Resenha

LITURATERRA [Resenha: 2019, 3] Sobre religião e política mais sexo e sexualidade no Vaticano

LITURATERRA [Reseña: 2019,3]

LITURATERRA [Review: 2019,3]

LITURATERRA [Compte rendu: 2019,3]

文字国 [图书梗概:2019,23

Gisálio Cerqueira Filho *
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Gizlene Neder **
Universidade Federal Fluminense, Brasil

LITURATERRA [Resenha: 2019, 3] Sobre religião e política mais sexo e sexualidade no Vaticano

Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 11, núm. 3, pp. 509-514, 2019

Universidade Federal Fluminense

MARTEL Frédéric. Sodoma: Enquête au coeur du Vatican. 2019. Paris. Robert Laffont

Recepção: 03 Abril 2019

Aprovação: 03 Maio 2019

Resumo: As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan,1 para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.

Resumen: Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura de la terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.

Abstract: The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.

Résumé: Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.

摘要: Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。

MARTEL, Frédéric. Sodoma: Enquête au coeur du Vatican. Paris: Robert Laffont, 2019. 631 p.

Todavia, há uma ótima tradução para o português, por Artur Lopes Cardoso, deste livro que foi lançado simultaneamente em oito idiomas no mundo todo.

No Brasil, o livro foi publicado pela Objetiva, Rio de Janeiro, 2019, do Grupo Editorial Schwarcz. Aqui preferiu-se um título mais popular, para não dizer católico; isto é, universal ou quase, “No armário do vaticano: Poder, hipocrisia e homossexualidade”. Com certa ironia um tal título sugere com dubiedade que a cúpula do Vaticano “está no armário”, expressão corrente para falar do homossexualismo às escondidas, que na pesquisa realizada pelo autor sugere uma proximidade de variada gama de praticar (agir), de falar (pensar) e de expressar emoções (sentir), cujo registro imaginário, simbólico e comportamental se dão no campo da homossexualidade. E isto numa instituição religiosa que exige o celibato de seus ministros e detentores do poder (cardeais, bispos, monsenhores, padres); além de irrestrito voto de castidade. A impressão que fica desta obra de pesquisa sociológica muito bem realizada é que não se governa o Vaticano sem que se adote, e por razões eminentemente políticas, uma postura que o autor nomeia de “gay friendly”.

Entretanto, se homossexuais e a homossexualidade em si, estão presos no(s) armário(s) do Vaticano; há expectativa de que eles saiam, pois muitos já vieram à luz do sol a sugerirem, através de ampla variedade, um arco-íris de sinais e indícios que não parecem suportar mais a hipocrisia, a censura e o autoritarismo. Interroga-se o “ethos” católico subjacente ao catolicismo romano sobre a urgência de políticas assentadas numa espécie de perestroika e glasnost. Como se a expressão polonesa solidarnosc que foi capaz de ecoar a solidariedade, tão trabalhada intelectualmente por Karl Marx, e que ao Papa João Paulo II e seguidores, sugeria o grito de guerra ao comunismo... agora reverberasse nos sentimentos e emoções (emotion in motion) de liberdade irrestrita e acesso ao desejo contra a homofobia, o machismo e a misoginia expressos na pugnas políticas no Vaticano e desde ali pelo mundo-a-fora. Na circunstância do instante político, hoje se poderia dizer com as marchas LGBTQ levando multidões às ruas, que vivemos um momento que “não dá pra segurar; explode coração!”. Como de fato, ocorreu nos episódios que marcaram o fim da União Soviética. E os fatos foram muito ajudados pelo impacto do papado do Papa polonês no fim do socialismo do leste europeu...

A obra baseia-se em fontes orais2 tendo sido entrevistadas 1500 pessoas no Vaticano entre altos dignitários da Igreja, inclusive núncios apostólicos e embaixadores estrangeiros; além de mais de duzentos padres e seminaristas. As entrevistas foram sempre tête-à-tête, nenhuma delas por e-mail ou telefone.

Mais interessante ainda e de grande valia para o leitor é que na mesma nota o autor e os editores declaram com solenidade que

... todas as fontes, as notas, a bibliografia, a equipe de pesquisadores e três capítulos inéditos, longos demais para figurarem na obra, encontram-se reunidos em um documento de 300 páginas disponível para consulta on line em http://www.sodoma.fr (conteúdo em francês e inglês); serão publicadas também atualizações com a hashtag#sodoma na página de facebook do autor: @fredericmartel: na conta do Instagram: @martelfrederic e no Ttwiter: martelf.3

Este fato incomum parece já descortinar uma transparência inédita quanto a uma abertura benvinda no tratamento de dados sensíveis pela sua natureza subjetiva e marcados por forte estigma social. Isso para não falar da complexidade de tais comportamentos que muitas vezes esbarram em práticas criminais correntes que estão capituladas nos respectivos códigos penais, como é o caso da pedofilia, por exemplo.

Um contexto deste porte, que muitos ironicamente designam como “paróquia” e que o autor toma por empréstimo, diz também do tratamento literário carregado de mordacidade e humor que um tema eminentemente sociológico coloca em pauta.

E isto a despeito de ser ou poder ser uma poderosa janela para futuras transformações sociais, especialmente na Igreja católica romana.

Recorde-se, de passagem, que o autor é doutor em Sociologia, além de jornalista com vasta experiência na área de comunicação. De 2012 a 2013, foi pesquisador sênior no IRIS - Institut de Relations Internationales & Stratégiques. Desde 2014, é pesquisador sênior na universidade de Zurich. A obra cobre os papados de Francisco (cardeal Bergoglio), Paulo VI (cardeal Montini), João Paulo II (cardeal Wojtyla) e Bento XVI (cardeal Ratzinger), mas a análise das consequências é realizada numa escala globalizada e conforme parâmetros da sociologia política. Todavia a ordem cronológica não é exatamente literal, mas combinada com pontuações em flashback e insights em flashforward4 referidos tanto ao que o futuro nos pode reservar quanto a um futuro que poderia ter sido, mas não aconteceu...

Não estaríamos tão longe assim da análise de conjuntura muito valorizada por Karl Marx, mas aqui focada num estamento social tão destacado por Max Weber onde eventualmente possa comparecer o historiador Heinhart Koselleck...

Num dos capítulos da obra, Frédéric Martel discute o chamado amor-amizade e dá a ele certa fundamentação nas relações afetivas, carregada de homossexualidade. Disserta desde o pensamento grego na Antiguidade com Sócrates e Platão, passando por Cícero, Santo Agostinho, Santo Elredo de Rielaulx (monge cisterciense que teria sido o primeiro “Santo LGBT”, por não esconder seus amores), Tomás de Aquino, Shakespeare, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Montaigne, La Boétie, Henri Dominique Lacordaire, para afinal chegar aos tempos modernos, em que avultam Jacques Maritain e Jean Guitton, entre outros. De toda as definições aquela que o autor considera que melhor resume esse tipo de amor-amizade é a de Montaigne por escapar a uma explicação racional: “Por que era ele, porque era eu” (MARTEL, 2019, p. 127).

Através de um conservadorismo extremado de direita, hoje configurado, o papado de João Paulo II permite que o escritor, muitas vezes, através do secretário de Estado e influente Ângelo SODANO, que substituiu o não menos influente, mas diplomata politicamente moderado, Agostino CASSAROLI (papado de Paulo VI), que adentremos no palácio de La Moneda, nos porões da ditadura, segredos de estado, e às confluências de interesses entre o Vaticano e o regime político do General Augusto Pinochet...

A relação entre sexo e sexualidade com o poder é resumida num dos clássicos aforismas do dramaturgo Oscar Wilde, que dá razão a Sigmund Freud, tão atacado que foi, pelo Vaticano inclusive, pelo suposto reducionismo de todo o sofrimento psíquico, ao sexo de que era então acusado. Diz Wilde: ‘Everything in the world is about sex, except sex. Sex is about power” (MARTEL, 2019, p. 214).

Entretanto, segundo Frédéric Martel, a homossexualidade, particularmente na Igreja de Cuba, teria escandalizado fortemente Ratzinger. Ele que, já como papa Bento XVI, investira tanto no cardeal Jaime Ortega (La Habana) para trazer de volta o catolicismo à legitimidade anterior à revolução na ilha dirigida pelos Castro, Fidel e Raul... De sua viagem a Cuba, voltará abalado e já decidido a renunciar ao papado... Para o autor a questão homossexual foi também um drama pessoal que atuara com força para “devolve-lo para junto do seu piano e da música clássica de que tinha terríveis saudades (MARTEL, 2019, p. 477).

A encerrar a obra o autor vale-se ainda da pesquisa realizada e arrisca cinco perfis ideais, isto é idealizados, para construir cinco arquétipos de padres nesse contexto da homossexualidade na Igreja (MARTEL, 2019, p. 479-480).

1. A “virgem louca” – composta de ascetismo e sublimação. Escolheram a religião para não ceder à tentação do pecado, domina o amor platônico.

2. O “esposo infernal” – praticante mas com medo de viver a homossexualidade; oscila entre o pecado e o arrependimento. Aqui, a identidade homossexual não é assumida.

3. A “louca por afeto” – identidade homossexual assumida, porém com forte oscilação diante da vivência da hipocrisia.

4. O “Don Juan falsificado” – não podem ver um “rabo de calças” (palavras do autor); cada deles um leva uma vida agitada e sem complexos como cortesão impenitente.

5. “La Montgolfiera” – o arquétipo da perversão, dos padres predadores, das redes de prostituição, pedofilia, etc.

Para cada um deste arquétipos o autor “dá nome aos bois”. Todavia, afirma de modo peremptório:

No coração da Igreja, num universo excessivamente constrangido, os padres vivem suas paixões amorosas e, ao fazê-lo, estão renovando o gênero e imaginado novas famílias. Este é o segredo mais escondido de uma grande parte do Colégio Cardinalício e do clero. Além da mentira e hipocrisia generalizadas, o Vaticano também é um lugar de experiências inesperadas: constroem-se lá novas formas de vida em casal; novas relações afetivas; novos modos de vida gay; tenta-se formar a família do futuro; prepara-se a aposentadoria dos velhos homossexuais (MARTEL, 2019, p. 479).

Os editores

Rio de Janeiro, Cosme Velho.

Agosto de 2019.

Referências

SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

Notas

1 Lacan, Jacques. Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro; versão final Angelina Harari e Marcus André Vieira; preparação de texto André Telles, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 11-25. [Lacan, Jacques (2001). Autres Écrits, Paris: Éditions de Seuil.
2 Cf. Nota do autor e dos editores da obra em português. (MARTEL, 2019, p. 7).
3 Idem.
4 Esta expressão foi utilizada por Silviano Santiago (2013, p. 127) no livro As Raízes e o Labirinto da América Latina.

Autor notes

* Professor Titular da Universidade Federal Fluminense e membro do RCSL (Research Committee on Sociology of Law /International Sociological Association).
** Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do CNPq e da FAPERJ (Edital Pensa/Rio). Editora de Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. E-mail: gizlene.neder@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-9550-015X

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