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Estado e soberania na filosofia protestante: uma introdução ao debate holandês do século XX

Estado y soberanía en la filosofía protestante: una introducción al debate holandés del siglo XX

State and sovereignty in Protestant philosophy: An introduction to Dutch twentieth-century debate

État et souveraineté dans la philosophie protestante : une introduction au débat hollandais du XXe siècle

简介二十世纪荷兰新教哲学中有关国家与主权的辩论

Elden Borges de Souza *
Universidade Federal do Pará, Brasil
Victor Sales Pinheiro **
Universidade Federal do Pará, Brasil

Estado e soberania na filosofia protestante: uma introdução ao debate holandês do século XX

Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 13, núm. 1, pp. 129-147, 2021

Universidade Federal Fluminense

Recepción: 12 Junio 2020

Aprobación: 09 Diciembre 2020

Resumo: A discussão sobre o conceito de soberania estatal pode ser realizada à luz de diversos teóricos e por meio de diferentes tradições filosóficas. Entretanto, em geral a tradição protestante é pouco inserida nesse debate, especialmente a tradição protestante holandesa do século XX, a qual teve grande influência em seu país e em outros países de tradição protestante após o final da II Guerra Mundial. Considerando isso, o presente trabalho procurar introduzir o debate protestante sobre o conceito de soberania. No entanto, dada a limitação do artigo, haverá uma delimitação a partir da ideia de soberania das esferas como desenvolvida por Herman Dooyeweerd – expoente dessa vertente do protestantismo. Portanto, o presente artigo analisa as contribuições do pensamento de Dooyeweerd sobre a definição de soberania das esferas para a compreensão sobre a autoridade do Estado e seus limites. Inicialmente, será apresentada uma síntese da posição do autor e seu contexto. Em seguida, será analisado o conceito de soberania das esferas. Por fim, tal conceito é inserido no debate maior sobre soberania. Quanto à metodologia do trabalho, trata-se de pesquisa bibliográfica. Concluiu-se que, em que pese o motivo religioso, Dooyeweerd pode contribuir para uma concepção de Estado de Direito – oposta às visões totalitárias.

Palavras-chave: soberania, filosofia protestante, Herman Dooyeweerd.

Resumen: El debate sobre el concepto de soberanía estatal se puede realizar a la luz de diversos teóricos y por medio de diferentes tradiciones filosóficas. La tradición protestante está poco implicada en este debate, especialmente la tradición protestante holandesa del siglo XX, que tuvo una gran influencia en su país y en otros de tradición protestante tras el final de la II Guerra Mundial. Este trabajo pretende incluir el debate protestante sobre el concepto de «soberanía» a partir de la idea de soberanía de las esferas tal como la desarrolló Herman Dooyeweerd, exponente de dicha vertiente del protestantismo. El artículo analiza las aportaciones del pensamiento de Dooyeweerd sobre la definición de soberanía de las esferas para la comprensión de la autoridad del Estado y sus límites. En un primer momento, se presenta un resumen de la posición del autor y su contexto. A continuación, se analiza el concepto de soberanía de las esferas. Por último, tal concepto se introduce en el debate mayor sobre soberanía. El argumento conclusivo que la reflexión de Dooyeweerd aportó a la concepción de la idea de estado de derecho es opuesto a las visiones totalitarias, a pesar de sus motivaciones religiosas.

Palabras clave: soberanía, filosofía protestante, Herman Dooyeweerd.

Abstract: Debate on the concept of state sovereignty may be conducted in light of various theories and by means of different philosophical traditions. The Protestant tradition is rarely located in such a context, particularly the Dutch Protestant tradition of the twentieth century, which strongly influenced the country and other countries of Protestant tradition in the wake of World War II. This work seeks to outline the Protestant debate on the concept of sovereignty based on the idea of “sphere sovereignty” developed by Herman Dooyeweerd, a proponent of this strain of Protestantism. To do so, it analyzes the contributions made by Dooyeweerd’s thoughts on the definition of sphere sovereignty for an understanding of state authority and its limits. A summary of his position and its context is first provided before an analysis is given of the concept of sphere sovereignty. Finally, such a context is located within the wider debate on sovereignty. The concluding argument is that Dooyeweerd’s reflections provided a concept of the rule of law opposing that of totalitarian visions, revealing his religious motives.

Keywords: sovereignty, protestant philosophy, Herman Dooyeweerd.

Résumé: Le débat sur la souveraineté de l’État peut être mené à la lumière de différents théoriciens et de différentes traditions philosophiques. La tradition protestante n’est qu’assez peu représentée dans ce débat, et en particulier la tradition protestante hollandaise du XXe siècle, qui a eu une grande influence dans ce pays et dans d’autres de même tradition après la fin de la Seconde Guerre mondiale. Cet article entend présenter le débat protestant sur le concept de de souveraineté à partir de l’idée de « souveraineté des sphères », telle que développée par Herman Dooyeweerd, représentant en vue de ce courant du protestantisme. Nous analyserons les contributions de la pensée de Dooyeweerd sur la définition de la souveraineté des sphères pour mieux comprendre l’autorité de l’État et ses limites. Nous présenterons en premier lieu une synthèse de la position de cet auteur et de son contexte. Nous nous pencherons ensuite sur ce concept de souveraineté des sphères avant de le replacer dans le débat plus large sur la souveraineté. L’argument final que la réflexion de Dooyeweerd appliquera à sa conception de l’État de droit est à l’opposé des visions totalitaires, et ce en dépit de ses motivations religieuses.

Mots clés: souverainete, philosophie protestante, Herman Dooyeweerd.

摘要: 关于国家主权概念,不同的理论家、不同的哲学传统有不同的看法。在国家主权概念的辩论中,新教传统很少有人涉及,尤其是20世纪荷兰的新教传统,很少有学者重视。在第二次世界大战结束后,荷兰新教哲学关于国家主权的定义对荷兰本国和其他新教国家产生了重大影响。本文以赫尔曼·杜耶韦尔德(Herman Dooyeweerd) 的“层级主权”概念为基础,介绍新教信仰中关于主权的论断。本文首先概述杜耶韦尔德的观点及其产生的背景,然后分析 他的“层级主权”理论中“国家”的权威性与局限性。最后,我们进入到有关主权的更大辩论中。我们认为,杜耶韦尔德的法治观念主要针对极权主义观点,尽管他有宗教动机,但是主要目的是为了反极权主义。

關鍵詞: 主权, 新教哲学, 赫尔曼 · 杜耶韦尔德.

Introdução

Em que pese o debate sobre os fundamentos da soberania do Estado já esteja consolidado há certo tempo, um tronco dessa discussão vem sendo ignorado. A título exemplificativo, conforme já destacado por diversos autores no Brasil (LAGO, 2013) e no exterior (WITTE JUNIOR; NICHOLS, 2016), a redefinição da concepção sobre a política pelo protestantismo – pelas suas mais diversas ramificações – foi fundamental para a construção da democracia norte-americana.

No caso, o protestantismo holandês exerceu um papel central no confronto com as forças antidemocráticas e totalitárias do início do século XX (CARVALHO, 2010). Especificamente, desenvolveu-se na Holanda um debate intenso no meio protestante sobre o conceito de soberania e os limites à ação do Estado – contribuindo para a concepção contemporânea de constitucionalismo democrático naquele país (KRAAY, 2015).

Destarte, o presente trabalho introduzirá o debate protestante holandês pós-Segunda Guerra sobre o conceito de soberania. Em razão da limitação da pesquisa, será feita uma abordagem do principal filósofo do movimento, Herman Dooyeweerd, relacionando-o com outros autores contemporâneos e da filosofia protestante em geral.

Filho de cristãos engajados, Herman Dooyeweerd (1894-1977) cresceu em um ambiente de ascensão do denominado Calvinismo Holandês, um movimento de renovação do protestantismo nos Países Baixos iniciado por Groen Van Prinsterer em meados do século XIX (CARVALHO, 2010). Em 1917, formou-se em Direito pela Universidade Livre de Amsterdã – instituição fundada por Abraham Kuyper em 1880, um dos expoentes desse movimento. Depois de ocupar alguns cargos no governo, em 1926 tornou-se professor de Filosofia do Direito da Universidade Livre de Amsterdã (KRAAY, 2015).

É importante observar que esse movimento do qual Dooyeweerd participava teve grande força nos Países Baixos, tornando-se um dos pilares da ordem social holandesa e fazendo Abraham Kuyper chegar a Primeiro-Ministro no período de 1901-1905 (KRAAY, 2015). Um exemplo histórico das proposições desse movimento foi a criação da Universidade Livre de Amsterdã, uma instituição de ensino separada da autoridade do estado e independente da Igreja (RAMOS; FREIRE, 2014). Não suficiente, ele conseguiu ultrapassar as fronteiras holandesas e encontrou espaço, por exemplo, nos Estados Unidos (CHAPLIN, 2011; WEINBERGER, 2014).

Foi em suas pesquisas sobre esse movimento protestante holandês e atento aos debates do pós-II Guerra sobre a reconstrução da ordem social e política dos Países Baixos que Dooyeweerd formulou uma concepção baseada na denominada “ideia cosmonômica” (KRAAY, 2015). Com base, por sua vez, nos pressupostos dessa concepção, Dooyeweerd formula em termos filosóficos o conceito de soberania das esferas, já defendido politicamente por Kuyper (1931).

Por isso, Dooyeweerd ocupa uma posição central no protestantismo holandês do século XX. Pois, embora o Calvinismo Holandês encontrasse solo fértil entre grandes teólogos, Dooyeweerd constatou a necessidade do desenvolvimento de uma teoria filosófica que investigasse os fundamentos desse movimento (CARVALHO, 2010).

Embora a discussão sobre uma filosofia política protestante holandesa não tenha sido iniciada por ele e sim, principalmente, por Abraham Kuyper, foi Dooyeweerd quem estruturou filosoficamente as concepções até então predominantemente teológicas. Ao debater com Kant e Hegel, não apenas situou filosoficamente o debate, como deu contornos não-teológicos aos seus termos (CHAPLIN, 2011).

Por fim, embora exija um pouco mais de desenvolvimento (o que não poderá ser feito neste artigo), é necessário assentar desde o início deste trabalho a rejeição à ideia de que o Protestantismo seria incapaz de desenvolver uma Filosofia (tendo produzido apenas Teologia). Segundo alguns autores, a ênfase na pecaminosidade humana – que afetou a razão humana – e as críticas à filosofia medieval – supostamente baseadas na autonomia da razão – tornaram o protestantismo incapaz de admitir um pensamento filosófico autônomo (GILSON, 2006).

Em verdade, como se pretende apresentar no presente texto, a crítica à filosofia medieval é uma crítica de base filosófica a uma determinada concepção de razão. Nesse sentido, Dooyeweerd desenvolve um trabalho que pode ser considerado filosófico, no entanto não pretende autonomizar o pensamento teórico em relação ao pensamento religioso. Isso, contudo, não deve retirar o caráter filosófico de sua obra.

Dessa forma, o presente artigo busca analisar as contribuições do pensamento de Dooyeweerd sobre a definição de soberania das esferas para a compreensão sobre a autoridade do Estado e seus limites. Para buscar este objetivo, em primeiro lugar será apresentada uma síntese da posição filosófica do autor e seu contexto geral. Em seguida, será analisado o conceito de soberania das esferas propriamente dito. Por fim, se objetiva inserir o referido conceito no debate com outros teóricos. Por meio de uma pesquisa bibliográfica será realizada uma investigação histórico-filosófica, buscando compreender a influência histórica e os conceitos desenvolvidos na referida tradição.

Contextualizando Dooyeweerd

Antes de analisar a ideia de soberania em Dooyeweerd, é necessário compreender as teses centrais de seu pensamento e que são determinantes para suas conclusões sobre a diversidade de esferas e limites à soberania do Estado.

As esferas temporal e espiritual

Com o desenrolar da Reforma Protestante (século XVI), um dos desafios apresentados aos dissidentes foi sobre o tipo de relação que a esfera eclesiástica deveria manter com a esfera civil. Afinal, se em países de influência Católica Romana havia perseguição aos Protestantes, nos países nos quais a Reforma se afirmou como força hegemônica havia o potencial de igual perseguição aos Católicos Romanos (RAMOS; FREIRE, 2014).

Dessa forma, deve ser observado que a prática protestante pode ser dividida entre grupos que reconhecem a relação entre a esfera religiosa e a esfera política e grupos que rejeitam ao máximo a participação política. Essa cisão protestante pode ser vista claramente no conflito entre Luteranos e Anabatistas. Enquanto Lutero defendia a possibilidade de uma coexistência entre a liberdade cristã e a submissão à autoridade política, os Anabatistas ansiavam pelo fim de autoridades políticas e recusavam-se a ter parte nelas – promovendo revoltas camponesas por toda a Europa ao longo do primeiro século da Modernidade (REEVES, 2016).

No entanto, no âmbito da filosofia cristã propriamente dita (católica, protestante ou ortodoxa), em geral se reconhece essa relação, sendo assumida uma das seguintes posições sobre a relação entre poder temporal e poder espiritual: (i) a esfera religiosa detém a autoridade política, (ii) o governo civil detém a autoridade eclesiástica, ou (iii) a igreja detém a autoridade eclesiástica e o governo a autoridade política (RAMOS; FREIRE, 2014).

A posição mais influente entre os protestantes neste ponto é baseada na distinção luterana entre a Lei e o Evangelho e, consequentemente, na tese dos dois reinos. Na concepção luterana, o ser humano está sujeito a dois domínios, o espiritual e o secular. O domínio secular busca manter a paz externamente com base na lei (que inclui a lei humana e a lei natural), enquanto o domínio espiritual busca tornar as pessoas piedosas com base no evangelho (LUTERO, 1523/1997; SCHNEEWIND, 2001).

Essa concepção, segundo alguns autores, acarretou uma secularização crescente, na qual embora os reinos se apoiem mutuamente, não mantêm uma grande relação (GEORGE, 1993, p. 102). Na verdade, ocorre uma distinção radical entre reino temporal e reino espiritual, sendo admissíveis, por um lado, uma religião oficial do Estado e, por outro lado, o apoio a governos absolutistas (RAMOS; FREIRE, 2014). Em resposta a concepções desse tipo, o movimento protestante holandês tentou apresentar uma via alternativa.

Nesse aspecto, a tradição filosófica que está sendo objeto de pesquisa no presente trabalho está inserida naquela terceira categoria – que mantém a distinção entre esfera eclesiástica e esfera civil –, tendo relevância exatamente por buscar delimitar o campo do governo civil. E mais, busca delimitar a esfera do governo civil não somente em face da autoridade eclesiástica, mas em face de outras instituições não religiosas. Isso, sem implicar uma ruptura ou isolamento das esferas da realidade.

Por isso, a preocupação central dos integrantes do protestantismo holandês (Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd, especialmente) é encontrar o ponto de interligação entre essas diversas esferas. No caso, a preocupação central de Dooyeweerd, nesse sentido, é “reencontrar a ligação perdida entre o pensamento teórico e a religião” (CARVALHO, 2010, p. 6). Não rejeita a Filosofia, porém também não defende sua autonomia teórica. Essa é uma das chaves para a compreensão do problema.

O pensamento teórico e o motivo religioso básico

A preocupação central de Dooyeweerd ao refletir sobre o pensamento teórico (filosófico ou científico) é sobre a pretensa neutralidade religiosa das teorias. Nesse sentido, sua oposição confronta concepções filosóficas que defendem a possibilidade de a razão teórica possibilitar um acesso privilegiado à realidade ao ser capaz de se evadir de compromissos extrateóricos, como pressuposições culturais, sociais ou religiosas. Essa falsa neutralidade seria a razão da insolubilidade das divergências teóricas entre as diversas escolas de pensamento (CARVALHO, 2010, p. 28).

Nessa perspectiva, o conceito central na filosofia de Dooyeweerd é a “ideia cosmonômica”. A seu ver, toda filosofia baseia-se em ideias fundamentais sobre a realidade (cosmos) e seu funcionamento (nomos). Cada concepção teórica – principalmente filosófica, mas nada impede que as concepções científicas também sejam afetas por esse condicionamento – está sustentada por um conjunto de pressupostos sobre a realidade analisada. Portanto, o pensamento teórico encontra-se condicionado (a esta “ideia cosmonômica”) e, portanto, incapaz de uma completa neutralidade (DOOYEWEERD, 2010, 2018).

Em primeiro lugar, o pensamento teórico precisa compreender-se como parcial e, portanto, insuficiente para expressar a totalidade da realidade. O pensamento teórico, a fim de tornar a realidade lógica e cientificamente cognoscível, somente apreende um aspecto da realidade e não ela integralmente (RAMOS; FREIRE, 2014). Por exemplo, ao analisar um copo de água, um biólogo e um químico somente conseguiriam apreender um aspecto dessa realidade (DOOYEWEERD, 2010, p. 191). Aplicando o exemplo às relações humanas, um mesmo fato social será analisado de uma forma pela Sociologia e de outra forma pela Filosofia Moral. Por consequência, nenhum campo do pensamento teórico pode buscar afirmar-se como a explicação completa ou final da realidade – caso contrário, incorreria em um reducionismo.

Dooyeweerd destaca, então, o que denomina de “aspectos modais” – aspectos irredutíveis da realidade e que se encontram em uma interpenetração mútua (DOOYEWEERD, 2010). Embora seja uma lista aberta, ele identifica aspectos relacionados à natureza em geral (incluindo coisas, plantas e animais) e ao ser humano em particular. Seriam eles: numérico, espacial, cinemático (movimento), físico-químico, biótico, sensitivo, lógico, histórico, simbólico (linguístico), social, econômico, estético, jurídico, ético e pístico1(DOOYEWEERD, 2010, p. 55).

Esses aspectos não dizem respeito a eventos concretos – que incluem vários ou todos esses aspectos –, e sim ao “modo” como experimentamos esses eventos. Uma vez que o pensamento teórico se move no “horizonte temporal da experiência humana” (DOOYEWEERD, 2010, p. 54), a limitação do pensamento teórico pelos aspectos modais impede a redução da realidade a um ou alguns deles, uma vez que eles são irredutíveis entre si.

Dessa primeira limitação do pensamento teórico, Dooyeweerd conclui a necessidade da Filosofia e, ao mesmo tempo, sua relação com o “motivo religioso”. Afinal, “apenas a Filosofia pode fazer dessa pressuposição [de limitação dos aspectos modais] um problema teórico” (DOOYEWEERD, 2010, p. 57). Ao mesmo tempo, a coerência das diversas partes ou aspectos do pensamento teórico depende de um motivo suprateórico, um “motivo religioso”.

Reconhecendo isso, Dooyeweerd (2015) defende abertamente que o motivo religioso mais adequado ao pensamento teórico seja o motivo religioso cristão – voltaremos a esse ponto. No entanto, sua concepção explicaria qualquer concepção teórica, pois toda teoria precisa de um motivo religioso que dê sentido e coerência aos diversos aspectos da realidade. Sem esse elemento suprateórico o pensamento teórico (científico ou filosófico) seria inviável, o que nos leva à segunda condição desse pensamento.

Em segundo lugar, o pensamento teórico também necessita de um ponto arquimediano, um ponto fixo sobre o qual fundamente seu suporte último. Considerando a posição segundo a qual o pensamento teórico coloca todos os juízos em dúvida e sua única certeza é que nada é certo, de forma a questionar os juízos para produzir o verdadeiro conhecimento, é necessário um juízo não sujeito a essas dúvidas (DESCARTES, 2008, meditações I e II).

No entanto, para Dooyeweerd, por tal ponto estar fora das dúvidas levantadas pelo pensamento teórico, ele não pode estar localizado dentro da própria filosofia. Esse ponto está localizado na dimensão suprateórica e a confiança incondicional em sua certeza é um ato religioso. Afinal, para Dooyeweerd a confiança incondicional está relacionada ao aspecto da fé. Por exemplo, a confiança incondicional de Descartes em seu método racional seria um tipo de ato religioso (KALSBEEK, 2015).

Assim, como a Filosofia é teórica, ela mesmo depende de um ponto de partida absoluto – que se encontra na esfera da religião. “A filosofia é teórica, e na sua constituição ela permanece ligada à relatividade de todo pensamento humano. Como tal, a própria filosofia necessita de um ponto de partida absoluto. E esse ponto advém exclusivamente da religião” (DOOYEWEERD, 2015, p. 21). Afinal, uma vez que pensamento teórico é essencialmente relativo, o absoluto existe apenas na religião (na esfera da fé ou crença).

Em terceiro lugar, o pensamento teórico precisa identificar a arché da realidade. Isto é, toda filosofia precisa identificar a origem da realidade (conhecida ou cognoscível). Por exemplo, para concepções definidas como humanistas por Dooyeweerd, a origem é o próprio pensamento humano. O pensamento teórico será impactado conforme a definição dessa origem é estabelecida. Para o autor, a origem da realidade é a condição de criação divina.

Esse terceiro ponto explicaria o motivo pelo qual concepções filosóficas teístas diferem profundamente de concepções filosóficas indiferentes a uma causa primeira (que poderiam ser definidas como agnósticas, em sentido amplo) e de concepções que negam um motor imóvel da realidade (concepções ateístas). Como exemplo mais próximo, podemos citar John Finnis (2007, p. 253 et seq.), o qual se questiona sobre as razões últimas e conclui por uma filosofia teísta. Embora não seja sua preocupação central, esse seria um ponto determinante para sua concepção filosófica à luz de Dooyeweerd.

Por isso, Dooyeweerd rejeita uma separação radical entre Filosofia e Teologia (que não se confunde com a religião), nos moldes defendidos pelo tomismo, mas mantém a diferenciação entre esses saberes (DOOYEWEERD, 2010, p. 195 et seq.). O objeto da Filosofia e da Teologia é efetivamente distinto, tendo a primeira o objetivo de apresentar “uma visão teórica total de nosso horizonte temporal da experiência”, e a segunda dedica-se, também de forma teórica, ao aspecto da fé e da Revelação (DOOYEWEERD, 2010, p. 192).

Sendo assim, o ponto de partida do pensamento humano e das concepções teóricas em geral não é a razão, mas sim o “coração” (termo de Dooyeweerd), isto é, o núcleo religioso do ser humano que o direciona à origem de tudo (CARVALHO, 2010, p. 24). Outro termo possível seria “self” (KALSBEEK, 2015). Essa conclusão é possivelmente a que mais distingue Dooyeweerd dos filósofos ocidentais em geral.

As opções religiosas concorrentes

Com base nesses pressupostos, Dooyeweerd diferencia as concepções religiosas pagã (isto é, greco-romana), secular (ou humanista), católica e protestante (DOOYEWEERD, 2015). A seu ver, tais concepções são distintas, pois estão baseadas em concepções distintas sobre a “ideia cosmonômica”, sobre a realidade e sua lei. Isso, pois partem de “motivos religiosos” radicalmente distintos. E, cada um desses centros religiosos determina a maneira de viver da sociedade e sua visão de mundo (DOOYEWEERD, 2015, p. 22).

Na concepção greco-romana, o motivo religioso básico era a “forma-matéria”. Essa concepção era baseada em uma tensão entre a matéria e a forma. A matéria estava relacionada a um fluxo vital que se repete incessantemente, no qual tudo tende a perecer. Por outro lado, a forma representava a harmonia e o ideal – sendo deificada (DOOYEWEERD, 2015, p. 29 et seq.). É com base nessa tensão que se desenvolve a concepção grega de natureza e sociedade humanas e sua construção teórica (DOOYEWEERD, 2010, p. 93).

Por outro lado, a concepção católico-romana está baseada no motivo “natureza-graça”. Esse motivo seria uma apropriação cristã do motivo greco-romano (DOOYEWEERD, 2015, p. 130 et seq.). De base tomista, sua implicação era a exclusão da influência integral e radical do motivo bíblico na filosofia. Tal concepção “implicou a distinção entre uma esfera natural e outra sobrenatural de pensamento e ação” (DOOYEWEERD, 2010, p. 96).

Já o motivo básico cristão-protestante seria a “criação-queda-redenção”. Em primeiro lugar, o significado do mundo temporal encontra-se integralmente concentrado na unidade do ser humano como criatura. Por isso, a vida humana está direcionada para uma origem absoluta. Assim, a única forma do homem alcançar um conhecimento verdadeiro de si mesmo é por meio de um relacionamento autêntico e fundamental com o Criador. No entanto, em razão da queda, ninguém mais pode conhecer verdadeiramente o Criador e, consequentemente, ninguém é capaz de alcançar o verdadeiro autoconhecimento. Mesmo assim, o homem continuará buscando uma relação com o absoluto (DOOYEWEERD, 2015, p. 43 et seq.). Essa relação, contudo, se dá por meio da redenção expressa na Revelação (DOOYEWEERD, 2010, p. 95).

Por fim, o motivo básico moderno e humanista é a “natureza-liberdade”. Por um lado, o motivo da liberdade está assentado em um ideal em que a personalidade é pensada como absoluta em si mesmo e vista como única governante de si mesma e do mundo. A ideia de “criaturidade” humana (consciente de sua finitude e limitação) foi substituída por uma liberdade baseada na própria vontade autônoma. Por outro lado, foi gerada uma nova ideia de natureza, na qual o homem moderno buscou possibilidades infinitas de satisfazer sua criatividade. Se num primeiro momento essa natureza foi deificada, em um segundo momento foi depreciada. Assim, a liberdade culmina na absolutização de um dos aspectos modais, seja o aspecto numérico, biótico, ético, sentimental e assim por diante (DOOYEWEERD, 2010, p. 97 et seq.).

Observe-se que, em razão da natureza religiosa de fundo dessas concepções, entre elas existem linhas de demarcação e diferenças cruciais que não são negociáveis (KRAAY, 2015). O argumento de Dooyeweerd é que, ao fundo, a incomensurabilidade (embora ele mesmo não utilize esse termo) das diversas concepções teóricas sobre a realidade decorre do fato de que a raiz dessas concepções é religiosa – e, portanto, não sujeita a negociações pura e simples.

Por outro lado, esses motivos religiosos básicos constituem as chaves hermenêuticas para o entendimento e interpretação da história, da cultura e da ação humana em âmbito social ou individual. E, seria por meio de uma autorreflexão e autocrítica conscientes desses motivos religiosos de fundo que se tornaria possível um diálogo aberto entre participantes de convicções divergentes (KRAAY, 2015). Enquanto, por outro lado, houver a tentativa de se sustentar um paradigma de neutralidade religiosa do pensamento teórico, esse diálogo filosófico genuíno estará impossibilitado (CARVALHO, 2010).

É importante contextualizar este argumento de Dooyeweerd. Ao final da II Guerra Mundial surgiu na Holanda o chamado Movimento Nacional Holandês, que tinha como objetivo reunir forças para o esforço da reconstrução social e cultural do país. O Movimento propunha a superação da divisão entre propostas de base cristã (inspiradas em Van Prinsterer e Kuyper) e propostas assentadas na luta de classes marxista. A essa proposta Dooyeweerd respondeu que a negação da base religiosa das propostas não possibilita um diálogo autêntico, mas tão somente um monólogo entre os participantes (DOOYEWEERD, 2015, p. 17).

“A comunicação verdadeiramente proveitosa só é possível quando ambos os pontos de vista se desenvolvem conjuntamente e quando ambos os lados procuram penetrar na raiz de suas diferenças” (DOOYEWEERD, 2015, p. 17). Somente quando os pontos de partida forem trazidos à luz haverá uma comunicação relevante ao esclarecimento dos princípios em debate.

Em que pese essas colocações possam parecer um caso de relativismo, Dooyeweerd não considera que os diferentes motivos religiosos sejam iguais ou equivalentes entre si. Ao contrário, sua posição caminha no sentido de que, com exceção do motivo religioso cristão, os demais motivos apresentam um princípio destrutivo em seu âmago (KRAAY, 2015).

Nesse aspecto, vale destacar que uma característica importante do pensamento de Dooyeweerd é sua proximidade com a Fenomenologia. Ele não realiza uma distinção entre “aparência” e “coisa em si”, de forma que as características das coisas apreendidas pelo pensamento teórico são reais, objetivas (CARVALHO, 2010, p. 25). Dessa forma, as diferentes concepções não podem ignorar a realidade.

Após esse contexto geral do pensamento de Dooyeweerd, podemos considerar sua compreensão sobre a soberania e sua relação com o Estado.

A soberania das esferas

O conceito de soberania em Dooyeweerd – que representa a tradição protestante holandesa do século XX – está inserido no contexto geral de sua obra. Por isso, os elementos apontados no item anterior são fundamentais para a compreensão da noção de soberania em geral e, especificamente, soberania do Estado.

Segundo o pensamento de Dooyeweerd, a vida em sociedade é tipicamente plural, isto é, formada por diversos aspectos inter-relacionados, porém distintos (DOOYEWEERD, 2015). A partir dessa hipótese inicial, o filósofo passa a questionar se essas diferentes “esferas sociais” derivam uma das outras ou se são irredutíveis entre si. Sua tese é de que existem núcleos irredutíveis (os aspectos modais) com uma autoridade interna e que, portanto, não derivam da autoridade do Estado. Ao contrário, o Estado é apenas uma dessas autoridades que atua dentro do seu núcleo – de justiça pública ou jurídico (DOOYEWEERD, 2014).

Devemos observar, em primeiro lugar, que esse conceito de soberania de esferas de Dooyeweerd é construído com base no conceito delineado inicialmente por Kuyper (1931) – com base, por sua vez, em Calvino, Van Prinsterer e, principalmente, Althusius.

Dessa forma, a posição de Dooyeweerd encontra base em Althusius (jurista protestante do século XVII), segundo o qual toda autoridade terrena é relativa (ou parcial), pois possui autoridade sobre uma determinada “área” da vida. O próprio governo civil é uma dessas autoridades. Por isso, as diversas associações não são partes do governo ou do Estado, pois exercem funções específicas e próprias. A preocupação de Althusius era definir os limites da autoridade do Estado para, assim, definir as condições e limites para a resistência civil durante a Revolta Holandesa (RAMOS; FREIRE, 2014).

Por sua vez, e mais próximo, Dooyeweerd desenvolve o pensamento de Abraham Kuyper, um dos grandes líderes do movimento protestante holandês nos séculos XIX e XX. Segundo Kuyper (1931, p. 90), existem esferas sociais (como a família, as empresas, a ciência, a arte, entre outras) que não devem sua existência ao Estado e, portanto, cuja autoridade e lei interna não decorrem da superioridade do Estado.

Dooyeweerd desenvolve esse conceito em termos filosóficos. Assim, vai relacionar as diferentes “entidades” – as quais denomina de forma mais geral de “todo estrutural”, podendo se aplicar a coisas, plantas, animais ou empreendimentos humanos – a determinadas funções principais que as caracterizam – também chamada de “função de destinação”, “função guia”, “função qualificante” ou “função fim”. Essas funções são definidas com base nos aspectos modais. Por exemplo, a função de destinação do Estado é a jurídica, a da família é a ética, a da empresa é a econômica e assim por diante (KALSBEEK, 2015).

Como visto, a realidade concreta não está limitada a um único aspecto modal, pelo contrário, em geral envolve vários ou todos eles. No entanto, o argumento de Dooyeweerd é que cada todo estrutural possui uma função central que o caracteriza (“função de destinação”) e que dirige as demais funções que o compõe. Essa função não se confunde com o aspecto modal que deu origem ao todo estrutural (o qual ele denomina de “função fundante” ou “função base”). Por exemplo, o aspecto modal que origina o Estado é o histórico, embora sua função qualificante não seja essa (KALSBEEK, 2015).

É com base na pluralidade e irredutibilidade dos aspectos modais que qualificam os todos estruturais que Dooyeweerd defende a impossibilidade de um deles avocar para si a autoridade de outro todo estrutural. A autoridade é sempre parcial e limitada à função guia de sua esfera, do todo estrutural do qual faz parte.

Os motivos religiosos básicos apontados anteriormente têm uma forte relação com essa concepção de soberania. A base dessa harmonia entre os diferentes todos estruturais – especialmente entre as associações humanas – seria a concepção cristã. Afinal, segundo a concepção cristã nenhuma esfera social singular pode abarcar a totalidade da vida humana, de forma que cada esfera da sociedade tem uma tarefa e competência específicas e que são limitadas pela natureza intrínseca de cada uma delas, sendo que cada uma dessas esferas deve respeitar-se mutuamente em seus relacionamentos (DOOYEWEERD, 2015, p. 36).

Por outro lado, a concepção grega assentada na tensão entre matéria e forma relacionava a forma (divina e racional) do homem à sua participação da polis enquanto cidadão ativo e livre. Portanto, o homem como um todo precisava prestar lealdade à cidade-estado – sequer possuía garantias contra o corpo político. Por isso, essa feição de Estado era basicamente totalitária, buscando submeter a integralidade da realidade à sua autoridade, rompendo com a harmonia entre diferentes associações (DOOYEWEERD, 2015, p. 36).

Essa exigência de harmonia entre as diferentes esferas sociais é fundamental em um contexto de pluralidade. A diversidade presente na realidade – que é formada por diversos todos estruturais, cada qual com uma função específica – implica que a soberania não seja absoluta.

O conceito de soberania em Dooyeweerd deve ser analisado considerando-se ainda sua oposição à ideia de lei enquanto autonomia. Para ele, a lei não está fora do ser humano, pois encontra-se na sua própria estrutura e propósito, mas não reside em sua vontade – tratar-se-ia de uma norma heterônoma. Para ele, uma vontade autônoma seria uma vontade divina (CARVALHO, 2010, p. 20).

Em relação especificamente ao Estado, um aspecto importante na sua definição e autoridade é a ideia de “queda” defendida por Dooyeweerd. Por um lado, em razão do potencial humano de causar dano ao próximo, é necessário que o Estado exerça sua autoridade de forma a garantir a preservação de homens e mulheres. Por outro lado, há um potencial deletério do poder do Estado para a liberdade pessoal (RAMOS; FREIRE, 2014).

Um argumento relevante de Kuyper (1931, p. 82) – pressuposto por Dooyeweerd – é de que “a autoridade sobre os homens não pode surgir dos homens”. Essa autoridade tem origem em Deus, se manifesta na realidade e pode ser apreendida historicamente. Podemos concluir, então, que a vontade humana – mesmo por meio da vontade do Estado – não pode suprimir essa diversidade de autoridades sem afetar gravemente o bem-estar da sociedade (RAMOS; FREIRE, 2014).

Esse conceito tem implicações normativas. “O Estado deve abster-se de governar famílias, empresas, universidade e igrejas, por exemplo” (RAMOS; FREIRE, 2014, p. 21). Caso contrário, essas associações terão suas funções originais distorcidas e passarão a ser um instrumento do poder público.

Essa necessidade de respeito mútuo entre as esferas não impede por completo a atuação do Estado, que teria o direito e o dever de agir em três circunstâncias: (i) para intervir quando esferas distintas entram em conflito e ameaçam a separação entre elas; (ii) para combater o abuso de poder dentro das esferas; e, (iii) para garantir a unidade do próprio Estado pela imposição de obrigações aos governados (RAMOS; FREIRE, 2014).

Vale ressaltar, ainda, que o Estado não pode ser sustentado como o centro das diferentes esferas sociais, segundo essa tradição, pois a natureza irredutível dos aspectos modais exige que o centro de conexão delas seja um centro absoluto, de caráter religioso. Ou seja, o Estado teria que se colocar em uma condição quase-divina para reclamar autoridade sobre esferas da sociedade que têm estruturas irredutíveis (DOOYEWEERD, 2010). Como essa pluralidade de esferas é está presente na própria realidade, então o Estado não pode reivindicar soberania exclusiva sem cair em um reducionismo e ultrapassar sua finalidade (RAMOS; FREIRE, 2014).

Por fim, é interessante observar que a experiência revolucionária que a Holanda experimentou no século XVI conduziu a um entendimento baseado em uma concepção pluralista das associações diversas – no caminho contrário às tendências absolutistas do restante da Europa (RAMOS; FREIRE, 2014).

Tendo em mente a construção apresentada por Dooyeweerd, é necessário situá-lo no debate filosófico mais amplo sobre o conceito de soberania.

Algumas perspectivas

Para que a compreensão do pensamento de Dooyeweerd seja adequada, é importante contextualizar seu debate e perceber como suas posições caminham em conjunto ou se opõem a outras posições teóricas já conhecidas.

Em primeiro lugar, embora ele mesmo não detalhe de forma específica os autores com quem debate, é recorrente em sua obra a oposição ao denominado pensamento humanista e revolucionário encampado pela Revolução Francesa. Aliás, o partido político por meio do qual Kuyper tornou-se Primeiro-Ministro era o Partido Antirrevolucionário.

Nesse sentido, suas críticas ao humanismo moderno podem ser aplicadas ao contratualismo de Hobbes, Locke e Rousseau – embora estes autores tenham posicionamentos distintos. Em primeiro lugar, Dooyeweerd rejeita a postura dogmática de renascentistas e iluministas que separa, com base na suposta autonomiza da razão, o pensamento teórico de suas bases pré-teóricas (FREIRE, 2013).

Em realidade, esse ideal de autonomia é muito mais amplo dentro do humanismo moderno. Para Dooyeweerd, os autores humanistas (clássicos), assentados no dualismo liberdade-natureza, sustentam um ideal de liberdade baseado em um ideal de controle da natureza – que pressupõe um modelo mecanicista de mundo (DOOYEWEERD, 2015). No entanto, esse dualismo acaba sendo uma armadilha, por contrariar a pretensão de autonomia humana.

Segundo Freire (2013, p. 38), é com base nessa relação liberdade-controle que se desenvolvem algumas teorias modernas de soberania. O ideal de controle é transpassado da natureza para a dimensão política do Estado. Em Bodin (2011) e Hobbes (1993), por exemplo, a liberdade humana pressupõe um controle sustentado por uma soberania centralizada e indivisível. A reconciliação desse controle com o ideal de liberdade da personalidade se dá por meio do conceito de contrato social. Dessa forma, o contratualismo em geral seria uma concepção baseada no humanismo moderno e em sua pretensão de autonomia e liberdade humana.

É importante descartar que a Holanda passou por uma revolução antes da França (ISRAEL, 1995, p. 179 et seq.). No entanto, o debate central do protestantismo holandês se dá com o pensamento revolucionário francês, que é considerado por Dooyeweerd o grande exemplo do humanismo moderno. Ao contrário da Revolução Francesa, a Revolução (ou revolta) Holandesa foi guiada por uma base protestante que retratou esse entendimento pluralista acerca da natureza das associações diversas (RAMOS; FREIRE, 2014).

Outra concepção que possui semelhanças – ainda pouco exploradas – com o pensamento aqui analisado seriam as teorias sociais de base funcionalista. Embora Dooyeweerd não chegue a dialogar amplamente com autores funcionalistas, é possível identificar algumas diferenças entre suas concepções. Segundo McIntire (1985), Dooyeweerd até chega a mencionar pontualmente Durkheim e Spencer, sociólogos funcionalistas, em uma de suas obras.2 No entanto, a menção seria em sua análise do processo histórico e não sobre a questão da diferença entres os sistemas.

Em primeiro lugar, as concepções funcionalistas voltam-se à dimensão social da realidade, enquanto a concepção de Dooyeweerd se aplica à realidade como um tudo. Não apenas elementos sociais estão relacionados aos aspectos modais, como também elementos naturais (DOOYEWEERD, 2010, p. 55). Ou seja, a concepção de Dooyeweerd sobre esferas não está limitada a associações societais apenas.

Em segundo lugar, a crítica usual ao funcionalismo sustenta que algumas funções menos importantes poderiam acabar sendo prejudicadas. No entanto, considerando a tese de Dooyeweerd da irredutibilidade dos aspectos modais, isso não é possível sem um comprometimento da realidade criada.

Em terceiro lugar, a concepção de Dooyeweerd não pressupõe a sociedade como um tipo de organismo vivo formado por partes menores que exercem diferentes funções. Ao contrário, sua concepção rejeita uma relação entre os todos estruturais na forma “todo-parte”. Cada entre é apenas parte, pois seu caráter completo encontra-se fora da dimensão temporal.

Por fim, ainda na tarefa de integrar Dooyeweerd às concepções existentes, destaque-se que sua ideia de soberania tem uma distinção fundamental para o já conhecido princípio da subsidiariedade. Enquanto a subsidiariedade propõe um corte vertical, segundo o qual o Estado – enquanto instituição mais geral – não deve absorver as atribuições que podem ser exercidas por instituições menores, a soberania das esferas sustenta um corte horizontal, em que a soberania do Estado não alcança esferas com atribuições distintas das suas. Enquanto na subsidiariedade podemos falar em soberania (estatal) e competência ou autonomia (das comunidades menores), na posição holandesa há que se falar em soberanias – do Estado e das outras esferas (WEINBERGER, 2014).

Por fim, é importante perceber as limitações da concepção exposta por Dooyeweerd. Ele objetiva analisar o desenvolvimento cultural do Ocidente e, por isso, seus conceitos devem ser analisados dentro de certa tradição filosófica. É possível, efetivamente, que seus conceitos sejam aplicados a sociedades não-ocidentais, como outros autores já começaram a pesquisar (HARVEY, 2016). No entanto, essa restrição não deve ser desconsiderada na pesquisa sobre a soberania das esferas e a ideia cosmonômica.

Considerações finais

Tendo em vista os pontos apresentados, podemos concluir que a concepção de Dooyeweerd tem muito a contribuir no debate filosófico em geral e, especificamente, no debate sobre um conceito de soberania estatal adequado a uma sociedade pluralista e a uma noção de Estado de Direito.

Em nossa concepção atual de Estado, a autoridade do governo não deve eliminar o autodomínio individual. Por isso, a Constituição tem, por um lado, o papel de preservar a autoridade do povo enquanto detentor do poder e, por outro lado, a atribuição de preservar o autodomínio dos diversos grupos contra os avanços de caráter totalitário do Estado. No entanto, como identificado por Dooyeweerd, a relação controle-liberdade constitui um dilema. Temos, então, uma contribuição central deste autor.

Nesse sentido, a partir de Dooyeweerd é possível sustentar uma das principais finalidades do constitucionalismo democrático, a de preservar a autoridade do Estado sem legitimar uma intervenção arbitrária na esfera do autodomínio individual. Por um lado, sua teoria justifica a existência do Estado e sua autoridade; por outro lado, consegue limitar este poder, protegendo a diversidade identificável na estrutura social. Em outros termos, a soberania das esferas é um conceito que precisa ser considerado ao se discutir o Estado de Direito.

Um ponto que não foi intencionalmente abordado no presente trabalho diz respeito às implicações da violação da soberania das esferas pelo Estado. De outra forma, em que medida a usurpação de outras autoridades pela autoridade do Estado autoriza a resistência civil. No entanto, este problema exigiria uma outra análise que foge ao escopo da presente pesquisa. Antecipe-se, em todo caso, que esse é um tema central nos autores investigados.

Referências

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Notas

1 Do grego: pistis [πισί], referente a convicção ou fé.
2 Obra não localizada nesta pesquisa.

Notas de autor

* Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Professor no Centro Universitário FIBRA e na Faculdade FACI WYDEN. E-mail: elden.borges@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/0097457768160631. http://orcid.org/0000-0002-1089-8905
** Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Graduado em Direito no Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: vvspinheiro@yahoo.com.br. http://lattes.cnpq.br/0416222855469529. http://orcid.org/0000-0003-1908-9618

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