinha a ser protegida segundo a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), assim reconhecida pelo Parecer Técnico nº 032/2009, Referência PA 1.30.005.000137/2003-81, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Do mesmo modo, a Prefeitura Municipal de Niterói a reconheceu como sendo uma comunidade tradicional pelo Decreto nº 12. 034/2015 (NITERÓI, 2015), que foi posteriormente derrubado por mais uma decisão judicial contrária aos moradores da Aldeia Imbuhy. Para opor à versão oficial do Exército, é preciso construir uma nova narrativa histórica. Como sugere Márcia Maria Menendes Motta (2008, p. 18), é preciso revirar os arquivos “pelo avesso”. Esta é a primeira lição que podemos colocar em prática: a preocupação com as fontes historiográficas que foram manuseadas até aqui no tocante à Aldeia Imbuhy e o tratamento dado a elas. Isso equivale não apenas em repassar os olhos atentamente naquelas já disponíveis, mas também ir atrás de novas fontes em busca de outros dados e outras interpretações possíveis sobre eles. É preciso “duvidar”, diz ela, mais ou menos como fez Lobão sobre o que escreveram Pereira e Sousa e Mello Freire. Não por acaso, além de ter uma sólida pesquisa sobre o direito à terra no Brasil, Márcia Motta é também uma pioneira no combate à versão comumente defendida pelo Exército sobre a propriedade das terras na Aldeia Imbuhy. E foi duvidando dela que a historiadora encontrou nas páginas do Almanaque Laemmert o apontamento de alguns proprietários de terras e de inspetor de quarteirão na Aldeia ainda no século XIX, levando-a à conclusão que estes dados “colocam-nos na direção de que a reivindicação dos moradores que ali residem nos dias de hoje parece-nos justa” (MOTTA, 2017, p. 9).
A Aldeia Imbuhy é uma comunidade com a qual eu guardo vínculos afetivos. Conheci aquelas pessoas ainda criança. Eu frequentava aquela praia e a do Forte Rio Branco nos finais de semana levado pelo meu avô, um ex-combatente da II Guerra Mundial. A Aldeia constitui uma comunidade tradicional litorânea de Niterói, no Rio de Janeiro, situada dentro de uma área maior de terras reivindicada pela União Federal desde que foi ali iniciada a construção do Forte Pedro II em 1863. Atualmente ela abriga uma unidade do Exército Brasileiro, o 21º Grupo de Artilharia de Campanha. É uma área atravessada pelo militarismo, uma história da qual não consegue se desvencilhar, apesar de os seus habitantes estarem ali fixados pelo menos desde o século XVIII, isto é, muito antes da construção do forte. E por causa desse atravessamento eles vêm sendo pouco a pouco arrancados do seu lugar, da sua terra, do seu chão; pessoas que tiveram dolorosamente apagadas a sua história, a sua memória, os seus traços, os seus laços muito mais abrangentes do que os de simples vizinhança. Ali havia escola, igreja, trabalho, casas, uma gente e seu cotidiano. Famílias inteiras de pescadores que num determinado momento caíram nas teias do poder, que foram enredadas nas malhas do discurso jurídico e da sua escrupulosa neutralidade, encampando a história “oficial” do Exército. Ainda segundo a professora Márcia Motta (2008, p. 26), “Os conflitos de terra são – é verdade – disputas sobre o sentido da história, oponto interpretações e justificativas divergentes sobre o direito à terra”. No conflito sociojurídico em questão, prevaleceu até aqui judicialmente somente um “sentido” da história, aquele ligado ao militarismo, desfavorável à Aldeia Imbuhy. O pretexto é que estariam numa área de segurança nacional circunscrita pelo Decreto nº 77.890, de 22 de junho de 1976 (BRASIL, 1976), que estaria ocupada pela União Federal “imemorialmente”, segundo afirma. As linhas que se seguirão têm a finalidade de mostrar que isso não é bem assim. A Aldeia Imbuhy existe muito antes do início da construção do Forte D. Pedro II no canto da praia do Imbuhy. Já havia vida ali, e ela persiste apesar de tudo.
Aquela região era cortada por estradas interligando os pescadores às zonas pesqueiras das proximidades, entre as praias, enseadas e lagoas, migrando para cada uma delas conforme as estações e as marés ao longo do ano. As comunidades locais eram divididas em paróquias por caminhos abertos ainda nos séculos XVII e XVIII, como registrou o Monsenhor Pizarro em suas visitas pastorais entre 1794 e 1795, percorrendo pessoalmente o trajeto desta estrada entre a igreja de São Francisco Xavier do Saco (de São Francisco), a igreja de Nossa Senhora da Conceição em Jurujuba e a de Nossa Senhora da Conceição de Pendotiba (ARAÚJO, 2009, p. 287-289). a Muito tempo antes dele, andou por aqueles mesmos caminhos outro visitador pastoral, o frei Agostinho de Santa Maria, em 1723. Durante o percurso, ele registrou as suas impressões em seu Santuário Mariano, da seguinte maneira:
Já temos referido em como a situação da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeyro corre, entrando pela sua barra, de Norte a Sul, ficando-lhe nas costas o Occidente, & defronte o Oriente. E sahindo pela sua barra fóra, dando na Fortaleza de Santa Cruz, que com a de S. João, que lhe fica fronteira, (que são as chaves daquella Cidade) se sahe à costa brava, aonde de hua, & outra parte correm prayas, & se vem pela marinha algus outeyros. E quem por esta costa vay para a Capitania do Espirito Santo, que fica ao Norte, então encontra com varias Casas, & Santuarios da Mãy de Deos, das quaes he a primeira a de nossa Senhora do Bom Sucesso.
Em distencia de pouco mais de hua legoa da referida barra se encontra com a fazenda dos Gagos na Lagoa de Piratininga & nas beyras, & prayas desta lagoa, para a parte do Certão está o Engenho dos mesmos Cavalleyros Gagos, que possue hoje Luis Gago da Camara moço fidalgo da casa de S. Magestade, & nas referidas ribeyras, ou prayas da Lagoa, aonde fica o Engenho, se vé o Santuario da milagrosa Imagem de nossa Senhora do Bom Sucesso (SANTA MARIA, 2007, p. 52).
Foi a mãe de Luis Gago da Câmara, D. Úrsula da Silveira, que instituiu por disposição testamentária o “encapellado” do Imbuhy em 1701 (TESTAMENTO, 10 jul. 1701). Aliás, um dos propósitos das visitas pastorais como estas feitas pelo Monsenhor Pizarro e pelo frei Agostinho de Santa Maria nos séculos XVIII era saber justamente se estavam as capelas e ermidas em lugar ermo ou despovoado, segundo o que determinavam as regras eclesiásticas em vigor (VIDE, 2007, p. 255), o que de forma alguma se verificava naquela localidade. Muito pelo contrário. A região era de fato povoada, compreendendo as respectivas lagoas (as duas primeiras de um total de quinze que existiam entre Niterói e Cabo Frio), indo pelas marinhas até o saco de Jurujuba, dentro da baía de Guanabara. Para se ter uma ideia, os “dízimos de pescado” entre os anos de 1826 e 1828, referentes àquela localidade, circunscreviam o espaço de terras que iam “da costa de S. Gonçallo até Jurujuba” (LINS, 1825, p. 1). Todas essas “beyras, & prayas” da lagoa de Piratininga noticiadas pelo frei Agostinho de Santa Maria eram interligadas por vias que levavam e traziam as pessoas em seu dia-a-dia, fosse para as necessidades do trabalho entre as zonas de pesca, de agricultura e comércio locais. O que não era zona costeira nem lagunar de pesca, era lavoura e pasto. Até o século XVIII, havia ali engenhos de farinha e de açúcar. No século XIX, chegou o café. Pesca e agricultura se completavam ali. E este conjunto criava uma certa identidade naquela comunidade longínqua no Imbuhy, de maneira a terem até mesmo os mesmos problemas, a dividirem os mesmos conflitos de terra, trabalho e moradia. Vejamos um exemplo. Data de 1831 um dos primeiros registros do fechamento da lagoa de “Itaypú” para o mar por supostos proprietários dela. Os moradores das margens desta lagoa encaminharam ao Secretário da Câmara da Praia Grande (hoje Niterói) diversas representações, como esta de 26 de setembro daquele ano:
[...] para acudir aos moradores que se tem achado (há quase seis mezes) padecendo do efeito da inundação, e turbação das aguas, privados da sua corrente pelo despótico encerramento da barra ao mar, da lagoa de Itaypú. Nas referidas representações, farão expostas miudamente as circunstancias relativas ao Despotismo particular, por tanto tempo tolerado, em prejuízo do Povo; e especialmente requereo-se, que a sobredita autoridade houvesse por bem assignar aos inundados, uma servidão livre, por onde eles tivessem a faculdade de direito, para respectivamente effectuar o esgoto de seus terrenos e alagadiços, e para livrarem-se do ônus de ficarem forçosamente considerados Despoticos das aguas paradas nas suas plantações e pastos; os inundados, estagnados, e calefriados moradores em Itaypú, 26 de setembro de 1831 (INUNDADOS, ESTAGNADOS, E CALEFRIADOS MORADORES EM ITAYPÚ, 18 out. 1831, p. 2).
Trinta anos depois, um conflito de terras se repetiria na lagoa de Itaipú, quase ao mesmo tempo em que começarem as obras para a construção do forte D. Pedro II, na pedra do Imbuhy. Porém, a disputa agora não atingia somente os moradores, mas os pescadores dela. E a irresignação destes foi endereçada diretamente ao então Ministro da Marinha da seguinte maneira:
Ao exm. sr. ministro da marinha,
Recorrem os pescadores da lagôa da freguezia de Itaipu (em Nictherohy), pela pressão que sobre eles mantém o intitulado senhor da dita lagôa, pressão ainda mais forte pelos meios absurdos e tyrannicos, que se teem exercido sobre os pobres homens, que, além de serem privados de pescar, afim de mitigarem a fome, ainda sofrem que sejão tomadas suas redes, e injuriados pelos escravos do dito senhor da lagôa, passando-se tudo isto no éco do mar na barra da lagôa.
O sr. José Albino da Rocha, além de outras crueldades que aparecem deshumanamente, como se mostra pela carta que se segue, tendo-se reclamado à câmara desse município providencias a respeito, esta tem sido remissa; por isso recorrem a V. Ex., para dar providencias que julgar necessário, afim de que o alimento desta pobreza seja mantido. Assim o esperão da alta justiça e retidão de S. Ex. (AO EXM. SR...., 8 maio 1861, p. 2).
Era o início da pressão imobiliária naquela região. O processo de concentração fundiária mediante a apropriação das terras dos seus tradicionais ocupantes significou a expulsão paulatina deles dali, um processo que foi acompanhado pelo colonialismo jurídico que a legitimou, impondo concomitantemente um direito estranho às formas de organização das comunidades tradicionalmente ali estabelecidas. O tema, aliás, não é novo. É conhecida a discussão do século XVI sobre se os nativos do Novo Mundo deveriam ser regidos pelas leis dos reinos europeus. Ela ficou celebrizada na disputa ocorrida em Valladolid entre os juristas Bartolemeu de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda. Las casas defendia em seu libelo Brevíssima Relación de la Destruición de las Indias Ocidentales, de 1552, o direito dos nativos à vida, à terra e à liberdade. Ele denunciava as “invasões de tiranos cruéis, que são condenados não somente pela lei de Deus senão também por toda e qualquer lei humana” (LAS CASAS, 1996, p. 54). Em termos atuais, ele reafirmava a autonormatividade dos povos então recém descobertos contra as leis heteronormativas dos soberanos europeus. Do outro lado da polêmica, Sepúlveda (1986) foi um aguerrido defensor da guerra justa contra os índios em seu livro Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los indios, impresso em Roma em 1550. Para justificar o seu ponto de vista no direito de natureza, sustentava Sepúlveda (1986, p. 85) o seguinte:
Los que exceden à los demás en prudencia é ingenio, aunque no en fuerzas corporales, estos son, por naturaleza, los señores; por el contrario, los tardíos y perezosos de entendimiento, aun que tengan fuerzas corporales para cumplir todas las obligaciones necesarias, son por naturaleza siervos, y es justo y útil lo sean, y aun lo vemos sancionado en la misma ley divina. Porque escrito está en el libro de los Proverbios: “El que es necio servirá al sabio”. Tales son las gentes bárbaras é inhumanas, ajenas à la vida civil y à las costumbres pacíficas. Y será siempre justo y conforme al derecho natural que tales gentes se sometam al imperio de príncipes y naciones más cultas y humanas, para que merced às sus virtudes y à la prudencia de sus leyes, depongan la barbarie y se reduzcan à vida más humana y al culto de la virtud.
No Brasil, lamentavelmente, como constatou Laura de Mello e Souza (2009, p. 89), “os antigos missionários do Brasil aproximando-se mais de um Sepúlveda do que de um Las Casas”. Pois bem, esse é mais um passado que não quer passar. O problema agora é o neocolonialismo dos missionários atuais. A submissão das comunidades tradicionais normativamente autônomas ao regime jurídico dominante continua até hoje a produzir violências através dos novos agentes da lei. E o pior é que a remoção de gente simples do Imbuhy acontece para que hotéis de trânsito de militares sejam construídos, o que, aliás, caracteriza uma forma de exploração imobiliária daquele espaço que vem sendo anunciada há muito tempo. Para se ter uma ideia disso, o loteamento particular de toda a extensão de terras onde fica a Aldeia, supostamente de propriedade da empresa Jardins Piratininga Imbuí Limitada, que ia “da lagoa de Piratininga e Praia de Imbuí”, previa na década de 1940 um “elemento paisagístico, de grande valor, com um bosque”; a “construção de um cais”, “um hotel moderno”, e “a sede de um clube, localizado na ilha, que se encontra no interior da lagoa de Piratininga, no gênero do Clube dos Caiçaras existente na lagoa Rodrigo de Freitas”, conforme consta na Certidão do Livro 8-Auxiliar, fls. 008, sob o nº de ordem 02, do Cartório do 15º Ofício de Justiça de Registro de Imóveis de Niterói. Com efeito, o neocolonialismo jurídico continua a produzir o despedaçamento de famílias inteiras, continua a atormentar e destruir aquela comunidade, embora tudo isso fique escamoteado pela abertura formal ao contraditório no âmbito judiciário, envolvendo em seu labirinto pessoas humildes que, em sua maioria, desconhecem as filigranas de uma demanda judicial: “não podiam abandoná-la senão com grande pena em virtude disso suportavam tantas perseguições e curtiam pacientemente as tiranias, os ultrajes cruéis e a servidão sob o jugo dos espanhóis” (LAS CASAS, 1996, p. 49). Triste permanência histórica. Pessoas que desconhecem ainda hoje até mesmo que toda a área de terras da Aldeia Imbuhy é particular e que eles teriam direito no mínimo à usucapião de seus respectivos terrenos para posterior indenização por desapropriação, se fosse o caso. Não pretendo com isso fugir do debate sobre a comunidade tradicional. Eles são de fato uma comunidade tradicional e isso bastaria para dar aos seus moradores o direito à terra. Esse é o direito da Aldeia, segundo o que preceitua a Constituição Federal nos artigos já acima mencionados e toda a normatividade dela decorrente. Ponto final. Entretanto, o que quero dizer é que mesmo se deixarmos de lado essa discussão sobre o direito à autodeterminação da Aldeia Imbuhy, também teriam os seus aldeões o direito à terra pelo viés do direito de propriedade oriundo do velho e dogmático civilismo e nem assim esse direito lhes é enfim reconhecido.
Sim, a área é particular mas não em virtude do loteamento feito pela empresa Jardins Piratininga Imbuí Limitada. Sotero Cayo Monteiro, que a professora Márcia Motta (2017, p. 9) identificou como sendo proprietário da Fazenda Piratininga na década de 1840, já arrendava as suas terras na localidade do Imbuhy desde 1831, de acordo com o registro no Livro de Notas do escrivão do Juízo de Paz da Freguesia de Itaipu, compreendendo o período de 5 de setembro de 1831 a 17 de agosto de 1862 (CARMO; DOMINGUES, 2008, p. 146). A área, portanto, era particular muito antes da construção do forte ou da chegada ali da empresa Jardins Imbuí-Piratininga Ltda, cujo registro foi feito mediante a grilagem das terras. Mário Guaraná de Barros e seu advogado, Norival de Freitas, apagaram o registro anterior das terras que compraram do espólio de Hermenegildo Henrique Coutinho, simplesmente abrindo uma nova matrícula para toda a área noutro Cartório em Niterói. Que digam os jornais da época:
A advocacia administrativa, tem feito progressos extraordinários nos últimos tempos. Merecia mesmo um código especial, tanto se agasta das regras do direito e do seu processo. Com o tempo é possível que algum senador, homem de estofo moral do sr. Adolpho Gordo, se lembre de regularizar a liberdade da dita cuja...
Não fosse a sua licença, não estaria agora em causa o nome de um político fluminense, o sr. Norival Soares de Freitas, advogado activo, rabula finório e moço bem quisto nas rodas situacionistas.
A causa entregue ao sr. Norival é interessante. Determinado cavalheiro adquiriu em julho do anno passado uma porção de terras em Nictheroy. Comprou arteiramente, porque lhe asseguraram que o forte do Imbuhy estava encravado na propriedade. Assignada a escriptura, antes de certificar-se da realidade da insinuação, correu ao escriptorio do amigo: é preciso requerer já. O caso é bom. O forte do Imbuhy está nas minhas terras. Só você póde salvar.
O deputado Norival de Freitas requereu: meio por meio não há advogado que resista...
E então, arrazoando a causa do sr. Mário Guaraná, grita, em tinta preta, o sr. Norival de Freitas que não há melhor maneira de resolver a questão para as partes litigantes do que o pagamento da imndenização pedida, pois se trata de esbulho.
O montante da imndenização é de 503:000$000. E o sr. Mário Guaraná comprou as terras por muito menos de uma decima parte do valor da imndenização.
A questão está sub judice. Esperemos o despacho do Ministro da Guerra e... os embargos do Patrimônio Nacional (A ADVOCACIA..., 4 out. 1923, p. 4).
Dizia o mesmo jornal, no ano seguinte:
Até há pouco, era o sr. Norival de Freitas, com a sua cara de árabe, vendedor de prestações, uma das figuras preeminentes da politica situacionista no Estado do Rio. Nada se fazia sem o seu consentimento. Era elle quem nomeava e quem demitia no Estado, por intermédio do sr. Aurelino. O fracasso da candidatura Sodré, foi, da primeira vez, obra sua. Era o torquemada fluminense, que condemnava à fogueira amigos e adversários.
Agora, surge, de repente, uma denuncia documentada, a prova de que esse turco falsificado é, em matéria de negocio, um turco legitimo. Informado de que havia um litigio sobre as terras em que se acha o forte de Imbuhy, mandou o sr. Norival que um dos seus amigos adquirisse o terreno, o que foi feito pelo preço de dois contos e quinhentos. Realizada a compra, Norival, assumindo o caracter de advogado, moveu uma acção contra a União, reclamando quinhentos contos de arrendamentos atrasados, e mais alguns milhares no caso de alienação. E como o sr. Leon Roussauliéres não anda também satisfeito com o governo que o preteriu para servir o tenente Sodré, obteve o sr. Norival no juízo federal um mandado de posse, que é um verdadeiro golpe contra os interesses do governo federal.
Toda a gente perguntava, até há pouco, o que ia fazer na câmara o sr. Norival. E ahi está a resposta. Que o eleitorado se lembre disso nas próximas eleições (ATÉ HÁ POUCO..., 12 jan. 1924, p. 4).
Os terrenos da antiga freguesia de Itaipu foram registrados originalmente em Niterói desde a década de 1830, passando a pertencer ao município de Maricá em 27 de dezembro de 1889, pelo Decreto Estadual nº 15; retornou para Niterói pelo Decreto Estadual nº 36, em 14 de janeiro de 1890; e passou a ser parte de São Gonçalo pelo Decreto Estadual nº 164 em 28 de março de 1891. Tantas mudanças territoriais ocasionarm muita insegurança jurídica sobre o registro das terras particulares dentro da Aldeia Imbuhy e alguém se beneficiou disso. E não foram os seus moradores, é claro. Encontramos um dado interessante num volume da Revista de Engenharia de 1890, indicando que mesmo antes da inauguração do Forte Imbuhy em 1901, a União não tinha qualquer documento sobre a posse das terras onde estavam situadas diversas fortificações de Niterói:
Demarcação de Terrenos. – Ao Sr. ministro da fazenda ia dirigir o da guerra o seguinte officio:
‘Não sendo possível à commissão nomeada para demarcar os terrenos das zonas de defesa das fortalezas de Santa Cruz e Praia de Fóra, e dos fortes do Pico e de Imbuhy, por falta dos esclarecimentos precisos ou de apresentação dos títulos de propriedade ou domínio das terras confinantes, roga vos digneis providenciar para que o Dr. procurador de feitos da fazenda interponha a sua autoridade para colher os documentos precisos, para o reconhecimento da legitimidade dos títulos de posse das alludidas fortalezas e fortes (DEMARCAÇÃO..., 28 fev. 1890, p. 376).
Quando houve o retorno de Itaipú para o município de Niterói, a competência registral passou a pertencer ao Cartório do Registro de Imóveis Cartório da 7ª Circunscrição de Niterói. Entretanto, Mário Guaraná abriu uma nova matrícula no Cartório do 15º Ofício da 6º Circunscrição, como se não houvesse registros anteriores das terras em nenhum lugar. Foi esta matrícula que posteriormente serviu de base para o loteamento Jardins Piratininga Imbuí Limitada e também para a área da suposta servidão militar hoje reivindicada pelo Exército, com base no Decreto nº 77.890, de 22 de junho de 1976 (BRASIL, 1976). Todavia, o artigo 2º deste decreto indicou a 2ª Circunscrição de Niterói com a competência registral de toda a área, enquanto que os títulos de propriedade anteriores estavam na verdade registrados na 7ª Circunscrição do mesmo município. Se isso foi de propósito ou não, não o sabemos. Fato é que isso impediu que o Oficial do registro imobiliário do 15º Ofício verificasse a existência dos títulos de propriedade pretéritos e evitasse a sobreposição de matrículas em desfavor dos moradores da Aldeia.
Tanto a área da Aldeia Imbuhy é particular, que a União Federal perdeu a ação de reintegração de posse nº 3.000/1959 (BRASIL, 1959), movida por dois proprietários e possuidores de uma propriedade dentro dela. Um deles, Welfrides Fonseca Mattos, era descendente da família Brum, estabelecida naquela região desde pelo menos a década de 1850. O lote de terras em questão tinha “um alqueire e meio mais ou menos, com frente para a Estrada do Imbuí, que vai para a Barra de Piratininga, no lugar ‘Imbuí’ – Marazul”, segundo consta na Certidão expedida pelo Cartório do 16º Ofício da 7ª Circunscrição de Niterói, matrícula nº 37.838, 001. Nesta ação, encontramos o Oficio nº 498 SSS/SI da Diretoria do Patrimônio do Exército, datado de 26.11.64, esclarecendo que “a zona de servidão militar pode ser próprio nacional sujeito a aforamento ou de propriedade particular”, e que “quando aforado ou pertencente a terceiro o imóvel na zona das 600 braças será desapropriado se pelo Ministério da Guerra foi emitido parecer contrário à sua utilização por ser proprietário”. Levando em conta este documento, o então Ministro Amarílio Benjamim, do antigo Tribunal Federal de Recursos, examinando a matéria debatida naqueles autos, deu razão aos proprietários do terreno dentro da Aldeia Imbuhy que foram esbulhados pelo Exército, reintegrando-os judicialmente em sua posse cuja sucessão remontava a 1889. De fato, uma vez reconhecida judicialmente a violência perpetrada pela União Federal, outra alternativa não restaria senão a desapropriação da área. Por isso há naqueles autos uma petição dirigida ao juiz firmada em 16/11/1982, comunicando a intenção de desapropriar o terreno localizado dentro da Aldeia. Esta desapropriação, contudo, jamais foi feita. Ao invés disso, a União Federal, em 1996, ajuizou ações de reintegração de posse contra 32 famílias de moradores da Aldeia Imbuhy, essas que agora estão sendo cumpridas com a remoção dos seus moradores, incluindo os sucessores da posse judicialmente reconhecida por Welfrides da Fonseca Mattos que ainda resistem no local.
E o argumento de todas essas ações ajuizadas contra os moradores da Aldeia Imbuhy foi o Decreto nº 77.890/76 (BRASIL, 1976). Mas ele não poderia transferir a propriedade, tampouco a posse da área ocupada pelos moradores, já que o seu artigo 1º apenas possibilita o registro da área ocupada pelo Exército vinte anos antes da sua edição. Logo, ele não se aplica á área da Aldeia, já que os seus moradores já estavam ali muito tempo antes disso. O curioso é que este decreto possui um contexto datável historicamente. O Forte do Imbuhy fazia parte de um complexo de unidades militares formado com o do Rio Branco, Pico e Santa Cruz, onde funcionava o presídio do Exército. Era imprescindível vigiar o interior destes quartéis, evitando o vazamento do que acontecia ali dentro, sobretudo após os assassinatos de Vladimir Herzog, em 25 de outubro do ano anterior, e de Manoel Fiel Filho, em 18 de janeiro daquele mesmo ano de 1976, ambos ocorridos dentro de unidades militares do II Exército, em São Paulo. Estes dois assassinatos acenderam o sinal de alerta. O controle máximo das unidades militares foi a medida adotada para a preservação do silêncio das torturas e do anonimato dos algozes, bem como controlar a atuação criminosa dos grupos de extermínio. A região do Imbuhy era um lugar praticamento aberto, com civís em seu interior e pessoas entrando e saindo a qualquer momento, inclusive pelo acesso do Forte Rio Branco. O Decreto-lei 77.890/76 (BRASIL, 1976) foi um expediente tipicamente de exceção que visava exatamente ocultar tudo o que acontecia ali dentro. E a consequência disso tudo, como apontado por Achille Mbembe (2017, p. 136), segundo ocorre em várias situações de colonialismo no mundo moderno, foi a perpetuação de um anacrônico “estado de sítio” naquela comunidade: “O quotidiano é completamente militarizado [...] As instituições civis locais são sistematicamente destruídas. A população sitiada permanece privada dos seus meios de sobrevivência”.
A prisão e a tortura de prisioneiros políticos dentro do enorme complexo militar de Niterói do qual o Forte do Imbuhy era parte integrante, foram registradas recentemente no depoimento do ex-preso político Umberto Trigueiro, feito para a Comissão da Verdade de Niterói: “Aí eles me levaram de lá, do Terceiro Regimento de Infantaria, para o Forte Rio Branco, ali em Jurujuba. Tinha muita gente da UFF presa lá, muita gente presa” (PALMAR, 2015, p. 112). Estas memórias revelam outro motivo possível e até o momento desconsiderado para a edição do Decreto nº 77.890/76 (BRASIL, 1976) que tanto embasa as decisões judiciais atuais sobre a Aldeia favoráveis à União. Uma “espiga” e tanto que os intérpretes deixam cair nos dias de hoje, com a violação de tantos direitos fundamentais que ele permitiu e ainda permite. São dados como esses que nos levam a duvidar da versão oficial do Exército sobre o conflito sociojurídico na Aldeia. Eles nos permitem pensar que ao “avesso” dos corpos mutilados corresponde o “avesso” do direito, o seu contrário, com a qual nenhuma justiça pode conviver. Em suma, a tortura deveria permanecer oculta ali dentro e os moradores da Aldeia Imbuhy cada vez mais controlados, silenciados, sitiados na própria localidade onde nasceram e viveram, até serem forçados ao atual exílio. Era isso o que acontecia ali enquanto eu me banhava naquelas praias durante os finais de semana.
Referências
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
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Fontes
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Notas de autor
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