Artigos
Spinoza para criminalistas*
Spinoza para penalistas
Spinoza for criminologists
Spinoza pour les criminologues
斯宾诺莎与罪犯学
Spinoza para criminalistas*
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 12, núm. 2, pp. 211-220, 2020
Universidade Federal Fluminense
Recepção: 03 Março 2020
Aprovação: 03 Abril 2020
Resumo: Bento (Baruch, Benedictus) de Spinoza é um autor pouco frequentado por penalistas e criminólogos. Em nossos esquemas pedagógicos o contraponto histórico a Thomas Hobbes é geralmente encarnado apenas em John Locke, com o que se deixa de lado a extraordinária contribuição de Spinoza à ciência política (e, dentro dela, à específica ciência do poder punitivo). Vale uma breve visita a três obras decisivas para compreendê-la. Este trabalho realiza uma análise de conteúdo da reflexão filosófica sobre direito e punição em três obras de Baruch Spinoza: Ética, Tratado Teológico-Político e Tratado Político.
Palavras-chave: Baruch Spinoza, potência, poder punitivo,.
Resumen: Baruch Spinoza, también conocido como Benedito de Espinosa o Benedictus de Spinoza, es un autor poco consultado por penalistas y criminólogos. En nuestros esquemas pedagógicos de enseñanza del derecho penal y la criminología, por lo general, el contrapunto histórico de Thomas Hobbes lo encarna solamente John Locke, una decisión que deja de lado la extraordinaria contribución de Spinoza a las ciencias políticas (y, dentro de ellas, a la específica ciencia del poder punitivo). Vale la pena una breve visita a tres obras decisivas para comprenderla. Este trabajo realiza un análisis de contenidos de la reflexión filosófica sobre el derecho y la pena en tres libros de Baruch Spinoza: Ética, Tratado teológico-político y Tratado político.
Palabras clave: Baruch Spinoza, potencia, poder punitivo.
Abstract: Bento (Baruch, Benedictus) of Spinoza is an author somewhat neglected by criminal lawyers and criminologists. Our educational frameworks for the teaching of Criminal Law and Criminology generally only locate John Locke as a historical counterpoint to Thomas Hobbes, leaving aside the extraordinary contribution made by Spinoza to political science (and, within this, the specific science of punitive power). This work conducts a brief review of texts key to understanding Spinoza’s contribution, analyzing the contents of Spinoza’s philosophical reflections on law and punishment in the three texts entitled: Ethics, Theological-Political Treaty, and Political Treaty.
Keywords: Baruch Spinoza, power, punitive power.
Résumé: Bento (Baruch, Benedictus) de Spinoza est un auteur peu fréquenté par les pénalistes et autres criminologues. Dans nos stratégies pédagogiques d’enseignement du Droit pénal et de criminologie, le contrepoint historique à Thomas Hobbes est généralement, et uniquement, incarné par John Locke, l’extraordinaire contribution de Spinoza aux sciences politiques (et en leur sein, à la science spécifique du pouvoir punitif) étant ainsi laissée de côté. Nous aborderons brièvement trois ouvrages décisifs afin de mieux la comprendre. Ce travail se veut une analyse du contenu de la réflexion philosophique sur le droit et la punition en œuvre dans ces trois ouvrages de Baruch Spinoza, à savoir L’Éthique, Traité théologico-politique et Traité politique.
Mots clés: Baruch Spinoza, puissance, pouvoir punitif.
摘要: 巴鲁克·斯宾诺莎(Baruch Spinoza)是一位很少被刑法学家和犯罪学家注意到的哲学家。在我们的刑法和犯罪学教学纲要中,通常会拿托马斯·霍布斯的论点与约翰·洛克的观点进行对比研究,很少有人会提及斯宾诺莎在政治学 (特别是他的“惩罚权”的观点) 的特殊贡献。为了理解斯宾诺莎关于惩罚权的论述,我们挑选了他的三本重要著作,分析了这些著作中的法律思想和刑罚权的论述,并且进行了哲学反思。这三部著作分别是:伦理学(Ética)、论神学-政治学(Tratado Teológico-Político)、论政治(Tratado Político)。
關鍵詞: 斯宾诺莎, 强权, 惩罚权.
Introdução
Bento (Baruch, Benedictus) de Spinoza é um autor pouco frequentado por penalistas e criminólogos. Em nossos esquemas pedagógicos o contraponto histórico a Hobbes é geralmente encarnado apenas em Locke, com o que se deixa de lado a extraordinária contribuição de Spinoza à ciência política (e, dentro dela, à específica ciência do poder punitivo). Vale uma breve visita a três obras decisivas para compreendê-la.
Este trabalho realiza uma análise de conteúdo da reflexão filosófica sobre direito e punição em três obras de Baruch Spinoza: Ética, Tratado Teológico-Político e Tratado Político.
Escrita entre 1661 e 1675, a Ética só seria publicada após a morte de Spinoza (SPINOZA, 2007). Passemos ao largo do método por ele empregado; “tentar geometrizar a vida moral” (GABBEY, 2011, p. 194) é iniciativa totalmente compatível com a conjuntura do renascimento científico, visível no método resolutivo-compositivo que Hobbes, também apaixonado pela geometria, tomou emprestado a Galileu (HOBBES, 1992, p. 15). Detenhamo-nos apenas sobre algumas passagens relevantes para o direito penal e a criminologia.
A ideia de “causa adequada” – introduzida no direito penal a partir de 1871, com a obra de von Bar, para disputar espaço na imputação do resultado com a teoria da conditio – fora assim expressa por Spinoza: “chamo de causa adequada aquela cujo efeito pode clara e distintamente ser percebido por ela mesma”. As ações humanas seriam, portanto, aquelas de que o homem seja a causa adequada: “digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a causa adequada” (SPINOZA, 2007, p. 163).
O instável equilíbrio dos afetos assumirá a certa altura um viés preventivo-negativo:
[...] aquele que odeia alguém se esforçará para afastá-lo ou destruí-lo. Mas se teme que disso advenha, para si próprio, algo mais triste ou, o que é o mesmo, um mal maior, e se julga poder evitá-lo não infligindo a quem odeia o mal planejado, desejará abster-se de infligir-lhe o mal (SPINOZA, 2007, p. 209).
Tal raciocínio será reiterado (SPINOZA, 2007, p. 275-276), e na “lei” segundo a qual “cada um se abstém de causar prejuízo a outrem por medo de um prejuízo maior” Spinoza fundamenta o estabelecimento de uma sociedade que “avoque para si própria o direito que cada um tem de vingar-se” e faça cumprir as leis “não pela razão, que não logra refrear os afetos, mas por ameaças” (SPINOZA, 2007, p. 311).
Mas os afetos podem subjugar o homem que mesmo compreendendo a ilicitude de sua conduta (que pode acarretar-lhe o “mal maior” da pena) não consiga agir consoante tal compreensão, evitando o ilícito. Eis uma lapidar antevisão da inimputabilidade:
“Chamo de servidão a impotência humana para moderar e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando (sui iuris non est) mas sob o da fortuna, a cujo poder está tão submetido que muitas vezes, ainda que perceba o que é o melhor a fazer, faz entretanto o pior” (SPINOZA, 2007, p. 263).
Para afirmar a natureza convencional do ilícito, observa Spinoza que “no estado natural não há nada que seja bom ou mau pelo consenso de todos”, e por isso “é inconcebível o pecado1 no estado natural, mas pode-se certamente concebê-lo no estado civil, no qual o que é bom e o que é mau é decidido por consenso” e obriga a todos. Logo, “o pecado não é senão uma desobediência, que é punida apenas por causa do direito da sociedade civil”, pois “no estado natural nada há que se possa chamar de justo ou de injusto” (SPINOZA, 2007, p. 311)(SPINOZA, 2009, p. 21). Spinoza reiterará tal opinião no Tratado Político, que examinaremos mais tarde (CHAUÍ, 2003, p. 239).
Merece menção o olhar sem preconceitos ou restrições (KANT, 1978, p. 175)2 que Spinoza lança sobre o direito de graça. Tendo registrado que os homens, na maior parte das vezes, são “mais inclinados à vingança que à misericórdia” (SPINOZA, 2007, p. 355), dirá ele que “à crueldade opõe-se a clemência, que não é uma paixão mas sim uma potência do ânimo, pela qual o homem controla a ira e a vingança” (SPINOZA, 2007, p. 255).
Cumpre advertir os penalistas para um conceito central do pensamento spinoziano, o conatus, que exprimiria o esforço de todo ser em perseverar na sua existência tal qual é. Há quem realce no conatus uma superação dos determinismos hobbesiano (do homem-lobo) e rousseauniano (do bom selvagem), que renuncia a estabelecer uma natureza humana fixa e imutável em favor de concretas possibilidades de aperfeiçoamento e adaptação (PÉREZ LORA, 2017, P. 252); há quem identifique o conatus com o direito natural (CHAUÍ, 2003, p. 148). Essa advertência se explica porque entre os penalistas a palavra conatus converteu-se em sinônimo de tentativa, pelo menos desde que os práticos discutiam se o mero “esforço para delinquir (conatus ad delinquendum)” (CLARUS, 1640, p. 683) deveria ser punido, e como.
II
O Tratado Teológico-Político(SPINOZA, 2008) foi publicado anonimamente em 1670, quando Spinoza já se mudara para Haia: também objeto de violentos ataques, seria proibido pelo governo holandês em 1674. Já no Tratado Político (para a edição utilizada, cf. nota nº 11) Spinoza trabalhou até sua morte em 1677; inconcluso, só seria publicado postumamente.
Cabe louvar na filosofia política de Spinoza o prematuro reconhecimento de direitos humanos inalienáveis. No contexto do contratualismo, isto significava que no pacto civil o novel cidadão não transferiria todos os seus direitos ao soberano em troca de proteção a sua pessoa e a seus bens, como em Hobbes. Não. “Ninguém pode transferir para outrem o seu poder, e consequentemente o seu direito, a ponto de renunciar a ser um homem” (SPINOZA, 2008, p. 250). (Sobre a assimilação entre potência e direito nos deteremos em seguida.) Ao contrário, “o indivíduo reserva para si uma boa parte de seu direito, a qual desse modo não fica dependente das decisões de ninguém a não ser dele próprio” (SPINOZA, 2008, p. 251).
Entre esses direitos rigorosamente inalienáveis figura a liberdade religiosa, “não podendo sequer conceber-se alguém que renuncie a esse direito” (SPINOZA, 2008, p. 137). Também a “faculdade de raciocinar livremente e ajuizar sobre qualquer coisa” (SPINOZA, 2008, p. 300) constitui um daqueles “direitos individuais que não podem ser transferidos para outrem” (SPINOZA, 2008, p. 288). Em suma, “é impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem o que pensam” (SPINOZA, 2008, p. 309). Portanto “um poder que negue aos indivíduos a liberdade de dizer e de ensinar o que pensam será um poder violento” (SPINOZA, 2008, p. 302). Mais: “todo poder exercido sobre o foro íntimo se tem por violento” (SPINOZA, 2008, p. 300). Também no Tratado Político Spinoza (2009, p. 63) observará que “não repugna de modo algum à prática que se constituam direitos tão firmes que nem o próprio rei os possa abolir”; situados tais direitos nos fundamentos do Estado, interpretáveis pois como “decretos eternos do rei”, uma ordem real para violá-los poderia ser desobedecida pelos funcionários.
O desassombro dessas opiniões, que extraem todas as consequências de sua premissa (a existência de direitos inalienáveis) fica realçado se as compararmos com a timidez de Rousseau e de Beccaria, um século mais tarde, a propósito da pena de morte. O ponto de partida de ambos (embora encoberto nos respectivos textos) residia na criminalização do suicídio, que Agostinho equiparara ao homicídio e estava sujeito a penas canônicas póstumas (denegação de sepultura e de serviços fúnebres) (MINOIS, 1995; SANTO AGOSTINHO, 2000; SCHIAPPOLI, 1905, p. 713);3 daí deduziam eles que o homem não tem disponibilidade jurídica sobre a própria vida, não podendo, pois, transferir o que não tem. Em 1762, no famoso livro editado na mesma Amsterdam na qual os pais de Spinoza haviam se homiziado,4 Rousseau (1971, p. 45) questionava como poderiam “os particulares, desprovidos do direito de dispor de suas vidas, transferir ao soberano esse mesmo direito que não possuem”.5 Dois anos depois, no não menos famoso opúsculo, Beccaria (1764, cap. XVI, p. 62) perguntava: “quem jamais pretendeu deixar a outros homens o arbítrio de matá-lo”? Nenhum dos dois, contudo, extraiu daí um argumento contra a legitimidade da pena de morte, que admitiram e fundamentaram, ora desqualificando hobbesianamente o infrator como inimigo,6 ora recorrendo a uma necessidade preventiva cuja exemplaridade quase chegava a estimular execuções cruéis.7
Observando que “a potência universal de toda a natureza não é mais do que a potência de todos os indivíduos em conjunto” (SPINOZA, 2008, p. 234-235), Spinoza (2007, p. 12) conclui que “cada indivíduo tem pleno direito a tudo o que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua exata potência”. Esta equiparação entre direito e potência, que inspiraria Walter Benjamin (2000, p. 210 et passim) a discernir entre a violência que “funda” e a violência que “mantém” a ordem jurídica,8 permite que Spinoza (2009, p. 20) deduza essa mesma ordem jurídica da potência da multitudo: “este direito que se define pela potência da multidão costuma chamar-se Estado”. O fim do Estado não é “dominar nem subjugar os homens pelo medo”; ao contrário, “o verdadeiro fim do Estado é a liberdade” (SPINOZA, 2008, p. 302).
O paralelismo entre direito e potência não é observável apenas nos indivíduos em estado de natureza e nos cidadãos nos quais eles se convertem pelo contrato social: também o poder soberano se mede pela mesma régua. Naquele momento do processo de acumulação de poder punitivo o argumento do exclusivismo penal do Estado estava em todos os iusnaturalistas, e Spinoza (2009, p. 37-38) não poderia fugir a ele: “só ao poder soberano pertence o direito de julgar [...] e de aplicar penas aos delinquentes”. Contudo, “a vontade do rei só tem força jurídica enquanto ele detiver o gládio da cidade, e o direito do Estado define-se somente pela potência” (SPINOZA, 2007, p. 78; 2008, p. 239). A ideia de que a potência é a medida do direito, entre outras fecundas virtudes, revela quão falsa é a concepção de um “direito penal subjetivo”. O próprio Spinoza, ao fluir da pena, mencionará “o gládio do rei, ou direito” (SPINOZA, 2009, p. 79). Mas até Hobbes (1992, p, 118), ao deter-se sobre “o direito de usar o gládio do castigo”, frisou que “não se pode imaginar poder maior que este”. Aplicar e executar a pena constituem atos de poder, e no sistema spinoziano a pena poderia ser caracterizada como redução compulsória da potência do condenado.
Uma semente perdida da concepção de culpabilidade por vulnerabilidade (ou, para os que não a professam, da concepção de coculpabilidade) está na passagem em que Spinoza (2009, p. 44) observa ser “certo que as revoltas, as guerras e o desprezo ou violação das leis não são de imputar tanto à malícia dos súditos quanto à má situação do Estado, porque os homens não nascem civis, fazem-se”.
Embora Spinoza reverbere nos textos políticos aquele viés preventivo-negativo que assinalamos na Ética (o “medo de um mal maior” como dissuasão do mal) (SPINOZA, 2008, p. 238), ele se afasta por completo de um terrorismo punitivo estatal: “um Estado que não tem outro objetivo senão que os homens se conduzam por medo será mais um Estado sem vícios que um Estado com virtude” (SPINOZA, 2009, p. 134). A própria eficiência dissuasiva é questionada: “até o medo da morte nós vemos muitas vezes ser vencido pelo desejo do que é dos outros” (SPINOZA, 2009, p. 135).
Observações agudas dispensou Spinoza à organização da Justiça, começando por sugerir a constituição de um “conselho formado só de juristas” (SPINOZA, 2009, p. 58), distinto do supremo conselho político, ao qual, no entanto tocaria ratificar as sentenças. Os bens dos condenados só poderiam remunerar os juízes sob a “condição de nunca lhes ser lícito obrigar alguém a confessar pela tortura” (SPINOZA, 2009, p. 113). Isto porque,
[...] muitas vezes, na instrução dos processos, não se olha para o direito ou para a verdade, mas sim para a dimensão das riquezas (do réu); as delações proliferam e quem quer que seja muito rico torna-se presa (SPINOZA, 2009, p. 76).
E por aí vai, do voto secreto (que, na conjuntura, protegeria o juiz) (SPINOZA, 2009, p. 59; 75) ao impedimento de que “tenham ao mesmo tempo assento nos tribunais dois parentes por consaguinidade” (SPINOZA, 2009, p. 112).
III
É absolutamente certo que Spinoza tenha lido alguma coisa de direito romano, a partir de vestígios muitos nítidos identificáveis em seus escritos. É possível que o contacto com textos de direito romano tenha ocorrido quando ele estudou latim com Francisco van den Enden (KLEVER, 2011, p. 38 et passim).
Desde logo, no recorrente emprego das expressões sui iuris e alieni iuris(SPINOZA, 2009, p. 16) para designar respectivamente homens juridicamente autônomos ou subordinados a outrem apenas se reflete uma clássica classificação das pessoas em direito romano: o paterfamilias era uma pessoa sui iuris, enquanto escravos e filiifamilias eram alieni iuris(BONFANTE, 1965, p. 55).
Por duas vezes Spinoza conceituou justiça no Tratado Teológico Político. Na primeira, como “constante e perpétua vontade de dar a cada um o que lhe é devido” (SPINOZA, 2008, p. 68); na segunda, como “disponibilidade constante para atribuir a cada um aquilo que, de acordo com o direito civil, lhe é devido” (SPINOZA, 2008, p. 243). E no Tratado Político assim caracterizou o homem “justo: aquele em quem é constante a vontade de dar a cada um o seu” (SPINOZA, 2009, p. 23). Ora, essas três passagens foram escritas por alguém que pelo menos começou a leitura das Institutiones de Justiniano, que principiam pela definição de justiça: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuens”.9
Em outro momento, quando Spinoza (2008, p. 308) se detinha sobre a liberdade e tolerância que tornavam Amsterdam tão admirada, escreveu o seguinte:
E não existe absolutamente nenhuma seita, por mais odiada que seja, cujos membros (desde que não prejudiquem ninguém, dêem a cada um o que lhe é devido e vivam honestamente) não sejam protegidos pela autoridade dos magistrados e pela guarda.
Interessam-nos aí as virtudes requeridas aos membros da seita para se verem protegidos pelo poder civil: “que não prejudiquem ninguém, dêem a cada um o que lhe é devido e vivam honestamente”. Aí estão reproduzidos fielmente os três preceitos do direito segundo as Iustitutiones: “iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”.10
Encerremos recordando uma proposta que causaria infarto no impiedoso miocárdio dos atuais apóstolos das privatizações:
Os campos, todo o solo e, se possível, também as casas serão de direito público, ou seja, daquele que detém o direito da cidade, pelo qual serão alugadas aos cidadãos, quer das urbes, quer dos campos, por um preço ao ano (SPINOZA, 2007, p. 53).
Para que doravante, em cursos de política criminal, no contraponto a Hobbes toque a Spinoza um papel principal, basta comparar essa proposta com as carinhosas palavras que Locke dedicou à propriedade privada (LOCKE, 2009, p. 29 et passim).
Referências
BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e delle Pene. [S.l.]: Príncipes, 1764. Facsimile.
BENJAMIN, Walter. Oeuvres. Tradução de Maurice de Gandillac et al. Paris: Gallimard, 2000. v. 1, p. 210-243.
BONFANTE, Pedro. Instituciones de Derecho Romano. Tradução de Luis Bacci y Andrés Larrosa. Madri: Reus, 1965.
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CLARUS, Julius. Practica Criminalis. Veneza: Baretiana, 1640.
GABBEY, Alan. Ciência natural e metodologia de Spinoza. In: GARRET, Don (Org.). Spinoza. Tradução de C.T. Rodrigues. Aparecida: Ideias & Letras, 2011. p. 185-243.
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
KANT, Emmanuel. Principios Metafisicos de la Doctrina del Derecho. Tradução de Arnaldo Córdova. México: UNAM, 1978.
KLEVER, W. N. A. Vida e obras de Spinoza, In GARRET, Don (Org.). Spinoza. Tradução de C.T. Rodrigues. Aparecida: Ideias & Letras, 2011. p. 33-87.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução de Alex Martins, São Paulo: M. Claret, 2009.
MINOIS, Georges. Histoire du Suicide. Paris: Fayard, 1995.
PÉREZ LORA, Oscar Javier. Hobbes, Spinoza y la diferencia como fundamento de la paz y la democracia. In: CATANEO BECKER, R. et al. (Org.). Spinoza e Nós. Rio de Janeiro: EdPUC, 2017. 2 v.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 1971.
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Leme, Petrópolis: Vozes, 2000.
SCHIAPPOLI, Domenico. Diritto Penale Canonico. In: Enciclopedia Pessina. Milão: S.E. Libraria, 1905. v. 1.
SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. Edição bilíngue.
SPINOZA, Baruch. Tratado Teológico-Político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
SPINOZA, Baruch. Tratado Político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. SãoPaulo: Martins Fontes, 2009.
Notas
Autor notes
Ligação alternative
http://www.revistapassagens.uff.br/index.php/Passagens/article/view/323/267 (pdf)