Resumo: O conceito de Liberdade em Hannah Arendt, sem dúvida, é um dos mais importantes dentro de sua obra. Por estar associado ao discurso e a ação humana, comporta níveis e variantes ao longo da história, posto sempre em valência face as esferas públicas e privadas da vida em sociedade. A proposta desse artigo é apresentar a forma como esse conceito se historiciza na obra da filósofa judia-alemã, demonstrando o quão as experiências revolucionárias de fim da idade moderna marcaram uma disputa em torno da significação para a noção originariamente grega de liberdade. Embora no cerne a noção de liberdade seja o mesmo na antiguidade e na modernidade, é imperioso identificarmos a forma como se reierarquizam as atividades humanas [trabalho, fabricação e ação] sendo instrumentalizada por diversos regimes e experiências revolucionárias ao longo, sobretudo, nos últimos séculos.
Palavras-chave:liberdadeliberdade,revoluçãorevolução,Idade ModernaIdade Moderna,Hannah ArendtHannah Arendt.
Resumen: El concepto de libertad en Hannah Arendt es uno de los más importantes dentro de su obra. El hecho de estar asociado al discurso y a la acción humana comporta niveles y variantes a lo largo de la historia, y siempre se ha puesto en valor frente a las esferas públicas y privadas de la vida en sociedad. Este artículo propone exponer de qué manera se historifica dicho concepto en la obra de la filósofa judío-alemana, demostrando hasta qué punto las experiencias revolucionarias de finales de la Edad Moderna dieron lugar a una disputa en torno al significado de la noción originariamente griega de libertad. A pesar de que, en esencia, el concepto de libertad es el mismo en la Antigüedad y en la Modernidad, es fundamental identificar la forma en que se rejerarquizan las actividades humanas (trabajo, fabricación y acción) a través de la instrumentalización por parte de diversos regímenes y experiencias revolucionarias, sobre todo, en los últimos siglos.
Palabras clave: Libertad, revolución, Edad Moderna, Hannah Arendt.
Abstract: The concept of freedom in Hannah Arendt is one of the most significant in her work. Associated as it is with human action and discourse, it encompasses levels and variants throughout history, always valued in terms of the public and private spheres of life in society. This article considers the way in which this concept is historicized in the work of the young German-Jewish philosopher, demonstrating how revolutionary experiences at the close of the Modern Age marked a dispute on the meaning of freedom towards the original Greek notion of the concept. Although at its essence, the notion of freedom is the same in antiquity and modernity, it is imperative that we identify the way in which human activities (labor, manufacturing, and action) were re-hierarchized and instrumentalized by various revolutionary experiences and regimes particularly over the last few centuries.
Keywords: Freedom, revolution, Modern Age, Hannah Arendt.
Résumé: Le concept de liberté chez Hannah Arendt est l’un des plus importants de son œuvre. En ce qu’il est associé au discours et à l’action humaine, il comporte différents niveaux et variantes au fil de l’histoire, mais a toujours su rester valide face aux sphères publiques et privées de la vie en société. L’objectif de cet article est de présenter la façon dont ce concept s’est historicisé dans l’œuvre de la philosophe juive allemande, pour montrer à quel point les expériences révolutionnaires de la fin de l’époque moderne marquèrent le débat autour de la signification de la notion originellement grecque de liberté. Bien qu’en son cœur la notion de liberté soit restée la même dans l’Antiquité et à l’Âge moderne, il n’en demeure pas moins essentiel d’identifier de quelle manière se sont re-hiérarchisées les activités humaines (travail, fabrication et action) qui ont été instrumentalisées par divers régimes et expériences révolutionnaires, et ce plus particulièrement au fil des derniers siècles.
Mots clés: Liberté, révolution, époque moderne, Hannah Arendt.
摘要: 汉娜·阿伦特(Hannah Arendt) 的自由概念是其著作中最重要的概念之一。因为它与人类的话语和行动相关,所以在历史上,自由的定义有诸多层次和变体,始终在西方社会的公共空间和私人生活领域中受到重视。本文的目的是展示阿伦特在她的著作中如何在历史背景下阐释“自由”。尽管在古代和现代,自由概念的核心是相同的,但它在不同时代以不同的方式影响人类的活动(劳作,制造和行动),并重新组织人类活动的方式。在过去的几个世纪里,自由的概念通过各种制度和革命经验传播到全世界。
關鍵詞: 自由, 革命, 现代, 汉娜·阿伦特 (Hannah Arendt).
Artigos
Experiências revolucionárias do fim da Idade Moderna e o conceito de liberdade em Hannah Arendt
Experiencias revolucionarias de finales de la Edad Moderna y el concepto de libertad en Hannah Arendt
Revolutionary experiences at the close of the Modern Age and the concept of freedom in Hannah Arendt
Les expériences révolutionnaires de la fin de l’époque moderne et le concept de liberté chez Hannah Arendt
现代革命经验和汉娜·阿伦特 (Hannah Arendt) 的自由概念
Recepción: 12 Agosto 2019
Aprobación: 28 Junio 2020
A liberdade, nos termos da filósofa Hannah Arendt (2002, p. 48), se assenta em dois pressupostos: 1) “[…] negativamente como o não-ser dominado e não-dominar”; 2) “[…] positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais”. Para a autora, .sem esses outros que são meus iguais não existe liberdade alguma” (ARENDT, 2002, p. 48). A exclusão da relação “dominante-dominado” aponta para as reflexões arendtianas de crítica aos modos de soberania, bem como da violência e da força como mecanismos de sustentação da política e do Estado. Da violência, dirá Arendt, jamais poderá florescer um poder legítimo. Precisamente, é da desconsideração desse preceito que pretensamente visa a assegurar a manutenção do Estado e da política na base daquilo que Weber nomeia de “monopólio legítimo da força”, que Arendt estabelecerá a sua noção distinta de poder e autêntica liberdade. Ora, um Estado que se utiliza da violência para se sustentar indica um sinal de que o poder já foi solapado, e que a política é apenas um termo retórico. Quanto à liberdade, esta nunca poderá estar assentada sobre a violação de consciências, o cerceamento de outras individualidades, sob pena de se anular conceitualmente.
Se a liberdade é a raisond’etre da política, esta deve ser o palco para que a liberdade transite sem coerção. Na esfera institucional, isso significa a garantia de manifestação de todos, bem como a participação efetiva na tomada de decisões que competem ao ordenamento coletivo e ao bem-estar do grupo, comunidade ou sociedade a qual se insere. Em suma, não se pode dissociar liberdade de participação, de condições igualitárias de manifestação. A liberdade, em Arendt (2005, p. 214), corresponde à pura capacidade de começar; e “ser livre e a capacidade de começar algo novo coincidem”. Doravante, é na pólis grega, assim como na res publica romana que Arendt busca seu referencial para qualificar a liberdade. A antiguidade clássica aparece como importante locus temporal a se regressar filosoficamente se quisermos compreender a forma como a liberdade enquanto ontos político teve sua expressão genuína na história ocidental. Nas palavras de Arendt (1992, p. 213), portanto, era necessário regressarmos:
[…] mais uma vez à Antiguidade, isto é, às tradições políticas e pré-filosóficas; e certamente, não por amor à erudição e nem mesmo pela continuidade de nossa tradição, mas simplesmente porque uma liberdade vivenciada apenas no processo de ação e em nada mais – embora, é claro, a humanidade nunca tenha perdido inteiramente tal experiência – nunca mais foi articulada com a mesma clareza clássica.
Dentro deste contexto, liberdade para os “antigos” era sinônimo de autonomia, ou seja, “do direito de se reger pela própria lei” (LAFER, 1980, p. 14; 17), e estava totalmente vinculada à ação, ao ato de participar politicamente do espaço público. Isto porque, a ação enquanto atividade indissociável da condição humana, e a liberdade, enquanto decorrente da expressão da ação não pode se furtar de uma outra condição: a participação. De acordo com Arendt, o verdadeiro conteúdo da liberdade significaria a participação dos sujeitos na esfera pública, resultando na sua admissão ao mundo político.
Neste intercurso, Arendt remonta à Grécia antiga enquanto representação histórica das primeiras formas de se conceber o espaço público manifesto e identificado enquanto palco para a manifestação dos agentes através dos seus atos e palavras, expressando a liberdade através da participação efetiva nos assuntos mundanos. Da Grécia, Arendt extraiu os princípios que norteiam a sua concepção de política: a pluralidade, a isonomia e a isegoria, assegurados na esfera da pólis. Entretanto, Arendt (2005) observou que os gregos não foram capazes de sustentar este espaço por muito tempo, e o papel secundário que atribuíam às leis e à sua construção – como forma de sustentação da pólis - fez este espaço se tornar frágil, não sendo capaz de se perpetuar ou possuir uma longevidade tamanha que pudesse ser incorporada às gerações seguintes. Somado a isto, do ponto de vista filosófico, temos o distanciamento operado pela tradição socrático-platônica em relação ao valor das opiniões [doxa- δόξα] e da preocupação com o mundo comum, fundando uma tradição de interesse meramente contemplativo em detrimento das preocupações e ingerências da vida pública. Aliam-se a isto as invasões macedônicas no período helenístico e os conflitos internos nas cidades-estados. Com as invasões alexandrinas, as cidades gregas perdem sua autonomia, e são obrigadas a pagar pesados impostos, tendo os seus exércitos e funções administrativas básicas subordinadas aos grupos ligados ao “conquistador”. Vendo solapadas as possibilidades políticas, tendo a democracia corrompida pelos interesses de minorias e pelas tiranias, a pólis destruída pela força, aliadas ao cada vez maior intercâmbio comercial e com influências do Oriente, o grego desenvolve um sentimento de pessimismo e justificação, resistência e negação da realidade em que vive. O pirronismo, o ceticismo, o estoicismo e o epicurismo são expressões de movimentos que emergem nesse contexto. A pólis percebe o seu fim e o cidadão grego volta-se para a sua interioridade, totalmente descrente e indefeso diante da enormidade do Império e da fatalidade histórica da dominação e perda da liberdade política. Descrente da pólis, como outrora esteve descrente das cosmogonias e teogonias do período homérico, o grego volta-se para a sua interioridade, refugiando-se num conceito obtuso de “indivíduo” exigindo que esse caminho lhe trouxesse ao menos uma felicidade estritamente pessoal, compensando a perda da liberdade política (NUNES, 1989).
Pensar o ocaso da liberdade nos faz remontar a períodos dos quais tanto fizeram com que esta encontrasse o seu lugar cativo, bem como sua diluição. Embora jamais a liberdade estivesse de todo ausente, houve períodos em que ela foi solapada a ponto de ser confundida com uma mera abstração. Desses períodos em que a ação e a liberdade galgaram o posto de condições e atividades por excelência entre os homens, destacamos o mundo grego, notadamente, nos períodos Arcaico e Clássico, bem como o mundo romano a partir do período republicano. Por consequência, a aurora do período helenístico perpassando pela queda do império romano e a ascensão do cristianismo denotam historicamente o eclipsamento da liberdade na forma como essas duas civilizações a compreenderam e experienciaram. É com o cume do período medieval e a consolidação do cristianismo enquanto modus vivendi, que temos a liberdade metamorfoseada de vontade individual. Para Arendt, o campo original da liberdade é o da política e dos problemas humanos em geral, e não o do pensamento individual, ou, da vontade individual. De acordo com Arendt (1992, p. 192), o conceito filosófico tradicional de “liberdade é uma tentativa consciente de divorciar da política a noção de liberdade, de chegar a uma formulação onde fosse possível ser escravo no mundo e ainda assim ser livre.” Esta distorção operada entre vontade individual e liberdade, e o consequente afastamento do mundo comum, ocorreu no momento em que a tradição filosófica e cristã cristalizou o conceito de liberdade no campo do diálogo comigo mesmo e o tirou do campo da ação política, derivando daí a nossa dificuldade em entendermos, ou mesmo, medirmos a concretude do conceito e do exercício da liberdade na vida cotidiana. Essa distorção conceitual iniciou-se, segundo Arendt, na antiguidade tardia a partir da sobreposição entre vita contemplativa e vita activa, tendo sido reforçada na associação entre liberdade e vontade, operada pela tradição cristã, e por fim, se consolidando na formulação moderna de liberdade entendida como um direito a ser exercido na esfera privada, no campo particular, alienando-se duplamente, seja do mundo comum, seja ao transferir para o Estado a sua segurança e sua pretensa liberdade. Neste sentido, o espaço público concebido na experiência helênica cede espaço ao Estado e às instituições representativas e soberanas da vontade geral. Hannah Arendt aponta que o eclipsamento da liberdade encontra ainda as suas variantes no seio das próprias revoluções inauguradas na Idade moderna, embora sejam em algumas delas que a filósofa, surpreendentemente, encontrará as condições de se retomar o conceito originário, portanto, político da liberdade. Nesse cenário expresso num primeiro momento pela Revolução Francesa, encontramos o que para Arendt representou as distorções em torno do conceito de liberdade. Mesmo que tradicionalmente se associe à Revolução Francesa ao ideal de busca e efetivação da liberdade, compondo o tripé dos ideais revolucionários, não foi, portanto, a autêntica liberdade - a associada à política - que vigorou nas motivações revolucionárias. Tratou-se antes da ideia de libertação - o que não é uma tautologia para a liberdade na perspectiva arendtiana. Como afirma Arendt (1988, p. 178), embora a essência revolucionária dos últimos séculos se configure como uma “ânsia de libertar e de construir uma nova morada onde a liberdade [pudesse] habitar”, o fato é que não foi necessariamente a liberdade que se tornou a principal motivação ideológica do pensamento político e revolucionário. A própria “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, fora duramente criticada por Arendt, exatamente por essa não ter expressado o verdadeiro sentido da liberdade, transformando-na em mera "liberdade para apropriação", ou "libertação das necessidades", tão somente.
Para Arendt, a Revolução Francesa operou uma confusão em torno dos significados de libertação (nesse caso, das “necessidades”), e de liberdade política. A libertação, pelas quais os revolucionários franceses lutavam, se referia à libertação das necessidades, e esta, portanto, passou a ser a categoria central do pensamento revolucionário. A distorção, precisamente, se opera na condição de que libertação das necessidades ou da opressão não implica em um “desejo de liberdade”, ou em outros termos, de se pensar a condição de ser livre tendo uma vida qualificada através da política, isto é, de se ter “uma opção política de vida”. É evidente, e os antigos gregos souberam muito bem disso, que as necessidades levam o homem a se preocupar preponderantemente com o equacionamento dos problemas advindos de sua sobrevivência e manutenção orgânica, não sendo capaz de se voltar para atividades que não visam meramente o sustento material ou o “saciamento” de desejos primários. Arendt não desconsiderou jamais a dinâmica de expropriação que o moderno processo produtivo infligiu sobre a sociedade, nem mesmo de que os homens não possam se ocupar de assuntos de ordem material e mesmo privado na esfera política, até mesmo porque, como pensar o papel da política que senão o de criar, também, soluções para um bem-estar coletivo, o que implica em alguns casos, em melhores condições materiais de vida? Embora a função, por assim dizer, da política seja a afirmação da liberdade, a efetivação da ação e o desvelamento das individualidades, não podemos reduzir toda a política a uma mera condição existencial e desconsiderar a sua dimensão social, humana e etc. O que está em jogo para Arendt, portanto, é que a Revolução Francesa, por mais que imprimisse o lema da liberdade em sua bandeira ideológica, estava longe de configurar um ideal republicano ou da experiência democrática helênica que pautava a participação política a partir dos critérios conceituais da “isonomia” e “isegoria”. Em outras palavras, o ideal da Revolução Francesa não expressava a verdadeira liberdade política.
A verdadeira liberdade política, portanto, não se refere à mera libertação das necessidades materiais ou das opressões, a fim e a partir disto se direcionar para uma vida pública. A liberdade não se trata de uma mera aspiração; possui, antes, um estatuto de concretude. A liberdade exige um espaço próprio: o espaço público e assegurado da palavra e da ação. A libertação das necessidades não impulsiona os homens, necessariamente, a quererem uma vida participativa na esfera pública. Tendo as suas vidas asseguradas pelo Estado ou por qualquer outra instituição, o homem moderno não se sentia na condição de participar dos negócios públicos, e necessariamente, a política era apenas um espaço para garantir esta tranquilidade privada que o homem moderno ansiava. Este homem moderno se traduz no típico burguês liberal que via no Estado (ou na política) a mera manutenção de suas garantias primárias [saúde, educação, segurança etc…] ao passo que se volta apenas para uma relação interpessoal secundária, envidando esforços coletivos tão somente para garantir, no processo produtivo, uma vida falsamente qualificada sob a outorga dos lucros e do acúmulo material. Precisamente, numa leitura arendtiana, a Revolução Francesa, a despeito de seus louros, apenas sustentou no mundo aquela identidade do homem ocupado tão somente com seus interesses materiais imediatos de propriedade e consumo.
Em uma de suas principais obras, Da Revolução, Arendt (1990), ao examinar o cerne das revoluções empreendidas na Era moderna, buscou, por outro lado valorizar uma concepção republicana de liberdade, redimensionada em certos eventos históricos, numa tentativa de identificar “um novo começo”, isento de violências e de coerções que podem emergir das articulações políticas. O princípio político que Arendt identificou nos movimentos revolucionários da modernidade tardia estava filosoficamente ligado à noção primária de pólis. Arendt buscou localizar essa matriz conceitual da tradição de universalização da liberdade, buscando compreender o momento no qual a era atual “redescobriu” o sentido do “político”.
Como visto, o ideal republicano é composto pela manifestação da liberdade na esfera pública. A res publica é concebida como liberdade pública, distinta de uma compreensão de liberdade moderna e privativa, ou seja, a concepção republicana se ancora na liberdade pública da participação democrática onde todos podem se expressar e engendrar coisas novas, ao contrário da alienação moderna transmutada de liberdade sob o nome de “libertação das necessidades” e de não interferência nos assuntos que dizem respeito à entidade abstrata do Estado. No ideal republicano é valorizado o espaço de expressão, do debate público, sem o qual não temos a essência democrática de participação, nem mesmo o corolário da liberdade, portanto, da política. Como afirma Lafer (1991, p. 350), se o debate, a expressão, são necessários é porque “existem no mundo muitos e decisivos assuntos que requerem uma escolha que não pode encontrar o seu fundamento no campo da certeza”. De sua parte, Arendt (2005, p. 351) afirma que o debate público existe “para lidar com aquelas coisas de interesse coletivo que não são suscetíveis de serem regidas pelos rigores da cognição e que não se subordinam, por isso mesmo, ao despotismo do caminho de mão única e de uma só verdade.”
Se por um lado, Hannah Arendt aponta a fragilidade das motivações e conceituações revolucionárias em torno da liberdade, da política, por outro, como aludido, são nos eventos revolucionários da Idade Moderna que a filósofa observará o vínculo entre a participação pública e a criação de um espaço público, novamente produzido pelos homens, permitindo a expressão e a mobilidade própria e originária dos homens neste espaço. Na esteira da compreensão das revoluções na modernidade tardia, Arendt sugere que a ideia própria de liberdade e a experiência de um novo começo coincidem, como demonstrado no seio destes eventos. Para Arendt (1988, p. 23):
[…] é a liberdade, e não a justiça nem a grandeza, o critério mais alto para o julgamento de constituições de corpos políticos”. Nesse sentido é a “concepção de liberdade, nitidamente revolucionária em sua origem, que pode medir até que ponto estamos preparados para aceitar ou rejeitar essa coincidência.
Hannah Arendt identifica, portanto, um ideal republicano no cerne das revoluções, que consistiu numa tentativa de universalizar a liberdade, com a fundação de um novo corpo político. Por um lado, temos na Revolução Francesa uma opção de sustentação da república amparada pela soberania do Estado-nação. Por outro lado, temos na Revolução Americana, a república fundada em sua singular capacidade associativa, isto é, sustentada no cidadão e na sua capacidade de reivindicação. De maneira sucinta, na Revolução Francesa as instituições modelavam o cidadão, ao passo que na Revolução Americana, o cidadão é que modelava as instituições. De sua parte, a Revolução Francesa introduziu um novo padrão para a política, ao ligá-la ao plano da “necessidade”, uma vez que concebia a política enquanto uma espécie de solução para as questões sociais. A expropriação, enquanto resultado da alienação promovida no declínio do mundo feudal e da criação do Estado-nação, se relaciona com a urgente criação de novas classes trabalhadoras a fim de manterem a estrutura econômica capitalista que emergia. Esta nova estrutura econômica carecia de uma classe voltada exclusivamente para as necessidades da vida, conjugado com o fato da sua liberdade de apropriação. Este processo desenvolveu uma estrutura de exploração fundamentada no acúmulo de riquezas a fim de garantir as condições de manutenção do processo vital. Nisto, emerge uma classe de despojados e expropriados, afetados pelo fato de serem privados daquilo que possivelmente lhe pertenciam. A fim de dar conta das ingerências promovidas por este novo sistema produtivo, uma das metas da Revolução Francesa se apoiava na garantia das condições de promoção do social. Na terminologia arendtiana, estes eventos da modernidade, possibilitaram a diluição da fronteira entre o público e o privado, relegando a política a uma função meramente social, tendo que dar cabo dos problemas de ordem econômica e social. De acordo com Adriano Correia (2008, p.101-112):
O que marca a consolidação do mundo moderno, na avaliação de Arendt, é uma progressiva indistinção entre as esferas social e política, com a consequente ‘ascensão do lar (oikia) ou das atividades econômicas ao domínio público’. A esfera social é o domínio curiosamente híbrido onde os interesses privados adquirem significação pública. O que caracteriza a modernidade política é a compreensão da política como uma função da sociedade, com a implicação fundamental de que as questões eminentemente privadas da sobrevivência e da aquisição se transformaram em interesse coletivo, ainda que nunca se possa conceber de fato de tal interesse como sendo público.1
De acordo com Arendt, o social não alcança a política e não funda, portanto, a liberdade. Isto posto, porque diante das necessidades e urgências da sobrevivência, importa mais ao homem garantir os meios de se ver livre destas privações do que de participar de um corpo político, a não ser que este corpo seja constituído para garantir o suprimento de suas carências. Em ambos os casos, ou os cidadãos não tomam parte da política por estar em preocupados com outros assuntos de ordem material, ou então, quando se voltam para atividade política, relegam esta a uma mera atividade-meio, isto é, um meio ou instrumento com a finalidade de apenas garantir os interesses materiais e/ou individuais. Em Arendt, a questão social passou a desempenhar um papel revolucionário quando os homens passaram a questionar os fundamentos teológicos de que a pobreza humana se devia a espirituais, de providência divina, ou de que ela, ainda, era inerente à natureza humana. As revoluções, sobretudo a Francesa, têm como motivação este questionamento de que a pobreza e a exclusão se desenvolvem a partir da não tomada de partido das classes expropriadas nas deliberações políticas que pudessem voltar-se para seus interesses, e não de uma condição natural, ou justificável do ponto de vista teológico. A partir do momento em que a América passou a servir de exemplo de uma sociedade sem pobreza, verificou-se a possibilidade de se constituir na Europa, nações que pudessem equacionar a problemática social. Foi neste contexto, que a rebelião dos pobres e expropriados e a questão social puderam desempenhar seu verdadeiro papel revolucionário. A solução da questão, da problemática social passa a ser o mote das principais revoluções, com exceção da Americana. Tratava-se, portanto, de equacionar a problemática social utilizando-se da política para promover a libertação das necessidades, sem, contudo, jamais, colocar o fundamento da liberdade, em seu sentido originário, enquanto raison d’etre da política. Em um estado de constante penúria e submetido às necessidades, “a multidão acudiu ao apelo da Revolução Francesa, inspirou-a, impulsionou-a para frente e, finalmente, levou-a a destruição, pois essa era a multidão dos pobres” (ARENDT, 1988, p. 48). Quando a massa emerge na cena da política, junto com ela se imprime uma política para a necessidade, isto é, uma política que tinha como meta solucionar o difícil caso da pobreza. O resultado disto foi que “o poder do Antigo Regime se tornou impotente e a nova república nasceu morta. A liberdade rendeu-se à necessidade e à urgência do próprio processo vital” (ARENDT, 1988, p.48). De acordo com Arendt, a pobreza, consequentemente a multidão, desviou o rumo da revolução, ao não buscar mais a liberdade e sim a libertação das necessidades traduzidas na felicidade do povo, perdendo assim o seu “momento histórico”. Como afirmou Robespierre (apud ARENDT, 1988, p. 48), com a emergência das necessidades na arena política, haveríamos de “perecer, pois na história da humanidade perdemos a ocasião oportuna de fundar a liberdade”.. Não se pode, portanto, fundar a liberdade considerando somente as questões sociais, uma vez que se o social, dado ao seu apelo, pode se sobrepor a própria política, conduzindo à destruição da liberdade.
Ainda, de acordo com Arendt, dada a incapacidade de transformar o movimento de libertação em liberdade, Robespierre tratou de levar a política à turba, trazendo como consequência o estabelecimento do ponto nevrálgico entre o fracasso girondino em construir uma Constituição republicana e a tomada de poder por parte dos jacobinos. A partir deste evento, há a uma mudança de foco: o campo das virtudes políticas desloca-se para o campo dos afetos privados. Isso significou, na perspectiva de Arendt, um deslocamento, também, do campo da solidariedade para o da compaixão. A motivação revolucionária era intensificada pela compaixão, uma vez que a pobreza despertava este sentimento, impulsionando as paixões dos homens pela urgência da revolução. Para Arendt (1988, p. 60), esta paixão “se tornou a força impulsionadora dos revolucionários depois que os girondinos falharam em promulgar uma Constituição e inaugurar um governo republicano”. O ponto crítico da Revolução se deu, de acordo com Arendt (1988, p. 60), quando os jacobinos “apossam-se do poder, não por serem mais radicais, mas por não compartilharem com a preocupação dos girondinos com formas de governo, por acreditarem mais no povo do que na república ”. Esse novo cenário no curso da revolução significou que a unidade permanente do corpo político que se constituía não estava fundada ou garantida por instituições temporais, mas sujeitas às vontades e necessidades da própria massa. As paixões e as motivações de ordem meramente “sociais”, fizeram com que a Revolução Francesa sufocasse os princípios da liberdade, do espírito e da felicidade pública. A violência da libertação frustrou todas as tentativas de criação de espaço seguro para a manifestação da liberdade, haja vista que da violência, como aponta Arendt, jamais se pode florescer qualquer tipo de poder genuíno, e, consequentemente, qualquer corpo político estável.
De sua parte, a Revolução americana obteve um êxito, de acordo com Arendt, exatamente onde a Revolução francesa fracassou: a fundação. Os fundadores americanos tornaram-se os governantes, e ao invés de promulgarem uma constituição que se voltava exclusivamente para os interesses da massa ou mesmo da burguesia, procuraram estabelecer uma constituição em que o seu conteúdo não estivesse permeado por interesses meramente materiais, e sim, por focarem o seu conteúdo na criação de um “novo começo”, de um novo modelo de organização política. Em Da Revolução, Arendt (1990) reestruturará o argumento sobre o “novo começo”, figurando na Revolução Americana o seu paradigma histórico. Nesta obra, Arendt afirma que a Revolução americana começou como um ato consciente de negação a uma ordem estabelecida e na capacidade de, a partir de si mesmos, gerarem um novo modelo político. Segundo Arendt (2002, p. 170)
Não foi nenhuma teoria teológica, política ou filosófica, mas sua própria decisão de deixarem para trás o velho mundo e se aventurarem em um empreendimento inteiramente seu, que deu origem a uma sequência de atos e acontecimentos em que teriam perecido senão tivessem [...] descoberto a gramática elementar da ação política [...] cujas regras determinam o nascimento e o ocaso da ação política.
Diferentemente da Francesa o conteúdo da Revolução Americana não estava centrado nos desejos e vontades da massa, nem nos interesses da burguesia. Embora, para os americanos, o fundamento do poder fosse o próprio povo, a fonte da lei deveria, por seu turno, ser a Constituição, e não a “vontade” do povo, contrariamente à perspectiva da Revolução Francesa que procurava fundar a lei e o poder numa só fonte: o povo e suas necessidades, expressando unanimemente que “a lei é a expressão da vontade geral”. A essência de sua Constituição, por seu turno, residia na criação e na divisão de poderes, para o surgimento de um novo domínio, em que, a “ambição seria controlada pela ambição” (MADSON apud ARENDT, 2002, p. 108), ou em outros termos, de que o poder se controla com mais poder. Não se tratava de uma leitura hobbesiana de acúmulo de poder, mas sim no sentido de que o poder se refunda não quando se impõe, mas sim quando possibilita a renovação de seu curso. E isto foi impresso na sua própria Constituição, que diferentemente das Constituições francesas, não tinha como meta da revolução a garantia de obtusos direitos humanos ou civis, nem estava fundada nas bases das reivindicações meramente materiais da massa.
A Constituição para os americanos não representava em essência a salvaguarda dos direitos civis, antes, possuía como essência o estabelecimento de uma estrutura de poder inteiramente nova e vinculada a um ideal de liberdade, uma vez que não era produto das necessidades materiais. A Constituição não tinha por meta limitar o poder, cerceando a sua capacidade de ação, mas sim, de se constituir um novo poder que não pudesse ser tolhido naquilo que sempre representava historicamente a sua negativa: a violência, as tiranias, ou do ponto de vista formal e burocrático, as “declarações de direitos”, tais como as francesas.2 De acordo com Pinheiro (2007, p. 131):
Arendt primariamente não nega que a questão da limitação constitucional do poder não seja um pressuposto fundamental para a instituição da vida política. A bem dizer, a distinção entre o poder político e autoridade da lei é acolhida como um pressuposto fundamental para pensar uma esfera política assentada nos freios ao arbítrio dos governantes através da imposição dos pressupostos constituintes do corpo político. O que a autora antepõe [...] é que nos momentos de fundação política, a autoridade de uma Constituição provém diretamente dos poderes constituintes do corpo político, e que sua legitimidade só é assegurada quando a Constituição conserva integrado e distribuído os poderes constituintes que perfazem o espaço político.
O objetivo da Constituição Americana era gerar mais poder, estabelecendo e constituindo adequadamente um “centro de poder”, formatado para compensar a república confederada do poder que se perdeu quando as colônias se separaram do domínio inglês. Tratava-se de se instituir poderes, legitimados a partir da adição de novos membros ao corpo político. De acordo com Arendt “a Constituição Americana consolidou, finalmente, o poder da Revolução e, já que o objetivo da revolução era a liberdade, ela veio a ser aquilo a que Bracton havia chamado Constitutio Libertatis, a fundação da liberdade” (ARENDT, 1988, p. 151-152). A Constituição Americana instituía, assim como o espírito da lex romana, um corpo político definido pela articulação das partes envolvidas no processo (nesse caso, os Estados da federação), garantindo a sua conservação através tanto da integração, quanto da distribuição dos poderes constituintes da fundação do novo corpo político.
Segundo Hannah Arendt, além da Revolução Americana representar uma espécie de “não” à ordem política estabelecida, outro elemento precisa ser considerado em seu escopo ideário: a fundação do corpo político estável (PINHEIRO, 2007). O ato de fundar o novo corpo político e de idealizar uma nova forma de governo constituía-se o elemento do espírito revolucionário, que envolvia a preocupação com a estabilidade e com a durabilidade da nova estrutura fundada. Tratava-se, portanto, de não somente dar início a algo novo, mas de garantir que este algo criado fosse permanente e duradouro. Em tese, o que diferenciava o republicanismo americano da outrora experiência romana de fundação residia no fato de que a experiência americana, mais do que instituir o novo e procurar garantir a sua permanência, o fez através do constitucionalismo e de uma tradição de direitos que buscava constantemente atualizar o “ato fundacional” que, de acordo com Arendt, antecedia a própria criação do governo (PINHEIRO, 2007). Diferentemente das hierarquizações romanas, a experiência norte-americana viabilizava o sempre retorno ao momento fundador na medida em que atualizava o instituto da tradição de direitos, ao mesmo tempo em que promovia uma constante revisão constitucional. Para Arendt, a fonte de autoridade do corpo político americano adveio da própria fundação da República. Nas palavras da autora (ARENDT, 1988, p. 196)
Foi a autoridade que o ato da fundação implicava em si, mais do que a crença num Legislador Imortal, as promessas de recompensa e as ameaças de castigo num ‘futuro estado’ ou mesmo a duvidosa evidência das verdades enumeras no preâmbulo à Declaração da Independência, que assegurou estabilidade à nova república. Esta autoridade é, sem dúvida, completamente diferente do absoluto que os homens das revoluções tão desesperadamente pretendiam introduzir como fonte de validade das suas leis e fonte de legitimidade do novo governo.
Este tipo de autoridade possuía ares estritamente seculares, uma vez que não estava ancorada em justificações ou legitimações de ordem transcendente. A instituição de uma autoridade política secular assegurava, portanto, a legitimidade, na medida em que integrava e conservava a pluralidade de poderes que se consorciaram na fundação da República Americana. Para Arendt, era através da autoridade da Constituição Americana que as próprias leis positivas adquiriam validade jurídica.
Aliada à importância da Constituição legitimada, a reatualização do poder só era possível, também, caso houvesse uma reestruturação das formas de organização e administração política, que pudessem valorizar a participação dos homens diretamente nos negócios públicos. Destas formas, se destacava os sistemas de conselhos. Estes, de sua parte representavam uma alternativa ao modelo standard de representatividade - visto este enquanto única forma de mediação política (ARENDT, 2006).3 Os conselhos possuíam um papel de propiciar uma deliberação não vinculada a interesses pré-determinados, abrindo uma forma de mediação entre os indivíduos e a política institucionalizada. Na forma dos conselhos, a ação mantém sua centralidade na medida em que possibilita a constante criação de formas novas de governo, ao mesmo tempo em que o poder se consolida, pois, é mantida a permanência do corpo político que lhe deu origem, sempre reatualizando-o. A criação dos conselhos foi a expressão mais próxima do conceito original de ação, exatamente por eliminar as hierarquizações, não se pautar por interesses meramente materiais, não ter uma pretensão partidária, facciosa, e sobretudo, por estar fundada num princípio de liberdade, ao permitir a participação dos homens nas tomadas de decisões, bem como de servir de estrutura que constantemente se renovava, assim como suas leis.
A forma de participação política dos conselhos centrava-se na premissa de que todos os homens poderiam se tornar membros ativos do governo comum, participando de todos os direitos e obrigações do Estado. Dentre as características comuns aos conselhos, destaca-se a própria espontaneidade de seu surgimento, tendo como objetivo lançar as bases de uma república. Os conselhos surgiram no curso das revoluções e brotaram do seio do povo como órgãos espontâneos de ação e de ordenamento. Segundo Pinheiro (2007, p. 196):
Organização espontânea de sistemas de conselho ocorreu em todas as revoluções: na Revolução Francesa, com Jefferson na Revolução Americana, na Comuna de Paris, nas revoluções russas, no despertar das revoluções na Alemanha e Áustria, no fim da Primeira Guerra Mundial e finalmente na Revolução Húngara. E mais, estes sistemas de conselho nunca apareceram como resultado de uma tradição ou teoria revolucionária consciente, mas de um modo totalmente espontâneo; cada vez como se nunca tivesse havido nada semelhante antes. Assim, o sistema de conselho parece corresponder e brotar da própria experiência da ação política.
Os conselhos constituíam para Arendt, portanto, a “verdadeira” república, surgida da experiência da ação política. Isto posto, pois o sistema de conselhos se apresentava sob uma forma de poder que ao não incidir hierarquicamente de cima para baixo, torna-se […] dirigido horizontalmente de modo que as unidades federadas refreiam e controlam mutuamente os seus poderes” (PINHEIRO, 2007, p.197), fazendo emergir de sua experiência a existência da ação política. Neste tipo de estrutura federativa e participativa, Arendt aventou a possibilidade do surgimento de uma forma de política “piramidal” onde pudesse confluir a “igualdade” e a “autoridade”, sem testemunho vivo em nenhum evento histórico ou organização política. Segundo Duarte (2000, p. 213)
Arendt pensa ainda que os conselhos seriam a melhor forma de "fragmentar" e politizar as grandes "massas" que povoam as sociedades modernas, impedindo que fossem arregimentadas e organizadas pelos partidos políticos demagógicos em movimentos de massa ‘pseudopolíticos’, como se dera no caso do totalitarismo nazista e stalinista. Ademais, esta seria a única forma de governo que permitiria o exercício da felicidade pública por parte de todos aqueles para quem a felicidade não se restringe à fruição privada da liberdade. É a esta elite política auto-escolhida que a condução dos assuntos políticos deveria ser concedida, o que, entretanto, traz consigo a consequência de que aqueles que optassem pela não participação em quaisquer das instâncias políticas do país seriam "auto-excluídos" de toda capacidade decisória.
Pelos termos “elite” e “auto-excluídos”, deve se ter um cuidado conceitual especial ao tratá-los. Não se trata de uma divisão de classes no estilo marxista, e tão menos uma afirmação de que aquele que se exclui, configura-se enquanto um sujeito alienado. Arendt aponta para a qualificação na vida pública, sendo que a “elite”´, nesse caso, é composta não por aqueles que se libertaram do jugo da necessidade e podem, portanto, se dedicar à coisa pública, e sim, que esta “elite” trata de um conjunto de homens que buscam deliberadamente participar da res pública. Vale ressaltar que a “auto-exclusão”, como o próprio termo sugere, não se trata de um desprezo ou de uma desqualificação dos modos de vida, e sim, um direito de não querer participar dos interesses públicos, de se excluir, portanto, do mundo comum. Trata-se, em ambos os casos de uma escolha e de um direito, e não de uma fatalidade ou imposição arbitrária. Segundo Arendt (2006, p. 233): “qualquer um que não esteja interessado nos assuntos públicos terá simplesmente que se satisfazer com o fato de eles serem decididos sem ele. Mas deve ser dada a cada pessoa a oportunidade.”
A constituição dos conselhos não resultava de uma tradição ou teoria revolucionária consciente. Para Arendt (2006), fato é que nenhuma tradição, seja ela revolucionária ou pré-revolucionária foi suficiente para explicar o surgimento e atualização do sistema de conselhos desde a Revolução Francesa - o qual deve sua origem, plenamente, à vontade espontânea, ao desejo de participação política do povo. Não se tratavam de órgãos transitórios por serem espontâneos; ao contrário, eram “órgãos de ação”, capazes de fundar uma nova ordem política. Diferiam-se, portanto, dos partidos que, segundo Arendt, só existiam para servir aos interesses privados de certas classes ou encastelados em suas estruturas representativas e burocráticas.4 Em seu texto intitulado “Reflections on the Hungarian Revolution”,5Hannah Arendt (1969, p. 499-500), ao examinar este evento histórico, afirma que:
Sob condições modernas, os conselhos são a única alternativa democrática que conhecemos ao sistema de partidos, e os princípios sobre os quais eles se assentam, em vários aspectos, postam-se em clara oposição aos princípios do sistema de partidos. Assim, os homens eleitos para os conselhos são escolhidos na base e não selecionados pela máquina do partido e propostos ao eleitorado enquanto indivíduos a serem escolhidos em um processo de exclusão, ou na forma de uma lista de candidatos [...]. É notável [...] a grande e inerente flexibilidade do sistema, que não parece precisar de condições especiais para o seu estabelecimento além da união e da ação conjunta de um certo número de pessoas, em uma base não temporária. Na Hungria, observamos a montagem simultânea de todos os tipos de conselhos, cada um dos quais correspondendo a um grupo previamente existente, no qual as pessoas viviam habitualmente em conjunto ou se encontravam regularmente e se conheciam. [...] A formação de um conselho em cada grupo particular transformou a mera e casual vida em comum em uma instituição política.
Além de seu surgimento espontâneo (e por esta razão também), os conselhos corresponderam à própria experiência da ação política, na medida em que se constitui o novo instaurado num terreno de incerteza, fruto da liberdade promovida no encontro dos homens na vida pública, transcendendo meros interesses sectários. O princípio organizacional dos conselhos obedece ainda a uma estrutura completamente distinta das concepções tradicionais de gestão política. Não se trata de uma relação de mando-obediência, ou de soberania do Estado ou de um órgão eclesiástico. O poder que emerge dos sistemas de conselho obedece a um direcionamento que se inicia de baixo para cima, alcançando, por fim, o parlamento (ARENDT, 2006).
Dada a esta especificidade dos sistemas de conselhos, que consiste em expressar a "íntima conexão entre o espírito revolucionário e o princípio federativo", a partir das condições primordiais da ação política (o iniciar e o levar adiante o empreendimento), constitui, na perspectiva de Arendt, uma alternativa para se conceber a fundação de repúblicas baseadas na participação direta e não meramente representativa. A extensão que os sistemas de conselho podem percorrer despertou em Arendt uma “esperança” em relação a dar um redimensionamento para o conceito de Estado. Tratava-se de pensar uma espécie de “Estado-conselho” para o qual, segundo Arendt (2006, p. 201-203), o princípio da soberania fosse “ajustado às mais diversas espécies de federações, em particular, porque nele o poder seria constituído horizontalmente e não verticalmente”. Ao se conceber este redimensionamento do conceito de Estado é preciso compreender que Arendt não pretende naturalizá-lo, como na perspectiva hobbesiana, e nem mesmo instituir uma espécie de “soberania dos conselhos”, pois se assim o fizesse, contrariaria aquilo que ela mais defendeu durante toda a sua obra: a liberdade. De fato, como atesta Arendt (1988, p.150), “talvez a maior inovação americana na política, como tal, tenha sido a abolição coerente da soberania no corpo político da República, a percepção de que, no âmbito dos assuntos humanos, a soberania e a tirania são idênticas”. Em todo caso, quando Arendt aventa a possibilidade deste redimensionamento do conceito de Estado, não se refere necessariamente a uma “solução” para a política, nem mesmo um “resgate” daquilo que possivelmente se viu na Grécia ou em Roma. Trata-se antes da contingência, enquanto categoria expressa em toda reflexão arendtiana.
O desejo de Arendt impulsiona-se para a criação de um espaço público que possa constantemente se “refundar” (renovar) a partir do intercurso e das relações humanas e, a um só tempo, preservar a si mesmo permitindo a sempre participação dos homens em condições de igualdade. É possível que a nova concepção de Estado de Arendt não seja possível de ser aplicada no mundo contemporâneo, ou que a criação de conselhos seja algo completamente anacrônico num mundo globalizado e supostamente carente de representação política. É possível ainda que nem consigamos pensar uma política democrática hoje que não possa se sustentar a não ser pelo “monopólio legítimo da força”, ou mesmo pelos sistemas representativos partidários. Em todo caso, não é isso que está em jogo, até mesmo porque, nenhuma destas suposições são fatais [do ponto de vista escatológico], e é precisamente por crer nessa capacidade dos homens de engendrarem o novo, que Arendt sustenta o repensar de nossas concepções de política. O que é central em toda a reflexão arendtiana é que ao se conceber a condição humana como sendo também a capacidade de iniciar coisas novas, deve-se apostar na potencialidade política de constituição de espaços públicos, envidando esforços na sua manutenção, por exatamente conferirem aos homens as condições de participação nos assuntos da res publica - no interesse pelo mundo comum.
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