Resenha
Recepción: 01 Noviembre 2020
Aprobación: 14 Diciembre 2020
DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-202113108
Resumo: As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan,1 para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.
Resumen: Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura de la terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.
Résumé: Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.
摘要: Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。
Abstract: The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.
SCHNEIDER, Henrique. Setenta. Porto Alegre: Não Editora, 2019. 150 p. Da ficção para recordar a ditadura brasileira: Setenta, de H. Schneider
Perverso e desumano foi aquele ano de 1970, e o que o antecedeu e os que o seguiram. É o que conta Henrique Schneider no seu livro Setenta. A ditadura militar tomou o poder em 31 de março de 1964, e, como se não lhe bastasse o clima de repressão que se instalara no país desde essa data, a partir de 13 de dezembro de 1968, intensificou seus métodos ditatoriais de detenção e tortura com a promulgação do Ato Institucional nº 5, o chamado AI 5, que marcou o início do período mais sombrio e obscuro da moderna política brasileira. A liberdade de imprensa e o direito de reunião e manifestação, dois itens incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que deveriam ser reconhecidos e estar assegurados pelo próprio Estado, foram abolidos da vida civil através da censura, da repressão e da tortura, que se fez prática policial diária em qualquer delegacia do país e nos centros preparados e equipados especialmente para esse fim. O Congresso Nacional foi fechado, funcionários foram demitidos e políticos, cassados, como já vinha ocorrendo desde 1964. O autoritarismo do regime militar impregnou o dia a dia dos brasileiros. Direito civil, justiça e liberdade passaram a ser palavras proibidas do vocabulário nacional. Todo cidadão brasileiro podia ser suspeito de subversão, de pretender “terminar com a família, com o respeito, a religião, com tudo o que é bom” (73), como diz o carcereiro, uma personagem de Setenta. E é a partir desse “ser suspeito” que se põe em movimento o texto de H. Schneider. Um brasileiro qualquer que anda pela rua pode ser considerado um “comunista de merda” (30/31), que é preciso deter e torturar. Quem é? O que faz na vida? Isso pouco importa. Que dê nomes. Que fale dos seus propósitos revolucionários.
H. Schneider utiliza como eixo narrativo do seu livro um fato real: a tentativa frustrada de sequestro do cônsul americano, Curtis Carly Cutter, em Porto Alegre, a 4 de abril de 1970. E a partir daí constrói seu texto ficcional, de cerca de cento e cinquenta páginas, distribuindo-o em vinte e dois curtos capítulos. Ao início de cada um deles, em destaque, o narrador esclarece o tempo em que transcorre a ação ꟷdia do mês, da semana, horaꟷ e, quando crê necessário, o espaço ꟷora na delegacia de polícia, ora na redação do jornal, etc.ꟷ, o que lhe permitirá maior liberdade na organização alternada das sequências narrativas. O dinamismo que o narrador impõe ao seu relato o exige. Ao mesmo tempo, essa preocupação por situar a ação no tempo e no espaço, em destaque, e a cuidada diagramação do livro concordariam com a estética própria do roteiro de um filme, no caso, policial, ou de um roman noir.
O encadeamento dos vinte e dois capítulos, não cronologicamente, senão alternativamente, como já foi dito, sujeita-se ao potencial criativo do escritor, ao seu propósito literário de criar a necessária tensão dramática que, com certeza, despertará o interesse do leitor e o estimulará a que siga e siga a leitura do livro. A este caberá compor, na sua imaginação, a ordem sequencial dos acontecimentos. Provavelmente esse seja o primeiro e grande acerto de Schneider: saber dosar e administrar a informação, a narração, os diálogos e as descrições com o intuito de compor um texto literário de qualidade. E o faz com distinção.
Uma sexta-feira à noite Raul, bancário de profissão, sai de casa para ir ao cinema. Sem pressa, tranquilo, vai sozinho. Abandonado pela namorada havia três meses, tentava esquecer a desventura amorosa, naquele dia que deveria ser especial, segundo ele. Depois, “tomaria umas cervejas e encheria a cara em qualquer boteco” (18). Sai de casa, repito, tranquilo, com sua melhor camisa, “vermelho berrante” (19), a preferida da ex-namorada, que contrasta com o terno e gravata do “cotidiano sisudo” (19) no banco. Infeliz coincidência. Um rapaz, também de camisa vermelha, correndo da perseguição policial passa a seu lado. Uns policiais se cruzam no caminho de Raul, detêm-no, metem-no num carro e, encapuzado, levam-no para uma prisão, em algum lugar da cidade.
O que sabe sobre o sequestro do cônsul? Qual foi sua participação? Nomes dos implicados? É o que interessa à polícia. E para arrancar-lhe qualquer informação, aí estão os golpes, a humilhação, a vexação, a tortura. Levá-lo ao sofrimento absoluto através da dor mais violenta, do suplício, do padecimento mais brutal. O detido não tem nada a dizer, não sabe por que o detiveram, por que o fazem passar por tudo isso. Repete e repete inúmeras vezes: “eu não sei nada” (60/61), mas à tendenciosa ou simplesmente inexistente investigação policial isso não importa. É preciso mostrar serviço, prender alguém, algum bode expiatório que justifique seus atos policiais.
A partir daí Raul entra em desespero. O que é isso? O que estão fazendo comigo? Por que eu? Ele, bom cidadão, trabalhador honrado, que achava que com a ditadura tudo ia bem. “Que havia prisões, torturas, desaparecimentos, mortes, ꟷ mas por que se preocupar com esse assunto, se nada daquilo lhe dizia respeito?” (64) “Até uns dias atrás, Raul nem sabia que existiam razões para alguém querer derrubar o governo” (148). Pouco ou quase nada sabia do que estava acontecendo no país. E, inexplicavelmente, se vê metido numa situação que lhe causa medo, verdadeiro pavor. E esse medo e esse pavor vão acompanhá-lo durante a semana em que está privado de liberdade, impregnando seu corpo, provavelmente, para o resto da sua vida. Tudo é absurdo, ele não pode entender, e nem sabia que existia algo parecido, pensa Raul.
O romance começa pela sua libertação, depois de uma semana de detenção, ao encontrar a polícia o rapaz que buscavam, ou será outro “bode expiatório”? Com o corpo machucado, “paralisado pelo medo e pela impotência” (8), Raul se vê solto numa rua escura, com um capuz preto que lhe tapa a cara, numa cidade que de início ele nem identifica como a sua Porto Alegre. Domingo, 21 de junho de 1970, dia da final da Copa do Mundo: Brasil x Itália. Seis capítulos estão dedicados ao dia da libertação. Fechando o texto com a vitória do Brasil, a conquista do tricampeonato.
Ao mesmo tempo, vão se alternando, em um capítulo e outro, dados sobre a vida cotidiana de Raul e a detenção. Gritos, insultos, pistolas, um safanão, um empurrão, em plena rua, à caída da tarde. À sua volta, ninguém percebe o que se passa, e se o faz olha para outro lado. Logo, assim que o metem na cela, minúscula, suja, imunda, sem ventilação, Raul começa a perceber que não se trata de um sequestro. “Quem o prendera não eram os ferozes subversivos, os guerrilheiros, os inimigos da pátria e da família a quem a mãe tanto temia. Eram os homens da polícia” (28). Raul vivia com a mãe viúva.
Paralelamente a isso, sua mãe visita a delegacia, a redação de um jornal, a igreja e conversa com a vizinha sobre o desaparecimento do filho. Através de monólogos chorosos, assustados, angustiantes, ela pede ajuda, chegando inclusive a duvidar da inocência do filho. “Então eu tenho o medo de que o meu filho possa estar envolvido com algum desses grupos de comunistas, esses guerrilheiros, como chama?” (143)
Interrogatório, reflexões de Raul, diálogos com o carcereiro, uma aula magistral com demonstrações de técnicas contundentes de tortura (golpes com uma soqueira, espancamento, “porrada pura e simples” (99), pau-de-arara, choque elétrico, afogamento, gotejamento...) a cargo de um afamado torturador carioca, que utiliza Raul como “colaborador”, para um grupo de jovens policiais, aprendizes de torturadores.
E com uma habilidade narrativa surpreendente, Schneider “irradia” o jogo da final da Copa do Mundo, que Raul, a contragosto, assiste na televisão ao lado de quem foi seu carcereiro. Na lanchonete à qual ele se dirige para comer alguma coisa (a fome era grande) e passar o tempo (por imposição dos policiais, só poderia voltar para casa às nove da noite), com música de fundo ꟷEu te amo, meu Brasil, de Dom e Ravelꟷ, chega também o carcereiro ꟷ“... a gente vai estar te cuidando. De olho em ti, sempre.” (12)ꟷ, que se senta ao seu lado e o provoca, o espezinha, chegando a duvidar do seu patriotismo como brasileiro. Impossível vibrar, impossível se emocionar com a vitória do Brasil. De qual Brasil? “Não vibrou nenhuma vez, pensou ele [o carcereiro], então é comunista mesmo” (139/140).
Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça de 1969 a 1974, disse em certa ocasião: “Não há tortura no Brasil”. H. Schneider nos recorda essa afirmação numa epígrafe que, graficamente, em letras grandes, ocupa uma página inteira antes do início do seu texto. Deparar-me com esta citação e ao mesmo tempo recordar o horror que a ditadura espalhou por toda a sociedade brasileira naqueles anos setentas, levou-me ao conjunto de gravuras de Goya sobre o horror e as crueldades cometidas durante a Guerra da Espanha contra a dominação francesa (1808-1814), Desastres de la guerra. Lembro-me, especialmente, da gravura número 44, intitulada “Yo lo vi”. Parafraseando o pintor espanhol, e desmentindo o Ministro da Justiça da Ditadura Brasileira, após a leitura de Setenta, afirmo: Eu vi, eu estava lá.
Madri, novembro de 2020.
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