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O Direito e a desobediência civil: o Estado constitucional e democrático de direito jeffersoniano

El derecho y la desobediencia civil: el Estado constitucional y democrático de derecho jeffersoniano

Law and civil disobedience: the constitutional and democratic state in Jeffersonian law

Le Droit et la désobéissance civile : l’État constitutionnel et démocratique du droit jeffersonien

法律和公民不服从:杰佛逊式宪政﹑民主和法治

Felipe Rebêlo *
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil

O Direito e a desobediência civil: o Estado constitucional e democrático de direito jeffersoniano

Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 11, núm. 3, pp. 428-441, 2019

Universidade Federal Fluminense

Recepção: 22 Setembro 2018

Aprovação: 04 Junho 2019

Resumo: A desobediência civil pode ser concebida como um instituto capaz de operar seus efeitos perante o mundo jurídico, mormente em um Estado Constitucional e Democrático. Sob essa perspectiva, é possível o estudo da obra de Thomas Jefferson considerando seu recorte específico acerca da desobediência civil, questão tratada pelo pensador em seus escritos políticos e constitucionais. Para tanto, a concepção jeffersoniana de Estado deverá ser considerada, bem como suas definições acerca de justiça e conceitos de apoio, delimitadores previstos desde a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Diante dessas determinantes, se busca uma afeição mais concreta acerca da possibilidade positiva da desobediência civil em uma sociedade específica, tendo-se em mente a própria afirmação do constitucionalismo, e os princípios básicos e fundamentadores não só do Estado Constitucional e Democrático de Direito, como da própria sociedade considerada em si mesma.

Palavras-chave: desobediência civil, Estado, democracia, Thomas Jefferson.

Resumen: La desobediencia civil puede ser concebida como un mecanismo capaz de hacer operar sus efectos ante el mundo jurídico, sobre todo en un Estado constitucional y democrático. Desde esta perspectiva, es posible estudiar la obra de Thomas Jefferson considerando su recorte específico acerca de la desobediencia civil, cuestión tratada por el pensador en sus escritos políticos y constitucionales. A tal efecto, cabe tener presente la concepción jeffersoniana de Estado, así como sus definiciones de justicia y conceptos de apoyo, delimitadores previstos desde la Declaración de Independencia de los Estados Unidos de América. Ante dichas premisas, el trabajo busca analizar la posibilidad positiva de la desobediencia civil en una sociedad específica, teniendo en mente la afirmación del constitucionalismo y los principios básicos y fundamentadores no solo del Estado constitucional y democrático del derecho, como de la propia sociedad considerada en sí misma.

Palabras clave: desobediencia civil, Estado, democracia, Thomas Jefferson.

Abstract: Civil disobedience may be conceived of as a mechanism able to exert its effects within the legal world, particularly in a Constitutional and Democratic State. The work of Thomas Jefferson may be studied according to this perspective, considering the thinker’s specific stance on civil disobedience, which he addresses in his political and constitutional writings. The Jeffersonian concept of the State must therefore be examined, as must his definitions of justice and concepts of support, with the distinctions outlined in the Declaration of Independence of the United States of America. Based on these premises, the work seeks to approach the positive possibility of civil disobedience in a specific society, bearing in mind the affirmation of constitutionalism itself, and the basic founding principles not only of the Constitutional and Democratic State of Law, but of society itself.

Keywords: Civil disobedience, State, democracy, Thomas Jefferson.

Résumé: La désobéissance civile peut être entendue comme un mécanisme capable d’avoir des effets face au monde juridique, notamment dans les États constitutionnels et démocratiques. L’œuvre de Thomas Jefferson peut être étudiée sous cette perspective si l’on considère la place qu’y occupe la désobéissance civile dans ses écrits politiques et constitutionnels. À cette fin, la conception jeffersonienne de l’État devra être prise en considération, ainsi que ses définitions de la justice et du concept de soutien déjà prévu dans la Déclaration d’indépendance des États-Unis d’Amérique. Sur cette base, nous chercherons à aborder la possibilité positive de la désobéissance civile dans une société spécifique en gardant à l’esprit l’affirmation même du constitutionnalisme et les principes fondateurs de base non seulement de l’État constitutionnel et démocratique de droit, mais également de la société elle-même.

Mots clés: désobéissance civile , État , démocratie , Thomas Jefferson.

摘要: 公民不服从可以被视为一个能够在司法中发挥作用的一种制度,特别是在宪政民主国家。从这个角度来看,我们研究托马斯﹒杰佛逊(Thomas Jefferson) 的著作,特别是他的关于公民不服从的思考,这是他的有关政治和宪政的著作中提出的一个议题。为此,我们分析思考了杰佛逊的国家概念,正义观念,以及法律支持的观念,这些思想体现在美利坚合众国独立宣言中。基于以上理解,本文试图了解特定社会对公民不服从的偏好,它对宪政主义的积极影响,以及它对宪法和民主法治国家的基本原则的支持。

關鍵詞: 公民不服从, 国家, 民主, 托马斯﹒杰佛逊.

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo estudar a desobediência civil sob o enfoque específico de Thomas Jefferson, filósofo e pensador norte-americano do século XVIII, e estudioso do tema de forma singular.

Com efeito, as políticas governamentais são abordadas com base na sua efetividade não somente jurídica, como social, fator este muitas vezes preponderante para sua incursão prática.

Diante, inclusive, das próprias diretrizes estabelecidas constitucionalmente, se discute acerca da possibilidade de os cidadãos incorporarem em sua conduta a desobediência civil como um fator social que merece acato, diante do que a própria Constituição e a legislação infraconstitucional preveem, e com base na própria aplicabilidade prática das políticas públicas em uma relação que deveria ser de reflexo ao plano jurídico-constitucional.

Com base nessas assertivas e molduras, se pretende estudar como se aufere possível o direito de resistência, sob a ótica jeffersoniana, tanto sob o ponto de vista teórico como prático, pensando-se em canais de instrumentalização prática para se perscrutar de forma mais concatenada seu pensamento.

Para tanto, se inicia a abordagem no presente artigo se buscando delimitar as principais características do constitucionalismo contemporâneo, expresso pelo neoconstitucionalismo, onde se aufere um apelo ao caráter principiológico para a aplicação da norma jurídica, em retomada à incorporação do direito em uma dimensão que se busca mais próxima às demandas populares e a ética/moral, em detrimento de um modelo kelseniano puro.

Em um segundo momento, os conceitos específicos de Thomas Jefferson serão estudados de forma mais aprofundada, naquilo que interessar ao presente trabalho. Ou seja, conceitos como o de desobediência civil e função institucional da Constituição serão relatados, de forma a se extrair o se entrelaçamento como condição de manifestação o mais plena possível da vontade popular. Por fim, essa descrição merecerá a devida ponderação em contrabalanceamento ao Estado Constitucional de Direito, de forma a destacar a instrumentalização do conceito de desobediência civil de forma à propiciar a realização não somente do Estado jurídico, como do Estado prático que encarna (ou deveria encarnar) a soberania popular em seus feixes atuacionais.

A conclusão se embasará sobre todas as determinantes apresentadas, se buscando auferir a distinção entre conceitos, e como a doutrina jeffersoniana pode receber uma aplicabilidade plausível e adaptável ao caso concreto.

O método de abordagem a ser adotado na pesquisa é o método hipotético-dedutivo, pois o trabalho intelectivo se baseará na apreciação da hipótese formulada, confrontando-se esta com o conhecimento existente, expresso pelas doutrinas nacional e internacional afeitas ao tema, em especial, a análise da doutrina jeffersoniana específica.

De outra via, o método de procedimento a ser adotado na pesquisa é o que se baseia pelo levantamento bibliográfico, expresso pelo método dissertativo-argumentativo, pois se pretende apresentar o tema com a devida profundidade, pautando-se pelas doutrinas nacional e internacional afeitas ao tema. A conceituação de desobediência civil em Thomas Jefferson merecerá realce em um cenário de indagação acerca da concretude do plano constitucional, em confrontação dos planos do ser e dever ser, tendo-se como plano de apoio a evolução do constitucionalismo e alternativas que podem ser engendradas com vistas à aplicabilidade concreta e mais efetiva da norma constitucional, através das regras ou dos princípios de embasamento da sistemática constitucional e jurídica.

O Constitucionalismo contemporâneo e sua faceta neoconstitucionalista

O constitucionalismo tem sofrido um processo de evolução em sua formatação estrutural. A faceta neoconstitucionalista, traço marcante do constitucionalismo contemporâneo, ganha robustez após a superação de conceitos mais estritos do juspostivismo de matriz kelseniana.

Deve ser enfocado que o processo estrutural do constitucionalismo ganha origens, inicialmente, com a Revolução Inglesa do século XVII, tendo as ideias de John Locke recebido destaque, mormente no que concerne ao direito à resistência. Contudo, cumpre enfocar que foi no século XVIII, com as revoluções setecentistas, especificamente falando, a Revolução Norte-americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789, que o constitucionalismo ganha substância. A Constituição, a partir desse recorte temporal, assume um papel central e orientador no ordenamento jurídico (DALLARI, 2013, p. 119-135).

Nesse período específico, o individualismo marca a estruturação da norma jurídica constitucional, com a valorização da propriedade privada acompanhando esse processo informativo. De uma forma geral, se busca o afastamento do Estado, com a limitação de seu poder, o que pode ser instrumentalizado através da presença de uma constituição escrita.

Nesse momento histórico, portanto, ainda é possível se vislumbrar perfeitamente que o poder econômico encontra um espaço permissível para sua atuação, mas sem uma regulação mais especificada contra seus abusos práticos. O poder econômico irá encontrar certa mitigação, pelo próprio ordenamento jurídico, em sua atuação prática com o desenvolvimento do próprio constitucionalismo, e sua marcha voltada à consagração, ou sua busca, no tocante a justiça social, expressa pela prevalência dos princípios mais caros ao ordenamento jurídico constitucional.

Nesse sentido, surge uma segmentação do próprio positivismo jurídico, apesar de não se confundir com sua matiz puramente qualificada (de cunho kelseniano), e expressa pelo neoconstitucionalismo, etapa do constitucionalismo que surgiu com os movimentos setecentistas.

A sua conceituação pode ser atribuída pelo estudo de Alysson Leandro Mascaro (2014, p. 357), que também a qualifica como juspositivismo ético:

Mas os novos filósofos moralistas do direito hão de buscar mecanismos pelos quais, normativamente, se atinja o virtuoso na relação entre o direito e a sociedade. Se as normas jurídicas eram tidas por neutras na concepção mais técnica dos juspositivistas, nessa nova visão as normas jurídicas são reencantadas. O ganho político dessa nova visão é o exato oposto de sua qualidade teórica. Não se trata de uma moralidade nova, para além das normas, mas a moralidade nas normas.

Como se pode discernir, nesse precípuo momento do constitucionalismo a valorização dos princípios integrantes de um ordenamento constitucional ganha espaço, não se buscando uma aplicação estrita da norma jurídica, na formatação colmatada hodiernamente às regras jurídicas.

Busca-se uma intelecção mais aprofundada com os princípios orientadores da Constituição, de forma a se ter em tela um grau ótimo de efetividade às normas com base no próprio espírito constitucional, ou, considerando-se de outra forma, com base nos objetivos programáticos do documento constitucional (FONTES, 2018, p. 83):

A noção incluiria ao mesmo tempo a força normativa da Constituição, que adquire maior eficácia jurídica, mormente através dos mecanismos de controle da constitucionalidade das leis, bem como o caráter marcadamente principiológico das constituições atuais, que por sua vez tornaria ainda maior a importância das normas constitucionais nos sistemas jurídicos, com reflexos inclusive, para alguns autores, no próprio conceito ou dinâmica de aplicação do direito.

A aplicação do jogo típico da regra jurídica permanece, de certa forma, à parte na trama em questão, merecendo foco de aplicação a utilização dos princípios, em que não se exclui automaticamente um princípio para se aplicar o outro, o que é oportuno de ser verificado no caso da aplicabilidade prática das regras. Neste momento, os princípios podem ser aplicados cumulativamente, preponderando no caso concreto aquele que se revelar mais condizente às diretrizes constitucionais, através do processo hermenêutico da ponderação de interesses, que se utiliza do princípio da proporcionalidade para o alcance da determinante desejada.

Barroso e Barcellos (2003, p. 39) retratam o processo citado:

A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas. A estrutura interna do raciocínio ponderativo ainda não é bem conhecida, embora esteja sempre associada às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas.

Portanto, é característico do neoconstitucionalismo um resgate e a aplicação do direito com base em fundamentos axiológicos, de tutela de valores fundamentais à Constituição, e que expressam a soberania popular em sua matriz originária de formulação constituinte.1

Tendo-se o caso brasileiro como exemplo, mormente após o processo de redemocratização, o Judiciário passou a receber uma maior carga para sua atuação operacional com vistas à consecução de um documento constitucional conferente de um rol amplo de direitos, superada uma fase de absoluta restrição ao exercício dos mesmos.

O Judiciário acabou assumindo, no momento histórico relatado, um papel de protagonista e de agente atuante contra o modelo juspositivista puro, como fonte transformadora do direito de forma a se fazer valer a aplicabilidade das normas em uma consonância mais apropriada não somente às diretrizes constitucionais, como também aos próprios anseios populares e constituidores da vontade constitucional originária.

Os conceitos de judicialização da política e ativismo judicial ganham um maior espectro no cenário descrito. O modelo kelseniano, de própria consagração do documento constitucional, não é mais reservado ao prestígio público, surgindo demandas cada vez maiores, principalmente na seara dos direitos sociais, e a necessidade de um atendimento mais efetivo para que a própria Constituição e o ordenamento jurídico subjacente encontrem uma legitimidade mais plausível.

Paulo Guedes Fontes (2018, p. 105-106, grifo do autor) trata sobre essa questão resgatando a teoria dos princípios de Alexy:

[...] outro argumento que leva Alexy a estabelecer a conexão entre direito e moral é o dos princípios, o que liga seu conceito do direito a suas formulações sobre a argumentação jurídica e a aplicação dos direitos fundamentais. Qualquer sistema jurídico minimamente desenvolvido incluiria os princípios, que seriam invocados nos casos duvidosos. Tais princípios podem estar positivados ou ser apenas princípios morais, necessários à solução da lide. Segundo Alexy, de acordo com o argumento dos princípios, o juiz também “está legalmente vinculado no âmbito de abertura do direito positivo, ou seja, do direito estabelecido e eficaz, e isso de uma maneira que cria uma vinculação necessária entre direito em moral”.

Com fulcro nessa realidade, o Judiciário pode surgir com destaque, mas não é de se desprezar o questionamento levantado desde as origens do próprio Estado Constitucional de Direito, e ainda pertinente, relativo ao fato social da desobediência civil.

Mesmo em um quadro onde a própria estrutura estatal se amolda e encontra mutações em seu papel instrumental para a delimitação da aplicação do direito (como transfigura o neoconstitucionalismo), de forma mais condizente aos anseios programáticos constitucionais e de origem popular originária, será que é possível somente se vislumbrar esse canal para a maior busca da efetividade do direito? Cabe, ao mesmo tempo, se indagar se mesmo com tais alterações comportamentais em órgãos do Estado, é possível se vislumbrar um grau mais efetivo, no quadro evolutivo, de aplicação das normas constitucionais. Nesse caminho, pode se considerar que a história social tem demonstrado que existem outros caminhos em busca da maior efetividade desejada, bem como de que o Judiciário não tem se revelado o sujeito único e capaz de conformar a aplicação dos princípios constitucionais à justiça social, e a vontade constitucional originária, com feição na soberania popular.

Em virtude desse contexto é que se pode falar na Constituição receber uma abordagem diferenciada, bem como o próprio sistema político e constitucional, não podendo se ignorar a desobediência civil como canal apto a alimentar os interesses populares, e o repositório da vontade constitucional originária. Thomas Jefferson e sua análise da estrutura constitucional podem ser avaliados com base nesses paradigmas.

A Constituição sob a ótica jeffersoniana

A Constituição assume uma feição importante do ponto de vista jeffersoniano, tanto em caráter simbólico, como em caráter prático.

O documento constitucional é compreendido como a base da sociedade analisada em caso específico, representando uma expressão concreta da soberania popular, e como poder de autodeterminação popular.

Do ponto de vista prático, significa a expressão da vontade popular geracional. Em outros termos, diz-se que reflete a vontade dos cidadãos concernente a determinado momento histórico. Nesse sentido, fala-se que o bem público é temporal, e não atemporal, como o iluminismo clássico pode classificar, a exemplo de Kant.2

Jefferson realça o caráter geracional da Constituição como um dos requisitos de sua validade (PADOVER, 1946, p. 68):3

Podem (as nossas leis constitucionais) ser imutáveis? Pode uma geração ligar outra e todas as outras sucessivamente para sempre? Eu acho que não. O criador fez a terra para os vivos, não para os mortos. Direitos e poderes só podem pertencer a pessoas, não a coisas, não a mera matéria, sem vontade. Os mortos nem sequer são coisas [...] A que então estão ligados os direitos e poderes que eles possuíam enquanto sob a forma de homens? Uma geração pode se ligar enquanto sua maioria estiver no lugar, detiver todos os direitos e poderes que seus predecessores possuíam, e pode mudar suas leis e instituições para se adequarem a si mesmas. Nada, então, é imutável, a não ser os direitos inerentes e inalienáveis ​​do homem.

Analisando a Constituição sob esse viés, a mesma pode, portanto, ser alterada ou por modificações formais em seu texto, ou por meio de sua aplicabilidade concreta. A desobediência civil também pode ser perquirida como um incidente em sua tessitura operacional prática.

Voltando-se a análise de sua essência, a Constituição deve ser norteada por um processo de equidade aristotélica, como toda a legislação infraconstitucional. Quer-se com isso dizer que o processo de justiça deve nortear todo o ordenamento, realçando a norma e o princípio ao caso concreto, ponderando-se as necessidades sociais e os bens disponíveis.4

A participação no governo caminha para o alcance de tais determinantes (MAYER, 1994, p. 321):5

Somente através de uma aplicação literal do conceito de soberania popular nas práticas reais do governo - somente através do envolvimento ativo e contínuo das pessoas em seu governo - poderia efetivamente ser assegurada a liberdade das invasões daqueles que estão no poder.

Em Thomas Jefferson, a justiça se orienta por conceitos distintos, mas que se acoplam em um denominador comum. Trata-se da justiça individual e da justiça coletiva, conjugando-se em prol da justiça social (REBÊLO, 2017, p. 150-152):

A justiça coletiva se presume como a preservação dos interesses máximos da sociedade especificamente considerada, mostrando-se um contraponto e requisito de equilíbrio para a justiça individual. O cidadão poderá exercer todas as atividades em atendimento à sua individualidade, mas não poderá atentar, por meio de sua ação, ao espírito coletivo, expresso pelas determinantes básicas que compõem o direcionamento social, o atingimento do bem comum. [...] Em outros termos, diz-se que, por meio da aplicação da justiça no caso concreto, pelas diretrizes aristotélicas expressas em um processo de equidade, que é possível se distinguir a justiça individualizada como aceitável dentro das condicionantes propostas pela justiça coletivizada.

Portanto, é possível se vislumbrar que o modelo constitucional jeffersoniano considera os fatores reais de poder, na terminologia já usada no entendimento constitucional de Ferdinand Lassale (1862/1987). A Constituição deve se estruturar um documento que parte de baixo para cima, ou seja, que deve considerar em suas atribuições os fatores reais, os fatores sociais que caracterizam dada sociedade.

Por fatores reais de poder, entendam-se as forças sociais constituintes da comunidade local, no concernente aos seus interesses precípuos, tais quais seus direitos inerentes e o cabedal jurídico a ser reconhecido como força propulsora e protetora das preferências sociais consideradas como um todo. Aliás, esses fatores devem propugnar não somente a confecção da legislação, como a própria aplicabilidade concreta do direito.

A Constituição, sob a matiz jeffersoniana, assume uma feição estritamente ligada a natureza social, de determinada sociedade. E essa volatilidade conceitual encontra amparo em categorias desenvolvidas pelo pensador da Virgínia na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América.

Não obstante o rascunho original do documento tenha sofrido alterações pelo Congresso Continental durante a marcha revolucionária dos idos dos anos de 1700, preservou-se no documento categorias específicas que permitem a conferência do próprio documento constitucional sob um ponto de vista temporal.

Thomas Jefferson diferencia os “conceitos de apoio” como fomentadores da ordem constitucional, em auxílio aos princípios específicos ou básicos (normas básicas da Declaração de Independência), sendo a flexibilidade temporal um marco característico, como mesmo delimitado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América de 1776 (REBÊLO, 2017, p. 34):

Diz-se, assim, que estas são determinantes gerais, que permitem a revisão dos princípios básicos, por se constituírem termos amplos, capazes de gerar inúmeras interpretações quanto a suas peculiaridades para o atendimento do bem concreto em sua sociedade.

Não persistem, assim, princípios absolutos. Eles podem ser mantidos em casos futuros, mas as interpretações poderão ser alteradas, de acordo com os conceitos auxiliares, que permitem a flexibilização na sua consecução.

Por essa trilha, a sociedade possui seus direitos inerentes (ao século XVIII, tempo de Jefferson, eram os direitos naturais), cabendo às categorias específicas, quais sejam, os conceitos de apoio, amoldar a instrumentalidade prática temporal dos mesmos. Nessa esfera, a Segurança, predisposta no preâmbulo da Declaração de Independência, se revela uma condicionante dessa categoria, com o fulcro de delimitar a aplicação da norma jurídica, espelho dos princípios básicos sociais.

Consagra-se, assim sendo, um jusnaturalismo que não se confunde com o movimento iluminista clássico, por instrumentalizar conceitos de apoio ou diretrizes flexíveis no ordenamento constitucional e jurídico. Revelam-se categorias amoldáveis, que devem ser seguidas pelo Estado, inclusive no tocante a estruturação do texto constitucional, sob pena de os cidadãos possuírem o direito de se voltar contra as atitudes governamentais ilegítimas.

No último quesito, se está falando da concepção de desobediência civil em Thomas Jefferson, e no epicentro do Estado Constitucional de Direito, que será melhor tratado adiante.

A desobediência civil e seus prolongamentos perante o Estado Constitucional de Direito

A desobediência civil acaba recebendo uma percepção concreta também sob o pensamento jeffersoniano.

Um sustentáculo analítico para esse estudo se embasa na filosofia desenvolvida por John Locke, este um pensador iluminista clássico. Neste ponto específico, os direitos de resistência e de revolução são considerados perenes e inerentes ao poder popular.

Sob o aspecto conceitual lockeano, podem ser definidos como os direitos de se opor ao governo estabelecido quando o mesmo viola as principais consagrações jurídicas de determinado povo, podendo ser elencado no rol da filosofia do Locke o direito de propriedade como o carro-chefe de proteção e guarida frente a possíveis arbitrariedades governamentais (LOCKE, 2011, p. 140-141):

Sempre que o legislativo tentar tomar ou destruir a propriedade do cidadão, ou subjuga-lo ao seu poder arbitrário, entra em estado de guerra com ele, isentando-o de ulterior obediência, deixando-o à mercê de Deus, que provê para todos os homens contra a força e a violência.

O direito ainda assume uma conotação essencialmente jusnaturalista, e liberal burguesa, preocupada com o direito de propriedade e outros afins à filosofia protecionista frente ao ente estatal. Jefferson não se liga estritamente a essa forma de pensamento. O jusnaturalismo jeffersoniano revela-se a-iluminista, uma vez que busca um entendimento mais próximo dos conflitos sociais que constituem a sociedade, sem se ignorar o alcance da justiça social, que engloba a justiça individual e a justiça coletiva como alicerces de suporte.

A desobediência civil pode inclusive ter como apoio, em Thomas Jefferson, o documento constitucional explicitado, cabendo diferenciar a desobediência civil jeffersoniana, de cunho essencialmente social, da individualista, que encontra respaldo nos escritos de Henry David Thoreau, embora o mesmo autor também percorra, de certa forma, o caminho por uma desobediência civil de cunho mais social (mas não da forma crítica elevada por Thomas Jefferson). A questão da escravidão é um espaço relatado nesse sentido.6

A desobediência civil de caráter individualista preconiza um afastamento total do Estado, garantindo-se unicamente ao indivíduo a possibilidade de agir, de acordo com seu entendimento singular, e conforme sua visão de justiça libertária para suas ações, concedendo-se espaço ao ponto de vista econômico e de livre comércio.

Não é possível se engendrar, para este último caso, a preocupação de a desobediência civil perpetrada se voltar contra as atitudes institucionais do Estado, mas que violam um quadro de direitos sociais e de titularidade plúrima, com o salvaguarda do próprio conceito de justiça (THOREAU, 2012, p. 34-35).

Nossos legisladores ainda não aprenderam o valor comparativo que têm, para uma nação, o livre-mercado e a liberdade, a união e a retidão. Eles não têm gênio ou talento sequer para questões relativamente modestas de tributação e finança, comércio, manufatura e agricultura. Se contássemos apenas com a verborrágica esperteza dos legisladores do Congresso para nos guiar, sem que ela fosse corrigida pela devida experiência e pelas queixas válidas do povo, a América deixaria de ocupar sua posição entre as nações.

Nesse momento específico, ainda não se vislumbram os direitos sociais tais como consagrados no século XX, e embrionariamente no século XIX. A filosofia jeffersoniana consagra o direito de resistência lockeano, mas antecipa uma preocupação que se instituiria juridicamente mais tarde, com os direitos sociais, e prega a justiça social como alicerce de apoio fundamental para que a desobediência civil possa ser suscitada.

Cabe a obediência à lei e à Constituição, sendo possível a desobediência civil se se violam princípios estruturantes da sociedade específica, como os fundamentos da constituição do Estado e os direitos fundamentais.

O que permite a intelecção sobre o conteúdo desses valores são os conceitos de apoio jeffersonianos, e delimitados na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. As categorias do documento emancipatório são amoldáveis pontualmente, de acordo com as necessidades sociais e geográficas, sendo aqueles conceitos diretrizes flexíveis a orientar o ordenamento constitucional e jurídico como um todo. A desobediência civil só encontrará plausibilidade se encontrar confluência nesses aspectos, que possibilitam uma análise hermenêutica mais próxima aos desígnios sociais.

Na realidade jeffersoniana, a Constituição norte-americana de 1787 merece toda a consideração em acatamento social, mas quando sua instrumentalização, pelo poder político institucionalizado, não observa as concepções de justiça social, cabe à sociedade rebelar-se contra o poder público. A não observância de leis aprovadas (através de mobilização popular), a utilização mais aprofundada do recall, a inabilitação de repartições públicas que não atenderem àqueles princípios podem ser erigidos a tal categoria.7

Outrossim, um instrumental que pode facilitar o controle público, no âmbito de accountability, e facilitar a promoção ou não da desobediência civil de forma mais instrutiva, refere-se a construção jeffersoniana da Gradação de Repúblicas.

Por este último instrumento, subdividem-se as diversas unidades políticas, alterando a formação político-estrutural, com o escopo de ampliar o contato e o foro das ações populares perante a Administração Pública. A divisão jeffersoniana proposta dos Estados em Condados, Distritos e aí por diante, propõe exatamente essa aproximação maior para com o poder público, de forma a que a sociedade participe de forma mais congruente das políticas públicas, e promova a Administração Pública em acordo aos desígnios populares, e aos princípios constituidores daquela sociedade. A região da Nova Inglaterra sempre foi elencada por Thomas Jefferson como referência nesse sentido (DEWEY, 1952, p. 32):

Estava impressionado, não só prática como teoricamente, com a eficácia das reuniões levadas a efeito nas vilas de Nova Inglaterra e desejava ver algo semelhante transformado em parte orgânica do processo governamental de todo o país. A divisão de cada distrito em termos foi sugerida em primeiro lugar por ele, em conexão com a organização de um sistema de escola elementar.

Portanto, a desobediência civil, em Thomas Jefferson, é possível no Estado Constitucional de Direito como uma expressão dele mesmo, tendo-se como base das ações os princípios estruturadores do Estado e dos direitos fundamentais, em consonância às matizes sociais, e perquiridos os conceitos de justiça que elenca o pensador. Ou seja, a justiça social é o maior termômetro para a instrumentalização não só da ordem constitucional, como do próprio direito de se recorrer à desobediência civil no caso concreto.

Conclusão

O constitucionalismo jeffersoniano ressalta um caráter social para os movimentos setecentistas, embasados, teoricamente, única e exclusivamente no iluminismo clássico, e em sua racionalidade própria.

A desobediência civil, sob esse espectro, acaba englobando os interesses da sociedade como um todo, e não a busca do afastamento total do poder estatal em relação a vida dos cidadãos. Reconhece-se que os mesmos necessitam de sua tutela quando prejudicados por elementos externos, tal como o poder econômico pernicioso.

Sendo assim, a instrumentalização prática da desobediência civil pode ser oponível, filtrando-se sua incidência em cenários que prestigiem os direitos sociais, como em um âmbito de contraposição ao poder econômico que não é corrente aos interesses precípuos de dada sociedade.

A justiça social assume o escopo máximo nessa sistemática, contrabalanceando e englobando a justiça individual e a justiça coletiva em seu cabedal, nos moldes destrinchados por Thomas Jefferson.

Na esteira do apresentado, portanto, o credo jeffersoniano permanece oportuno, frente à aplicação do direito, e da própria Constituição. A atual gestão pública brasileira merece uma ponderação nesse sentido, instrumentalizando pacotes de reformas estruturais, atinentes ao trabalho, à previdência (em pretensão), a própria política, em descompasso com as estruturas sociais consagradas e princípios básicos e sustentáculos da Constituição de 1988.

O documento constitucional pátrio brasileiro adota a justiça social como escopo, fator que não é possível de ser alcançado com o estabelecimento de preferências ao poder econômico em detrimento aos direitos sociais. A materialização da justiça social se encontra na normatividade explicitada pelo próprio documento constitucional pátrio.

Por via oblíqua, é factível o entendimento de que a desobediência civil pode constar no bojo do constitucionalismo. Rememorando a visão jeffersoniana, pode constar em uma relação de proximidade com o próprio Estado Democrático e Constitucional de Direito, fomentando legitimidade ao mesmo, uma vez que se ampara nos princípios e raízes fundamentais de constituição de dada sociedade.

O desenvolvimento e a intelecção dos conceitos de apoio, tal como desenvolvidos por Thomas Jefferson, fomentam amparo para a compreensão do tema, e para a averiguação da possibilidade concreta da desobediência civil, angariando conformidade com a Constituição, com o Estado Democrático e Constitucional de Direito, e com os princípios fundamentais do agrupamento social considerado.

Referências

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PADOVER, Saul K. Thomas Jefferson on Democracy. New York: Pelican Books, 1946.

REBÊLO, Felipe. A Filosofia do Direito em Thomas Jefferson. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2012.

Notas

1 Há quem sustente, na doutrina, a possibilidade concreta do neoconstitucionalismo ferir o princípio da segurança jurídica: “É fato que os “mortos” não devem governar os “vivos”, mas disso não decorre a exigência de demolição da ideia de rigidez constitucional. A própria previsão de reforma da Constituição – quer por via revisional, quer por via de emenda – atende razoavelmente à necessidade de adaptar as Constituições à realidade fática. E mais que isto, rompida a estabilidade constitucional e o núcleo duro do postulado do Estado de Direito, qual seria a estrutura jurídica, sólida o suficiente para garantir e preservar a democracia? A fragilidade e a expansividade dos processos de interpretação constitucional já demonstraram flagrante fracasso quando do aniquilamento da democrática Constituição de Weimar, abrindo as portas para o nazismo. A segurança jurídica e a democracia ainda se encontram na dependência do velho constitucionalismo(CAGGIANO, 2011, p. 20, grifo do autor).
3 Tradução nossa. Texto original, em inglês: “Can they (our constitutional laws) be made unchangeable? Can one generation bind another, and all others, in succession forever? I think not. The creator has made the earth for the living, not the dead. Rights and powers can only belong to persons, not to things, not to mere matter, unendowed with will. The dead are not even things […] To what then are attached the rights and powers they held while in the form of men? A generation may bind itself as long as its majority is in place, holds all the rights and powers their predecessors once held, and may change their laws and institutions to suit themselves. Nothing then is unchangeable but the inherent and unalienable rights of man”.
5 Tradução nossa. Texto original, em inglês: “Only through a literal application of the concept of popular sovereignty in the actual practices of government – only through the active, continual involvement of the people in their government – could liberty effectively be secured from the encroachments of those in power”.
6 “Falando em termos práticos, os adversários de uma reforma em Massachusetts não são 100 mil políticos do Sul, mas 100 mil comerciantes e fazendeiros daqui, que estão mais interessados no comércio e na agricultura do que na humanidade, e não estão preparados para fazer justiça aos escravos e ao México, custe o que custar” (THOREAU, 2012, p. 13).
7 A Rebelião de Shays, que se deu nos Estados Unidos da América à época de Jefferson, se deu contra o aumento dos impostos, e o pensador, a despeito das ações governamentais repressivas, se colocava com simpatia por ela, elucidando o direito perene de resistência dos cidadãos quando entendessem que seus direitos, de lastro constitucional, restassem inobservados na prática (JEFFERSON, 2011, p. 911).

Autor notes

* Mestre e Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Direito, São Paulo, Brasil. Pesquisador atuante nas áreas de Direito Econômico, Direito Constitucional, Direito Político/Eleitoral, Filosofia do Direito e Direito Internacional Público. Advogado e Professor Universitário. E-mail: felipecesar375@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-4269-1968

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