Resenha
LITURATERRA [Resenha: 2020, 3, 2] Ideologias, intelectuais e hegemonia nas lutas de classes na Bahia
LITURATERRA [Reseña: 2020,3,2]
LITURATERRA [Review: 2020,3,2]
LITURATERRA [Compte rendu: 2020,3,2]
文字国 [图书梗概: 2020,3,2)
LITURATERRA [Resenha: 2020, 3, 2] Ideologias, intelectuais e hegemonia nas lutas de classes na Bahia
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 12, núm. 3, pp. 525-532, 2020
Universidade Federal Fluminense
Recepción: 31 Octubre 2019
Aprobación: 06 Enero 2020
Resumo: As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan,1 para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.
Resumen: Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura de la terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.
Abstract: The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.
Résumé: Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.
摘要: Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。
BARBOSA, Emiliano Cortes. Saber, poder e política na Bahia republicana: Escola Politécnica da Bahia, 1896-1920. Salvador, Edufba, 2017.
A obra de Emiliano Cortes Barbosa, Saber, poder e política na Bahia republicana: Escola Politécnica da Bahia, 1896-1920, além de analisar criticamente a mesma à luz da historiografia sobre a Bahia na primeira república. A tese do autor é que a Escola Politécnica foi um aparelho privado de hegemonia que formou intelectuais dirigentes e veiculou visões de mundo modernizantes próprias das classes médias em luta contra as classes dominantes tradicionais do Estado. A crítica fundamental é que as definições de classes sociais são imprecisas e que o velho e o novo não são muito fáceis de definir no contexto de então na política baiana, especialmente pela presença de coronéis modernizadores capazes de conservar sua dominação tanto do espaço municipal do interior quanto da máquina pública estadual, sem se contradizer com o desenvolvimento da acumulação de capital e com as inovações ideológicas e políticas do Estado. A Politécnica teria fornecido, também, elementos para a produção do consenso e conservação da hegemonia dos novos coronéis progressistas.
Publicação de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal Fluminense em 2010, o livro supracitado é uma história política da institucionalização da Escola Politécnica da Bahia. A ideia central do autor é Politécnica difundia visões de mundo homogêneas em relação a determinados aspectos e discursos da modernidade capitalista e atuou enquanto aparelho privado de hegemonia. Para defender essa ideia, Barbosa utiliza do referencial teórico da sociologia de Pierre Bourdieu e da teoria da hegemonia de Antonio Gramsci para analisar a historiografia sobre política baiana e uma série de jornais, livros de atas, livros de registros escolares e memórias sobre a Escola Politécnica da Bahia.
O texto se divide em três capítulos. No primeiro, o autor situa seu objeto na história das instituições de ensino superior ciências e tecnologia do Brasil em uma longa duração, desde o período colonial, destacando o papel peculiar e inovador que a engenharia desempenhava no Brasil no final do século XIX. Barbosa destaca o papel do positivismo na formação da visão de mundo dos engenheiros (p. 53). Também destaca o papel que a Escola Agrícola da Bahia teve enquanto primeira experiência de instituicionalização da engenharia na Província, embora frustrada, mas importante, pois é dessa instituição - e a partir dela - que sai o professor Arlindo Fragoso, principal articulador da Escola Politécnica da Bahia posteriormente (p. 64).
No segundo capítulo, o leitor percorre a fundação da Escola Politécnica da Bahia em 1897 e seu papel misto de público-privado - reconhecido e financiado pelos poderes públicos, a escola era mantida pelo Instituto Politécnico da Bahia, uma entidade da sociedade civil até meados de 1934, sendo posteriormente absorvida pela Universidade Federal da Bahia (p. 69). O leitor também compreende bem a relação problemática que a Escola possuiu com os governos estaduais, passando por dificuldades financeiras graves em 1902, quando faltava recurso para tudo devido à retaliação política do governador Severiano Vieira contra Arlindo Fragoso que era aliado do ex-governador Luis Viana. A ascensão de J. J. Seabra ao governo do Estado no período 1912-1924, todavia, beneficiará sobremaneira a Politécnica porque ela caia como uma luva no projeto modernizador do governador (p. 80). Graças ao papel de bastidores que Arlindo Fragoso desempenhou no governo e a partir daí, à importância crescente que os engenheiros egressos da Politécnica tiveram nos cargos internos do Estado, as dificuldades iniciais foram superadas e a escola se consolidou enquanto importante instituição de formação de quadros para o Estado e difusora de visões de mundo. A troca, em que o governo beneficiava a Politécnica e esta reverenciava os governadores, levou esta à consolidação institucional (p. 83).
É nesse capítulo ainda que Barbosa discute a função que a Escola assume, seja enquanto instituição que forma engenheiros, cada vez mais necessários para as transformações técnicas da acumulação de capital (p. 89), seja em termos políticos ao produzir visões de mundo que coadunam com projetos políticos de frações de classes emergentes e modernizantes em detrimento de grupos mais tradicionais (p. 91). Aqui, o método quantitativo de análise de Barbosa que categoriza e qualifica os egressos e quadro docente da escola permite o levantamento de várias hipóteses sobre a expectativa que determinadas famílias decadentes tinham na engenharia como forma de perpetuar o prestígio de seus filhos na ocupação de cargos no Estado através dela, bem como o atendimento concentrado para as classes médias da capital e do Recôncavo (p. 97). Para Barbosa, os professores também compartilhavam desse recorte social, já que possuíam o habitus de classe média decorrente de sua formação e referência como modelo na Escola Politécnica no Rio de Janeiro e do caráter de reprodução endógena da instituição em que ingressavam como novos professores, ex-alunos (p. 115).
No último capítulo, Barbosa se concentra na ideia central de seu trabalho, de que a Politécnica “por meio de seus dirigentes, construiu e discerniu projetos de visão de mundo, constatando, ainda, que a instituição formadora de engenheiros na Bahia foi, portanto, um aparelho privado de hegemonia” (p. 121). Enquanto o Imperial Instituto Baiano de Agricultura surgira com o propósito de evitar o declínio agrícola baiano no Segundo Império (p. 128), a Politécnica surgira enquanto projeto contra-hegemônico dos intelectuais das frações médias urbanas (p. 133). Com Seabra no governo, afirma Barbosa, os setores médios ascendem ao poder (p. 150). Com apoio da Escola Politécnica da Bahia, enquanto instituição difusora dos ideais de progresso e modernização, Seabra teria confrontado as classes conservadoras e contribuído para a internacionalização da economia baiana, representada sobretudo, na transformação do Banco da Lavoura em um Banco Hipotecário com capital franco-brasileiro (p. 153). Como retoma na conclusão, “o grupo ligado à EPBA tem como projeto ideológico comum alçar a Bahia para a modernidade para só então poder se abrir para o grande capital” (p. 155).
O livro de Emiliano C. Barbosa é uma contribuição importante para a história das instituições de ensino superior na Bahia, mas o é, sobretudo, por propor ideias - e eu diria ideias arriscadas - para a história política da Bahia e do Brasil no período. Disse arriscadas porque algumas delas possuem um alcance muito geral no que se refere a considerações sobre transformações históricas nas composições do poder de classe e das frações de classe na Bahia da primeira república e são feitas a partir de um referencial teórico-metodológico inovador para os estudos sobre política nesse período, sendo portanto, um trabalho pioneiro no levantamento de hipóteses nessa perspectiva nesse campo de estudos que é a história política baiana desse período. Aqui estão os aspectos mais interessantes do texto e que merecem maior consideração.
A primeira delas é o solo frágil que uma discussão sobre poder de classes e frações de classe se insere sem uma ligação umbilical com a história econômica. Barbosa critica a idealização do Estado como “instituição incontestável e absoluta, acima de qualquer sociedade” e o reducionismo econômico “em detrimento da política, do social e do ideológico” na “matriz marxiana” (p. 58). O acordo com a crítica da perspectiva não considera, porém, justa a consideração sobre o autor de clássicos da política como O 18 Brumário de Luis Bonaparte ou Guerra Civil em França. Todavia, por mais que se deva evitar um “determinismo economicista” numa análise do Estado, a análise das lutas de classes e de frações de classe exige uma definição mais clara sobre quais são as classes em luta e quais as frações de classe em que elas se dividem. Tal definição é feita a partir de um diálogo com a história econômica.
Luiz Viana é definido pelo autor como “um velho representante das tradicionais frações latifundiárias, mas um agente em sintonia com os novos tempos”, de “perfil mais progressista” (p. 135). Horácio de Matos, por sua vez, é apresentado como um líder das “velhas frações proprietárias do interior” que luta contra Seabra em 1920, no episódio da Revolução Sertaneja, “pela volta de antigos privilégios extintos pela reforma constitucional conduzida por J. J. Seabra” (p. 103). Seria extremamente interessante que Barbosa, a partir de sua perspectiva teórico-metodológica examinasse as teses de Wilson Lins em Médio São Francisco - sociedade de pastores e guerreiros sobre a transformação das classes na Bahia nesse mesmo período. Lins definiria que enquanto Luiz Viana pertence à aristocracia pecuarista e latifundiária, Horácio de Matos, bem como seu pai, Franklin Lins de Albuquerque, eram representantes de uma nova fração ascendente de classe, a burguesia, que aliás, entrou em conflito com as referidas aristocracias em seu processo de subida ao poder. Se poderíamos considerar que talvez fosse excessiva a oposição entre aristocracia latifundiária e burguesia ascendente de Lins, haja visto que a aristocracia se aburguesava e adquiria “perfil mais progressista” - e isso estamos de acordo - ao mesmo tempo em que a burguesia buscava verniz aristocrático através dos casamentos, também poderíamos considerar em que medida há uma oposição muito clara entre o velho e o novo nas lutas das frações de classe dominantes na Bahia da primeira república? Os conflitos que chegaram às armas em algumas ocasiões opunham necessariamente frações declinantes a frações emergentes ou eram uma luta entre grupos da mesma classe que buscavam, através da monopolização do poder e dos recursos do Estado, reproduzirem a si enquanto grupos dominantes?
A trajetória de Geraldo Rocha, egresso da Politécnica em 1905, poderia ajudar a pensar as dificuldades em opor velho e novo. Geraldo Rocha era um estudante de engenharia. Pertencia à nata daquilo que podemos chamar de “velhas frações proprietárias do interior”. Era parente do Barão de Cotegipe e descendia dos latifundiários que compraram as terras vendidas pela Casa da Torre e Casa da Ponte nas beiradas do São Francisco. Ao mesmo tempo, amigo de J. J. Seabra, conseguiu dentro do Estado envolver-se com construção e administração de linhas ferroviárias, tornou-se sócio de Percival Farquhar, enriqueceu, fez-se proprietário de jornais no Rio de Janeiro na década de 1920 e se converteu em um nacionalista extremado na década de 1930 e um dos arquitetos intelectuais de instituições de planejamento econômico regional nos anos 1940. Seus ideias de progresso e modernidade aprendidos na Politécnica e difundidos por meio de seus diários na capital da República não eram estranhos à sua condição de latifundiário no vale do São Francisco, bem como conseguiu ir do liberalismo internacionalizante ao nacionalismo econômico ao sabor das conveniências. O mesmo poderia ser dito, em um contexto diferente, de Antonio Balbino de Carvalho Filho, sobrinho de Rocha e governador da Bahia, alinhado aos projetos modernizantes de JK.
Outra contribuição do livro de Barbosa é dar mais densidade ao período seabrista. Especialmente ao vincular as reformas urbanas empreendidas pelo governador com a Politécnica, assim como evidenciar o papel desta - e da sociedade civil - na ação modernizadora do Estado na década de 1910 em Salvador e na Bahia. Aqui, todavia, reside outra questão aberta pelo livro, que é a relação entre as lutas entre frações da classe dominante e das médias descritas nos livros, com as lutas sociais mais amplas do período, apenas mencionadas. Não dispomos ainda de pesquisas mais amplas sobre as lutas sociais do interior do Estado e sua relação com as disputas de governo no período seabrista, mas a nova historiografia baiana tem evidenciado que há muito mais do que coronéis, cangaço e messianismo nos sertões desse período, onde há intensas lutas populares. Uma categoria do pensamento de Gramsci - e de Marx - que não deixa de ser lembrada para pensar o período seabrista é a de bonapartismo. Grosseiramente, Seabra não seria um árbitro entre classes em luta numa aguda crise de hegemonia? A visão de mundo tecnicista e positivista veiculada pela Politécnica cai como uma luva para um Bonaparte que está entre classes dominantes em crise e classes populares agitadas, mas sem alternativa à mão. Um diálogo da obra de Barbosa com as de Aldrin Castellucci, Alberto Heráclito Ferreira Filho, Rinaldo Cesar Leite, Robério S. Souza - que discutem a modernização e as lutas sociais no período seabrista -, ou mesmo autores já clássicos como José Luiz Pamponet Sampaio, José Raimundo Fontes e Mário Augusto da Silva Santos seria interessante já que as hipóteses mais gerais sobre ascensão de setores médios ao governo do Estado com J. J. Seabra se balizam na perspectiva de lutas sociais mais amplas.
Por último, um aspecto importante a se destacar é a questão étnico-racial na modernização republicana da Bahia e questionar o papel da Escola Politécnica enquanto instituição de difusão de visões de mundo. Alberto Heráclito Ferreira Filho usou a célebre expressão “desafricanizar as ruas" para caracterizar as reformas urbanas de J. J. Seabra, o que designa bem o caráter embraquecedor das reformas. Qual o lugar da questão racial na visão de mundo difundida pela Politécnica e o que pretendiam? Essa é uma questão relevante na medida em que esses intelectuais egressos da escola de engenharia precisavam lidar com a questão da população de cor numa Bahia que se queria moderna e… branca. Em que medida eles inovaram no aspecto racializante ou seguiram o pensamento já sedimentado no Estado sobre o tema? A questão racial é fundamental para a construção de uma teoria das classes sociais mais ampla sobre a Bahia dos anos 1910, dada a proximidade com o 1888 e a efervescência do tema no Estado.
Notas
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