Resenha
LITURATERRA [Resenha: 2020, 2] Sexualidade, religião, práticas econômicas em John Maynard Keynes
LITURATERRA [Reseña: 2020,2]
LITURATERRA [Review: 2020,2]
LITURATERRA [Compte rendu: 2020,2]
文字国 [图书梗概: 2020,2)
LITURATERRA [Resenha: 2020, 2] Sexualidade, religião, práticas econômicas em John Maynard Keynes
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 12, núm. 2, pp. 325-337, 2020
Universidade Federal Fluminense
|  | DAVENPORT-HINES Richard. Universal Man: The lives of John Maynard Keynes. 2015. Nova York. Basic Books/Perseus Books Group | 
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Recepção: 31 Outubro 2019
Aprovação: 06 Janeiro 2020
Resumo: As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan,1 para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.
Resumen: Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura de la terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.
Abstract: The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.
Résumé: Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.
摘要: Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。
Sexualidade, religião, práticas econômicas em John Maynard Keynes
O livro de Richard Devenport-Hines sobre as vidas de John Keynes é valioso em vários sentidos.2 É uma biografia escrita num estilo muito agradável, sem perder a densidade e os propósitos que motivaram sua escrita. Ao ressaltar a trajetória política de Keynes, especialmente sua inserção na governação estatal do Império Britânico e na administração colonial na Ásia, oferece ao leitor um conjunto de informações sobre sua experiência pessoal e política. Detalha, ainda, suas inserções em redes de sociabilidades. Tudo isso permite entender as ambivalências e modulações em termos de pensamento e práticas econômicas de John Keynes. Permite ainda dimensionar a extensão de sua influência intelectual e política. E o biografado, John Maynard Keynes, influiu muito.
O roteiro da escrita biográfica é direto: primeiramente a inserção de Keynes no grupo de discussão secreto, intitulado “Apostles” (“Apóstolos.) – e aqui uma primeira referência, pálida ainda, das relações próximas entre formação política, cultura, habitus e religiosidade, pois o título do grupo de jovens amigos é muito sugestivo: apóstolos! Sobretudo, porque esta sociabilidade política o levou à Secretaria de Tesouro do Império Britânico. O título do capítulo onde estão narrados os primeiros passos da história intelectual de John Keynes é igualmente sugestivo quanto às relações com o campo religioso: “o altruísta”.
A partir daí Davenport-Hines avança na construção de narrativas sobre “as vidas” de John Mainard Keynes: o menino prodígio e o funcionário (trabalhou Keynes na administração colonial do Império Britânico); o homem público e o colecionar; o “enviado” (outra referência à cultura religiosa subjacente) e o amante. No capítulo “Lover” (Amante), Davenport-Hines dispõe-se a “tirar Keynes do armário”. Em vários momentos, aos leitores é deixada a impressão que o livro estaria a cumprir uma pauta dos movimentos de militância pelos direitos civis e direitos humanos em defesa de gays, lésbicas, transgêneros. Esta pauta tem como meta a produção de biografias de grandes personalidades (do passado) que, mesmo que sua homossexualidade fosse do conhecimento público (como era o caso de Keynes), suas opções sexuais não recebiam qualquer tratamento por parte de seus biógrafos.
De fato, até a chamada Revolução Sexual, com as barricadas de Maio de 68 e a estridência do movimento jovem, a homossexualidade, tal como a dominação masculina, era um tabu sobre o qual não se falava, e muito menos se escrevia.3 Além da descrição de sua voracidade sexual, deambulação pela vida noturna nos pontos de azaração de Londres do início do século XX, o biógrafo nomeia e narra a história amorosa com seus amantes. Davenport-Hines trata do tema com respeito e delicadeza. Destaca os problemas advindos da educação moral vitoriana hegemônica na Inglaterra, com suas proibições e repressões à masturbação e à homossexualidade. Menciona o trauma de uma intervenção cirúrgica de fimose na adolescência e pontua uma dificuldade de Keynes com sua imagem: John Maynard Keynes achava-se feio. E termina analisando seu o casamento na maturidade com a bailarina russa, Lydia Lopokova, com quem passa o resto de sua vida. À propósito deste casamento, Davenport-Hines desconhece o contexto histórico-social da primeira metade do século XX, tal como muitos biógrafos não-historiadores. Até a virada de mesa da década de 1960, a homossexualidade era abafada pelas famílias, pelo Estado e pelas instituições de controle social. Grande parte de pessoas do sexo masculino que se descobriam com inclinações homossexuais não se declaravam publicamente, e muitos optavam pelo sacerdócio católico, tendo em vista o celibato institucional. Ficavam protegidos das pressões sociais para o casamento (quando só o casamento heterossexual era admitido). Recomendamos ao leitor a releitura da resenha assinada pelos Editores de Passagens na sessão “Lituraterra” do fascículo de setembro-dezembro de 2019, do livro de Frédéric Martel, intitulado “No armário do Vaticano: Poder, hipocrisia e homossexualidade” (CERQUEIRA FILHO; NEDER, 2019). E avançamos destacando alguns outros aspectos do “destino” histórico dos homossexuais masculinos: os solteirões eram levados a casamentos tardios, em geral arranjados pelas famílias. Mas este não foi o caso de Keynes. Sua vida privada continuou disruptiva, pois, fiel às suas preferências estéticas e postura crítica face à polícia das famílias, escolheu para casar uma bailarina que, segundo Davenport-Hines, tinha muitas afinidades e com ele. Dedicou-se intensamente aos cuidados de seu amado. Mérito desta biografia, precisamos frisar, é a dedução alcançada quando Davenport-Hines relaciona a bissexualidade de Keynes e sua rica experiência sexual (aparentemente liberada da moral sexual repressiva vitoriana) com a assumida defesa do controle à concepção; foi um vanguardista.
A homossexualidade masculina vinha recebendo tratamento “científico” a partir da medicina, que a considerava uma “anormalidade”. O mesmo tratamento “medico” era dado, inclusive para a prostituição homossexual masculina (GOMES Jr., 2019). Até aqui, o tratamento médico era um pequeno grande ganho, só viabilizado pelo machismo da sociedade patriarcal, pois a prostituição feminina era caso de polícia e não de medicina...
De nossa parte, reconhecendo a validade do empreendimento intelectual de retirada do armário de homossexuais notáveis, não poderíamos deixar de pontuar que defendemos uma afirmação teórica e ideológica na direção de uma radicalização terminológica para não aceitarmos a adoção da expressão de “normal” Queremos dizer que a afirmação de que a homossexualidade é “normal” nos prende à armadilha de uma terminologia binária: “normal” versus “anormal”. Preferimos, e aqui vai uma sugestão, que se considere a sexualidade humana como múltipla (homossexual, masculina, feminina, bissexual, transgênero, o que for), e que é esta multiplicidade é “comum”. Propomos resgatar o sentido semântico do termo “comum” do debate político sobre a origem do poder do século XVII, quando a questão da soberania (régia, popular, nacional, estatal, no seguimento do debate pelos séculos XVIII, XIX e XX) e falar de uma condição humana “comum” e não “normal”. Uma ênfase politicista, tendo em vista o avanço da luta pelos direitos civis e pelos direitos humanos das (grandes) minorias sexuais. E para tanto, faz-se necessário apontar na direção da soberania do corpo e do desejo (SANTNER, 2011) em suas relações de força institucional, do Estado, da Família e da Sociedade.
Sem dúvida, a curiosidade pela intimidade do biografado indica que o capítulo sobre a vida sexual de um dos maiores pensadores econômicos do século XX pode ser o capítulo que mais chama atenção dos leitores (capítulo 5, “Lover”, “Amante”). E ele é, de fato, muito importante e está bem construído.
Contudo, o capítulo do livro de Davenport-Hines que mais nos motivou é justamente aquele onde trata das suas relações políticas com a religião (capítulo 7, “Enviado”, “Envoy”). Como pode-se ver, são dois capítulos preciosos e ambos falam diretamente a problemas e ambivalências que tocam diretamente o tempo presente: sexualidade e religião.
Retomemos as relações entre Keynes e a religião.
Comecemos pelo título, Universal Man: The Lives of John Maynard Keynes (“Homem Universal: As vidas de John Maynard Keynes”). Duas referências sugestivas: o aspecto universal de sua prática econômica – John Keynes atuou na administração colonial do Império Britânico, através da qual adquiriu uma larga experiência na lida com o cotidiano de governação pública, com todos seus efeitos sociais sobre territórios e populações; e sobre a miséria produzida pelas intervenções imperialistas na Índia. Vivenciar a pobreza dos Outros (dos indianos), o permitiu visualizar a pobreza na Inglaterra. Pois que, quando imersos na vida cotidiana de uma sociedade, tendemos à naturalização das relações sociais e da dinâmica social. Isso quando, para muitos, sequer a circulação entre bairros pobres e ricos das cidades e suas territorialidades é possibilitado pela convenção social. Isso pode ter ocorrido a partir da experiência de John Keynes na Ásia e pressionou diretamente sobre seu pensamento econômico.
“Universal” é sinônimo de católico. Pelo título do livro, Davenport-Hines introduz uma chave de leitura para um aspecto pouco destacado em outras biografias que destacam a trajetória intelectual e política de Keynes. A importância desta relação com o campo religioso britânico emoldura e influi em seu pensamento econômico; e a partir dela pode-se inferir vários aspectos do reformismo democrático na Inglaterra. E vejam que nomeamos como “pensamento econômico” (e não “teoria econômica” ou “doutrina econômica”); e aqui jogamos o foco de luz para o sentido plástico e abrangente de referências ao método aristotélico-tomista de história das ideias muito vigoroso no contexto histórico, político e intelectual da primeira metade do século XX (e muito além...).
Estamos diante das bases doutrinárias e ideológicas da formulação teórica do reformismo democrático (não nos esqueçamos as aproximações e apropriações que a política econômica norte-americana faz do pensamento de Keynes no segundo pós-guerra).
Mas falemos, então, do contexto inglês. É bem verdade que buscamos as relações de Keynes com a religião, como quem procura agulha em um palheiro. Ou seja, a referência que Davenport-Hines faz às relações e redes de sociabilidade de Keynes com a cultura religiosa. A confirmação de nossa intuição, portanto, veio no último capítulo, intitulado “Envoy” (Enviado).
O biógrafo deu certa importância a relação do pensamento econômico de John Keynes com a religião; e não deixa de apontar sua existência. Mas poderia ter ido muito mais longe em sua análise. Reputamos, entretanto, esta relação como decisiva para o entendimento do encaminhamento do pensamento econômico keynesiano. Economia para Keynes é uma prática e está sujeita a erros e desvios próprios dos experimentos de ações e práticas de contabilidade econômica. Foi brilhante aluno de Matemática. Aos neoliberais que introduziram modelos matemáticos para edulcorar a economia como “ciência”, aqui vai nossa discordância enfática. Vamos insistir na avaliação de trajetória intelectual do economista a partir de uma referência a Economia Política.
Destaquemos uma frase lapidar de John Maynard Keynes, com a qual Davenport-Hines abre este último capítulo: “Ninguém jamais desejará outra guerra depois desta” (“No one will ever want another war after this one”) (DAVENPORT-HINES, 2015, p. 307). A citação refere a um artigo anônimo atribuído a Keynes “[...] você ouve isso dito em todos os lugares, em qualquer clube ou trem, entre qualquer grupo de homens que deixem tocar a sua imaginação, mesmo que momentaneamente, na horrível brutalidade da realidade do conflito atual”4(DAVENPORT-HINES, 2015, p. 307, tradução nossa).
Trata-se de uma visão otimista, sustentada por Keynes antes de 1933, inclusive em relação aos alemães, pois, para ele, não bastaria simplesmente considerá-los diferentes dos ingleses, que tiveram uma geração inteira submetida a um processo de doutrinação com seus mitos bélicos. Keynes reconhecia a exclusão da Alemanha das negociações de paz, empreendidas pela Conferência de Desarmamento e da Liga das Nações, como equivocada politicamente. Este fato, ele via como decisivo contra a paz na Europa. Colocou-se contra o que considerou covarde, na Comissão do Foreign Office (relações exteriores na Inglaterra) em relação à invasão italiana na Abissínia; definia o antissemita na Inglaterra eduardiana (referência a Eduardo VIII, em cujo curto reinado nutria simpatias pelo nazismo) como alguém que desgostava de judeus irracionalmente. Esta uma das facetas pouco destacadas da trajetória de Keynes e que Davenport-Hines põe em relevo no capítulo sobre o altruísmo de Keynes: era um pacifista e questionava o racismo.
Keynes era também um “otimista”. Exploremos o que significa ser um otimista na virada para o século XX e no pós-1933 (ano em que Hitler subiu ao poder na Alemanha). Neste ponto, precisamos invocar os embates teológico-políticos que resgatavam com vigor a teologia política de Thomas Hobbes, desde a crise geral do capitalismo (último quartel do século XIX) com enfraquecimento do liberalismo. A historiografia trata este tema e os embates que o envolvem com uma etiqueta geral cujos títulos são: crise do liberalismo e reação conservadora; e seus desdobramentos aparecem com os títulos: as guerras mundiais e a radicalização política (fascismos e revolução russa).
Foi preciso a consciência social e política do último quartel do século XX acordar, com o recrudescimento das guerras religiosas na “Questão Palestina”, na surpresa da guerra religiosa nos Balcãs e no afloramento dos fundamentalismos religiosos (islâmico, católico e judaico) num século XXI adentrado, para darmos ouvidos à advertência sobre a intolerância religiosa que alguns poucos destacavam no início do século XX. Keynes foi um deles.
No contexto histórico, teórico e ideológico no qual viveu Keynes afloravam as duas faces do pensamento burguês que haviam sido elaboradas desde o século XVII: o pensamento burguês autoritário presente no contratualismo de Thomas Hobbes, versus o pensamento liberal conservador presente no contratualismo de John Locke. Este deu voz e viabilizou o estabelecimento da monarquia constitucional, vigente e vigoroso na Inglaterra desde a Revolução Gloriosa de 1688, e durante os séculos XVIII e XIX (GARMENDIA DE CAMUSSO; SCHNEIDER, 1973).
O acento da “teologia política” contido na “teoria política”, tal como imaginada e proclamada como uma “filosofia política” e como “ciência política” iluministas e secularizadas pasteurizou, e, sobretudo, encobriu as permanências culturais de longa duração do debate teológico-político. Este debate percorreu (percorre ainda) os dilemas do campo político ocidental. Spinoza, no século XVII de Hobbes e Locke, percebeu e acentuou as dificuldades de uma teoria sobre o poder secularizada.
No último quartel do século XIX e na virada para o século XX, o campo político católico promove uma atualização histórica com a bula papal de Leão XIII, a Rerum Novarum (1891). Superado o trauma da Revolução Francesa que radicalizou no anticlericalismo (das revoluções burguesas em geral, o processo revolucionário francês foi o que apresentou uma vertente político-ideológica vinda de um liberalismo de corte radical), Roma articulou uma reforma religiosa. Esta reforma introduziu a chamada “questão social” para incorporar os trabalhadores urbanos ao laicato. Promoveu uma terceira atualização histórica do pensamento de São Tomás de Aquino; este movimento, temos nomeado como “terceira escolástica” (NEDER, 2011). Consideramos a designação de segunda escolástica (neotomismo) como referida à atualização realizada pela reforma católica do século XVI (em resposta às reformas protestantes). Para alguns historiadores das ideias, o tomismo do último quartel do século XIX foi ainda designado como neotomismo. Entretanto, temos diferenciado o movimento de atuação católica neotomista como terceira escolástica, que incluiu o proletariado e outros trabalhadores urbanos e revigorou o tomismo. Destacamos, sobretudo, as rupturas nele contidas. Contudo, o tomismo foi recuperado pela reação conservadora, passadista (conservadorismo clerical e o romantismo conservador católico; integrista) e isso implicou a extensão da segunda escolástica e do Concílio de Trento do século XVI, até virada para o século XX. Ou seja, a reação conservadora implicou uma revivificação medieval (SCHORSKE, 2000).5 Implicou também uma outra vertente que começou a ser introduzida desde Leão XIII, lentamente, que abrigou, primeiramente um catolicismo ilustrado, liberal6 e posteriormente o solidarismo que vai resultar na teologia da libertação que ganhou força depois da Segunda Grande Guerra.
Keynes e o campo reformista anglicano (católico anglicano) acompanhou estes acontecimentos. Abraçava uma perspectiva “otimista” da condição humana, como já salientamos. Confrontou o processo de radicalização teórico-política de formulação de uma aparente secularização, mais radical no campo jurídico, de um Carl Schmitt (1888-1985), que desenvolveu as premissas da soberania estatal – contra a soberania popular - e do Estado de Exceção. Carl Schmitt buscou no conservadorismo clerical do direito canônico (SCHMITT, 1990), para o qual toda conversão religiosa ao catolicismo zerava os compromissos jurídicos pretéritos, por exemplo, no direito civil eclesiástico sobre os casamentos e filiação. Hobbes foi revivificado a embasar os totalitarismos século XX adentro. Mas Hobbes era um “pessimista”, no dizer de outro neotomista moderníssimo no seu conservadorismo político e religioso, mas contrário a Carl Schmitt: o historiador do direito, Paulo Merêa (MERÊA, 1941; NEDER, 2011). Paulo Merêa (1889-1977), divergindo de seu contemporâneo,7 Carl Schimitt, escrutinou as origens doutrinárias dos autores das ideias políticas iluministas à luz de suas vinculações com as religiões: Thomas Hobbes foi calvinista, seguia o teólogo belga Erasto, pessimista e agostiano no que conferia quase sempre uma predestinação ao mal, e o fez produzir um livro “estanho”, o Leviatã (MERÊA, 1941; NEDER, 2011); Jean-Jacques Rousseau, também calvinista, mais otimista, não deixou de colocar o legislador num lugar de idealização sacralizada (MERÊA, 2004).
Portanto, Keynes, otimista, apropriou a seu modo ideias religiosas reformistas.
À Davenport-Hines não escapam os detalhes da adesão e da atuação de John Keynes ao neotomismo, seja analisando sua trajetória intelectual, político-administrativa e pessoal (como já destacamos), seja sua participação junto ao movimento de apropriação do neotomismo, solidarista e mais aberto, apropriado na Inglaterra pelo clérigo, nascido anglicano, mas convertido ao catolicismo, o reverendo John Henry Newman (1801-1890), cujo debate com o fundamentalismo de Gilbert K. Chesterton, atualizou, modernizou e animou os debates do campo político inglês; e culminou no reformismo cristão e na inclusão do tema da “questão social”.
Foi, no entanto, nos últimos anos da primeira guerra e no segundo pós-guerra que houve uma articulação mais ampla do Partido Trabalhista em torno da economia política de Keynes, que invocou diferentes setores sociais e políticos anglo-saxões (na Inglaterra e nos EUA), inclusive da Igreja Anglicana, católica. Neste contexto, Keynes convidou William Temple, que acabara de ser entronizado como Arcebispo de Canterbury em 1942, para contribuir com noções de cristianismo com o Clube das Terças (Tuesday Club). Temple havia promovido um abaixo-assinado em 1934 conclamando Hitler a parar a brutalidade dos campos de concentração. Em correspondência recebida por Temple, enviada por Keynes da sede do Tesouro, em 1941, ele afirmou:
Economia, mais propriamente chamada de Economia Política, é parte da Ética (...) Marshall costumava sempre a insistir que era através da ética que havia chegado à política econômica, e eu vou proclamar que, como em outros aspectos, sou um discípulo dele (DAVENPORT-HINES, 2015, p. 326-327, tradução nossa).8
Keynes colaborou com a escrita do livro do arcebispo William Temple, Christianity and Social Order .Cristianismo e Ordem Social), que vendeu 139.000 cópias, depois de seu lançamento em 1942, publicado pela Pengouin Books. O arcebispo contou, segundo Davenport-Hines, com o otimismo lúcido e a compaixão prática de Keynes. Semana de trabalho de cinco dias, garantia de renda mínima, educação, emprego e férias remuneradas. E mais: garantias de tranquilidade e lazer também foram enunciadas como importantes no capitalismo keynesiano (DAVENPORT-HINES, 2015, p. 327). O arcebispo tem uma trajetória pessoal, política, teológica muito vibrante. É um dos fundadores do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), congregando várias igrejas cristãs. Como a Igreja Anglicana é a religião oficial na Inglaterra, e todas as instituições de ensino (desde os seminários, colégios e universidades) são mantidos pelo Estado, o Arcebispo de Canterbury promoveu a Lei da Educação, em 1944, que universalizou a educação na Inglaterra. Defendia a consigna Fé e Socialismo. Portanto, uma parceria na qual estavam envolvidas muitas afinidades e sentimentos políticos.
A partir daí, a história é bastante conhecida. Desde o outono de 1941 Keynes trabalhou para implantação no pós-guerra de um sistema econômico capitalista global que evitasse instabilidades, flutuações, excessos e falências; desenhou um sistema monetário internacional com prospecção de criação de sistemas permanentes de regulação para gestão de demandas divergentes, conflitos e enfraquecimento das economias nacionais. E sua influência em termos internacionais esteve ligada à recepção de sua Economia Política pela que vinha se tornando a maior economia do mundo capitalista, a dos Estados Unidos da América. Em ritmo de trabalho frenético, atuou nos dois lados do Atlântico.
Da sua lavra, uma frase lapidar: “O problema político da humanidade é combinar três coisas: eficiência econômica, justiça social e liberdade individual”. Aqui toda a evidência de sua afiliação ao solidarismo cristão, justo na inauguração da bipolaridade do mundo entre capitalismo e socialismo.
Política econômica capitalista, justiça social e democracia: uma combinação aparentemente difícil de se equacionar que a formulação do pensamento econômico (ultra economicista) do neoliberalismo (de Milton Friedman e Friedrich Hayek) e suas matemáticas financeiras estão longe de coadunar. Não deixa de ser sintomático que a aplicação mais acabada do modelo neoliberal destes economistas da matemática financeira tenha ocorrido no Chile de Augusto Pinochet. Neoliberalismo (econômico) com ditadura militar.
Os pontos desta excelente biografia de Keynes empreendida por Davenport-Hines que destacamos (a sexualidade e desenvolvimento econômico com justiça social) seguem atualíssimos no tempo presente. A compreensão da trajetória e das ideias econômico-políticas de John Maynard Keynes não são coisas do passado, mas projeções para o futuro possível a emergir da crise econômico-sanitária vivida em escala global. Reforça a necessidade de criação de dispositivos de regulação internacionalistas, assentadas em práticas multilaterais.
Referências:
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DAVENPORT-HINES, Richard. Universal Man: The lives of John Maynard Keynes. Nova York: Basic Books/Perseus Books Group, 2015.
GARMENDIA DE CAMUSSO, Guillermina; SCHNEIDER, Nelly. Thomas Hobbes y los Orígenes del Estado burgués. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973.
GOMES Jr., João. “Frescos” e “Bagaxas”: Homossexualidade e prostituição masculina no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. 2019. Dissertação (Mestrado em História).Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.
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NEDER, Gizlene (colaboração de CERQUEIRA FILHO, Gisálio). Duas margens: ideias jurídicas e sentimentos políticos no Brasil e em Portugal na passagem à modernidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
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Notas
Autor notes
E-mail: gizlene.neder@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-9550-015X
Ligação alternative
https://periodicos.uff.br/revistapassagens/article/view/46134/26399 (pdf)