Artigos
Os significados do conceito de greve na legislação no Governo Vargas (1931-1945)
Los significados del concepto de huelga en la legislación de la Era Vargas (1931-1945)
The meanings of the concept of ‘strike’ under the legislation of the Vargas Era (1931-1945)
Les significations du concept de grève dans la législation de l’Ère Vargas (1931-1945)
瓦尔加斯时代立法中罢工的概念及其意义(1931-1945)
Os significados do conceito de greve na legislação no Governo Vargas (1931-1945)
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 11, núm. 3, pp. 329-347, 2019
Universidade Federal Fluminense

Recepção: 04 Junho 2019
Aprovação: 14 Agosto 2019
Resumo: O artigo pretende analisar a mudança conceitual da greve a partir de leis e decretos entre 1931 e 1945. Procuramos reconstruir o arcabouço legal que tangencia o direito de greve. Dessa forma, embora a análise legal seja central no trabalho, ela é crítica e cotejada com dicionários contemporâneos ao período, explicando a intenção do Estado de extirpar o fenômeno social da greve por vias legais. Busca-se demonstrar as gradativas restrições e cisões feitas ao conceito, como o estabelecimento da diferença entre “greve violenta” e “greve pacífica”, “greve por motivos pertinentes às condições de trabalho” e “greve por motivos estranhos às condições de trabalho”, até a Constituição de 1937 chancelá-la como “prática antissocial” e a Constituição de 1946, após o Governo Vargas, reconhecê-la como direito.
Palavras-chave: conceito de greve, legislação, Era Vargas (1931-1945).
Resumen: El artículo pretende analizar el cambio conceptual de la huelga a partir de leyes y decretos del período entre 1931 y 1945. Nuestro objetivo es reconstruir el marco legal que regula el derecho a la huelga. De esta forma, a pesar de que el análisis legal resulte central en el trabajo, es a su vez crítico y está cotejado con diccionarios contemporáneos a este período, además de que explica la intención del Estado de extirpar el fenómeno social de la huelga, poco a poco, por vías legales. Se busca demostrar las restricciones y escisiones graduales realizadas al concepto, como el establecimiento de la diferencia entre huelga violenta y huelga pacífica, huelga por motivos relacionados con las condiciones de trabajo y huelga por motivos ajenos a las condiciones de trabajo, hasta que la Constitución brasileña de 1937 la consideró «práctica antisocial» y la Constitución de 1946, tras el Gobierno Vargas, la reconoció como derecho.
Palabras clave: concepto de huelga, legislación, Era Vargas (1931-1945).
Abstract: The following article aims to analyze the conceptual shift undergone by the term ‘strike’ based on the laws and decrees of 1931 to 1945 by reconstructing the legal framework affecting the right to strike. Despite the fact that the legal analysis is thus central to the work, it is critical in nature and has been cross-checked with dictionaries from the period, revealing the State’s intention to gradually eradicate the social phenomenon of striking by legal means. We seek to demonstrate the incremental restrictions and ruptures made to the concept, from the establishment of the difference between “violent strike” and “peaceful strike”, and between “strike due to working conditions” and “strike due to reasons not related to working conditions”, to the 1937 Constitution branding it an “anti-social practice” and the 1946 Constitution’s recognition of it as a right, in the wake of the Vargas Government.
Keywords: Concept of ‘strike’, legislation, Vargas Era (1931-1945).
Résumé: Cet article entend analyser la transformation conceptuelle de la grève opérée par les lois et les décrets adoptés entre 1931 et 1945. Nous chercherons à reconstituer le cadre juridique qui régulait le droit de grève. De cette manière, encore que l’analyse juridique s’avère centrale dans ce travail, nous en ferons un usage critique et la mettrons en parallèle avec les dictionnaires de cette période, et ce afin de mettre en lumière l’intention de l’État d’éradiquer petit à petit le phénomène social de la grève par des voies légales. On cherchera à montrer les restrictions et les coupes graduelles imposées au concept, telles que la différentiation entre « grève violente » et « grève pacifique », ou entre « grève pour motifs relatifs aux conditions de travail » et « grève pour motifs étrangers aux conditions de travail », jusqu’à ce que la Constitution de 1937 ne la considère comme une « pratique antisociale » et que celle de 1946, après le gouvernement Vargas, ne finisse par la reconnaître comme un droit.
Mots clés: concept de grève , législation , Ère Vargas (1931-1945).
摘要: 本文旨在分析1931年至1945年间立法和法令中的罢工概念及其变化。我们寻求重建涉及罢工权力的法律框架。尽管本研究的基础是法律条文分析,作者也分析批判了当时的官方话语,尤其是字典里的罢工一词的解释,它们说明国家权力意图通过法律手段逐步消除罢工这一社会现象。作者指出,在瓦尔加斯时代,罢工这一概念的逐步被限制和分裂,例如确定“暴力罢工”和“和平罢工”之间的区别,“与工作条件有关的罢工”和“与工作条件无关的罢工”。甚至于1937年,宪法将其作为一种“反社会行为”,取消了罢工权。直到1946年,瓦尔加斯政府结束之后新颁布的宪法才承认罢工为合法权利。
關鍵詞: 罢工概念, 立法, 瓦尔加斯时期(1931-1945).
Introdução
O artigo analisa a alteração conceitual da greve a partir de leis e decretos entre 1931 e 1945. Embora a análise legal seja central no trabalho, ela é crítica e cotejada por dicionários contemporâneos ao período, e explica a intenção do Estado de extirpar o fenômeno social da greve, pouco a pouco, por vias legais.
O objetivo do artigo é reconstruir o aparato legal que regulava a greve e demonstrar as alterações do conceito de greve, utilizando as leis como fontes principais. A legislação foi utilizada pelo Estado brasileiro para regular e restringir o exercício de greve, o que é evidenciado pelo expressivo número de leis formuladas no período analisado. A reconstrução dessas leis contribui também para compreender como o governo se relacionava com os movimentos grevistas.
Desse modo, busca-se demonstrar as gradativas restrições e cisões feitas ao conceito, como o estabelecimento da diferença entre “greve violenta” e “greve pacífica”, “greve por motivos pertinentes às condições de trabalho” e “greve por motivos estranhos às condições de trabalho”, até a Constituição de 1937 (BRASIL, 1937) chancelá-la como “prática anti-social”, e a Constituição de 1946 (BRASIL, 1946b), após o Governo Vargas, reconhecê-la como direito.
Inspirados metodologicamente pelas obras de Reinhart Koseleck (2006), pretendemos perceber as mudanças dos conceitos de greve mesmo que o vocábulo “greve” não tenha se alterado. O autor alemão explicita que o uso de uma mesma palavra em diversos momentos na história pode esconder os diversos conceitos que a mesma abriga. Ou seja, pretendemos investigar o que significam as palavras que descreviam as greves nos decretos do período. Como fontes primárias, utilizamos todas as leis do período compreendido entre 1931 e 1945 que regulavam ou citavam o vocábulo greve e procuramos cruzar os conceitos contidos nelas com dicionários de períodos contemporâneos, posteriores e anteriores. Ver no anexo (http://www.revistapassagens.uff.br/index.php/Passagens/article/view/265/241) uma tabela com todos os dicionários consultados e os conceitos encontrados.
A Revolução de 1930 e as primeiras leis
No limiar da década de 1930, os sindicatos de classe – tanto patronais como operários – foram regulados pelo Decreto n° 19.770, de 19 de março de 1931 (BRASIL, 1931). O texto estabelecia a unicidade sindical, o que denota que seria delimitado um sindicato para cada categoria profissional, ainda que a sindicalização não fosse obrigatória. Devido a isso, os sindicatos reconhecidos pelo governo que, obrigatoriamente, deveriam ser registrados no Ministério do Trabalho, da Indústria e Comércio (BRASIL, 1931, art. 2°), atuariam como “órgãos consultivos e técnicos no estudo e solução, pelo Governo Federal, dos problemas que, econômica e socialmente, se relacionarem com os seus interesses de classe” (BRASIL, 1931, art. 5°).
No ano seguinte, o Decreto nº 21.396, de 12 de maio de 1932 (BRASIL, 1932), determinou a criação, pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), das Comissões Mistas de Conciliação, que tinham a incumbência de “dirimir os dissídios entre empregadores e empregados” (BRASIL, 1932), uma vez que o governo vislumbrava a ingerência nos conflitos trabalhistas coletivos. A Comissão atuaria também nos casos em que fosse verificada a impossibilidade de conciliação, já que caberia a mesma propor as partes que o litígio fosse submetido a juízo arbitral (BRASIL, 1932, art. 14). Contudo, observada a recusa uni ou bilateral, o litígio seria remetido ao MTIC, ou à autoridade que o representasse, para a devida solução. Assim, o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio poderia nomear uma comissão especial para proferir um laudo sobre o dissídio (BRASIL, 1932, art. 15).
O Decreto nº 21.396 (BRASIL, 1932) determinava, de um lado, que estariam submetidos à suspensão ou dispensa sumária do trabalho os empregados que, sem combinação prévia com os empregadores, por meio da Comissão de Conciliação, abandonassem o trabalho, praticassem atos considerados de indisciplina, dificultassem a resolução do dissídio ou não atendessem integralmente ao acordo realizado ou a decisão proferida sobre o litígio (BRASIL, 1932, art. 17). E, de outro, que o empregador que suspendesse o trabalho, em decorrência de dissídio com empregados, sem buscar a promoção de acordo junto à Comissão de Conciliação, estava sujeito à multa (BRASIL, 1932, art. 16).
Em 1935, dois anos antes do advento do Estado Novo, foi editada a Lei nº 38, de 4 de abril (BRASIL, 1935), a Lei de Segurança Nacional. É possível destacar dois artigos desta lei:
Art. 18. Instigar ou preparar a paralysação de serviços publicos, ou de abastecimento da população.
Pena – De 1 a 3 annos de prisão cellular.
Paragrapho unico. Não se applicará a sancção deste artigo ao assalariado, no respectivo serviço, desde que tenha agido exclusivamente por motivos pertinentes ás condições de seu trabalho.
Art. 19. Induzir empregadores ou empregados á cessação ou suspensão do trabalho por motivos estranhos ás condições do mesmo.
Pena – De 6 mezes a 2 annos de prisão cellular (BRASIL, 1935, art. 18-19).
Essa foi a primeira criminalização da greve no Brasil. Instigar ou preparar a paralisação de serviços públicos ou de abastecimento, salvo por motivos das condições de trabalho, era crime. A greve, considerada direito pelo sistema legal do período, apesar de combatida violentamente pela política, sofria uma importante restrição. As greves por solidariedade, tão comuns no período, assim como as greves por motivos políticos ou motivos estranhos às condições diretas de trabalho passavam a ser crime (SIQUEIRA, 2018, 2019).
Em 1935, a Constituição Federal é emendada, autorizando que a “comoção intestina grave, com finalidades subversivas das instituições políticas e sociais” fosse “equiparada ao estado de guerra” (BRASIL, 1935). O art. 161 da Constituição de 1934 explicitava que essa equiparação implicava a suspensão das garantias constitucionais que pudessem “prejudicar direta ou indiretamente a segurança nacional” (BRASIL, 1934, art. 161).
Os dicionários que circulavam no Brasil traziam, desde a segunda metade do século XIX, poucas variações no significado da palavra greve, sendo bastante comum a seguinte definição: “Conluio de operários, de estudantes, de funcionários, etc., que recusam trabalhar, ou comparecer aonde chama dever, em-quanto lhes attendam certas reclamações” (FIGUEIREDO, 1899, p. 100). Aqui vale a pena frisar que o “conluio” é uma ação para prejudicar outrem. Sendo assim, para os dicionários do período, a greve é um conluio legal, uma ação para prejudicar alguém que a lei permite. Neste ponto é interessante perceber como o direito de greve, reconhecido pela doutrina e pelo Supremo Tribunal Federal na época (SIQUEIRA, 2018), é tratado nos dicionários que circulavam no período.
Em pelo menos nove obras (FIGUEIREDO, 1899, 1913, 1925-1926, 1947; BRUNSWICK, [1910?]; SÉGUIER, 1928; TORRINHA, 1937; NASCENTES et al., 1938, 1939, 1942, 1951; CARVALHO, 1945; LIMA, 1951) a greve está descrita como parada coletiva no recebimento de ordens – seja em instituição de ensino ou de trabalho – até a primeira parte da década de 1930 (ver anexo <http://www.revistapassagens.uff.br/index.php/Passagens/article/view/265/241> ). A vinculação da greve com a violência, que começa a se formar na definição legal, não aparece em dicionários antes do fim do Estado Novo, sendo indício de que a sociedade não estabelecia essa relação no período, a despeito do esforço de construção da associação entre os termos por parte do governo.
O aparato legal sobre greve entre 1937 a 1945
O governo já mostrava suas intenções de controle da greve e dos trabalhadores antes de 1937. Graciliano Ramos explica um pouco do momento:
O congresso apavora-se, largava bambo as leis de arrocho – vivíamos de fato numa ditadura sem freio. Esmorecida a resistência, dissolvidos os últimos comícios, mortos ou torturados operários e pequenos-burgueses comprometidos, escritores, e jornalistas a desdizer-se, a gaguejar, todas as poltronices a inclinar-se para a direita, quase nada poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros (RAMOS, 2008, p. 30).
O Golpe do Estado Novo é proclamado em 10 de novembro de 1937, na mesma data em que é outorgada a nova Constituição. Nela, o direito de greve foi considerado prejudicial à sociedade no mesmo artigo que a Justiça do Trabalho foi instituída.1 Prescrevia o artigo 139:
Art. 139 - Para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam as disposições desta Constituição relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da Justiça comum. A greve e o lock-out são declarados recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional (BRASIL, 1937, art. 139).
A Constituição deixava claro que, para o governo, a realização de greves era contrária aos “interesses sociais”, “nocivas ao trabalho” e “incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional” (BRASIL, 1937, art. 139). Mas o direito de greve não era explicitamente criminalizado pela Constituição; a continuação do art. 139 mais parecia uma frase solta do constituinte sobre o direito de greve.
No ano seguinte, o Decreto-Lei nº 431, de 18 de maio de 1938 (BRASIL, 1938), que definia os “crimes contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado e contra a ordem social” (BRASIL, 1938, em.) e instituía a pena de morte no país (BRASIL, 1938, art. 2º), punia com maior rigor os crimes relacionados à greve do que a normativa anterior, a Lei nº 38 (BRASIL, 1935). De tal modo, o decreto não reiterou a exceção da sanção ao trabalhador, prevista anteriormente, para aquele que instigasse ou preparasse a paralisação de serviços públicos ou de abastecimento da população, impelido por questões relativas às condições de seu trabalho (BRASIL, 1938, art. 3°, § 12) e, também, passou a considerar crime a indução à greve ou ao lock-out ocasionada por motivos pertinentes às mesmas condições (BRASIL, 1938, art. 3º, § 22).
Ao mesmo tempo em que o Decreto-Lei nº 1.237, de 2 de maio de 1939 (BRASIL, 1939a), regulamentou a Justiça do Trabalho e criminalizou as condutas de greve, contraditoriamente, condicionou a prática de greve à prévia autorização do Tribunal competente, bem como instituiu multa a empregadores que praticassem lock-out sem a devida autorização ou não atendessem a decisão do tribunal (BRASIL, 1939a, art. 81).
Art. 81 Os empregados que, coletivamente e sem prévia autorização do tribunal competente abandonarem o serviço, ou desobedecerem a decisão de tribunal do trabalho serão punidos com penas de suspensão de até seis meses, ou dispensa, além de perdas de cargo de representação profissional e incompatibilidade para exercê-lo durante o prazo de dois a cinco anos (BRASIL, 1939a, art. 81).
Já o artigo 82 punia a associação profissional que fizesse greve; e o artigo 83 criminalizava a prática:
Art. 82 Quando a suspensão do serviço a desobediência ás decisões dos tribunais do trabalho for ordenada por associação profissional, sindical ou não de empregados ou de empregadores, a pena será:
a) Si a ordem for ato da assembleia, cancelamento do registro da associação da multa de 5:000$000 (cinco contos de réis) a 50:000$000 (cinquenta contos de réis) aplicada em dobro, si se trata de serviço público;
b) Si a insigação, ou ordem, for ato exclusivo dos administradores, perda do cargo, sem prejuizo da pena cominada ao art. 83.
Art. 83 Todo aquele que empregado ou empregador ou mesmo estranho ás categorias em conflito, instigar á prática de infrações previstas neste capítulo, ou se houver feito cabeça de coligação de empregadores ou empregados, incorrerá na pena de seis meses a três anos de prisão, sem prejuízo das demais sanções cominadas neste capítulo.
§ 1º Tratando-se de serviço público, ou havendo violência contra pessoas ou coisas, as penas previstas neste artigo serão aplicadas em dobro sem prejuizo de quaisquer outras estabelecidas neste capítulo e na legislação penal comum.
§ 2º O estrangeiro que incidir nas sanções deste artigo depois de cumprir a respectiva penalidade, será expulso do país, observados os dispositivos da legislação comum (BRASIL, 1939a, art. 82-83).
Nessa perspectiva, observa-se que as sanções eram administrativas e criminais. Todos aqueles envolvidos no movimento de greve podiam ser punidos, incluindo empregados e pessoas estranhas às categorias envolvidas. A punição, pelo caput do artigo 83, incluía a greve pacífica. O parágrafo 1º criminalizava a greve violenta e o parágrafo 2º determinava para o estrangeiro, além da pena de prisão, a expulsão do país após o cumprimento da pena. Desta forma, a greve, sem autorização do Tribunal competente era um ilícito penal e o grevista estrangeiro deveria ser combatido e banido, ou seja, penalizado duas vezes.
O Presidente da República nomeava os Presidentes das Juntas de Conciliação e Julgamento, assim como presidentes e vogais dos Conselhos Regionais do Trabalho, conforme artigo 7º: “a nomeação recairá em magistrados de primeira instância ou em bacharéis de direito [de] reconhecida idoneidade moral domiciliados na cidade de jurisdição da junta” (BRASIL, 1939a, art. 7º). Deste modo, esperava-se um alinhamento entre seus escolhidos e suas políticas.
Getúlio Vargas implementava práticas de combate à greve que já existiam na Primeira República: marginalização dos grevistas e expulsão dos estrangeiros – considerados nocivos ao país. Ocorre que, em oposição ao que foi praticado na Primeira República, o chefe do Estado Novo se utilizava do aparato legal para também criminalizar as condutas. Por meios distintos, chegava-se ao mesmo resultado: o combate violento aos movimentos grevistas. Apesar de combatida pelo Estado, a greve na Primeira República era um direito (SIQUEIRA, 2015).
A regulamentação da associação em sindicato, em 1939, através do Decreto-Lei nº 1.402, de 5 de julho (BRASIL, 1939b), além de estipular como dever dos sindicatos a promoção da conciliação nos dissídios de trabalho (BRASIL, 1939b, art. 4º) definia estratégias de controle estatal de conflitos:
Art. 17. Ocorrendo dissídio ou circunstância que perturbe o funcionamento do sindicato, o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio poderá nele intervir, por intermédio de delegado com atribuições para administrar a associação e executar ou propor as medidas necessárias para normalizar-lhe o funcionamento (BRASIL, 1939b, art. 17).
O Código Penal de 1940, ainda vigente, (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro [BRASIL, 1940a]), no “Título IV Dos crimes contra a organização do trabalho”, criminalizava apenas a greve violenta, seguindo o modelo utilizado pelo Código Penal de 1890. Sendo assim, criminalizada a utilização de determinadas condutas, tais como a utilização de “violência ou grave ameaça” com a finalidade de constranger a participação em greve ou lock-out e, também, a ocorrência de “violência contra pessoa ou coisa” no decorrer da greve (BRASIL, 1940a). Nas palavras de Cristiano Fragoso,
[...] as estratégias de criminalização dos movimentos grevistas no vigente Código Penal foram parcimoniosas, seja na extensão do poder punitivo, seja na intensidade das penalidades fixadas. Mas isto também se deve certamente ao fato de que, à época, algumas estratégias de criminalização já estavam em vigor na lei de segurança nacional, o dec. 431/38. Não se criminalizaram as associações operárias (coalizões), nem a greve pacífica; que também, [...] não estiveram criminalizadas no dec. 431/38. Era natural que não se criminalizasse a greve realizada em desacordo com formalidades legais, pois, se a greve era proibida à época da edição do CP, a lei não poderia estabelecer formalidades para realizar greve, que, consequentemente, não poderiam ter sua validade e sua eficácia defendidas sob ameaça de pena (FRAGOSO, 2007, p. 256).
Os artigos previstos no Código Penal de 1940 que, em certo sentido, estão relacionados à temática dos dissídios coletivos serão discutidos de forma mais aprofundada a seguir. O primeiro trata do atentado contra a liberdade de trabalho, que consistia em:
Art. 197 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça:
I - a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência;
II - a abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho, ou a participar de parede ou paralisação de atividade econômica:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. (BRASIL, 1940a, art. 197).
O constrangimento, “mediante violência ou grave ameaça”, para que alguma pessoa não tome parte de “parede ou de paralisação da atividade econômica”, não configurava crime contra a organização do trabalho (BRASIL, 1940a, art. 197, II), já que a Constituição sopesava a greve e o lock-out como ações antissociais.
O artigo 198 dispunha sobre o atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta, no qual a admissão da “boicotagem”, nos crimes contra a organização do trabalho, estava atrelada à sua apropriação como forma de luta pelos trabalhadores, por ocasião de conflitos coletivos com os empregadores.
Art. 198 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar contrato de trabalho, ou a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. (BRASIL, 1940a, art. 198).
Já artigo 199 discorre acerca do atentado contra a liberdade de associação, fixando pena de detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. Sendo assim, a liberdade de associação sindical profissional ou sindical, antevista na Constituição de 1937 (BRASIL, 1937), em seu artigo 122, foi afiançada no referido código.
A paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem, era prevista no artigo 200. A paralisação realizada por suspensão ou abandono coletivo não excluía a pena correspondente a violência, e existia o quorum mínimo de apenas três trabalhadores para que fosse considerado o abandono coletivo:2
Art. 200 - Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, praticando violência contra pessoa ou contra coisa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único - Para que se considere coletivo o abandono de trabalho é indispensável o concurso de, pelo menos, três empregados. (BRASIL, 1940a, art. 200).
O artigo 201 criminaliza a paralisação de trabalho de interesse coletivo, na qual o comportamento tipificado seria “participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo” (BRASIL, 1940a), o que significava a cessação de atividades consideradas fundamentais (serviços públicos e de serviços essenciais).
A invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola e sabotagem, está tipificada no artigo 202. Devido a isso, foram criminalizados mais alguns dos meios pelos quais os empregados manifestavam sua divergência em face de conflito coletivo com o empregador (já havia citado a “boicotagem”), ou seja, a invasão ou ocupação de estabelecimento.
Art. 202 - Invadir ou ocupar estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, com o intuito de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho, ou com o mesmo fim danificar o estabelecimento ou as coisas nele existentes ou delas dispor:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. (BRASIL, 1940a, art. 202).
O Código Penal, portanto, descreve de forma minuciosa condutas puníveis, inserindo definitivamente a greve violenta e a que se desenvolve em serviços essenciais no rol de fatos típicos. Note-se que o Código parece proteger a liberdade de trabalho, punindo o constrangimento a praticar profissão, a estabelecer contrato de trabalho, a integrar sindicato.
Dias depois da publicação do Código Penal, foi publicado o Decreto nº 6.596, de 12 de dezembro de 1940 (BRASIL, 1940b) que regulamentava a Justiça do Trabalho e encerrava o ano de 1940 com o desenho da estrutura de controle estatal do trabalho (e, por conseguinte, das greves) melhor delineado. A liberdade de trabalho seria incentivada, mas às vistas do Estado. O decreto descreve o funcionamento da Justiça do Trabalho, sendo o primeiro artigo de fundamental importância para a compreensão de seus objetivos: “Art. 1º Os dissídios oriundos das relações entre empregadores e empregados regulados na legislação social serão dirimidos pela Justiça do Trabalho, na forma do presente regulamento” (BRASIL, 1940b, art. 1º). Queria a lei, portanto, trazer os conflitos sociais – dos quais a greve é expressão máxima – para dentro do ambiente do Estado, onde a resolução é controlada a partir de fora do eixo de embate, com o governo.
O Título III, “Das Penalidades”, traz, em seus capítulos, a definição de lock out e greve e estabelece penalidades (principalmente nos artigos 210 e 211), como multa, suspensão e dispensa do emprego, suspensão dos direitos de representação, perda do cargo de representação. É o Estado decididamente interferindo na organização dos trabalhadores (e, portanto, na sua liberdade de trabalhar ou não trabalhar), que historicamente se definia como autônoma.
Em 1942, por ocasião da inserção do país na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Decreto-Lei nº 4.766, de 1º de outubro (BRASIL, 1942), que definia os crimes militares contra a segurança do Estado e dava outras providências, instituiu os crimes que seriam aplicados somente em tempo de guerra (BRASIL, 1942, art. 1º). Dentre eles estava a participação em:
[...] suspensão ou abandono coletivo de trabalho, em centro industrial, a serviço de construção ou de fabricação destinada a atender as necessidades da defesa nacional, praticando violência contra a pessoa ou coisa, [para o qual o referido decreto determinava]: Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o fato não constituir crime mais grave. Parágrafo único. Para que se considere coletivo o abandono de trabalho, é indispensável o concurso de, pelo menos, três empregados (BRASIL, 1942, art. 33).
A greve, que já estava sob o âmbito de análise do Estado, em tempo de guerra é crime. Importante notar que a definição de greve segue como a conduta de paralisação de trabalho na qual se insere a violência que segue no dispositivo legal, embasando a tipificação.
A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), Decreto-Lei n° 5.452, de 1º de maio de 1943 (BRASIL, 1943), manteve o mesmo sistema de “contenção” das greves. Entretanto, a CLT se ocupava das punições administrativas, visto que as punições penais estavam estabelecidas no Código Penal de 1940. Do mesmo modo que os artigos 80, 81, 82 e 83 do Decreto-Lei nº 1237/39 (BRASIL, 1939a), os dispositivos da CLT abaixo listados disciplinavam o lock-out e a greve.
DO "LOCK-OUT" E DA GREVE
Art. 722 - Os empregadores que, individual ou coletivamente, suspenderem os trabalhos dos seus estabelecimentos, sem prévia autorização do Tribunal competente, ou que violarem, ou se recusarem a cumprir decisão proferida em dissídio coletivo, incorrerão nas seguintes penalidades:
a) multa de cinco mil cruzeiros a cinquenta mil cruzeiros;
b) perda do cargo de representação profissional em cujo desempenho estiverem;
c) suspensão, pelo prazo de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, do direito de serem eleitos para cargos de representação profissional.
§ 1º - Se o empregador for pessoa jurídica, as penas previstas nas alíneas "b" e "c" incidirão sobre os administradores responsáveis.
§ 2º - Se o empregador for concessionário de serviço público, as penas serão aplicadas em dobro. Nesse caso, se o concessionário for pessoa jurídica o Presidente do Tribunal que houver proferido a decisão poderá, sem prejuízo do cumprimento desta e da aplicação das penalidades cabíveis, ordenar o afastamento dos administradores responsáveis, sob pena de ser cassada a concessão.
§ 3º - Sem prejuízo das sanções cominadas neste artigo, os empregadores ficarão obrigados a pagar os salários devidos aos seus empregados, durante o tempo de suspensão do trabalho.
Art. 723 - Os empregados que, coletivamente e sem prévia autorização do tribunal competente, abandonarem o serviço, ou desobedecerem a qualquer decisão proferida em dissídio, incorrerão nas seguintes penalidades:
a) suspensão do emprego até seis meses, ou dispensa do mesmo;
b) perda do cargo de representação profissional em cujo desempenho estiverem;
c) suspensão, pelo prazo de dois anos a cinco anos, do direito de serem eleitos para cargo de representação profissional.
Art. 724 - Quando a suspensão do serviço ou a desobediência às decisões dos Tribunais do Trabalho for ordenada por associação profissional, sindical ou não, de empregados ou de empregadores, a pena será:
a) se a ordem for ato de Assembléia, cancelamento do registro da associação, além da multa de Cr $ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros), aplicada em dobro, em se tratando de serviço público;
b) se a instigação ou ordem for ato exclusivo dos administradores, perda do cargo, sem prejuízo da pena cominada no artigo seguinte.
Art. 725 - Aquele que, empregado ou empregador, ou mesmo estranho às categorias em conflito, instigar a prática de infrações previstas neste Capítulo ou houver feito cabeça de coligação de empregadores ou de empregados incorrerá na pena de prisão prevista na legislação penal, sem prejuízo das demais sanções cominadas.
§ 1º - Tratando-se de serviços públicos, ou havendo violência contra pessoa ou coisa, as penas previstas neste artigo serão aplicadas em dobro.
§ 2º - O estrangeiro que incidir nas sanções deste artigo, depois de cumprir a respectiva penalidade será expulso do País, observados os dispositivos da legislação comum (BRASIL, 1943, art. 722-725).
Entre 1937 e 1943, os dicionários continuavam a definir a greve como a recusa em acatar ordens no trabalho (conforme obras anteriormente citadas), ou como o não comparecimento às aulas. Chama atenção uma definição do ano de 1943, na obra de autoria de Ronaldo Rogerio de Freitas Mourão, o Dicionário enciclopédico brasileiro ilustrado, em verbete que vale a reprodução:
Greve: f. Paralisação do trabalho empreendida pelos trabalhadores, com o fim de obrigar o patrão a conceder o que êles desejam. Êste objetivo é geralmente o aumento de salário ou a melhoria das condições de trabalho. No Brasil, o governo baixou uma legislação trabalhista avançada, concedendo ao operário direitos que nenhum outro país do mundo ainda reconheceu. Êsses direitos figuram na própria constituição nacional (art. 137). Em compensação a greve foi declarada fora da lei e considerada crime, porquanto perturba os interêsses gerais da comunidade. * Combinação de muitos indivíduos para se eximirem ao cumprimento de uma obrigação. Greve passiva, greve dos braços caídos: aquela que consiste em não fazer nada, embora comparecendo ao local de trabalho. Greve de fome: determinação de não aceitar alimento algum, por parte de um preso que considera injusta a sua prisão (MOURÃO, 1943, p. 100).
Ao lado do elogio à legislação trabalhista, aparece a relação entre greve e crime e a segmentação das formas de greve, destacando-se a greve passiva e a de fome, mas não a violenta. Merece atenção a definição porque, neste momento, demonstrava os esforços e o êxito parcial do governo em estigmatizar a greve perante a sociedade.
Em 1945, já no fim do Estado Novo, o Decreto-Lei nº 7.474, de 18 de abril, concedeu anistia, em seu art. 1º, a “todos quantos tenham cometido crimes políticos desde 16 de julho de 1934 até a data da publicação” (BRASIL, 1945, art. 1º). Com a definição do Decreto-Lei nº 4.766 (BRASIL, 1942), a greve configurava crime punível em tempo de guerra e, após a mudança de orientação política, de acordo com a legislação, seria passível de anistia.
Após a transição para a democracia, a greve permanecia como ponto chave de discussão e regulamentação. A suspensão ou abandono coletivo do trabalho, aparece disciplinada no Decreto-Lei nº 9.070,3 de 15 de março de 1946, que tratava amplamente sobre greve e lock-out e previa, no art. 2, que a cessação coletiva do trabalho advinda dos empregados seria permitida somente quando fossem observadas as normas prescritas na referida Lei (BRASIL, 1946a). Ademais, no art. 1º, submetia os dissídios coletivos, obrigatoriamente, “à conciliação prévia, ou à decisão da Justiça do Trabalho” (BRASIL, 1946a, art. 1º). Dessa forma, o referido decreto-lei permitia a efetivação de greves em atividades acessórias (não essenciais), mas mantinha a estrutura de controle estatal prévia e instituía as sanções para a violação de tais disposições, dentre as quais se destacam os artigos a seguir.
Art. 10. A cessação do trabalho, em desatenção aos processos e prazos conciliatórios ou decisórios previstos nesta lei, por parte de empregados em atividades acessórias, e, em qualquer caso, a cessação do trabalho por parte de empregados em atividades fundamentais, considerar-se-á, falta grave para os fins devidos, e autorizará a rescisão do contrato de trabalho.
Parágrafo único. Em relação a empregados estáveis, a rescisão dependerá de autorização do tribunal, mediante representação do Ministério Público.
Art. 11. O fechamento do estabelecimento ou suspensão do serviço por motivo de dissídio de trabalho em desatenção aos processos e prazos conciliatórios e decisórios, ou a falta de cumprimento devido às decisões dos tribunais competentes, importará para os empregadores responsáveis na obrigação do pagamento de salários em dobro, sem prejuízo das medidas cabíveis para a execução do julgado.
Parágrafo único. Em se tratando de atividades fundamentais, o tribunal competente poderá determinar a ocupação do estabelecimento ou serviço, nomeando depositário para assegurar a continuidade dos mesmos até que cesse a rebeldia do responsável.
Art. 14. Além dos previstos no Título IV da Parte Geral do Código Penal, constituem crimes contra a organização do trabalho:
I – deixar o presidente do sindicato ou o empregador, em se tratando de atividade fundamental, de promover solução de dissídio coletivo;
II – deixar o empregador de cumprir dentro de 48 horas decisão ou obstar maliciosamente à sua execução;
III – não garantir a execução, dentro dos prazos legais, o vencido que possuir bens;
IV – aliciar participantes para greve ou lock-out, sendo estranho ao grupo em dissídio.
Pena – detenção de 1 a 6 meses e multa de 1 a 5 mil cruzeiros.
Ao reincidente aplicar-se-á a penalidade em dobro; ao estrangeiro, além desta, a de expulsão.
§ 1º No caso do nº 1 consideram-se destituídos de plano os responsáveis pela direção do sindicato que fica sujeito a intervenção do poder público. O interventor promoverá imediatamente a instauração da instância e à eleição de nova diretoria.
§ 2º A aplicação das penas previstas neste artigo não exclui a imposição de outras previstas em lei.
Art. 15. Nos processos referentes aos crimes contra a organização do trabalho:
I – caberá prisão preventiva;
II – não haverá fiança, nem suspensão da execução da pena;
III – os recursos não terão efeito suspensivo (BRASIL, 1946a, art. 10-11; 14-15).
Poucos meses depois, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946, consagrou o direito de greve, em seu artigo 158, sendo “reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará” (BRASIL, 1946b, art. 158). O artigo seguinte conformou a liberdade de associação profissional ou sindical, que, do mesmo modo, deveria ser regulada por lei.
É possível observar que, a despeito da mudança no regime político, a greve permanecia controlada, sob forte vigilância estatal que empreendia esforços continuamente para cercear sua potência política contestadora. Nesse sentido, a lei previa sanções disciplinares aos grevistas em decorrência de eventuais excessos, permitindo aos empregadores efetivar punições por meio de advertência, suspensão de até 30 dias ou, ainda, a rescisão do contrato de trabalho (BRASIL, 1946b, art. 27) – tais penas poderiam ser examinadas pela Justiça do Trabalho (BRASIL, 1946b, art. 28). E, ainda, ficava determinado que o empregado que fosse acusado de crime relacionado à greve poderia ser suspenso pelo empregador, até a decisão final da justiça criminal (BRASIL, 1946b, art. 27).
As definições legais e também as dos dicionários acabam por corroborar a hipótese de que quando não era legalmente proibida em todas as suas possibilidades, a greve era contida a partir da interpretação que se dava à sua apresentação, tanto com emprego da violência policial como nas estruturas de tratamento de conflitos criadas pelo Estado.
Conclusões
De direito a crime, de crime a direito, o conceito de greve no Brasil tem sua historicidade marcada pela preocupação do Estado com seu peso contestador a partir do seu crescimento como manifestação política dos trabalhadores na Primeira República. Nos anos 1930, a atenção do Estado se volta à organização dos trabalhadores, mas também a perseguição policial dos movimentos grevistas, disputando seu significado na sociedade, deslegitimando a paralisação do trabalho.
Inicialmente, a lei buscou diferenciar a greve pacífica da greve violenta, reconhecendo a segunda como punível, mas deixando a primeira sem proteção para efetivo exercício.
O Estado brasileiro criou diversos mecanismos e estruturas de mediação de conflitos entre trabalhadores e patrões para evitar a greve, cerceou seus contornos e, inclusive, a proibiu. Contudo, ela não se limita a estes atos, pois, como fenômeno eminentemente social e político, não pode estar restrita à definição legal; seu conceito é disputado no papel e na prática.
Este trabalho quis explorar a legislação sobre greve no recorte proposto para compreender suas intencionalidades como metas atingidas total ou parcialmente na realidade complexa após a Primeira República, que ganha contornos especiais no Estado Novo e não desaparece junto com ele.
As investigações apresentadas contribuem para o questionamento da visão acadêmica tradicional acerca da legislação brasileira que disciplina o trabalho e que sustenta o mito da outorga. Ora, a construção da imagem de um operariado fraco, incapaz de colocar suas próprias demandas, e de um Estado chefiado por um líder que antevia as necessidades sociais, evitando conflitos (CAMPANA; BOSCHI, 2009, p. 55) resta derrubada pela análise do esforço de contenção das greves. Assim, a existência das greves que o Estado quer sufocar – que se dá apesar das leis proibitivas – desmente a narrativa vencedora e descortina a ação dos oprimidos, uma tarefa própria da pesquisa na história do direito.
É de se destacar, a partir da década de 1910, a expansão de movimentos grevistas por melhores salários e condições de trabalho em grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, Recife e Curitiba, mobilizando mais de 50 mil trabalhadores (CAMPANA; BOSCHI, 2009, p. 64-66), um número significativo e persistente nas décadas posteriores – apesar da dificuldade de se encontrar relatos oficiais em tempos de censura.
A existência de uma estrutura de repressão e controle no Estado, traduzida em órgãos e legislação, já evidenciaria o caráter falacioso de que o trabalhador brasileiro não possuiria organização e reivindicações próprias. Mesmo a tese do trabalhismo, primeira grande contestadora do mito da outorga, tendo como maior expressão na historiografia Angela de Castro Gomes, constituiu-se sobre a afirmação de que não havia tutela completa do Estado sobre o movimento dos trabalhadores, mas que se construiu um apoio político com base num cálculo pragmático de ganhos realizado pelos operários, que influenciavam na positivação das questões que envolviam seus direitos (GOMES, 2007).
Buscou-se demonstrar, aqui, com a análise da legislação, que medidas legais traduzem as tensões sociais dos períodos históricos a que dizem respeito, de modo que precisam ser avaliadas a partir de suas complexidades e variáveis. A apresentação cíclica da dinâmica da greve na legislação pré-Vargas, durante Vargas e após Vargas demonstra a disputa, nem sempre puramente pragmática, das expressões, dos instrumentos de manifestação e luta dos trabalhadores e do tratamento que a eles dispensou a política estatal, movimentando o sentido dos conceitos e a disputa da consciência na sociedade.
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Notas
Autor notes
Ligação alternative
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