Artigos
O surgimento do “estado” e da “propriedade privada” na Idade Antiga e na Idade Média
La aparición del Estado y de la propiedad privada en la Edad Antigua y la Edad Media
The emergence of the “State” and of “private property” in ancient times and in the Middle Ages
L’avènement de l’« État » et de la « propriété privé » dans l’Antiquité et au Moyen-âge
古代和中世纪“国家”和“私有财产”的出现
O surgimento do “estado” e da “propriedade privada” na Idade Antiga e na Idade Média
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 12, núm. 2, pp. 309-324, 2020
Universidade Federal Fluminense
Recepção: 12 Setembro 2019
Aprovação: 03 Fevereiro 2020
Resumo: O objetivo central desse artigo é diferenciar o tipo de “propriedade privada” que exista na Idade Antiga e na Idade Média, do atual modelo de propriedade privada capitalista. Para isso, fez-se necessário perceber que em Roma a propriedade privada era comunal e não uma mercadoria e, a dominação sobre a propriedade privada, tinha como base a força; já na Idade Média, a “propriedade privada” era feudal, existindo a terra do senhor e do servo e, a dominação sobre a propriedade, teve como fundamento a moral e a religião. Por isso, o fato de a propriedade feudal não ser possuída como nas relações capitalistas, não a tornavam mercadoria, uma vez que tinha como base a relação feudal de lealdade. Por fim, detectou-se que somente após a Revolução Francesa é que surgiu a propriedade privada capitalista, com a possibilidade da monopolização das terras e sua transformação em mercadoria.
Palavras-chave: Propriedade privada comunal, feudalismo, Estado.
Resumen: El objetivo de este artículo es diferenciar el tipo de «propiedad privada» que existía en la Edad Antigua y en la Edad Media del actual modelo de propiedad privada capitalista. A tal efecto, se reveló necesario comprender que en Roma la propiedad privada era comunal, no una mercancía, y el dominio de la propiedad privada tenía como base la fuerza. En la Edad Media, la «propiedad privada» era feudal, es decir, existía la tierra del señor y del siervo, y el dominio de la propiedad tenía como fundamento la moral y la religión, de ahí que el hecho de que la propiedad feudal no se poseyese como en el caso de las relaciones capitalistas no la convertía en mercancía, ya que se basaba en la relación feudal de lealtad. La propiedad privada capitalista no surgió hasta después de la Revolución Francesa, con la posibilidad de monopolizar las tierras y transformarlas en mercancía. El artículo abre un debate en el campo de las ideas jurídicas sobre la propiedad a partir del análisis descriptivo de autores y conceptos.
Palabras clave: Propiedad privada comunal, feudalismo, Estado.
Abstract: The aim of this article is to differentiate between the kind of “private property” that existed in ancient times and in the Middle Ages from the present-day capitalist model of private property. To do so, it must be acknowledged that private property in Rome was a common good rather than a commodity, and that the rule over it was based on force. In the Middle Ages, “private property” was feudal, with land ruled by masters and servants according to moral and religious grounds. This explains why feudal property cannot be described as a commodity, possessed as it is in capitalist relations, due to its basis on the feudal concept of loyalty. It was only in the wake of the French Revolution that private property emerged in the capitalist sense, with the possibility for monopolizing areas of land and transforming them into goods. The article discusses legal ideas of property based on a descriptive analysis of authors and concepts.
Keywords: Communal private property, feudalism, the State.
Résumé: Le but de cet article est de différencier le type de « propriété privée » qui existait dans l’Antiquité et au Moyen-âge du modèle actuel de propriété privée capitaliste. Nous avons ainsi pu constater qu’à Rome, la propriété privée était de type communal, et non pas marchande, et que son respect était basé sur la force. Au Moyen-âge, la « propriété privée » était féodale, avec les terres du seigneur et celles de ses serfs, son respect étant fondé sur la morale et la religion. Ainsi, le simple fait de n’être pas possédée comme dans le cadre des rapports capitalistes ne la transformait pas en marchandise, étant donné qu’elle était basée sur des relations féodales de loyauté. C’est seulement après la révolution française que surgira la propriété privée capitaliste, ouvrant ainsi la voie à la monopolisation des terres et à leur transformation en marchandise. Cet article propose un débat sur les idées juridiques afférentes à la propriété à partir de l’analyse descriptive de différents auteurs et concepts.
Mots clés: Propriété privée communale, féodalisme, État.
摘要: 本文目的是将古代和中世纪的“私有财产”与现代资本主义的“私有财产”区分开来。在古罗马,土地等“私有财产”是“村社集体共有”,它不是商品,对私有财产的统治是基于武力。在中世纪,“私有财产”是封建制的,封建主和附庸各自拥有自己的土地,对“私有财产”的统治是建立在道德和宗教基础上的。因此,封建财产不是可以自由买卖的商品,因为财产关系建立在封建的保护—效忠关系的基础上。只有在法国大革命之后,资本主义“私有财产”才出现,资产阶级剥夺了封建主的土地并将其转变为商品。本文用法学思想史的视角讨论“私有财产”的概念和与之有关的争论
關鍵詞: 村社共有的“私有财产”, 封建制度, 国家.
Introdução
O objetivo desse artigo é fazer um esforço histórico – uma vez que o estudo da história serve para compreender o presente e interferir na construção do futuro – para levantar a tese que não exista a propriedade privada semelhantes aos moldes atuais, na Idade Antiga e Idade Média, uma vez que a propriedade privada capitalista só ganha concretude nas relações sociais do capitalismo.
Detectou-se o momento histórico em que a propriedade privada capitalista surgiu e, para isso, foi-se necessário entender a evolução das Gens, com os primeiros impulsos da “propriedade privada”. Tempos depois, na Idade Média, percebeu-se que a “propriedade privada” feudal era do senhor feudal, mas utilizada pelo vassalo e baseava-se na lealdade, não possuindo as características da propriedade privada capitalista, pois não era mercadoria e, quanto ao “Estado”, este não possuía uma forma política apartada, pois o que existiam eram formas de organização política.
Com relação à “propriedade privada” individual, viu-se que na Inglaterra, no século XIV, a cooperativa comunitária fundava-se de um lado no aforamento ou divisão de terras em lotes iguais e, do outro, na área comum; no século XVI iniciou-se as compras pelos burgueses de terras pertencentes aos nobres e a usurpação de terras e expansão de bens até o século XIX, inclusive por parte da igreja; com o golpe de Estado de 1688 foram roubados os domínios do Estado, por isso, o domínio inglês privado teve como base a soma do patrimônio do Estado apropriado mais o roubo por parte da igreja.
Assim, percebe-se que na Idade Antiga a “propriedade privada” era comunal e, na Idade Média, a “propriedade privada” era feudal, institutos que possuem dentro de sua nomenclatura as palavras “propriedade privada”, mas que difere, totalmente, de nossa propriedade privada capitalista atual.
Para tanto, se realizou um procedimento de revisão da literatura, estrangeira e brasileira, com a sistematização e análises de dados, buscando identificar os institutos, tendo como principais fontes de pesquisa os sites do governo federal, livros, periódicos.
O surgimento da “propriedade privada” e do Estado na Idade Antiga
Para que possamos compreender o conceito da propriedade privada capitalista (individual e atual), devemos detectar os seus antecedentes históricos; passando pelo surgimento da propriedade privada, sua modificação para propriedade feudal e, posterior, transformação em propriedade privada capitalista.
Engels (2012, p. 81) utiliza o termo Gens (engendrar) para designar um grupo de consanguíneos, significando linhagem ou descendência, caracterizado por um grupo que constitui uma descendência comum (do pai da tribo) e que está unido por certas instituições sociais ou religiosas, formando uma comunidade particular, que a partir das gens origina-se o Estado.
A primeira Gens foi a Iroquesa, em especial a dos sênecas, que consistia em oito gens; e um agrupamento de gens formava uma tribo, que se separava das demais por vastos territórios onde ocorriam várias guerras. Na época do descobrimento, os índios de toda a América do Norte estavam organizados em gens. A terra era propriedade da tribo e as pessoas exerciam diretamente o poder de escolha de seus representantes militares e religiosos. Trata-se, portanto, de uma organização que não conhecia ainda o antagonismo de classe, nem o Estado. A propriedade dos que faleciam passava aos demais membros da própria gens, pois não devia sair dela. Fora do local onde estava assentava a tribo, cada uma possuía um extenso território para caça e pesca (ENGELS, 2012, p. 81-94).
Já a gens Grega, apresentava-se de modo bastante diferenciado em relação a gens dos iroqueses, pois faltava-lhe uma instituição que assegurasse as riquezas de cada um, que consagrasse a propriedade privada e que dispusesse sobre as novas formas de aquisição. Uma instituição que não só perpetuasse a acumulação e a nascente divisão da sociedade em classes, mas também garantisse o direito da classe possuidora em explorar a não possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda, ou seja, a instituição Estado (ENGELS, 2012, p. 95-102).
Foi, então, na Gens Grega que surgiu a necessidade da instituição do Estado e da propriedade privada, mas entre os gregos existia a propriedade comunal (propriedade de terras comuns). A propriedade e a família eram instituições que caminhavam juntas: “A propriedade privada entre os gregos é resultado de um processo que gera o fortalecimento concomitante da família. A partir daí, família e propriedade privada são instituições que caminham juntas e no mesmo passo” (ORRUTEA, 1998, p. 49).
Assim, percebe-se que a Gens foi inicialmente composta de um grupo de consanguíneos, e um grupo de Gens originou uma tribo e a terra era de propriedade dessa tribo. Foi na Gens Grega que surgiu a necessidade da propriedade privada e do Estado, mas o Estado só surge no Estado Ateniense e a propriedade privada em Roma, sendo que esse Estado e a essa propriedade privada não possuem a natureza jurídica igual à atual, uma vez que o Estado não era um ente (terceiro) como existe na sociedade capitalista e, a propriedade privada, não possuía a característica atual de mercadoria (propriedade burguesa).
Entre os gregos, na gens, em sua forma primitiva, fundamentada na concepção de grupos consanguíneos e com certo grau de parentesco, a propriedade, de início, tinha a característica de ser comum a todos. Com a introdução do direito paterno em substituição ao direito materno, houve a acumulação de riquezas pela família, em virtude, principalmente, da instituição da herança. A partir daí, verifica-se que foi entre os gregos que apareceram os primeiros impulsos à propriedade privada (GOMES; MARTINELLI, 2012, p. 218).
Na civilização greco-romana, a propriedade privada – assim como a família e a religião doméstica – fazia parte da constituição social e da organização institucional da sociedade, que não podia, em hipótese alguma, ser alterada, quer por deliberação popular, quer por decisão dos governantes. Por aí se percebe como seria absurdo falar, no direito antigo, de deveres do cidadão para com a comunidade, enquanto proprietário. A propriedade greco-romana fazia parte da esfera mais íntima da família, sob a proteção do deus doméstico. Por isso mesmo, o imóvel consagrado a um lar era estritamente delimitado, de forma que cometia grave impiedade o estranho que lhe transpusesse os limites sem o consentimento do chefe da família (COMPARATO, 1997, p. 92-93).
Hoje, para nós, o Estado é considerado uma entidade à parte da sociedade. Há uma tensão entre os interesses do Estado (chamados por nós, de maneira estrita, de interesses políticos) e os interesses da sociedade. O mundo grego não conhecia um elemento estatal que fosse distinto da vida social de seus cidadãos. A pólis, como cidade, era ao mesmo tempo aquilo que chamamos modernamente por sociedade e também aquilo que denominamos Estado (MASCARO, 2014, p. 85).
Assim, detecta-se que, inicialmente, a propriedade na Gens grega, era comunal, ou seja, comum a todos, e após a acumulação de riqueza, sugiram os primeiros impulsos da propriedade privada, mas, as pólis, na civilização greco-romana, era a soma do Estado (elemento não distinto da vida social) e da sociedade.
Mas foi na Gênese do Estado Ateniense que nasceu o Estado dos antagonismos de classe, considerado um poder público central, com poderes governamentais, que passaram a regular o povo, isto é, o restante das pessoas que não ocupavam lugar no poder central, então divididos em três classes sociais: os nobres, os agricultores e os artesãos. A apropriação privada das terras impõe-se sobre as antigas formas de produção do trabalho em mercadoria e a propriedade coletiva que dominava as gens (ENGELS, 2012, p. 105-115).
Foi no Estado da antiga Atenas que surgiu a transformação dos produtos em mercadorias (produção de mercadorias), o cultivo individual da terra e, posteriormente, a propriedade individual do solo. Os direitos e os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam. Com o progresso do comércio e da indústria, surgiu o acúmulo e a concentração das riquezas de uns e o empobrecimento da massa de cidadãos, que optavam por competir com o trabalho escravo, fazendo trabalho manual, ou tornar-se mendigo. O que arruinou Atenas foi a escravidão que proscrevia o trabalho do cidadão livre (ENGELS, 2012, p. 105-115).
Por isso, apesar do Estado ser um poder público central, cumpre salientar que esse Estado Ateniense não possuía o elemento estatal diferente da vida social dos cidadãos, uma vez que a Pólis era ao mesmo tempo sociedade e Estado, assim, podemos afirmar que na Idade Antiga não possuía um Estado como possuímos nos atuais moldes, pois o que existia era um senhor mandando em um determinado espaço e não um Estado como um terceiro, assim, esse senhor mandava em seus escravos, mas não podia mandar em outro senhor.
Por isso, o que existia era uma reunião de senhores que mandavam em seus subordinados, ou seja, uma forma direta de dominação com base na força e não um Estado de moldes capitalistas, que só existiu após o capitalismo, com a exploração direta e indireta por meio do Estado. Só o capitalismo tem a forma política estatal, não há Estado em todos os tempos da humanidade, pois o Estado, com os moldes atuais, surge na Idade Contemporânea.
No ano 450 antes de Cristo foi elaborada a Lei das Doze Tábuas, durante a vigência da República no Direito Romano, onde esboçaram-se os princípios mais simples concernentes à propriedade que eram caracterizados pela dependência em relação à magia e ao ritual como partes integrais do processo e como meio de criação de obrigações. A venda ou permuta válida de propriedade exigia, segundo as Doze Tábuas, o estrito cumprimento de uma fórmula precisa de palavras e conduta, conhecida como “mancipatio”, pois nessa época os romanos não tinham direitos ou capacidades para possuir propriedades (TIGAR; LEVY, 1977, p. 26-27).
Marx detectou que foram os Romanos que desenvolveram pela primeira vez o direito da propriedade privada. Para ele, é somente por meio das determinações jurídicas conferidas pela sociedade à posse, que de fato se adquire a qualidade de posse jurídica, ou seja, de propriedade privada:
Os romanos, na verdade, foram os primeiros a desenvolver o direito da propriedade privada, o direito abstrato, o direito privado, o direito da pessoa abstrata. O direito privado romano é o direito privado em seu desenvolvimento clássico. Nos romanos, no entanto, não encontramos, em nenhuma parte, que o direito da propriedade privada tenha sido mistificado, tal como nos alemães. Ele não se tornará jamais, também, direito público.
O direito da propriedade privada é o jus utendi et abutendi (o Direito de usar e desgastar – consequentemente também de abusar), o direito do arbítrio sobre a coisa. O interesse principal dos romanos consiste em desenvolver e determinar as relações que se dão como relações abstratas da propriedade privada. O verdadeiro fundamento da propriedade privada, a posse, é um fato, um fato inexplicável, não um direito. É somente por meio das determinações jurídicas, conferidas pela sociedade à posse de fato, que esta última adquire a qualidade de posse jurídica, a propriedade privada (MARX, 2010, p. 125).
O título de propriedade no direito romano mostra que seu nascimento se deu justamente com o fenômeno de troca interna. Do mesmo modo, a sucessão hereditária não foi estabelecida como título de propriedade, a não ser a partir do momento em que as relações civis se interessam por tal transferência, qual seja, a troca. Na troca, um dos proprietários de mercadoria não poderia se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua, a não ser com o consentimento do outro proprietário (PACHUKANIS, 1988, p. 80).
Assim, Marx detecta que a propriedade privada se desenvolveu, inicialmente, no direito romano e Pachukanis percebe que com o título de propriedade, em Roma, nasceu o processo de troca interna. Acontece que a propriedade privada do direito romano e o processo de troca interna diferem da propriedade privada capitalista, uma vez que a propriedade privada era comum e não era considerada mercadoria, além do que o proprietário não podia apropriar-se da mercadoria alheia e vender a sua, pois esse processo só foi possível após o capitalismo, com o surgimento da propriedade privada burguesa.
Em Roma, a instituição do Estado passou a seguir os interesses baseados na divisão e apropriação de terras, na posse de riquezas e no exercício dos serviços públicos. A luta entre patrícios e plebeus vai da República Romana ao Império, levando até o fim a dissolução da nobreza patrícia na nova classe dos grandes proprietários de dinheiro e terra. A vitória da plebe destruiu a antiga constituição do gens, instituindo-se o Estado, onde não tardaram a se confundir a aristocracia e a plebe (ENGELS, 2012, p. 117-126).
Na antiguidade, podia-se encontrar um sem-número de cidades, basicamente comerciais, situadas ao longo dos rios e mais tarde às margens do Mediterrâneo, vinculando Oriente e Ocidente. Além das citadas, merecem ser lembradas Roma, fundada em 2700 a.C, desde sua fundação, alastrou-se e desenvolveu-se, chegando a ocupar uma área territorial que cobria desde a Bretanha até o Eufrates, Roma mantinha grande relação de interdependência com todo o Império, ao qual vinculava-se tanto administrativamente – através de um governo comum – quanto economicamente – aproveitando uma vasta rede de estradas, e desenvolvendo um comércio intenso e variado (CARLOS, 2015, p. 62).
Muito embora a troca de bens em Roma tenha conhecido um relativo grau de expansão, razão pela qual as formas embrionárias do direito teriam podido surgir, o processo do valor de troca permaneceu sempre bloqueado, de fato, em uma sociedade cujas relações de produção permanecem escravistas, na qual a força de trabalho não tem o caráter mercantil, não seria possível jamais a generalização do processo de trocas de mercadorias e, portanto, a relação de equivalência só teria conhecido um desenvolvimento muito limitado (NAVES, 2014, p. 62).
Após vencerem o Império Romano, nas Gens Germano, surgiu o Estado em sua função direta da conquista de vastos territórios estrangeiros, herdando-se o sentido de marcas e comunidade rural, imperando-se o direito materno, elemento que interferiu diretamente na constituição da organização social e política entre os germanos. É na família patriarcal que se vai explorar as grandes propriedades de terras (os latifúndios) após a conquista de Roma. Porém, diante da necessidade de produção da existência, em função de todos os aspectos que cercaram a decadência do Império Romano, a alternativa encontrada foi a divisão de terras e o cultivo de pequenas fazendas (ENGELS, 2012, p. 127-140).
Sobre o conceito de Estado como produto da sociedade, poder nascido da sociedade, mas posto acima dela:
O Estado [...] é antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar.
Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado (ENGELS, 2012, p. 164).
Podemos então entender que a origem do Estado, para Engels, está no poder, em uma estrutura organizacional e na política que emerge da sociedade e da sua divisão de classes destinada a manter a ordem dentro da sociedade e, portanto, manter o sistema de classes vigente, ou seja, o Estado é a organização que garante os direitos de propriedade e contratos, sem o que nenhuma sociedade pode funcionar (BRESSER-PEREIRA, 1995, p. 89).
Assim, percebe-se que em Atenas o Estado nasceu dos antagonismos de classe; em Roma, conhecemos o Estado de cidadãos, na confusão da aristocracia e a plebe; e, nesses dois Estados a classe dominada era escravizada; por fim, com os Germanos o Estado surge da conquista dos territórios estrangeiros.
Acontece que, nesses três tipos de Estado, apesar da utilização do termo Estado, não existia o elemento Estado diferente da vida social dos cidadãos, ou seja, na Idade Antiga não exista um Estado, pois aqueles “Estados” eram ao mesmo tempo Estado e Sociedade, eram uma vasta região autônoma com dominação direta e baseado na força, mas não um “Estado Terceiro”, com exploração direta e indireta que só vai existir após o capitalismo.
Por fim, a “propriedade privada” e o processo de troca interna desenvolveram-se, em um primeiro momento, no Direito Romano, contudo muito diferente da propriedade privada capitalista, pois a propriedade privada romana era comum e não uma mercadoria, haja vista que somente após o capitalismo, com o surgimento da propriedade privada burguesa, a propriedade tornar-se mercadoria no processo de troca.
A “propriedade privada” feudal na Idade Média
Na Idade Antiga a dominação era direta, o escravo era submetido às ordens com base na força; na Idade Média, os senhores feudais, também mandavam nos seus servos, agora, com o status medieval, ou seja, o senhor mandava no que era seu, baseava-se na moral e na religião, mas não existia a figura do Estado, ou seja, a forma política estatal.
Somente no capitalismo existe a forma política estatal, não há Estado em todos os tempos da humanidade, pois o Estado, com os moldes atuais, surge na Idade Contemporânea. Antes, na Idade Antiga, tínhamos de um lado senhor e do outro escravo. Na Idade Média, vamos ter a dialética senhor “versus” servos. Mas, somente na idade contemporânea é que os antigos escravos e servos serão considerados sujeitos de direito.
Assim, enquanto que na antiguidade o comércio impulsionava o crescimento das cidades e produzia um determinado espaço, no feudalismo, dentro do feudo produzia-se e consumia-se os próprios produtos, numa economia autossuficiente, sem mercados externos e sem ligações, tudo que se precisava, quer na alimentação, no vestuário ou no mobiliário era produzido no feudo, não havendo excedentes, capazes de permitir a troca e com isso as relações entre populações e lugares (CARLOS, 2015, p. 63).
Para melhor compreendermos a história, o direito e a propriedade atual, faz-se necessário entender a revolta burguesa contra o sistema feudal, buscando a ascensão, a manutenção e a derrubada das ordens jurídicas anteriores:
Uma das maneiras de conhecer a história consiste em estudar as origens da ascensão, manutenção e mudança das ordens jurídicas e sua posterior derrubada, juntamente com seus instrumentos de violência. O estudo da revolta burguesa contra as instituições feudais é essencial para compreendermos o direito hoje (TIGAR; LEVY, 1977, p. 15-16).
Como vimos anteriormente, foi na idade antiga, durante o modo escravista de produção, que surgiu a “propriedade privada” (diferente da propriedade privada capitalista), a divisão do trabalho, as trocas, os instrumentos do trabalho, a necessidade de aumentar a produção. Mas foi durante a Idade Média, com o modo feudal de produção, que surgiu a terra do senhor e a terra do servo, ou seja, a propriedade feudal,1 pois o senhor feudal era proprietário da terra, mas não mais do escravo.
Na transição do feudalismo para o capitalismo, as forças produtivas existentes, em um primeiro momento, não sofreram quaisquer transformações, permanecendo as mesmas de antes, ao passo que as relações de produção já se alteraram, já são outras relações, elas passaram de relações de produção feudais a relações de produção capitalistas. Isso significa que as relações de produção capitalistas se formaram antes das forças produtivas capitalistas surgirem, e que estas só se constituem em decorrência daquelas (NAVES, 2014, p. 37).
Assim, durante a Idade Antiga a dominação sobre a propriedade privada tinha como base a força, já na Idade Média, o senhor feudal dominava com fundamento na religião e na moral, mas em nenhuma das duas épocas existia a propriedade privada capitalista, considerada como mercadoria, nem tão pouco, Estado como ente terceiro e independente, uma vez que a política estatal é contemporânea e surgiu após o capitalismo.
Somente após a decadência do Império Romano surgiu o feudalismo, durante a Idade Média. A formação dos feudos se deu muito em função das guerras que arruinaram a capacidade produtiva das pequenas fazendas, colocando os camponeses em situação de falta de proteção e renúncia; primeiro, junto à nova nobreza e à Igreja e; em segundo, ao seu patrão, o senhor feudal, transferindo-lhe as terras em troca de arrendamento ou prestação de serviços, até caírem na servidão (ENGELS, 2012, p. 127-140).
No feudalismo, como consequência de um modo de produção diversos do anterior, surge uma nova estrutura de classes sociais, onde a terra passa a ser sinônimo de riqueza, a população passa a viver direta ou indiretamente da produção agrícola, a propriedade da terra fica dividida entre a nobreza, a Igreja e algumas outras ordens religiosas; em situação contrária se encontravam os lavradores, classe constituída pelos não proprietários de terras, vinculam-se a elas como serviços, não podendo deixá-las por sua livre vontade, cultivam uma certa porção de terra que lhes é atribuída pela nobreza em troca de trabalho e ficam obrigados a entregar ao proprietário, a título de renda, uma parte da produção (CARLOS, 2015, p. 63).
No direito feudal, a lei aplicada nos tribunais feudais repousava, na maior parte, sobre dois princípios, não raro incoerentes: as leis de aplicação pessoal e o direito costumeiro vigente sobre o dado território. A vida do agricultor era regulada pelo conjunto de obrigações feudais, a família trabalhava nos domínios do senhor, cultivava sua própria gleba, tinha o direito de usar a terra comum devoluta, vivia presa à terra e não podia vendê-la, ou dá-la em herança à futura geração. No dia 11 de agosto de 1789, a Assembleia Nacional Francesa decretou que “abolia totalmente o regime feudal” (TIGAR; LEVY, 1977, p. 36-41).
No modo de produção feudal, o produtor imediato, o camponês, estava unido ao meio de produção, o solo, por uma específica relação social. A fórmula literal desse relacionamento era proporcionada pela definição legal de servidão, gleba adscript ou ligada às terras: os servos juridicamente tinham mobilidade restrita. Os camponeses que ocupavam e cultivavam a terra não eram seus proprietários, a propriedade agrícola era controlada privativamente pela classe dos senhores feudais, que extraíam um excedente de produção dos camponeses através de uma relação político-legal de coação (PERRY, 1991, p. 143).
Faz-se necessário frisar que só o capitalismo tem Estado porque o feudalismo não tem forma política apartada, tem um senhor feudal que lhe manda diretamente. O político e o econômico estão unidos nas mãos do senhor feudal, assim como acontecia na sociedade escravista no passado: o senhor feudal de escravos também dava a sorte do escravo, no plano econômico e no plano político. Portanto, o Estado, em termos estritos, é capitalista. No máximo, se pode dizer que há várias formas de organização política em toda a história. Há políticas no plural na história, mas o Estado é uma política específica no capitalismo (MASCARO, 2015, p. 24).
Assim, no feudalismo, como visto não havia excedente e por isso, não existia a troca. Nesse período a propriedade feudal era dividida entre terra do senhor e terra do servo sem escravo. A relação de produção feudal foi transformada em relação de produção capitalista, ou seja, essa relação surgiu antes mesmo das forças produtivas capitalistas. Por fim, na Idade Média, não havia Estado, pois não existia uma forma política apartada, o que existia eram formas de organização política.
De mais a mais, a instalação da forma política estatal deve ser pensada, tal qual a consolidação da forma-mercadoria e da reprodução capitalista, como um processo. O Estado surge historicamente antes e a forma política estatal surge depois. O estabelecimento de unidades estatais se dá sobre as específicas relações do feudalismo em fragmentação. A forma política em definitivo, que dá identidade ao Estado como instância apartada indivíduos e das classes, surgirá com as revoluções burguesas (TIGAR; LEVY, 1977, p. 51-56).
O problema do sistema feudal era que a propriedade feudal não era “possuída” por pessoa alguma no sentido que prevalece nas sociedades burguesas. Todas as posses e direitos de desfrute do vassalo estavam implicados na relação feudal de lealdade (TIGAR; LEVY, 1977, p. 51-56).
Assim, pelo fato da propriedade feudal não ser possuída como nas relações capitalistas, essa propriedade não era considerada mercadoria, uma vez que tinha como base a relação feudal de lealdade. Tanto o plano político quanto o econômico estava nas mãos do senhor feudal, assim, não existia o Estado que só surge no capitalismo. Após o capitalismo, a forma política estatal surge com o objetivo de garantir o capital2 ao capitalista, através do Estado, tudo isso para proteger a propriedade privada.
Essa relação feudal repousava na vassalagem pessoal e combinava numa única pessoa ou instituição os papéis de proprietário e senhor, líder militante e legislador. Essa suserania, com a posse próxima e pessoal da terra, pode ser contrastada com a ideia de Estado como uma entidade separada, soberana, com um interesse apenas distante e regulador. A separação entre a propriedade da terra e o controle político direito constituiu um tema dominante da Idade Média (TIGAR; LEVY, 1977, p. 56).
Marx explica que a dominação da propriedade privada começa com a posse fundiária feudal, sua base, em que o domínio da terra era um poder estranho e acima dos homens, pois o senhor feudal era o rei da posse fundiária:
Já na posse fundiária feudal situa-se o domínio da terra como um poder estranho (posto) acima dos homens. O servo é o acidente da terra. De igual modo, o morgado, o primogênito, pertence a terra. Ela o herda. Em geral, a dominação da propriedade privada começa com a posse fundiária, ela é sua base. Mas na posse fundiária feudal, o senhor aparece como rei da posse fundiária.
De igual modo, a propriedade fundiária feudal dá ao seu senhor o nome, como um reino ao seu rei. Sua história familiar, a história de sua casa etc., tudo isso individualiza para ele a posse fundiária e faz dela inclusive formalmente a sua casa, a sua pessoa (MARX, 2004, p. 74-75).
Marx denomina fisiocracia, de modo imediato, a dissolução nacional-econômica da propriedade feudal, mas, precisamente, por isso é, de modo imediato, a transformação nacional-econômica, a recomposição da mesma, agora com uma linguagem que se torna econômica e não feudal. A fisiocracia nega a riqueza particular externa, apenas objetiva ao declarar o trabalho como sua essência, suprime seu caráter feudal ao declarar a indústria (agricultura) como sua essência, mas ela se relaciona com o mundo da indústria, negando-o, reconhece o modo feudal ao declarar a agricultura como única indústria (MARX, 2004, p. 101).
Percebe-se, com isso, que o Estado antigo foi o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados. Já o Estado feudal foi o órgão de que se valeu da nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes. E o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. Na maior parte dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos, pelo que evidencia ser o Estado um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não possuem (ENGELS, 2012, p. 166).
Assim, a formação dos feudos e, consequentemente, do feudalismo, surgiu, em parte, das guerras que acabaram com a capacidade produtiva, fazendo com que os camponeses ficassem desprotegidos e, por isso, necessitando se vincular ao senhor feudal. Essa relação baseava-se na vassalagem e o senhor feudal era o proprietário e senhor das terras, ou seja, a propriedade não era do vassalo, não podendo ser negociada. Por isso, essa propriedade feudal não atendia aos anseios da burguesia, necessitando, posteriormente, de sua transformação em propriedade privada capitalista.
Pelo exposto, conclui-se que a propriedade feudal teve seu fundamento na lealdade pois era do senhor, mas usada pelo vassalo, ou seja, a propriedade não era considerada mercadoria, não podia ser trocada como na sociedade capitalista. Da mesma forma, não existia um Estado terceiro, pois tanto o plano político quanto o econômico estava em poder de uma mesma pessoa (o senhor feudal), não existia forma política apartada, mas, apenas formas de organização política, surgindo o Estado após o capitalismo, com o objetivo de garantir o capital ao capitalista, para proteger a propriedade privada.
Conclusão
A partir das teorias e exposições realizadas, observa-se que o debate sobre a propriedade privada teve sua origem na Idade Antiga. Por isso, discorrer sobre historicidade da propriedade privada e do Estado é importante para colocarmos em perspectiva temporal e espacial as ações humanas, como também, o conjunto dos fatores que constituem a história da propriedade privada capitalista.
Nesse sentido, detectou-se que, na Idade Antiga, não existia um Estado de moldes capitalistas, mas regiões autônomas, com dominação direta e com base na força, sobre as pessoas, assim, não havia um Estado como elemento diferente da vida social dos cidadãos. Também não existia a propriedade privada capitalista, haja vista que a “propriedade privada” era comum e não uma mercadoria, uma vez que o proprietário não podia apropriar-se da mercadoria alheia e vender a sua.
Na Idade Média, também não havia Estado como ente terceiro e independente, mas apenas formas de organização política, colocando nas mãos do senhor feudal, tanto o plano político, quanto o econômico da cidade. Exista a “propriedade privada” feudal, que não era mercadoria, não podia ser negociada, como desejava a burguesia, uma vez que sua base era a relação feudal de lealdade, entre senhor feudal e servo, com uma dominação fundada na religião e na moral, por isso, pode-se afirmar que não exista a propriedade privada capitalista naquela época.
Assim, somente após a Revolução Francesa irá se abolir a “propriedade privada” feudal, criando a propriedade privada capitalista, para atender os anseios da burguesia. Com essa revolução, institui-se a revolução agrária, transformando as propriedades privadas feudais em privadas capitalistas, com a possibilidade da monopolização da terra. Assim, passa a não mais existir as relações de domínio e servidão presentes na Idade Antiga e na Idade Média. Mas a origem da propriedade privada capitalista e sua evolução não é objetivo do presente artigo.
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Notas
Autor notes
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