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Pós-verdade e adensamento social: o jogo político em torno do a-sujeitamento na contemporaneidade
Frederico Osanan Amorim Lima
Frederico Osanan Amorim Lima
Pós-verdade e adensamento social: o jogo político em torno do a-sujeitamento na contemporaneidade
Posverdad y densidad social: el juego político en torno al sometimiento del individuo en la Edad Contemporánea
Post-truth and social densification: the political game surrounding modern subjugation
Post-vérité et densification sociale : le jeu politique autour de l’assujettissement dans le monde contemporain
后真相与社会强化:当代围绕去主体性的政治游戏
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 13, núm. 1, pp. 148-167, 2021
Universidade Federal Fluminense
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Resumo: Este artigo se debruça sobre um tema que é recorrente na análise política contemporânea: a verdade em tempos de falsificação da realidade. O principal substrato teórico de estudo é a filosofia foucaultiana, especialmente tendo em vista sua inquirição sobre a dinâmica e o funcionamento do poder e, ao mesmo tempo, sua percepção de que o poder sofre metamorfoses. No nosso presente, configurado em termos de uma condição histórica em que a verdade é manietada ao sabor dos interesses individuais e o comportamento passa a ser monetarizado e disciplinado pelo aparecimento do indivíduo em redes sociais, a figura do pensante evanesce e concede lugar ao replicante. Nesta condição, de favorecimento do replicante, submerge o pensamento crítico e o “pensar” parece um gesto démodê, crescentemente em desuso. No corpo deste indivíduo, conceituado aqui como replicante, está inscrito, portanto, uma das marcas mais significativas do poder na Pós-verdade.

Palavras-chave: História, falso e verdadeiro, poder, comportamento.

Resumen: Este artículo examina un tema recurrente en el análisis político moderno: la verdad en tiempos de falsificación de la realidad. El principal substrato teórico de estudio es la filosofía foucaultiana, especialmente teniendo en cuenta su examen de la dinámica y el funcionamiento del poder y, al mismo tiempo, su percepción de que el poder sufre metamorfosis. En el momento presente, configurado en términos de una condición histórica en la que la verdad está supeditada al sabor de los intereses individuales y el comportamiento pasa a monetarizarse y regirse por la aparición del individuo en redes sociales, la figura del pensante evanesce y concede espacio al replicante. En esta condición de favorecimiento del replicante, oculta el pensamiento crítico y «pensar» parece un gesto démodê cada vez más en desuso. En el cuerpo de este individuo, conceptuado aquí como replicante, está inscrita, por tanto, una de las marcas más significativas del poder en la posverdad.

Palabras clave: Historia, falso y verdadero, poder, sometimiento.

Abstract: The following article considers a recurrent topic in contemporary political analysis: what is truth in times when reality is faked? The main theoretical basis of study is Foucault’s philosophy, particularly in light of his inquiry into the dynamics and functioning of power, along with his observation that power undergoes metamorphoses. In our present times, configured in terms of a historical condition in which truth has come to reflect individual interests and behavior has been monetized and disciplined by the appearance of the individual in social networks, the figure of the thinker is weakened to give way to the replicant. In such conditions (favoring the replicant), critical thinking is submerged and “thought” appears as an outdated gesture, falling increasingly into disuse. It is therefore the body of this individual – conceptualized here as the replicant – that represents one of the most significant marks of power in the post-truth era.

Keywords: History, false and true, power, subjugation.

Résumé: Cet article se penche sur un thème récurrent de l’analyse politique contemporaine : la vérité en temps de falsification de la réalité. Le principal substrat théorique de cette étude est la philosophie foucaldienne, et plus spécifiquement ses analyses de la dynamique et du fonctionnement du pouvoir, ainsi que sa perception de ce que le pouvoir subit des métamorphoses. À notre époque, configurée par des conditions historiques où la vérité est manipulée par divers intérêts particuliers et où les comportements deviennent monétisés et conditionnés par les apparitions des individus sur les réseaux sociaux, la figure du pensant s’évapore et cède la place au réplicant. Dans ce contexte favorable au réplicant, qui submerge la pensée critique, le fait de « penser » apparaît comme un geste démodé toujours plus marginal. Dans le corps de cet individu, ici conceptualisé comme réplicant, s’inscrit donc l’une des marques les plus significatives du pouvoir au sein de la post-vérité.

Mots clés: Histoire, vrai et faux, pouvoir, assujettissement.

摘要: 本文探讨当代政治分析中经常出现的一个主题:伪现实时代的真相。作者讨论的是福柯的哲学论著,特别是他对权力的运转机制和功能的探究,以及他对权力的蜕变的看法。在我们当前的时代,在特定历史条件下,真理受个人利益的绑架,在社交网络中,个人行为被货币化并受到规训。在社交中,我们看到思想家的消失,思想被复制品所取代。 在这种情况下,复制品大行其道,批判性思维被淹没,“思考”已经变成一种脱离时尚的行为,越来越不被重视。在个体身上,复制品也被深深刻入,这是后真理时代的权力强化的最重要的标志。

關鍵詞: 历史, 虚假和真实, 权力, 去主体性.

Carátula del artículo

Artigos

Pós-verdade e adensamento social: o jogo político em torno do a-sujeitamento na contemporaneidade

Posverdad y densidad social: el juego político en torno al sometimiento del individuo en la Edad Contemporánea

Post-truth and social densification: the political game surrounding modern subjugation

Post-vérité et densification sociale : le jeu politique autour de l’assujettissement dans le monde contemporain

后真相与社会强化:当代围绕去主体性的政治游戏

Frederico Osanan Amorim Lima*
Universidade Federal do Piauí, Brasil
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 13, núm. 1, pp. 148-167, 2021
Universidade Federal Fluminense

Recepción: 09 Junio 2020

Aprobación: 23 Noviembre 2020

Introdução
Excerto 1

Inspirados no presidente tuiteiro, os deputados do PSL passaram a sessão nas redes. Com o celular em punho, muitos pareciam falar sozinhos. Faziam transmissões ao vivo no Facebook, no Instagram e no YouTube. Nos intervalos, aproveitavam para compartilhar memes e correntes de WhatsApp. [...] O ex-nadador Luiz Lima, um dos novatos que surfaram a onda bolsonarista, diz que o uso massivo das redes é parte inseparável da “nova política”. “O eleitor quer saber o que a gente está fazendo. Hoje cada um de nós é uma emissora de TV”, teoriza (FRANCO, 2019, par. 4; 7).


Figura 1
A bancada da selfie perdeu e não viu
O Globo (2019)

Excerto 2

A classe artística reagiu com muitas críticas à entrevista em que a secretária especial da Cultura, Regina Duarte, minimizou a ditadura militar brasileira, a tortura praticada no período e as mortes de nomes como o do cantor e compositor Moraes Moreira, do escritor Rubem Fonseca, do compositor Aldir Blanc e do ator Flávio Migliaccio. Artistas de diversas idades e perfis, inclusive ex-colegas de Regina, expressaram indignação nas redes sociais.

Durante a entrevista concedida à CNN, ela ficou irritada quando a emissora mostrou um vídeo enviado pela atriz Maitê Proença pedindo que a secretária apresente soluções para a classe artística em meio à pandemia do novo coronavírus.

“O que você ganha com isso? Quem é você que está desenterrando uma fala da Maitê [Proença] de dois meses atrás? Eu não quero ouvir, ela tem o meu telefone. Eu tinha tanta coisa para falar, vocês estão desenterrando mortos”, disse Regina, colocando fim à entrevista” (PAIXÃO, 2020, par. 1; 3-4).

Excerto 3

O general Eduardo Villas Boas usou as redes sociais na manhã desta sexta-feira (8/5) para parabenizar a secretária de Cultura, Regina Duarte, pela entrevista dada à CNN Brasil. “Fiquei encantado com a Regina pela demonstração de humanismo, grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, segurança, doçura e autoconfiança que nos transmitiu”, escreveu o ex-comandante do Exército.

Ele prosseguiu criticando jornalistas, dizendo que os mesmos fizeram “armadilhas” para a atriz: “Admirei também a habilidade com que desvencilhou das armadilhas que os entrevistadores tentaram colocar a ela, que visivelmente havia se preparado para, numa atitude totalmente desarmada, abordar temas relativos a sua pasta. Apreciei a firmeza com que reagiu à desleal tentativa de confrontá-la com a igualmente artista Maitê Proença” (SOARES, 2020, par. 1-2).

Surfando no caos da pós-verdade: por onde anda o sujeito da História?

As cenas se repetem com exaustiva frequência. Caminhando, sentado, deitado ou, mesmo, dirigindo; em casa, no trabalho, na academia, no shopping center ou no Congresso Nacional brasileiro, é notória a presença do homem com um celular em punho. O que guia o comportamento humano? Diante de quais circunstâncias ele se torna performático? A simbiose homem-smartfhone pôs em xeque o revolucionário conceito do canadense Mashall McLuhan (1964) de que o homem é uma extensão dos meios de comunicação. McLuhan (1964), que dividiu os meios de comunicação em quentes e frios, dada as suas condições de estimular um ou vários sentidos, não conviveu com uma tecnologia capaz de não só estimular ou arrefecer sentidos, mas de produzir cisões sociais em blocos como resultado de compartilhamentos de mentiras, desinformação e deseducação em massa. Uma tecnologia cuja engenharia tornou o homem sensitiva e tecnicamente dependente da máquina. Mas é do próprio teórico da comunicação canadense o alerta para o fato de que “o processo de perturbação resultante de uma nova distribuição de habilidades [tecnológicas] vem acompanhado de muita defasagem cultural” (MCLUHAN, 1964, p. 40). Não teria o próprio homem se desfeito em meio a um ambiente hostil à verdade e que já virtualiza quase tudo? O homem é meio de que mesmo nesse cenário?

Matthew D’Ancona (2018), jornalista inglês, diagnostica nosso tempo como marcado pela emergência da Pós-verdade. Para ele, esse tempo se configura como uma “nova fase de combate político e intelectual” cuja expressão política mais notória é “uma onda populista”, signada a um cenário em que “a racionalidade [é] ameaçada pela emoção; a diversidade, pelo nativismo; a liberdade, por um movimento rumo à autocracia” (D’ANCONA, 2018, p. 19). Nesse espetáculo sensitivo-virtual, em que todos são chamados a participar, “alguém com uma conta no Twitter pode reivindicar ser uma fonte de notícias”, pode emitir opiniões, influenciar ações políticas, derrubar e eleger candidatos e ser uma voz “especialista” em qualquer assunto (D’ANCONA, 2018, p. 59). “Retwittamos, cedemos ao caça-cliques, compartilhamos sem a devida diligência”, tudo isso com consequências que, a depender de quem o faz, influencia as decisões de milhões. “Onde estão as forças que exortam os jovens a exercer suas faculdades críticas enquanto não tiram os olhos de seus smartphones?”, se questiona D’Ancona (2018, p. 79). Eles estão, D’Ancona, exatamente replicando. E, de ambos os lados, para quem twitta e para quem replica, o efeito prático disso pode ser devastador. Quem são os partidários e arquitetos dessa “nova política” e como eles agem? Selfs, lives, twitters, compartilhamentos e curtidas: onde está o sujeito nessa História? Luiz Lima, deputado federal, ex-nadador, personagem no primeiro excerto, pode ter sugerido, na sua fala, um importante componente para entender essa “nova política”. E a sua indicação, de que “cada um de nós é uma emissora de TV”, talvez ganhe mais sentindo numa articulação com Felipe Neto, um dos influenciadores virtuais mais engajados e dotado de um considerável número de seguidores em suas redes sociais.

Felipe Neto chegou a ser celebrado – e celebrou – por atingir a marca de 35 milhões de seguidores no seu canal do Youtube. Comemorou, de forma inusitada para muitos, distribuindo dinheiro (FELIPE..., 2019). Em maio de 2020, seu perfil tinha mais de 11 milhões de seguidores no Twitter, capitaneado por gente como Marcelo Freixo, deputado federal, Mônica Bergamo, jornalista, Ciro Gomes, Manuela d’Ávila e Flávio Dino, cotados como candidatos à presidência do Brasil para as eleições de 2022. Com 32 anos de idade ele é alguém que integra uma nova rede laboral, de ambiente marcadamente virtual, e que vem sendo categorizada com “influenciadores digitais” e/ou “youtubers”.

Em Maio de 2020, no meio da maior crise sanitária recente da História do Brasil, assistimos em casa, dada a necessidade de nosso isolamento social, ao esfacelamento de muitas das nossas instituições democráticas; assistimos, também, à política tradicional reconhecer abertamente o papel que as mídias sociais e seus influenciadores têm no jogo político. Depois de criticar o governo do presidente Jair Bolsonaro pela sua postura diante da pandemia do novo coronavírus, o influenciador Felipe Neto reconheceu o papel que a emoção comporta no campo político da Pós-verdade. Foi quase um salvo-conduto que o permitiu justificar ações inexperientes no passado e transitar, agora, por um ambiente de descrentes e frustrados com o que foi vendido como uma “nova política”. Seu comportamento – e aqueles decorrentes do caso de Regina Duarte, exposto no segundo excerto – me permitiu lançar uma pergunta: a quais interesses servem a percepção e construção dos fatos? Além disso, foi significativo perceber como políticos de longa trajetória se manifestaram diante de fenômenos como youtubers, e congêneres, e de suas postagens:

Em seu perfil do Twitter, o influenciador Felipe Neto respondeu as críticas após expor seu posicionamento político atual. O youtuber reiterou as críticas ao governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e ressaltou que não se tornou petista, “mas estudei mais a fundo e aprendi muita coisa”. Com a declaração, Neto ganhou o apoio de Ciro Gomes (PDT) (CIRO..., 2020, par. 1).

O apoio de Ciro Gomes (PDT), candidato à presidência do Brasil em três pleitos, notabilizou essa interface político-influenciador e o desdobramento desse apoio é um contumaz convite a pensar na solidez dessa aliança: na semana seguinte ao comentário de Ciro Gomes, no Twitter, Felipe Neto foi o entrevistado do tradicional programa Roda Viva, da TV Cultura; ardilosamente, durante a entrevista, foi perguntado sobre “suas influências políticas”; “costumo a traçar meus limites entre o Ciro e o Amoêdo” (PERGUNTADO..., 2020, par. 3), disse o influenciador, gerando, no mínimo, uma curiosa tensão que o torna uma espécie de garoto propaganda disputado por empresas concorrentes.

Na internet, em matéria publicada no site Terra, já se ressaltava em 2019 o poder desses influenciadores. “Influenciadores digitais conquistaram um papel de extrema importância na sociedade atual” (OS INFLUENCIADORES..., 2019, par. 1), inicia a reportagem da revista que procura evidenciar o papel dessa categoria, sobretudo nas ações de consumo. Tratada como “profissão”, ela é exaltada, ainda pela matéria, “por trazer novidades, produzir conteúdo para as redes e, de certa forma, influenciar decisões de outras pessoas” (OS INFLUENCIADORES..., 2019, par. 1). Possivelmente, o dado mais significativo para entender sua articulação posterior ao campo político venha na sequência: “segundo pesquisa, 55% do público já fez uma compra por causa da opinião de um influenciador” (OS INFLUENCIADORES..., 2019, par. 1). Se o educador chileno Humberto Maturana estiver certo de que “é no emocionar que surgem tanto o amigo como o inimigo” e de que a “democracia se define e se vive a partir da emoção”, consumo de marcas, afetos e consumo político têm uma mesma base de sustentação cognitiva, a emoção; e ela é produto da empatia que se tem com uma marca, que pode vir travestida em alguém ou num grupo (MATURANA, 1998, p. 77).

Em alusão aos 50 anos da “conquista da Lua”, a empresa dinamarquesa de brinquedos Lego realizou uma pesquisa cujo objetivo era compreender o impacto da revolução tecnológica no universo de expectativas profissionais em crianças de 08 a 12 anos de idade. A edição online da Revista IstoÉ Dinheiro destaca, a partir da pesquisa, que “na era da revolução das plataformas digitais, crianças abandonaram os sonhos de serem astronautas, bombeiros ou atletas famosos e preferem se tornar youtubers” (CRIANÇAS..., 2019, par. 1). Um dos dados da pesquisa aponta para o fato de que “a nova geração dos EUA e Reino Unido tem três vezes mais preferência em se tornar um influenciador digital (29%) do que explorar os mistérios dos cosmos (11%). A carreira de astronauta aparece na quinta colocação, atrás da carreira de professor (25%), atleta profissional (21%) e músico (18%)” (CRIANÇAS..., 2019, par. 2).

O que esses dados apontam, para além da dimensão de ordem econômica e social, é a repercussão que a postura dos chamados influenciadores tem sobre todas as idades, exercendo fascínios e despertando desejos. O campo político, talvez, tenha sido o último a se dar conta da importância desses novos personagens. O que, via de regra, se apresentava como quase evidente é que ele investiu, primeiramente, numa campanha virtual à moda antiga, com exposição de candidatos, programas de governo e tentativa de captura de eleitores por meio de tradicionais arcabouços propagandísticos associados, tão somente, a um meio de comunicação mais contemporâneo. Depois, só recentemente, quando o jogo político fez mudar e mudou a própria concepção de manifestação política, uma nova engenharia técnico-emocional tomou a dianteira dos processos de decisões que envolvem o poder.

Existe, entretanto, outro caminho para entender a articulação das novas tecnologias, das capturas de sensibilidades, do jogo político e da ação dos influenciadores que aponta para um começo não tão recente assim. E, segundo esse caminho, a extrema direita, na esfera política e dos costumes, foi a mais beneficiada, exatamente porque soube, pioneiramente, como utilizar dos seus artifícios. Parece meio paradoxal, mas foram os conservadores e ultraconservadores, ligados a essa extrema direita, que mais largamente criaram uma malha moral e de valores, com amplo suporte tecnológico, para legitimar a voz e as ações de partidários daquilo que D’Ancona (2018) chamou de Pós-verdade.

O percurso desse outro caminho parte da premissa de que a estrutura trazida pela Pós-verdade, conceito sob o qual se fundamenta a nossa condição histórica, está intimamente ancorada ao aparecimento, desenvolvimento e articulação de fake news, teorias da conspiração e algoritmos (EMPOLI, 2020). E essa relação não é ocasional, sem propósitos; ela expõe, dentro de zonas de interesse, coisas aparamente desconexas como trollers e gamers.

Uma das características dessa nossa condição histórica diz respeito exatamente à percepção de que programas políticos, ciência e coerência são elementos desprovidos da capacidade de emocionar. O ódio, a cólera, os extremos, as teorias da conspiração e o medo são os elementos cujo “novo sistema político” consegue manobrar para, ao mesmo tempo, manter em alerta a sociedade e capitanear a atenção para a suposta novidade na política. Esse foi o momento em que personagens insignificantes aos olhos da grande mídia começaram a projetar e fazer reverberar valores de mundo que não necessariamente contemplavam interesses acadêmicos, científicos, com rigorosas análises, ou mesmo os que provinham de uma voz autorizada. Quando Felipe Neto, Nando Moura,1 Olavo de Carvalho,2 entre outros, arregimentam milhares de seguidores e comentários em vídeos e tweets, o fazem, não necessariamente, porque consubstanciam suas falam em valores que se traduzem em projetos políticos, mas porque, com frequência, estão ligados a uma espécie de projeto de poder. Nesse caso, o poder de quem influencia mais.

Em torno de um aparato tecnológico acrescido de um ingrediente emotivo, o cientista político franco-italiano Giuliano Da Empoli (2020) tenta mostrar como essa engenharia muito sofisticada de poder conseguiu manietar multidões em defesa de ideias populistas, absurdas e sustentadas, muitas das vezes, por mentiras. Na aliança entre uma “máquina de comunicação super potente” e a “cólera de alguns meios populares”, a maquinaria política arquitetou, alimentou e retroalimentou o caos, dando margem à vitória e manutenção do populismo em vários lugares do mundo, inclusive, e com notório destaque, no Brasil (EMPOLI, 2020, p. 25). Não há, nas manifestações (aparentemente tresloucadas) de muitos desses agentes públicos, de vários influenciadores e de muitos seguidores, absolutamente nada que fuja a uma lógica de ação política coordenada. “O carnaval contemporâneo”, sustenta Empoli (2020, p. 25),

se alimenta de dois ingredientes que nada têm de irracional: a cólera de alguns meios populares, que se fundamenta sobre causas sociais e econômicas reais; e um máquina de comunicação superpotente, concebida em sua origem para fins comerciais, transformada em instrumento privilegiado de todos aqueles que têm por meta multiplicar o caos.

O caos e sua manutenção, portanto, talvez sejam os elementos mais sintomáticos que preenchem o campo prático da Pós-verdade. Nesse cenário, os ditos influenciadores são os primeiros agentes de um novo sistema de poder e são utilizados como profissionais dedicados a entender como as massas devem sentir, se emocionar e se voltar para esse ou aquele desejo. Na Itália, espaço de atuação e estudo privilegiado de Giuliano Da Empoli, percebemos esse novo sistema de poder na aliança entre um comediante, Beppe Grillo, “que saiu das salas de espetáculo underground de Gênova para chegar aos cumes da popularidade televisa”, e um “visionário, um autodidata”, chamado Gianroberto Casaleggio, alguém que assegura não “ser movido por qualquer paixão política”, mas pelo que interessa à opinião pública (EMPOLI, 2020, p. 44).

Casaleggio era o homem do marketing digital, aquele que “entendeu que a internet iria revolucionar a política, tornando possível o surgimento de um movimento novíssimo, guiado pelas preferências dos eleitores-consumidores”. A mercadoria a ser comercializada não deveria comportar muitos dos componentes da “velha política”, embora arraigada a valores tradicionais; mas Casaleggio se preocupava, de fato, em “lançar um produto capaz de responder de maneira eficaz a uma demanda política que os partidos existentes não são capazes de satisfazer” (EMPOLI, 2020, p. 45). Fazendo reverberar o mesmo jargão durante os meses que antecederam as eleições de 2013 – “eles são todos iguais. Eles nos arruinaram! Vamos mandá-los de volta para casa!” – a aliança Grillo/Casalegeggio, manifesta no Movimento 5 estrelas, tornou-se a voz de união popular no Norte e Sul da Itália, “entre jovens e entre os velhos, e capaz de captar vozes tanto à esquerda quanto à direita” (EMPOLI, 2020, p. 57). O desfecho, algo que parecia pouco provável alguns meses antes, é que, em 2013, o Movimento, “com pouco menos de 9 milhões de votos e 25% do sufrágio, se tornou o partido mais votado da Itália” (EMPOLI, 2020, p. 57).

É muito sedutor, e até fácil, relacionar o feito de Grillo/Casalegeggio, e seu Movimento 5 Estrelas, com personagens e grupos que rondam a política brasileira nos últimos anos. Movimento Brasil Livre – MBL – Kim Kataquiri e Fernado Holiday, de um lado, Nando Moura, Olavo de Carvalho, Luis Felipe Pondé, de outro; como políticos e ideólogos, esses concretamente viram seus projetos e demandas ganharem corpo desde, principalmente, as Jornadas de Junho de 2013, no Brasil. O próprio Giuliano Da Empoli (2020) dedica algumas linhas a tratar exatamente da relação técnica com a ascensão da extrema direita no Brasil, proveniente, especialmente, de plataformas virtuais como o YouTube.

É assim que os brasileiros assistiram, nos últimos anos, à ascensão de uma nova geração de YouTubers de extrema-direita, que souberam explorar o algoritmo da plataforma para multiplicar sua visibilidade (e seu faturamento). É o caso de Nando Moura, um guitarrista amador que reúne mais de três milhões de inscritos no seu canal do YouTube, alternando canções, instruções para videogames e, sobretudo, uma variedade extraordinária de teorias da conspiração. [...]

Ou ainda o exemplo do Movimento Brasil Livre, uma organização fundada durante a campanha a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, dotado de uma poderosa produtora de vídeos para o YouTube que empregava jovens profissionais dedicados à luta contra o que consideram ‘a ditadura do politicamente correto’. Em outubro de 2018, um de seus membros mais ativos, Kim Kataguiri, foi eleito, aos 22 anos, o mais jovem deputado a integrar o Congresso Nacional. Na mesma ocasião, outros cinco postulantes do MBL fizeram sua entrada no parlamento. Juntos, esses personagens, assim como inúmeras figuras similares, contribuíram para criar o clima que tornou possível a eleição de um ex-militar de extrema direita, ele mesmo muito popular nas redes sociais, à presidência da república. O vídeo dos apoiadores de Jair Bolsonaro, reunidos em Brasília no dia de sua posse, que gritavam alegremente os nomes do Facebook e do YouTube, rodou o mundo (EMPOLI, 2020, p. 81-82).

Mas esse campo ainda se completa com um nível de expectativa em torno de figuras amadoras sem fim, que vão desde o ex-juiz e ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, ao apresentador global e empresário Luciano Hulk; ambos margeados por uma legião de seguidores, influenciadores e uma demanda em torno do “novo” na política, justificada, sobretudo, pela ideia de que o homem comum não carrega os vícios e comprometimentos do político profissional.

Quem são os sujeitos dessa História é, portanto, uma questão que se lança como fundamental para compreender o outro polo dessa relação de poder. Nesse universo marcadamente virtual que vem operando a política, calcado em torno de simulacros, “avatares” e suas extensões, o poder não se configura apenas como um dispositivo relacional entre sujeitos (FOUCAULT, 2005). À medida que um novo e artificial modelo de difusão de valores – sustentado especialmente por mentiras – propaga notícias provenientes de agentes cada vez menos comprometidos com a ciência, e com bem menos rigor que as análises sócio-históricas pressupõem, o que surge, enquanto personagem passivo dessa relação, é o que chamamos aqui de “replicante”.

O replicante é fruto não de uma relação entre humanos, mas de uma injunção entre mentiras, teorias da conspiração, algoritmo e redes sociais. Ele é o crente da mentira política, da atitude lesiva, mas que, repetida e replicada à exaustão, se torna uma virtude. Com sua aparição, as estratégias de controle das massas operam no nível do desejo e do medo, fazendo o replicante sentir-se virtualmente compelido a participar, a emitir sua opinião, a replicar o que lhe parece a obviedade das coisas; ao mesmo tempo em que participa do debate, que curte, compartilha e comenta, essa sua participação representa a sua captura pelo poder: ele informa ao mundo e às redes as suas preferências, seus desejos, suas angústias e expectativas. Ele é o servo voluntário dos nossos tempos (LA BOÉTIE, 2016). Ele é, por fim, o novo personagem sem rosto na narrativa do poder, o “a – sujeitado”, o nulificado na era da Pós-verdade.3

O adensamento social: algoritmo, polarizações e as redes sociais como instrumentos de controle

Há um cálculo no campo do poder que tenho um interesse particular. Se estamos, como atesta uma vasta bibliografia aliada a uma imensa quantidade de situações práticas, diante de uma nova dinâmica dos poderes, quais os dispositivos empregados por essa nova condição política para adensar a sociedade? Que tipo de controle social opera na Pós-verdade e como ele se manifesta? Que rede de poderes e saberes operam na sua construção? O apagamento do sujeito é resultado de um cálculo técnico-político de controle social?

Nossa base conceitual e argumentativa é tributária aos estudos da microfísica do poder do filósofo e historiador francês Michel Foucault. Dada a vasta e extensa discussão em torno do seu pensamento e influência, vou pontuar, apenas, duas questões fundamentais em seu pensamento e que guardam uma relação direta com minha discussão. Primeiro, Foucault parte da premissa de que o poder, esse amalgama de forças, coações e limites, não é algo que pertence a alguém ou pode ser dado. Mas, algo compreendido à luz de uma relação, de um exercício e ação entre indivíduos; resumidamente, “o poder não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas que ele se exerce e só existe em ato” (FOUCAULT, 2005, p. 21). A política, neste caso, comportaria apenas uma de suas manifestações. E no campo político, o poder – e aqui Foucault inverte a proposição de Clausewitz – se configura como uma guerra, “a guerra continuada por outros meios”.

Ancorado numa relação de força temporal, “historicamente precisável”, esse poder político tem a capacidade de fazer parar uma guerra e manter uma paz; mas, no bojo dessa ação, da suspensão dos efeitos da guerra, o que esse poder tem como função é “reinserir perpetuamente essa relação de forças, mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros” (FOUCAULT, 2005, p. 23). A primeira premissa, portanto, atinente ao pensamento foucaultiano e reinserida aqui é: a política se faz numa tensão, num conflito que é extensão da guerra em momentos de paz.

Essa variável encontra acento pleno no composto Pós-verdade exatamente naquilo que a define enquanto condição de existência: nas tensões criadas pela articulação entre fake news, teorias da conspiração e algoritmos, capazes de pulverizar e, ao mesmo tempo, polarizar as demandas políticas. O aparato tecnológico à disposição dessa nova arquitetura do poder, promove nas campanhas e disputas por versões,

[...] verdadeiras guerras entre softwares, durante as quais os oponentes se enfrentam com a ajuda de armas convencionais (mensagens públicas e informações verdadeiras) e armas não convencionais (manipulação e fake news) com a meta de obter dois resultados: multiplicar e mobilizar seus apoios e desmobilizar as bases do adversário (EMPOLI, 2020, p. 156).

Nessa nova arena política, o que era tido como o centro de manifestação do poder (as instituições, os partidos políticos, os representantes do poder público, etc.), capaz de gerar grupos coesos em torno de habituais projetos políticos (a educação, a saúde, o transporte, etc.), abre espaço para uma individuação cada vez maior que se segue a uma customização dos prazeres e necessidades, operada numa política cada vez mais nuclear, centrada numa vontade e resvalada em interesses muito particulares. O coletivo se desfaz tanto enquanto projeto de ação do poder sobre ele quanto do ponto de vista de uma massa que se manifesta em torno de um consenso de lutas e reivindicações. A self, gesto habitual dessa nova composição imagético-comportamental em que o indivíduo produz um autorretrato, possivelmente seja a expressão mais característica deste elemento político-narcísico. Com a self, a centralidade no indivíduo ofusca tudo ao redor. A amplificação desse gesto no cenário macropolítico revela que para se

[...] criar consenso, o fato de lançar um projeto político capaz de convencer todo mundo conta muito menos, visto que – como profetizava Michel Foucault há quatro décadas – o povo, massa compacta, foi abolido em benefício de uma reunião de indivíduos separados, cada um passível de ser erguido em seus menores detalhes (EMPOLI, 2020, p. 156-157).

Este ponto, inclusive, nos conecta à segunda premissa, a de que o poder age dentro daquela microfísica proposta pelo pensamento foucaultiano, numa escala cada vez mais arrojada e particularizada. Se, em linhas gerais, esta microfísica do poder se configura como uma “anatomia política do detalhe”, os personagens que adensam os indivíduos na Pós-verdade o fazem de maneira muito sofisticada, recorrendo a um campo computacional que envolve dados fornecidos por usuários em redes sociais, suas preferências (expressas em buscas ou compartilhamentos de informações), inteligência artificial e, por fim, direcionamento de mensagens individualizadas (FOUCAULT, 2013).

A descentralização do poder comunicacional realizada pelas mídias sociais é o primeiro ponto de solapamento dos mecanismos tradicionais de controle. O universo da comunicação que antecede as mídias sociais pressupunha um centro de onde se produzia e difundia a informação. Como ressalta Yascha Mounk (2019, p. 171), em 1992 já “era possível mandar o som e a imagem de um evento para bilhões de telespectadores no mundo todo num instante”, todavia essa condição ainda limitava a transmissão de opiniões por parte do indivíduo comum, exatamente porque “havia um número limitado de veículos centralizados – redes de TV e estações de rádio, jornais e editoras – e grande quantidade de receptores”. O alcance de informações gerado por redes como Facebook e Twitter reduziu drasticamente essas limitações. Nelas, a postagem do indivíduo comum, sua opinião, desvinculada de um centro emissor, pode ser retransmitida a uma massa de seguidores, ou meros observadores, sem que isso conduza a uma visão consensual sobre a informação. A dinâmica, portanto, da difusão da informação se altera. Nesse novo cenário, os principais atores do passado “perderam grande parte de sua capacidade de controlar a disseminação de ideias ou mensagens que repercutem entre pessoas comuns” (MOUNK, 2019, p. 173). Isso, como vem sendo apresentado ao longo do texto, tem uma consequência política significativa. A questão, formulada pelo próprio Yascha Mounk (2019, p. 173), é: “a perda de influência dos difusores tradicionais de informação irá empoderar as pessoas comuns e impulsionar a democracia – ou já causou estrago ao dar aos populistas a plataforma de que precisavam para envenenar nossa política?”.

Nessa nova condição de controle, parece não haver um polo passivo. O mesmo indivíduo que recepciona a mensagem pode ser seu retransmissor ou potencial enunciador de nova opinião. Ele funciona como um canal de interlocução, distribuição ou núcleo fomentador de uma nova informação comum. Duas coisas, entretanto, justificam a compreensão de que existe um novo adensamento social em curso na ordem de manutenção desse cenário.

A primeira reside na lógica dos algoritmos, componente fundamental da inteligência artificial e elemento central nesse jogo político. Ao gerir nossas preferências e encaminhar o cursor de nossa atenção para aquilo que é parte de nossas vontades, as redes, diga-se, os algoritmos, criam nichos, espaços de confluência de interesses. Criam aquilo que, geralmente, se chamam de bolhas. São exatamente elas que, na tensão com outros nichos e bolhas, resultam na nova dinâmica do adensamento. As bolhas conduzem a uma visão muito particular e, por vezes, extremista da informação. Sua tensão não sistematiza a tríade dialética da tese, antítese e síntese; se manifestam em torno, exclusivamente, de tese e antítese. Elas inviabilizam o reconhecimento do processo, do conjunto, do contraditório, do diferente, do global. Geram uma tensão que reside numa espécie de postulado de verdade sobre o que se lê e o que se emite de opinião.

Logo, e eis o segundo ponto do adensamento, essa tensão conduz a uma atenção constante ao debate, a uma fixidez na tela, no conflito que se faz na permanência online. A atenção no grupo, no nicho, na bolha, faz perder o sentido do todo, da coletividade. A essência do self se materializa, neste caso, na incapacidade de reconhecer o que está para além do interesse de quem fabrica a opinião. Cada um reconhece e enceta para si uma visão de mundo customizada, personalizada, que encontra repercussão, eco e conexão em pontos específicos na rede. O fato de um cristão autodeclarado defender a violência contra delinquentes, por exemplo, não impede que ele se manifeste contrário ao aborto, publique uma foto usando uma camisa do Greenpeace, retweet postagens defendendo que a Terra é plana e condene, em comentários, a política de imigração norte-americana. O controle, portanto, se dá na permanência desse indivíduo na rede, não no conjunto de ideias, coerente ou não, que ele julga defender. Trata-se de explorar exatamente o universo fluido e fugaz das identidades na pós-modernidade (HALL, 2011). Sua permanência na rede, a quantidade de informações que ele disponibiliza ao algoritmo, as curtidas que recebe, os compartilhamentos de seus textos e retweets que faz, são a razão de ser dessa nova servidão voluntária (LA BOÉTIE, 2016).

Embora não seja nosso foco de discussão, é importante reconhecer, também, os interesses econômicos atinentes a essa condição. Ela permite que as redes comercializem e/ou disponibilizem dados, preferências e interesses dos seus usuários para empresas ocupadas em preencher esses nichos. Direta ou indiretamente, a exposição e compartilhamento dos dados nas redes é parte de uma engrenagem que dá funcionalidade ao controle sem, muitas das vezes, uma ação coercitiva, deliberada ou arbitrária de Estados ou iniciativa privada. Inicialmente utilizados para fins econômicos, esses dados foram amplamente aproveitados nas últimas eleições em várias partes do mundo. Em alguns casos, o uso desses dados foi motivo, inclusive, de questionamentos morais e jurídicos. O Facebook, por exemplo, rede com mais de dois bilhões de usuários, com recorrência se vê envolvido em “escândalos relacionados à gestão da privacidade dos dados dos usuários”. Num caso recente, segundo matéria da Revista Época Negócios, em 2018

foi revelado que a companhia de consultoria britânica Cambridge Analytica utilizou um aplicativo para compilar milhões de dados de usuários da plataforma sem o seu consentimento e com fins políticos.

A empresa se serviu de dados da rede social para elaborar perfis psicológicos de eleitores, que supostamente foram vendidos à campanha do presidente americano, Donald Trump, durante as eleições de 2016 (AGÊNCIA BRASIL, 2019, par. 12-13).

Ficcionalmente, nossa época ainda carece de fontes que permitam dar uma visão complexificada e ampla dessa realidade, assim como foi no início do século 20 com a obra do escritor tcheco Franz Kafka, que abriu um leque metafórico e informacional sobre as meticulosas ações do poder nos processos de “a-sujeitamento” dos indivíduos.4 Mas os cenários, em que tudo isso se desenha, estão sendo explorados com frequência em séries e filmes na última década. Possivelmente, uma das principais tentativas de empreender um entendimento sobre as estruturas do poder sob a óptica da ficção, seja uma série televisiva inglesa, incorpora à plataforma Netflix, chamada Black Mirror. A série, que entrou no ar em 2011, se constitui de episódios não conexos, autônomos (do ponto de vista narrativo), mas articulados enquanto questões que apontam diretamente para a nossa condição histórica.

Humor negro, distopias, avatares, muita inteligência artificial, sátiras e as ironias em torno do uso da tecnologia como garantia para o máximo prazer e satisfação individual são alguns dos componentes que tornam Black Mirror uma das ficções mais apontadas no que diz respeito à dialética entre “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”; entre o que trazemos do passado e o que projetamos no futuro imediato (KOSELLECK, 2006).5 Esse embate entre passado e futuro, que produziu uma sociedade confusa – questionada pelo próprio criador da série, Charlie Brooker, se é, de fato, uma sociedade sã – é o mote em torno do qual giram os episódios da série. Em nota para o jornal inglês The Guardian, Charlie (2011, par. 12, tradução nossa) assim apresenta a sua criação:

É isso que pretendemos com Black Mirror: cada episódio tem um elenco diferente, um cenário diferente e até uma realidade diferente. Mas eles têm tudo a ver com a maneira como vivemos agora - e com a maneira como poderíamos viver daqui a 10 minutos, se formos desajeitados. E se há uma coisa que sabemos sobre a humanidade, é esta: geralmente somos desajeitados. E não adianta pedir ajuda à Siri. Ele não entende os pedidos chorosos. Confie em mim, eu tentei.6

Uma rápida pesquisa no Google adicionando o nome “Black Mirror”, e vários links, aponta para um caminho semelhante: a série é uma representação caótica do mundo, especialmente vinculada ao uso exacerbado da tecnologia, inclusive, e principalmente, na política. Em junho de 2020, momento em que escrevi este artigo, o mundo se deparava (e ainda se depara) com uma pandemia de impacto assombroso na saúde, economia e política. Essa pandemia, por sua vez, acabou repercutindo substancialmente no uso mais acentuado do aparato virtual para atividades laborais. Home offices, reuniões, entrevistas recorrendo a plataformas como o YouTube, lives de diversos artistas no Instagram e Facebook, enfim, por força das circunstâncias, como, ironicamente, anuncia uma campanha publicitária da “6ª temporada de Black Mirror”, o caótico cenário prenunciado pela série “é ao vivo agora, em todo lugar” (YAO, 2020b).

Por outro lado, como apontado ao longo do texto, o esfacelamento da política tradicional, junto com a emergência de uma nova teia de controles, possivelmente nos leve, num intervalo curto de tempo, a uma nova crise paradigmática. Charlei Brooker, perguntado se estava planejando uma sexta temporada para Black Mirror, respondeu assim: “Eu estive ocupado, fazendo coisas. Não sei o que posso dizer sobre o que estou fazendo e o que não estou fazendo. No momento, eu não sei quem teria estômago para histórias sobre sociedades desmoronando, então não estou trabalhando em nada disso” (YAO, 2020a, par. 3). A confusão diante do momento, nos parece, é generalizada.

Considerações finais

As eleições e vitórias de candidatos do espectro da direita em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, têm exigido um esforço de compreensão de mundo alheio a muito do que vinha se estabelecendo em termos teóricos e metodológicos no campo das humanidades. O prenúncio foucaultiano de que o “sujeito”, na História, é relativamente novo e tende a desaparecer, vem encontrando substrato prático, curiosamente, na apropriação que a extrema direita tem feito dos recursos tecnológicos para garantir vitórias em diversos países. Da Ucrânia aos Estados Unidos, passando pela Inglaterra, Estado de Israel e chegando ao Brasil, toda uma arquitetura de poder vem sendo estruturada e utilizada para manipular dados, incitar disputas entre grupos, criar nichos de informações e anular a ação e a capacidade reflexiva dos indivíduos.

O cenário que se desenha com o desvelamento de toda essa engrenagem já resultou na proliferação de informações e ideias absurdas que repercutiram tão amplamente a ponto de serem apontadas como elementos definidores de votos; e se isso aconteceu, é porque esse controle, capaz de “a-sujeitar” indivíduos, nulificá-los, encontra ecos dentro de nichos cada vez mais fechados. No Brasil, às vésperas das eleições de 2018, a desinformação e os grupos fechados fizeram circular, entre outras coisas, notícias falsas ou manipuladas como “o ‘kit gay’ para crianças de 6 anos que foi distribuído nas escolas”, ou que “o homem que apunhalou Bolsonaro é filiado ao PT e aparece numa foto com Lula”; notícias de que uma senhora, inclusive já falecida na época, foi “agredida por ser eleitora de Bolsonaro”, de que “[Fernando] Haddad defende o incesto e o comunismo em um de seus livros” ou que se ele, Haddad, “chegar ao poder, pretende legalizar a pedofilia” (BARRAGÁN, 2018).

O replicante, para concluir, uma espécie de avatar nesse jogo político, habilmente inserido e convidado a participar do espetáculo democrático pelas redes sociais, alimenta um sistema de poder cuja regra é promover o caos em meio a declarações suspeitas ou mentirosas. Ele não necessariamente é convidado a pensar, mas a replicar o que recebe para produzir um efeito de manada; sua preocupação não é com a coerência ou efeito de verdade. Ele é a parte mais importante da engrenagem que faz funcionar a máquina de controles e adensamento. O replicante, enfim, é o nulificado do nosso tempo.

Material suplementario
Fontes
10 previsões de “Black Mirror” que podem se tornar realidade – ou já são. Época Negócios Online, 15 jan. 2018. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2018/01/10-previsoes-de-black-mirror-que-podem-se-tornar-realidade-ou-ja-sao.html. Acesso em: 03 jun. 2020.
AGÊNCIA BRASIL. Milhões de dados de usuários do Facebook são expostos na internet. Época Negócios, 4 abr. 2019. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/04/milhoes-de-dados-de-usuarios-do-facebook-sao-expostos-na-internet.html. Acesso em: 05 jun. 2020.
BAPTISTA, Sara. Quem é Olavo de Carvalho, protagonista de polêmicas do governo Bolsonaro?. Último Segundo, 17 maio 2019. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-05-17/quem-e-olavo-de-carvalho-protagonista-de-polemicas-do-governo-bolsonaro.html. Acesso em: 28 maio 2020.
BARRAGÁN, Almudena. Cinco ‘fake news’ que beneficiaram a candidatura de Bolsonaro. El País, 19 out. 2018. Disponível em: http://www.ultrajano.com.br/cinco-fake-news-que-beneficiaram-a-candidatura-de-bolsonaro/. Acesso em: 08 jun. 2020.
CHARLIE Brooker: the dark side of our gadget addiction. The Guardian, 1 dez. 2011. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2011/dec/01/charlie-brooker-dark-side-gadget-addiction-black-mirror. Acesso em: 03 jun. 2020.
CIRO Gomes apoia Felipe Neto após youtuber criticar Bolsonaro e relembrar ‘ódio ao PT’. ISTOÉ, 11 maio 2020. Disponível em: https://istoe.com.br/ciro-gomes-apoia-felipe-neto-apos-youtuber-criticar-bolsonaro-e-relembrar-odio-ao-pt/. Acesso em: 17 maio 2020.
CRIANÇAS preferem carreira de youtuber a de astronauta, mostra pesquisa. IstoÉ Dinheiro, 19 jul. 2019. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/criancas-preferem-carreira-de-youtuber-a-de-astronauta-mostra-pesquisa/. Acesso em: 24 maio 2020.
FELIPE Neto doa $ 500 a seguidores para comemorar 35 milhões de inscritos. Extra/Globo, 20 nov. 2019. Disponível em: https://extra.globo.com/famosos/felipe-neto-neto-doa-500-seguidores-para-comemorar-35-milhoes-de-inscritos-24090504.html. Acesso em: 17 maio 2020.
FRANCO, Bernardo Melo. A bancada da selfie perdeu e não viu. O Globo, Rio de Janeiro, 24 maio 2019. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/bancada-da-selfie-perdeu-e-nao-viu.html. Acesso em: 16 maio 2020.
OS INFLUENCIADORES digitais e seu poder. Terra, 21 nov. 2019. Disponível em: http://www.encurtador.com.br/bvTUW. Acesso em: 22 maio 2020.
PAIXÃO, Allisson. Artistas criticam Regina Duarte após dar chilique em entrevista ao vivo na CNN. Oitomeia, 8 maio 2020. Disponível em: https://www.oitomeia.com.br/noticias/2020/05/08/artistas-criticam-regina-duarte-apos-dar-chilique-em-entrevista-ao-vivo-na-cnn-assista/. Acesso em: 16 maio 2020.
PERGUNTADO no Roda Viva sobre influências políticas, Felipe Neto diz que fica “entre Ciro e Amoêdo”. Fórum, 18 maio 2020. Disponível em: https://revistaforum.com.br/redes-sociais/perguntado-no-roda-viva-sobre-influencias-politicas-felipe-neto-diz-que-fica-entre-ciro-e-amoedo/. Acesso em: 21 maio 2020.
SOARES, Ingrid. Villas Boas diz que ficou “encantado” com entrevista de Regina Duarte. Correio Braziliense, 8 maio 2020. Disponível em: http://www.encurtador.com.br/hMR07. Acesso em: 16 maio 2020.
YAO, Rodrigo. Criador de Black Mirror não acha que “teria estômago para histórias sobre sociedades desmoronando” agora. Observatório de Séries, 7 maio 2020a. Disponível em: https://observatoriodeseries.uol.com.br/noticias/criador-de-black-mirror-nao-acha-que-teria-estomago-para-historias-sobre-sociedades-desmoronando-agora. Acesso em: 12 jun. 2020.
YAO, Rodrigo. 6ª temporada de Black Mirror é “ao vivo agora, em todo lugar”; confira pôster. Observatório de Séries, 04 jun. 2020b. Disponível em: https://observatoriodeseries.uol.com.br/noticias/6a-temporada-de-black-mirror-e-ao-vivo-agora-em-todo-lugar-confira-poster. Acesso em: 12 jun. 2020.
Referências
D’ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. Barueri: Faro Editorial, 2018.
EMPOLI, Giuliano da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2020.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70, 2013.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
LA BOÉTIE, Étienne. Discurso sobre a servidão voluntária. 3. ed. Lisboa: Antígona, 2016.
LIMA, Frederico Osanan Amorim; CAVALCANTE JÚNIOR, Idelmar Gomes. A ética da nulificação e da contranulificação. São Paulo: Pimenta Cultural, 2019.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1964.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
PASSETTI, Edson (Org.). Kafka, Foucault: sem medos. Cotia, SP: Ateliê, 2004.
Notas
Notas
1 Youtuber com mais de 3 milhões de inscritos em seu canal. Nele, entre dicas de violão e de jogos, preenche seus vídeos com calorosas e, muitas vezes, ofensivas declarações a partidários da esquerda, enquanto destila elogios e afetos à gente da extrema direita.
2 Astrólogo e autodeclarado filósofo brasileiro que reside nos Estados Unidos, responsável pela indicação de vários Ministros de Estado do Governo Jair Bolsonaro, incluindo o ex-Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Segundo consta em várias redes, Olavo de Carvalho é uma espécie de guru do presidente e de seus filhos. Seus vídeos, no YouTube, onde tem mais de 900 mil inscritos, e suas postagens no Twitter, com mais de 700 mil seguidores (já chegou a ter mais de 900 mil), são carregados de ofensas a pessoas, ideias, valores humanistas, afrontas à democracia e estímulo ao ódio (BAPTISTA, 2019).
3 Para o conceito de “nulificação”, ver Lima e Cavalcante Júnior (2019).
4 Para maiores considerações sobre o assunto, ver, por exemplo, Passetti (2004).
5 Novamente o campo empresarial reconhece, pioneiramente, o impacto que as tecnologias e o próprio campo ficcional têm na composição de um novo cenário econômico. A versão digital da Revista Época Negócios deu manchete, em 2018, para as previsões de Black Mirror que já podem ter se tornado realidade. Mas, neste caso, a reportagem chama atenção exatamente para o caráter sombrio que esse novo tempo tecnológico pode ter despertado: As empresas do setor de tecnologia costumam pintar o futuro da humanidade de forma otimista _ mais inovação traz benefícios à sociedade. "Black Mirror", série produzida atualmente pela Netflix, prefere mostrar o contraponto. O programa ficou famoso por explorar o lado sombrio dos avanços tecnológicos. E a pior parte é que muitas dessas previsões não estão tão longe assim da realidade (10 PREVISÕES..., 2018).
6 Tradução livre: “That's what we're aiming for with Black Mirror: each episode has a different cast, a different setting, even a different reality. But they're all about the way we live now – and the way we might be living in 10 minutes' time if we're clumsy. And if there's one thing we know about mankind, it's this: we're usually clumsy. And it's no use begging Siri for help. He doesn't understand tearful pleading. Trust me, I've tried” (CHARLIE..., 2011, par. 12).
Notas de autor
* Professor Associado de História do Brasil República da Universidade Federal do Piauí. Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (2012). Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (2007). Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí (2003). É especialista em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (2005). Atualmente é professor Associado I da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura, sensibilidade, subjetividade, comportamento juvenil, historiografia do cinema brasileiro, cinema brasileiro moderno, Glauber Rocha e cinema experimental. E-mail: frederico.osanan@hotmail.com. http://lattes.cnpq.br/4701000053584526. https://orcid.org/0000-0003-1997-6866

Figura 1
A bancada da selfie perdeu e não viu
O Globo (2019)
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