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O crime de barregania no reinado de D. João II: O caso de Jsabell Aluarez

El delito de concubinato en el reinado de Juan II de Portugal: el caso de Jsabell Aluarez

The crime of concubinage under the reign of John II of Portugal: the case of Jsabell Aluarez

Le crime de concubinage lors du règne de D. João II : le cas de Jsabell Aluarez

约翰二世统治时期的姘居罪:杰莎贝尔·阿鲁亚雷斯案

Denise da Silva Menezes do Nascimento *
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil
Ana Clara Atanazio Cunha **
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

O crime de barregania no reinado de D. João II: O caso de Jsabell Aluarez

Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 12, núm. 1, pp. 72-83, 2020

Universidade Federal Fluminense

Recepção: 12 Outubro 2019

Aprovação: 22 Dezembro 2019

Resumo: O presente trabalho pretende analisar o crime de barregania a partir das cartas de perdão no contexto português do século XV, mais precisamente durante o reinado de D. João II. A partir do detalhamento do caso de Jsabell Aluarez, acusada de ser manceba, é possível reconstituir a narrativa elaborada pela suplicante para moldar um relato convincente e verossímil a fim de obter o perdão régio. Buscamos também abrir uma janela para o entendimento de questões como: a composição da narrativa feminina no intuito de se colocar da melhor maneira possível perante o rei; as estratégias envolvidas no ato misericordioso do monarca, bem como repensar os espaços de manobra em relação as possibilidades econômicas das mulheres no Medievo.

Palavras-chave: condição feminina, criminalidade em Portugal medieval, poder régio.

Resumen: El presente trabajo pretende analizar el delito de concubinato a partir de las cartas de disculpas en el contexto portugués del silgo XV, más concretamente durante el reinado de Juan II de Portugal. A partir de los detalles del caso de Jsabell Aluarez, acusada de ser una concubina, es posible reconstruir la narrativa elaborada por la suplicante para dar forma a un relato convincente y verosímil a fin de obtener el perdón real. Buscamos así mismo abrir una ventana al entendimiento de cuestiones como la composición de la narrativa femenina con la intención de posicionarse de la mejor manera posible ante la ley y las estrategias relacionadas con el acto misericordioso del monarca, además de reflexionar sobre los márgenes de maniobra relativos a las posibilidades económicas de las mujeres en la Edad Media.

Palabras clave: condición de la mujer, delitos en el Portugal medieval, poder real.

Abstract: The present work aims to analyze the crime of concubinage based on letters of pardon issued in the context of fifteenth-century Portugal, more precisely during the reign of John II of Portugal. Based on a detailed examination of the case of Jsabell Aluarez – who was accused of being a concubine – it has been possible to reconstruct the narrative developed by the supplicant in order to shape a convincing and plausible account and obtain a royal pardon. We have also sought to shed light on an understanding of issues such as: the shaping of the female narrative for the best positioning in front of the King, the strategies involved in the monarchy’s merciful act, and a rethinking of the spaces for maneuver in terms of women’s economic prospects in the Medieval Era.

Keywords: Female condition, criminality in medieval Portugal, royal power.

Résumé: Le présent article entend analyser le crime de concubinage à partir des lettres de pardon dans le contexte portugais du XV. siècle, et plus précisément lors du règne de D. João II. En nous basant sur le cas de Jsabell Aluarez, accusée d’être une concubine, il est possible de reconstituer la tentative de la requérante d’établir un récit convaincant et vraisemblable pour obtenir le pardon royal. Nous chercherons également à éclaircir des questions telles que la composition du récit féminin dans le but de se présenter au roi sous son meilleur jour ; les stratégies impliquées par l’acte miséricordieux du monarque ; et la remise en question des marges de manœuvre liées aux moyens économiques des femmes du Moyen-Âge.

Mots clés: Condition féminine, criminalité, Portugal médiéval, pouvoir royal.

摘要: 在15世纪的葡萄牙,更准确地说是在约翰二世(D. João II) 统治时期(r. 1481-1495),国王宽恕了一桩姘居罪。本文针对Jsabell Aluarez姘居案的细节分析,试图重新解读Jsabell 的申诉,分析她为了获得王室宽恕而提供的令人信服的叙述。我们还尝试为理解中世纪女性叙事策略打开一个窗口。我们知道女主为了自己的申诉能够打动国王,精心构建了自己的叙事。本文重新思考了中世纪女性在经济方面的有限的自由空间。

關鍵詞: 女性状况, 中世纪葡萄牙犯罪, 王权.

A partir da carta de perdão de Isabel Alvarez datada de 30 de julho de 1492, em Lisboa, nosso intuito é analisar as particularidades da narrativa e atuação feminina no tocante ao crime de barregania. No caso em questão, a requerente solicita e alcança o perdão real pelo crime de ser “mançeba teuda e manteuda” de um homem chamado Gonçalo Sapata. Ela própria confessou seu erro aos oficias régios, admitindo que estivera em afeição carnal com o referido Gonçalo, cometendo um crime, já que pela lei prescrita nas Ordenações Afonsinas (1446/1999) era proibido que um morador e cortesão tivesse barregã. Isabel havia cometido além de um crime contra o conjunto de leis que regulava e tipificava os crimes e suas correspondentes penas, um erro de cunho religioso, um pecado mortal.

De acordo com o historiador Luis Miguel Duarte (1993, p. 256), um crime pode ser definido como “qualquer ato, previsto como tal pela lei, e dando lugar a aplicação de uma pena da parte de uma autoridade superior, geralmente jurídica”. Diante dessa conceituação, entende-se que a classificação da criminalidade é baseada em um discurso jurídico datado e, portanto, deve ser estudada a partir de sua historicidade, pois o que é previsto pela lei como crime varia de acordo com os lugares e épocas, e é sempre produto de uma prática social de discriminação e marginalização, prática essa que é mutável. Dessa forma, condutas consideradas criminosas no Medievo, atualmente podem parecer desproporcionais, mas é justamente uma análise que considera o tempo e o lugar histórico do objeto que deve ser o fio condutor do nosso olhar. E nesse sentido, o estudo da criminalidade se transformou em um campo importante da história social, representando uma nova janela de possibilidades para se compreender o funcionamento da sociedade.

Segundo a documentação da Chancelaria de D. João II,

Jsabell aluarez marisqueira morador em esta nossa cidade de lixboam nos Enujou dizer que ella ouuera afeiçam carnall e esteuera por mançeba teuda e manteuda de huum gonçalo çapata nosso moço da estrebaria e que ora consirando Ella como estaua Com elle em pecado mortall e per bem das nossas hordenaçoeens sobre tall casso fectas por que defendemos que huum nosso morador e cortessaaom nam tenha mançeba sse apartara delle E de sua Conuersaçam e que nam embargante de ella Ja asy ser apartada Diz que sse tijmja das nossa justiças E andaua por Ello amorada Emviando nos pidir por merçee que lhe perdoasemos a nosa Justiça sse nos a ella por a dicta Razam em alguuma guissa Era teuda (PORTUGAL, 1492, livro 7, fólio 8)

A fim de pensarmos a atitude conjugal ilícita feminina utilizaremos como principal fonte documental uma carta de perdão, diploma da chancelaria que representava um ato gracioso por parte do rei. Formalmente, o documento estava dividido em três partes. A primeira chama-se protocolo e nela constavam as informações sobre o destinatário e uma notificação esclarecendo o objetivo do documento. Em seguida temos o texto, momento composto por informações sobre o crime cometido, as partes envolvidas e a decisão do monarca. Nesta parte é possível analisar alguns aspectos da vida social do criminoso, pois podemos encontrar indicações de profissão, circunstâncias que levaram a cometer um ato contra as leis do rei e de Deus e referências a amigos e parentes. O documento é finalizado com o Escatocolo, apresentando a data, o local e as assinaturas, que eram os elementos de validação da carta.

Por meio de tais diplomas, a chancelaria régia podia antecipar-se a qualquer sentença de qualquer instância; através deste ato gracioso também era possível suspender a execução de uma sentença já proferida, libertando o acusado da pena imposta ou comutando a punição por uma imposição mais leve. Convém ressaltar que, salvaguardados os direitos das partes lesadas e tendo cumprido as determinações impostas pelo acordo celebrado com o monarca, o solicitante estava livre das acusações e tinha sua honra e lugar social restituídos. Assim, a partir da concessão do perdão o monarca cumpria sua principal função, a saber, a manutenção da ordem e da justiça. A carta de perdão expressava, portanto, a mercê régia por meio da qual o monarca reinseria seus súditos no corpo social, restabelecendo o equilíbrio e saúde do organismo social.

Analisar as cartas de perdão para pensarmos a mulher medieval portuguesa pressupõe romper com a ideia de uma “história jurídica formalista, erudita, alheia às questões sociais, políticas e ideológicas” (HESPANHA, 2012, p. 23) e, nesse sentido, se faz mister pensar as correlações e disparidades entre a legislação e as concessões de graças e mercês. Assim, para a pesquisa em questão outra fonte histórica é essencial, as Ordenações Afonsinas (1446/1999), elaborada a partir de “modelos normativos largamente aceites e incorporados na cultura comum; e que por isso davam conta de valores difusos e de atitudes comuns” (HESPANHA, 2012, p. 71). As ordenações do reino podem ser definidas como uma coletânea de leis gerais que regulava e estabelecia as regras sociais a partir da compilação do direito canônico (destinado as questões espirituais e as laicas que envolviam a Igreja) e do direito romano (para as situações temporais), além de considerar os costumes e práticas cotidianas que orientavam a vida dos súditos. A importância dessa fonte reside no fato de que a partir dela podemos ter acesso às leis que revelavam os crimes cometidos pela sociedade e suas respectivas punições. A análise das mulheres a partir de uma leitura conjugada da legislação com as cartas de perdão é fundamental para apreendermos as normas jurídicas existentes e as condutas cotidianas que muitas vezes levavam a uma dissonância entre valores idealizados e vividos.

O V Livro das Ordenações Afonsinas (1446/1999) abrange grande parte das resoluções definidas para as mancebas e barregãs. Nele consta no mínimo três tipos diferentes de concubinatos que podiam ser cometidos: com homens solteiros, com homens casados ou com religiosos, cada qual com o seu grau de gravidade (SILVA, 2011). Helena Bibiana Costa (2017, p. 11) em seu artigo sobre criminalidade sexual divide os crimes sexuais em grupos distintos: “crimes de sacrilégio; crimes contra a sacralidade do casamento; crimes praticados contra as mulheres indefesas; prostituição e corrupção”. Na categoria de crimes contra a sacralidade do casamente encontravam-se

o adultério (masculino e feminino); ser manceba teúda e manteúda de um homem casado; e a bigamia. A justificação para este agrupamento relaciona-se com a estrutura base da sociedade, ou seja, a família, que é danificada quando um dos elementos do casal danifica a fazenda comum, minando as hipóteses de sobrevivência dos seus dependentes (COSTA, 2017, p. 11).

A carta não nos informa sobre a situação conjugal de Gonçalo, mas levando em consideração a hipótese de que Gonçalo fosse um homem casado de pública fama, o adultério, como já dito, também entraria em questão agravando o crime cometido. O adultério era considerado um crime grave, com consequências relevantes. Importante lembrar que o casamento era uma forma de contrato, na qual a mulher ocupava um lugar subalterno, na medida em que precisava ser tutelada não mais pelo pai ou parente próximo do sexo masculino, mas sim pelo marido. Embora fosse clara a necessidade de ambas as partes manterem a fidelidade, simbolizava a transmissão de autoridade de uma pessoa para outra. Era também a única forma considerada legítima de expressão da sexualidade, sendo aceita pela moral cristã desde que tivesse o objetivo da procriação. O adultério era, portanto, um atentado a instituição do casamento, preocupação tanto da Igreja como do poder laico. Era uma ofensa a honra e a moral do marido, bem como uma ofensa contra as leis de Deus e do reino.

Ao nos voltarmos para o passado devemos levar em consideração não apenas o que está claramente exposto na documentação analisada. É imprescindível nos debruçarmos também sobre o não dito, sobre os silenciamentos, e neste caso específico sobre a ausência do documento de perdão das partes que nos leva a inferir que se tratava de barregania com homem solteiro. Não é possível assegurar a existência do perdão das partes, na qual a (possível) esposa de Gonçalo perdoava a requerente, já que este documento não está anexado e também não há referências a ele no texto da carta de perdão. Se Gonçalo fosse um homem casado seria imprescindível que Isabel tivesse em mãos o perdão da mulher ofendida antes de solicitar o perdão real, já que o monarca concedia sua mercê levando em consideração a parte lesada, que não poderia ser alvo de injustiças por parte do poder estabelecido.

A análise do perdão da parte ofendida (ou a ausência deste documento) é importante, uma vez que o ato de conceder o perdão implicava em uma estratégia régia de controle da criminalidade e, nesse sentido, algumas imposições eram feitas aos sujeitos que desejavam solicitar a carta. Uma dessas prerrogativas expressas dizia respeito à obrigatoriedade de apresentação do perdão das partes que haviam sido lesadas, fosse o perdão da própria pessoa que havia sido lesada ou, caso não fosse possível, dos familiares da mesma. Em outras palavras, o rei concedia o perdão de forma a conciliar as partes litigantes. Tal procedimento era uma estratégia do monarca para diminuir a prática da vindicta, isto é, das vinganças pessoais. Podemos entender que o perdão só era autorizado pelo rei depois que o conflito tivesse sido esclarecido e encerrado entre as partes envolvidas. Dessa forma D. João II agia como mediador das querelas sociais e impedia que um ciclo de desordem pública se iniciasse. A ação permitia que o soberano contornasse as fragilidades de um aparelho de justiça limitado pela falta de recursos e aproximava o soberano dos seus súditos.

Mas, afinal, quem eram as partes envolvidas nesse crime? A documentação não revela explicitamente a condição social da moça, apesar disso é possível afirmar que Isabel não possuía nobreza, pois a definição de seu trabalho como “marisqueira” nos dá pistas de sua posição perante a sociedade, ou seja, não pertencente ao grupo nobiliárquico. De forma inversa Gonçalo Sapata é apresentado como “moço de estrebaria” morador e “cortessaaom”. Sua posição próxima a corte lhe conferia tratamento diferenciado e mais rigoroso em relação aos crimes cometidos, se comparado com homens de outros extratos sociais e diferentes ofícios, distantes da figura real. Um homem do rei não poderia servir de mal exemplo a sociedade, precisava ser modelo. Os funcionários régios que assessoravam o monarca formavam um corpo burocrático de indivíduos responsáveis por diversas tarefas, cujo centro e cabeça girava em torno da figura real. A autoridade e legitimidade para exercerem suas funções e obrigações eram obtidas por meio do próprio rei que delegava parte de seu poder e graça aos seus funcionários.

Dessa forma, havia uma rede de pessoas que respondiam diretamente por pequenas parcelas do poder real, o que os colocava em posições de maiores responsabilidades e vantagens, mas também de maiores cobranças. Cabe ressaltar que existe significativa diferença entre o que se entende por justiça no Medievo e seu conceito atual. Para nós, a justiça é a particularidade do que é correto, incluindo o respeito e a igualdade de todos os cidadãos; na Idade Média prevalecia o princípio de equidade na aplicação das leis, ou seja, dar a cada um aquilo que lhe é de direito em consonância com seu grupo social e em respeito à vontade divina. Portanto, a aplicação das penas referentes a um mesmo crime dependia e variava de acordo com o pertencimento do indivíduo na sociedade. Pensar a lei nesse caso não é uma questão de igualdade, mas sim de equidade. As penas variavam de acordo com as circunstâncias e as posições sociais dos envolvidos no crime. O fato de Isabel ter se envolvido e corrompido um homem do rei, que vivia próximo ao local da corte, indubitavelmente agravou sua pena.

Percebe-se, assim, que as relações de gênero se juntam as relações sociais para compor o espelho da complexa realidade. A figura da mulher era subalterna à figura do homem, embora a pena aplicada a uma mulher nobre devesse ser mais amena e refletida do que a aplicada a um homem pobre e camponês. Não queremos dizer que as mulheres não atuavam, muito pelo contrário, mas é certo que no Medievo as mulheres tinham funções bem determinadas e uma imagem consolidada, funções e imagens imbricadas na concepção religiosa de uma inferioridade natural, já que a mulher se formou a partir da costela do homem, sendo dessa forma mais frágil e secundária.

Formada a partir do corpo do homem estaria ligada aos pecados do mundo e da carne enquanto o homem, que ganhou a vida a partir de um sopro de vida de Deus, estaria ligado as questões espirituais. A imagem de ser pecador era justificada a partir da figura bíblica de Eva; ligada ao mundo corpóreo e pecador ela havia iniciado a humanidade na maldade, culpada da decadência dos homens; e as mulheres, como descendentes de Eva, estariam sempre mais propícias as tentações do diabo. Com a figura de Maria, a mulher tomaria outra posição. De acordo com Larissa do Socorro Martins Leal (2012, p. 4), pode-se depreender que

a Igreja medieval acabou por alterar a visão da mulher na sociedade, pois era necessário que houvesse um padrão idealizado de comportamento feminino. Os religiosos viram em Maria, a mãe de Jesus Cristo, um exemplo perfeito de mãe, mulher, esposa e virgem.

Ave seria a anti-Eva, o exemplo feminino a ser seguido. Diante dessa perspectiva, torna-se ainda mais elementar a atribuição de grande importância a análise das cartas de perdão destinadas a mulheres, pois nos colocam mesmo que indiretamente na presença de relatos de histórias femininas, podendo compor alguns cenários e costumes destas mulheres, que diferentemente de Maria estavam mergulhadas em pecados e tal como Eva precisavam se arrepender dos males cometidos, buscando perdão junto a Deus e ao rei.

Ao solicitar o perdão de D. João II o que Isabel desejava era escapar de forma autorizada e legitimada pela sociedade das condenações expressas nas Ordenações do reino. Inicialmente as barregãs eram condenadas ao pagamento de uma multa, todavia, a condenação ao pagamento pecuniário não implicou na redução desejada do crime de barregania, o que levou a uma modificação da lei, que sendo considerada excessivamente branda não levava ao abandono da prática, principalmente por parte daqueles que possuíam recursos financeiros para custear as penas impostas a si e suas barregãs. Assim, foi imposto à mulher que pecasse pela primeira vez o degredo da cidade ou vila e seu termo pelo prazo de um ano, as que incorressem no pecado pela segunda vez arcariam com o pagamento de multas e com a expulsão do bispado por um ano. Se retornassem ao crime seriam açoitadas publicamente, punição degradante que implicava em desonra pública das acusadas (NASCIMENTO, 2009, p. 165). AsOrdenações Afonsinas (1446/1999, livro V, título 8, p. 36) determina “que nom traga algum homem barregaã na Corte [...] a dita barregaã em todo caso seja degradada da Corte com pregom na audiencia, ou seja posta na mancebia, qual ante ella quiser”. Em outras palavras, de acordo com legislação da época, após cometer o crime de barregania no local de estadia do monarca, restava a Isabel ser condenada a viver num prostíbulo (ser manceba de mancebia) ou a expulsão da sua localidade e, portanto, de sua rede de solidariedade. Na carta não consta a pena dada a Isabel, mas a comutação da pena para o degredo para fora da cidade de Lisboa nos leva a inferir que Isabel era reincidente no crime praticado. É possível que sua punição tenha sido uma pena infamante ou ainda a pena de morte prevista para os que incorressem no mesmo pecado/delito várias vezes. Apesar de não ver sua punição totalmente anulada, a suplicante teve sua honra e vida preservadas ao receber o perdão régio.

Ao solicitar o perdão, Isabel afirma que “sse apartara dele E de sua Conuersaçam” (PORTUGAL, 1492, livro 7, fólio 8) e por já ter se apartado dele procurava a justiça pedindo por mercê o perdão régio. É evidente que ela procurava se mostrar a mais arrependida possível, justificando que já não estava mais em pecado. A própria ação de ter sido ela mesma confessora do crime é reveladora de seu sentimento de arrependimento, uma estratégia que a colocava diante do rei em melhores circunstâncias. Dessa forma já não é mais uma criminosa, ao passo que já cometeu (no passado) o crime, e se afastou do comportamento ilícito temendo pela salvação de sua alma e os rigores da justiça régia. Isabel é perdoada por um “pecado passado”. Assim, a suplicante informa que sabendo-se em pecado mortal se arrependeu e se apartou do dito pecado, ou seja, alegava-se que ao tomar ciência do erro e mal contra Deus, imediatamente abandonou a situação e solicita perdão a Deus pelo pecado e ao monarca pelo crime, como aparece neste trecho:

[...] e que ora consirando Ella como estaua Com elle em pecado mortall [...] sse apartara delle E de sua Conuersaçam e que nam embargante de ella Ja asy ser apartada Diz que sse tijmja das nossas justiças [...] E nos vendo o que nos ella asy dizer e pidir Enujou sse asy he como diz e hy majs nam ha E querendo lhe fazer graça e merçee Temos por bem E perdoamos lhe a nosa Justiça a que nos ella por Razam do dicto pecado passado e mallefiçio que asy cometeo em estar por mançeba do sobre dicto Gonçalo (PORTUGAL, 1492, livro 7, fólio 8).

A carta de perdão de Isabel é um exemplo, mas muitos foram os casos em que requerentes solicitaram o perdão real para crimes de tipos diversos. Nas petições de graça, a estratégia era compor uma narrativa o mais convincente possível, buscando justificar e sinalizar para o arrependimento, assim como Isabel fez. As histórias caminhavam para um desenvolvimento com clímax e desfecho, amarrando acontecimentos muitas vezes desconexos em uma narrativa que garantia inteligibilidade e verossimilhança. A carta de perdão não conta a verdade, é uma narrativa do ponto de vista do acusado, é uma versão do suplicante, que busca por meio de uma narrativa adequada a seus interesses, persuadir o rei a lhe conceder o perdão. É uma sobreposição de vozes diferentes: a do tabelião, em certos casos a do advogado conselheiro, mas também a do requerente, que juntos compõem a narrativa. Poderíamos imaginar então, que o indivíduo seria capaz de inventar o que bem lhe ocorresse, como forma de diminuir sua culpa. Todavia, essa estratégia da narrativa era limitada por pelo menos três filtros: os Tribunais Superiores que cuidavam do andamento do processo, os agentes da justiça local encarregados de apurar a veracidade das denúncias e o que as partes adversas podiam alegar, ou seja, “a existência de quadros mentais de avaliação exclui a ilimitada liberdade de escolha, de opção, de justificação, de discurso” (HESPANHA, 2012, p. 74). Ao mesmo tempo em que não negava o crime cometido também não se confessava na condição de criminoso no momento do pedido de perdão. Era sempre um acidente, um acaso ou desconhecimento da lei que o fazia proceder como criminoso. Assim, a prerrogativa da ingenuidade corriqueiramente aparece nos relatos, pois atestava que o indivíduo não sabia estar cometendo um crime até o momento que o fez, evidenciando que eram homens e mulheres simples e de pouco saber.

É importante ressaltar que os elementos ficcionais elaborados nas narrativas dos suplicantes não devem ser considerados empecilhos para que as cartas de perdão sejam consideradas como fontes históricas. Suas tramas de verdades e contra verdades juntam uma narrativa mista que de um lado é uma petição judicial na busca do perdão régio e por outro, um relato histórico dos atos cometidos por um sujeito no passado, ou seja, seu crime. A narrativa contida nas cartas permite um contato mais próximo da fala e da mentalidade de uma parcela da população da qual dificilmente se fazem ouvir por meio de outras fontes históricas. Quando elaboravam o relato, buscavam suavizar e justificar o delito cometido, na busca de se desculpar com o rei e a sociedade e assim, garantir o seu perdão. Utilizavam de argumentações que garantiam um contexto coerente para os atos cometidos, inserindo-os em situações cotidianas, plausíveis e comuns.

O trâmite para se conseguir o perdão régio fazia com que a solicitação de uma carta de perdão implicasse em custos que nem todas as mulheres poderiam arcar. Os gastos para suplicar uma carta eram custosos e podiam excluir parte da população. Muitas etapas precisavam do investimento financeiro para serem concluídas: era preciso, por exemplo, pagar um tabelião que redigisse a declaração do criminoso e o perdão das partes lesadas. A forma como a suplicante conseguia o perdão da vítima ou de sua família, podia variar, mas havia a possibilidade de que uma remuneração monetária fosse entregue como meio de garantir que o dano seria de alguma forma recompensado; também era preciso se deslocar até o local onde a Corte estava para proceder com o pedido. Além disso, havia sempre a possibilidade de comutação da pena, ou seja, nesses casos o monarca não concedia o perdão total ao suplicante, sendo a misericórdia real acompanhada de uma pena cumulativa, podendo ser uma multa destinada a Arca da Piedade ou a própria manutenção das despesas burocrática, ou seja, a máquina judiciária.

Pelo acima exposto, podemos inferir que ou Isabel possuía uma importante rede de solidariedade que podia incluir o homem com quem mantivera a relação de mancebia ou ainda que a suplicante possuía recursos para custear os gastos com o pedido de perdão. Esta última hipótese se mostra verossímil posto que a perdoada recebeu do monarca, juntamente com o perdão uma carta de segurança, documento que “garantia liberdade temporária ao réu ou acusado [e] conferia ao criminoso ou suspeito, por um prazo pré-determinado, o direito de manter suas atividades costumeiras sem medo de ser preso” (NASCIMENTO, 2009, p. 92). Assim, Isabel é perdoada

contanto que ella vaa estar E viuer e morar fora de nossa corte e desta çidade de lixboam e seu termo huum anno Comprido e para aderençar sua fazenda lhe damos espaço Da dada desta a huum mes sseguinte Em o quall tempo ella podera andar sseguramente por todos nossos Regnos e Senhorios E nesta nossa corte e çidade ssem por o que dicto he ser pressa nem lhe ser fecto outro alguum dessaguissado e acabado o dicto termo dy a huum mes ella no outro dya primeiro sseguynte sseJa teuda e obrigada de em para sse apresentar em quallquer vylla alguma que Seja fora esta dicta nossa corte e çidade de lixboam e seu termo e sse fazer escripuer o dya que hy chegar e dy em dyante ella este sirua viua e more fora Da dicta corte e cidade termo o dicto anno comprido ssem neste meo tenpo lhe ser dada licença para vyr a dicta Corte çidade e termo e nam o fazendo ella asy esta carta lhe nam valha (PORTUGAL, 1492, livro 7, fólio 8).

A requerente alcança o perdão régio, mas é pedido a ela que vá viver fora da corte por um período de um ano, comutava-se a pena, possivelmente pena de morte em função de reincidência, para a forma de degredo. Era-lhe assegurado, todavia, uma carta de segurança segundo a qual pelo prazo de um mês não poderia ser presa, podendo andar seguramente em Lisboa para tomar decisões relativas a salvaguarda de seus bens durante o cumprimento da punição imposta pelo monarca. Isabel é agraciada com o prazo de um mês para cuidar das providências necessárias à preservação de seus bens, mas no dia seguinte ao término do mês previsto precisava se apresentar em uma vila e lá permanecer (deveria ficar de forma permanente na cidade de sua escolha), sem licença para voltar a Corte antes do prazo estabelecido.

A obtenção da carta de segurança pela requerente nos indica a possibilidade de que ela tivesse bens sob seus cuidados. Nesse sentido, esse documento pode lançar um novo olhar para a mulher medieval, uma vez que provoca a reflexão sobre qual seria na prática a atuação das mulheres na economia e na gestão dos seus próprios recursos. Comumente vemos a mulher medieval restrita aos afazeres domésticos e cuidado da prole, estando, portanto, restrita ao âmbito privado. O recebimento da carta de segurança evidencia que, no tocante as questões econômicas, Isabel não estava sob a tutela masculina subjugada a um homem. Podemos interpretar que o real significado de mulheres terem recebido cartas de segurança demostra um espaço de manobra das mulheres dentro da sociedade maior do que o imaginado.

Considerações Finais

Era dever do rei o exercício da justiça e estava sob sua responsabilidade proporcionar uma convivência harmoniosa entre os membros da sociedade. O Rei devia ser sempre justo, agir de forma a não beneficiar seus próprios interesses, já que o bem comum era o alvo a ser atingido. Assim, é importante salientar que apesar da prática de concessão de perdão no reinado de D. João II ser bastante difundida, ela não ia contra as leis prescritas nas Ordenações Afonsinas (1446/1999), pois não se tratava de impunidade, mas sim de justiça. Ao conciliar o perdão e a punição D João II criou uma atmosfera de proximidade com seus súditos, em relações de dependência e reciprocidade, fortaleceu seu poder atuando como árbitro dos conflitos sociais. A concessão de perdão permitia uma relação de troca de favores, na qual o rei em sua misericórdia e preocupação com o bem comum perdoava seu súdito, enquanto que o recebedor das mercês se subordinava ao monarca, subordinação evidenciada a partir do cumprimento a partir de então da legislação régia. Ao mesmo tempo, o suplicante deveria ser extremamente grato ao soberano, gratidão que se expressava pelo arrependimento e predisposição a não voltar a pecar. Dessa forma, o rei reforçava seus laços sociais, conciliando a misericórdia e punição, pois só assim a justiça e a ordem se concretizariam.

O estudo do perdão régio concedido a Isabel Alvarez pelo crime/pecado de barregania nos ajudar a derrubar estereótipos sobre as possiblidades de ação das mulheres medievais. Sabemos que a sociedade medieval era misógina, todavia, Isabel representa a capacidade de atuação da mulher; possibilidade de exercer poder(es) em diversos âmbitos, seja o econômico através da administração de seus bens, seja a partir da possibilidade de garantir sua reinserção social através da solicitação de uma carta de perdão, seja o político a partir da sua capacidade de negociação com o aparato jurídico para o recebimento do perdão régio.

Referências

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HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Lisboa: Almedina, 2012.

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SILVA, Edilene O. “Quem chegar por último é mulher do padre”: as Cartas de Perdão de concubinas de padres na Baixa Idade Média portuguesa. Cadernos Pagu, n. 37, p. 357-386, jul./dez. 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332011000200015

Autor notes

* Professora Associada de História Medieval da Universidade Federal de Juiz de Fora. Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestrado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. Este artigo resulta de projeto de pesquisa intitulado “Os crimes de lesa-majestade no reinado de D. João II”. Projeto financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (XXX BIC/UFJF – 2017/2018). E-mail: denise.nascimento@ufjf.edu.br. https://orcid.org/0000-0002-8187-5831
** Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista dos projetos “Os crimes de lesa-majestade no reinado de D. João II” (BIC/UFJF – 2017/2018); “Os crimes de lesa-majestade no reinado de D. João II – fugas de prisão (PIBIC/UFJF – 2018/2019); “Sociabilidade maçônica e a expansão da cultura das Luzes no mundo Luso-Brasileiro, 1790-1850 (BIC/UFJF 2019-2020). E-mail: clarinha.atanazio@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-1766-8440

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