Artigos
Recepción: 22 Septiembre 2020
Aprobación: 04 Marzo 2021
DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-202113202
Resumo: O conceito de Justiça passou por transformações no contexto medieval, no Ocidente latino, especialmente entre os séculos XIII e XV, devido às transformações em andamento nos campos político e institucional. As monarquias se institucionalizavam influenciadas pelas discussões propostas pela Universidade de Bolonha gerando a construção de uma cultura jurídica sistematizadora dos conceitos e critérios de exercício da Justiça sem abandonar a relação destas teorias com o contexto social a que destinava. Os representantes municipais ganhariam cada vez mais protagonismo em alguns eventos como na ascensão da dinastia de Avis em Portugal (1383-1385) e suas aspirações e visão de mundo seriam demandadas como uma das moedas de troca do apoio concedido e se refletiriam na legislação e nas coleções jurídicas elaboradas pelos descendentes de D. João I de Avis, como as Ordenações Afonsinas. Espaço de sobreposição dos direitos particulares sobre o Direito Comum emanado da Corte régia e de cristalização de uma tendência à singularidade jurídica portuguesa promotora da hierarquização das fontes de Direito disponíveis na latinidade. Esta proposta desenvolve-se a partir de crítica histórica aplicada aos conteúdos documentais, Las Siete Partidas del muy noble Rey Don Alfonso el Sabio, Livro das Leis e Posturas e as Ordenações Afonsinas
Palavras-chave: Direito Comum, Iura propria, cultura jurídica medieval, centralização régia.
Resumen: El concepto de justicia sufrió transformaciones en el contexto medieval, en el Occidente latino, especialmente entre los siglos XIII y XV, debido a los cambios que se produjeron en el ámbito político e institucional. Las monarquías se institucionalizaron influenciadas por las discusiones propuestas por la Universidad de Bolonia, generando la construcción de una cultura jurídica sistematizadora de los conceptos y criterios del ejercicio de la justicia sin abandonar la relación de estas teorías con el contexto social al que estaban destinadas. Los representantes municipales fueron ganando cada vez más protagonismo en algunos acontecimientos como el ascenso de la dinastía de Avís en Portugal (1383-1385) y sus aspiraciones y visión del mundo se exigían como una de las monedas de cambio del apoyo concedido y se reflejaban en la legislación y colecciones jurídicas elaboradas por los descendientes de Juan I de Portugal, como las Ordenanzas de Alfonso V de Portugal. Un espacio de superposición de derechos específicos sobre el derecho común emanado de la corte real y de cristalización de una tendencia a la singularidad jurídica portuguesa promotora de la jerarquización de las fuentes del derecho disponibles en la latinidad. Este trabajo se desarrolla a partir de la crítica histórica aplicada a los contenidos documentales, Las siete partidas del muy noble rey Don Alfonso el Sabio, Livro das Leis e Posturas y Ordenações Afonsinas
Palabras clave: Derecho común, iura própria, cultura jurídica medieval, centralización de la monarquía.
Abstract: The concept of justice came to be transformed in the medieval era in the Latin West, particularly between the thirteenth and fifteenth centuries, due to ongoing shifts in the political and institutional fields. Monarchies became institutionalized due to the influence of debates proposed by the University of Bologna generating the construction of a legal culture systematizing the concepts and criteria for the exercise of justice without abandoning the relationship between these theories and the social context to which it was destined. Municipal representatives came to play an increasingly important role in events such as the rise of the Joanine Dynasty in Portugal (1383-5) and their aspirations and worldview would be sought out as one of the currencies of exchange for the granting of support, reflected in the legislation and in the legal collections developed by descendants of John I of Avis, such as the Alfonsine Ordinations. This constituted a space in which private rights overlapped with the Common Law emanating from the royal court and which crystallized a tendency towards Portuguese legal singularity promoting the hierarchization of the sources of law available in Latin. This work is developed from historical criticism applied to documentary content, Las Siete Partidas del muy noble Rey Don Alfonso el Sabio, Livro das Leis e Posturas, and the Ordenações Afonsinas.
Keywords: Common law, Iura propria, medieval legal culture, centralization of the monarchy.
Résumé: Le concept de Justice a connu des transformations dans le contexte médiéval de l’Occident latin, et ce plus particulièrement du XIIIe au XVe siècles, en raison des changements en cours dans les champs politique et institutionnel. Les monarchies s’institutionnalisaient sous l’influence des débats promus par l’Université de Bologne, qui furent à l’origine d’une culture juridique systématisant les concepts et critères d’exercice de la Justice sans abandonner la relation de ces théories avec le contexte social auxquelles elles se destinaient. Les représentants municipaux gagnaient toujours plus en importance dans certains événements tels que l’ascension de la dynastie des Avis au Portugal (1383-5), et leurs aspirations et visions du monde seront utilisées comme monnaie d’échange du soutien concédé et se reflèteront dans la législation et dans les collections juridiques élaborées par les descendants de D. João I de Avis, à l’instar des Ordinations Afonsines. Il s’agissait d’un espace de superposition des droits privés sur le Droit commun émanant de la Cour royale et de cristallisation d’une tendance à la singularité d’une tradition juridique portugaise promouvant la hiérarchisation des sources de droit disponibles dans le monde latin. Cet article a été élaboré sur la base d’une critique historique appliquée aux contenus des documents Las Siete Partidas del muy noble Rey Don Alfonso el Sabio, Livro das Leis e Posturas et Ordenações Afonsinas
Mots clés: Droit commun , Iura propria , culture juridique médiévale , centralisation royale.
摘要: 由于政治和制度领域的不断变化,在中世纪时期 — 尤其是在13世纪至15世纪之间 — 在西方的拉丁语系国家(意大利,西班牙,葡萄牙和法国),司法的概念得到了确立。在博洛尼亚大学,司法与正义得到广泛的讨论,在新的形势影响下,君主制也日益机构化,制度化。在此社会背景和社会关系下,产生了一种系统性的法律文化,确立了司法正义的概念和执行标准。在葡萄牙,由于阿维斯王朝(1385-1580)的崛起,市政代表的作用变得越来越重要,他们的愿望和世界观被王朝政府重视,并被朝廷当成“交换货币”,以获取他们对王朝政府的立法和预算的支持。阿维斯王朝的若昂一世(D. João I de Avis) 及其后代非常重视城市议会代表们的意见,特别是《阿方索五世法典》中,皇家成文法接受了普通习惯法中有关私人权利的规定,体现了葡萄牙法律的统一化的趋势,这种成文法与习惯法统一化趋势乃是拉丁法系的特征。本论文对西班牙和葡萄牙俩国的一些古典法律文献的内容进行了历史性评价,这些文献是:西班牙国王阿方索十世发布的《阿方索国王法典7章 》(Las Siete Partidas del muy Noble Rey Don Alfonso el Sabio),葡萄牙国王发布的《法律法规汇编》(Livro das Leis e Posturas) 和《阿方索五世法典》(Ordenações Afonsinas).
關鍵詞: 普通法, 习惯法, 中世纪法律文化, 皇家集权.
Introdução
Na aplicação de Justiça a este estudo servimo-nos do conceito de Justiça formal, a qual implica na concepção de que o cumprimento da lei positiva é discricionário da Justiça conectando, portanto, a justiça à função legislativa. E as preocupações legais régias no contexto em análise subscrevem-se ao controle da violência daí conectarmos neste estudo a discussão da Justiça à aplicação da lei régia buscando reconhecer o monopólio monárquico do uso da violência e da aplicação da Justiça. Inclusive e principalmente a partir do século XIII quando se multiplicam os movimentos de defesa da aplicação de leis gerais nos reinos latinos.
Considerando-se, esta discussão no contexto medieval, a Justiça disporia de uma dimensão igualitária para aqueles que detinham determinado estatuto e ao mesmo tempo não igualitária em relação ao todo social de aplicação visto que os privilegiados, nobres, dispunham de imunidades, prerrogativas e privilégios enquanto os outros suportariam ônus ou desvantagens muito mais pesadas. Como nos diz Oppenheim (1997, p. 663-664), “tanto a igualdade quanto a desigualdade têm sido invocadas como critérios de justiça substancial em geral”, mas, essencialmente, neste contexto, a Justiça repousaria na desigual distribuição da Justiça. Devemos ainda agregar a esta discussão a dimensão moral da Justiça tratada como projeto divino a ser realizado pelos homens na ótica dos pensadores cristãos medievais. O bem comum, por exemplo, conceito cristianizado, seria permanente objeto de cobrança por parte da Igreja aos governantes, de forma que a desigualdade jurídica seria, assim, neste ponto, mitigada em alguns aspectos mais excessivos pelos valores da moral cristã vigente.
Trataremos o conjunto das iniciativas sistematizadoras do Direito e a decorrente busca pela aplicação de Justiça por parte das autoridades régias como campo de análise que se debruça sobre o ordenamento jurídico na medievalidade ibérica. Iniciativa que demanda definirmos as ferramentas conceituais a aplicar, respeitando, assim, os materiais documentais em sua especificidade de formulação e função a partir de critérios e métodos de abordagem adequados à sua natureza. Nesse “Direito sem Estado” de que nos fala Paolo Grossi, considerada a sua natureza plena de particularismos, o pluralismo jurídico medieval demanda a definição de Direito Comum. A Renovação dos Estudos de Direito Romano em Bolonha a partir dos glosadores e comentadores atualizariam legislações anteriores em busca de ferramentas aplicáveis em vários contextos, o que geraria uma uniformização de soluções institucionais jurídicas promotora da primeira “unidade interespacial do Direito” (GROSSI, 2014, p. 8-10). O Ius Comunne ou Direito Comum seria o primeiro produto desta experiência que passava pelo filtro de validade erudito da Universidade de Direito que sem desfazer-se de sua dimensão consuetudinária e social privilegiava os modelos legitimados pela Academia. Uma tendência que traria à baila a dialética entre o particular, o costume (mores) e a dimensão universal presente na dinâmica de construção doutrinal científica. Os juristas ao promoverem a interpretatio dos textos dotados de autoridade como o Código Justinianeu construíam as normas que vigeriam de forma atualizada nos séculos em análise. Como nos diz Grossi (2014), não se trata de uma “exegese” dos textos antigos ou de uma função meramente legislativa com avaliação de validade visto que tal trabalho conteria também uma dimensão de instrumentalidade, adequando linguagem precisa e ferramentas de aplicação uniformizadas, além da reflexão plena de preocupações com sua própria atualidade, realizada a partir desta tradição reconhecida dos textos das coleções do passado, que conferia validade às formulações coetâneas dos eruditos medievais.
A dinâmica de universalidade de valores presente nas demandas e ferramentas jurídicas e administrativas em geral trazidas pelas Universidades relacionava-se ainda, com o direito privado, fosse ele feudal, mercantil ou outro. Este último preocupado em definir prerrogativas de sujeitos específicos não chegaria a ter uma dimensão totalitária e se por vezes contrariava alguns dos princípios do Direito Comum, nunca o negava por completo. Seria esta a verdadeira natureza e especificidade do Direito medieval, o seu pluralismo jurídico que permitia a convivência de uma dinâmica válida de produção de princípios universais, o Direito Comum (Ius Commune), com particularismos jurídicos vinculados à natureza dos sujeitos a eles referidos, os Direitos particulares (Iura propria) em convivência e covigência. Assim, se caracterizava a ordem jurídica medieval, fundada em autonomias, mas também almejando, especialmente a partir do século XIII a sistematização e eficiência que o Ius Commune lhe facultava (GÓMEZ ROJO, 1999; GROSSI, 2014).
A especificidade dos ordenamentos jurídicos exige ainda, de nós pesquisadores, uma integração destes materiais documentais com seu contexto de produção, não o contexto absoluto, mas os aspectos contextuais que dialoguem com a problemática na qual pretendemos nos deter. Um estudo sobre a Justiça, seus conceitos e formas, num recorte medieval seria muito amplo, seria mais um tema que um problema, daí estabelecermos um foco mais específico de abordagem, ao analisarmos as transformações que o contexto de crise de sistemas e valores na Cristandade latina no século XIV promoveria no conceito de Justiça contido nos ordenamentos régios no reino português. Assim, conseguimos analisar, como nos recomenda Helmut Coing (1977, p. 57), as “relações existentes entre as circunstâncias extrajurídicas e o ordenamento jurídico” justificando a sua análise.
Em estudos anteriores sobre relações de poder, legitimidade e fidelidade neste contexto de esgotamento de valores e sistemas observamos vários elementos contextuais que de certa forma geram respostas formais em diálogo com a base social do reino português. A integração de Portugal e dos outros reinos ibéricos na Guerra dos Cem Anos a partir de 1366 seria um deles ao promover questionamentos dos modelos e padrões de fidelidade feudal plenamente válidos até o século XIII. Os partidarismos em frenética rotatividade dentro e fora dos reinos, promovidos por princípios cada vez mais pragmáticos, esvaziados de seu significado teórico original manifestariam a crise do modelo feudal de governação. A monarquia teria, assim, de rever os vínculos de fidelidade régia antes prioritariamente pautados na dimensão vassálica, exclusiva do corpus nobiliárquico, para critérios mais abrangentes pautados no vínculo prioritário de natureza. As populações das autarquias, vilãs, autóctones manifestariam sua precoce adesão aos novos modelos de fidelidade ao rei, senhor primeiro da terra que eles defendiam em primeiro lugar, no entanto, não escapariam à tensão gerada pela convivência e vigência de ambas as formulações de fidelidade, a feudal e a natural (FERNANDES, 2016).
Aspectos políticos que seriam agravados por uma crise espiritual decorrente da cisão da Cristandade latina em duas e três partes com os fenômenos consecutivos do Exílio de Avignon (1307-1377) e o Cisma do Ocidente (1378-1422). A disponibilidade de duas ou até três fontes de legitimidade pontifícia, Roma, Avignon e Pisa fragilizava profundamente as pretensões contidas no conceito de Plenitudo Potestatis defendidas até inícios do século XIV a partir da submissão de uma das frações pontifícias ao reino francês. Além disso, a divisão da Cristandade latina empobrecia o conteúdo da auctoritas deixando os agentes representantes da potestas com quem os Papas dialogavam numa concorrência complementar sem uma alternativa segura e incontestável de suas próprias legitimidades. Os efeitos desta fragilidade seriam sentidos em Portugal especialmente a partir de 1383 quando se abriria a primeira crise dinástica da história do reino (SOUZA, 1997; ULLMANN,1983, 1985).
A Pandemia que se espalharia a partir de Gênova em 1348 ceifando vidas contribuiria juntamente com a generalização dos conflitos para uma grave quebra demográfica que atingiria elite e pessoas comuns inclusive os reis. Assim, as crises dinásticas se multiplicariam gerando novas formulações de legitimidade das opções disponíveis, por vezes candidatos bastardos, clérigos e estrangeiros, ou seja, dispondo de frágil legitimidade em termos clássicos, prioritariamente sanguínea e dinástica.
A resposta a estas muitas crises seriam trazidas pelos egressos das Universidades neste contexto proporcionando elaborações jurídicas a serem aplicadas pela monarquia na construção de formulações de legitimidade e fidelidade adequadas à suas necessidades, mas também amparadas nas discussões dos textos de autoridade. Assim, como nos recomenda Coing (1977, p. 61), ao identificarmos a “origem do incômodo” que geraria a formulação de uma solução jurídica identificando as tensões entre seus apoiadores e os resistentes parece-nos termos condições de justificar este estudo da justiça com os fatores extrajurídicos acima elencados.
Um trabalho que nos leva a avaliar a iniciativa dos primeiros reis de Avis, uma dinastia ilegítima, frente às contingências contextuais de crise em vários âmbitos deste contexto e à conveniência em adotar reformulações da relação política. Transformações que permitiriam a cooptação de bases sociais mais amplas que aderissem ao projeto avisino, as quais sublimassem a superioridade teórica do Direito feudal em benefício do vínculo de natureza à terra e ao rei. Uma recepção plena de significado para as duas partes, de um lado uma monarquia carente de apoios tradicionais e do outro contingentes de excedentes sócio-políticos da antiga formulação prioritária e por vezes, exclusivista, de validade da vinculação feudal. Posto isto, passemos às discussões mais específicas que envolveram esta florescente relação complementar sem deixar de contemplar as resistências que este movimento sofreria.
Controle jurídico da justiça transformada em justiça do rei (XIII-XIV)
A Justiça régia, neste contexto que qualificamos como de transformação, focaria na contenção das guerras privadas, assuadas, arroido ou peleja, guerra privada convocada pelos senhores para vingar ofensas familiares ou “ajuntamento de gente armada para fazer guerra, assaltar algum castelo ou vila” (VITERBO,1962-1965, v. I, p. 627). Ação que envolvia a convocação, por parte de nobres, da parentela, vassalos e dependentes a fim de promover vinganças particulares demonstrando o seu potencial bélico e sócio-político frente aos outros nobres e à própria monarquia (CAETANO, 1985). Em Portugal, especialmente a partir do reinado de Afonso III (1245/8-79), direcionava-se a sua política de ação inibitiva fundamentado na intrínseca dimensão parcial destas vinganças privadas, de onde adviria sua ilegitimidade de realização.
No decurso deste processo observamos a conservação dos esforços dos iura propria dos nobres para dar conta das hostilidades e tensões internas não dirimidas que afetavam estas categorias privilegiadas. A validade da resposta às violências promovidas dentro dos quadros nobiliárquicos estaria vinculada à causa geradora da agressão, assim, nesta ótica nobiliárquica seriam consentidas vinganças privadas se resultassem de causas justificáveis e se fossem aplicadas em conformidade com regras reconhecidas por este grupo.
A Justiça seria, no entanto, objeto de uma progressiva regulação jurídica régia para os casos de homicídio, por exemplo, fosse no bojo de uma vingança privada ou de um latrocínio cujo autor entrava na categoria jurídica de omézio “homicida responsável pela morte de homem, ou mulher, feita por autoridade própria, injusta, violenta, e severamente prohibida. (VITERBO, 1962-1965, v. 2, p. 125) e as Leis gerais tentariam englobar todos que caíssem nesta condição. A convocação de assuadas era comum a fim de promover-se uma revindicta, “vingança a uma ofensa pública e reconhecida” (TORRES, 2000, p. 338-339) e justificada no código de costumes vigente do corpus nobiliárquico. Desde 1264, encontramos o primeiro instrumento legislativo do rei D. Afonso III proibindo estas iniciativas amparadas na ideia de que apenas o rei e seu funcionalismo poderiam promover a Justiça. Em 1272 encontramos um reforço do mesmo princípio legislativo com agravante das penas previstas pelo seu desrespeito (SILVA; RODRIGUES, 1971) o que reflete a resistência à sua validade e ampla aplicação, sentida nas contínuas reformulações promovidas por reis posteriores sobre este tema, D. Dinis em 1302 e D. Afonso IV em 1346 (COSTA; NUNES,1984, v. 5, tít. 53, p. 185-197; 284-285).
Ações centralizadoras da aplicação de Justiça através dos legistas e juristas que cercavam os reis, as quais acabariam por elaborar uma cultura jurídica medieval, mais que isso, uma experiência histórico-jurídica medieval ao conservarem uma dinâmica de relação do Direito com a sociedade à qual estes princípios se aplicavam (GROSSI, 2014). Esta dimensão social de diálogo destes agentes deveria promover um diálogo competente entre a base social, suas tradições consuetudinárias, as tendências da Universidade e a “leitura que faziam da realidade social e da sensibilidade que tinham acerca da forma mais ajustada de regular as tensões sociais. (HESPANHA,1982, p. 440). Um esforço necessário para se alcançar uma competente recepção, ou melhor, reconhecimento, quiçá empatia entre a norma jurídica e a sociedade, pré-requisito de sua validade.
É neste contexto que a figura do indivíduo seria novamente trazida, associada ao conceito de civis,cidadão e não mais laicus, termo relativo cuja designação decorria de sua relação com o conceito de cristão. A Cristandade latina permaneceria como definição coetânea deste espaço territorial aqui abordado, mas, as concepções de poder em atualização atribuiriam cada vez mais, conotações laicas e singulares a seus membros. Atualizações que impulsionariam também a concepção de aplicação dos critérios jurídicos definidos pela especificidade das questões em disputa, assim como a consideração da relevância do local onde se aplicava o crime e da naturalidade dos sujeitos envolvidos na questão (HESPANHA, 1982).
O vínculo de natureza ligaria diretamente ao rei, senhor da terra, todos os membros desta comunidade política ultrapassando em amplitude e importância qualquer vinculação vassálica a um senhor em particular. Conceito definido num dos tratados mais clássicos de Direito Feudal, as Siete Partidas de Afonso X de Leon e Castilla (1252-1284) rei que teve de lidar com contingentes híbridos de comunidades dentro do reino que governava aplicando as tendências de toda Cristandade da sua época, de construção de uma base legislativa e jurídica comum (LOPEZ, 1844). Cristãos, muçulmanos, judeus, estrangeiros deveriam ser tratados de forma distinta perante a Lei e Justiça a partir de experiências anteriores como pode-se perceber nos vários exemplos Afonsinos, o Fuero Viejo de Castilla (c.1248) atualizado e homologado através do Ordenamiento de Alcalá por Afonso XI em 1348. O Fuero Real de Castilla (c.1255), o Espéculo (1255-1260), até às já mencionadas Siete Partidas (1256-1265), igualmente outorgadas posteriormente à sua coleção. O esforço de sistematização desta última começara na segunda metade do século XIII, o rei Afonso X que herdara um reino expandido e unificado por seu pai, Fernando III (1230-1252), buscaria uma herança equivalente em grandiosidade e seria chamado de o Sábio devido à sua dedicação a construir as bases de identidade de um reino que reunia tradições leonesas, galegas, castelhanas, judaicas e moçárabes.
O Direito Comum, em pleno desenvolvimento, com sua proposta de uma base legítima de argumentos e conceitos atualizados ao século XIII, apresentava-se como instrumento eficiente de acolhimento e inserção dos vários iures proprias. Entendidos como direitos particulares de base consuetudinária no patrimônio jurídico e científico de caráter universal oferecido pela renovação dos estudos de Direito Romano de Bolonha. Não temos como aferir as condições de aplicabilidade imediata destes princípios que manifestam um diálogo da Corte que também patrocina uma escola de tradutores em Toledo com as comunidades plenas de autonomias, regras e vínculos particulares. No entanto, sabemos que as suas obras seriam em boa parte trazidas à luz de forma oficial apenas por seu bisneto, Alfonso XI (1312-1350) em 1348, quando a figura régia demandava uma tendência ao monopólio legislativo e jurídico crescente. Seriam interpretadas e consideradas legítimas em boa parte da Península Ibérica, inclusive no reino português, daí partirmos para uma breve análise deste código no que respeita ao tema central deste trabalho, o das transformações no conceito de justiça.
Nesta obra, no contexto de sua aplicação mais oficial, segunda metade do século XIV, as vinculações em suas várias formas: preito e menagem, acontiados, criatio sinalizava para uma versão mais ampla do Direito que partia do rei, um Direito natural que abrangeria a todos, inclusive vilãos, de formas distintas, mas todos sob a mesma égide régia, definida na década de 1960, por Hilda Grassotti (1969), como a feição regalista das Partidas.
Segundo as Partidas, “La naturaleza es la obligación que tienen los naturales com su señor natural, con el rey. Es la lealtad que le deben” (IGLESIA FERREIRÓS ,1971, p. 195). Os vassalos de um rei não poderiam se escusar de cumprir as obrigações previstas pelos vínculos de natureza em razão de um juramento de fidelidade particular a este ou aquele senhor, pois, a dimensão da natureza estaria num plano geral e a vassalidade no particular. Mas a novidade que decorria dos processos descritos até aqui, era a promoção de uma integração dos homens comuns, não nobres, vilãos excluídos da possibilidade de vinculação vassálica, a esta vinculação direta com a monarquia através do vínculo de natureza. A naturalidade definiria a pertença de cada indivíduo a uma coletividade e implicaria na atribuição de responsabilidades como a sua participação política indireta, realizada na forma representativa, atingida através da escolha de procuradores dentre os componentes de sua coletividade junto às Assembleias de Cortes Gerais. Mas, e quais seriam os efeitos disto na Justiça régia?
Observa-se a tendência à identificação cada vez mais especifica dos crimes e tipos de violência que adquirem maior transcendência quando associados à origem da quebra da paz por parte de um indivíduo frente à sua coletividade cívica como preconizava Bártolo de Sassoferrato, tornando cada vez mais singular a responsabilidade pelos delitos ou a quebra da paz comunal. O cidadão ganhava protagonismo na sua relação natural com a sua coletividade cívica, realidade política na qual se transformavam, neste contexto, os reinos, abalando a anterior exclusividade dos pressupostos universais cristãos na definição e conceituação da Cristandade. O universal caberia, então, nas fronteiras de cada reino, em sua singularidade (GAUVARD, 2002).
A afirmação de tais pressupostos promovia o reforço da prioridade do vínculo de natureza entre o rei e seus súditos numa relação de senhorio natural. No entanto, em sua aplicação surgiriam desafios e potenciais sobreposições. Como respeitar simultaneamente uma vinculação do Direito privado, contratual, a vassalidade, ainda vigente, com outra vinculação de caráter público ligada ao local de nascimento e naturalidade? O nobre castelhano Juan Manuel (1991), em sua obra, El Libro de los Estados tenta desvincular natureza de vassalidade para responder às suas próprias dicotomias com o seu rei, manifestando uma visão anacrônica de direito nobiliárquico. Afonso XI, por sua vez, considerava traição quando um vassalo colocava a sua fidelidade acima da devida ao rei por ser senhor da terra, conforme o conteúdo das Partidas(GRASSOTTI, 1969). Cada vez mais observa-se a prerrogativa régia na decisão da hierarquia entre estes vínculos.
Em Portugal não seria diferente, desde o reinado de D. Fernando (1367-1383) encontramos estas preocupações nas várias iniciativas legais régias no ano de 1375 como uma “providência sobre usurpações e abusos de jurisdição dos fidalgos” de setembro de 1375, referente às jurisdições cível e crime, concedidas a indivíduos privilegiados, a confirmação de exceções a um pequeno mas seleto grupo de nobres do mais alto escalão, devidamente identificados. Exceções e privilégios justificados nas funções que exerciam e não apenas em sua origem, condes, almirante, alferes-mor, priores e mestres das Ordens militares e Mosteiro de Alcobaça e em alguns casos nos laços familiares, alguns Infantes (COSTA; NUNES, 1984, v. 2, tít. 63, p. 394-405). Uma imunidade funcional que, no entanto, não permitia um abuso dos limites da jurisdição prevista e reforçada nesta lei aos privilegiados definidos, limitando a extensão desta condição a um universo maior de categorias não discriminadas, os fidalgos em geral.
Há também outra lei sobre as malfeitorias dos fidalgos de conteúdo e estrutura relacionados à anterior, a qual estabelece as condições de sua aplicação conforme o estatuto dos elementos por ela atingidos, A qual reflete uma mesma disposição de controle dos excessos de aplicação do Direito particular dos privilegiados identificados pela lei anterior (COSTA; NUNES, 1984, v. 2, tít. 60, p. 377-390).
Outra provisão que seria resposta a queixas dos municípios na Assembleia de Cortes Gerais de Lisboa de julho de 1371 (MARQUES; DIAS, 1990), autoriza os Concelhos a não pagarem préstamo, doação régia, vitalícia e revogável, de terras e direitos para subsidiar o sustento pessoal dos nobres acontiados (VITERBO,1962-1965, v. 1, p. 129-130) se não fosse da vontade dos municípios. D. Fernando serviu-se da ampla concessão de préstamos no pagamento das contias aos seus vassalos, situação que tenta relativizar diante das queixas municipais, desautorizando, de certa forma, as cartas de privilégio concedidas por ele próprio a particulares (COSTA; NUNES, 1984, v. 4, tít. 64, p. 226-227). Outra lei, também de D. Fernando limitaria o pagamento régio de contias , “certa porção de dinheiros, com que a generosidade dos Reis antigos honrava os seus Nobres, e fiéis Vassalos”, apenas aos primogênitos das linhagens (VITERBO, 1962-1965, v. 1, p. 306-307) reduzindo o impacto do vínculo vassálico nas finanças régias. Um conjunto de medidas, que visava conter também, em outras instâncias a apropriação e uso indevido da jurisdição concedida pelos reis aos nobres sempre privilegiando a ampliação dos vínculos com mesteirais e vilãos em geral e limitando os privilégios dos nobres.
Como podemos observar a ampliação do conceito de fidelidade ao rei limitava as prerrogativas das elites defensoras de seus iura propria pelo menos em alguns temas e simultaneamente concentrava na Corte régia a fonte das concessões ou castigos, além do exercício da justiça segundo princípios e padrões universais, do Ius Commune.
Um Direito cada vez mais português surgiria, promovendo, inclusive, uma resistência na aceitação das alegações fundamentadas única e exclusivamente nas fontes de direito castelhanas em Portugal.
Reflexo destes movimentos no esforço das coleções jurídico-legislativas portuguesas
A Universidade portuguesa ou Estudo Geral que de Lisboa seria transferido para Coimbra onde permaneceria até 1537 recepcionaria todas estas tendências e as potencializaria no reino perante conjuntura e interesses particulares da monarquia (DOMINGUES, 2016). A sua criação foi devida ao rei D. Dinis (1279-1325), ainda na primeira dinastia e já em seu reinado observam-se as primeiras manifestações de autonomia jurídica e legislativa especialmente em relação à coleção castelhana. Um reflexo desta tendência seria a encomenda régia de uma tradução das Siete Partidas para o português arcaico e seu neto, Pedro I (1357-1367) em 1361 revelaria a indisposição em relação à aplicação desta coleção em Portugal no decurso de Cortes Gerais. Numa escala de influência externa declara a validade de aplicação do Direito Canônico nos assuntos eclesiásticos e espirituais, mas em relação ao Direito Cível relativiza a aplicação da coleção castelhana mesmo que traduzida no reino. “E he mais razom de o guardarem em todo o nosso senhorio...que as Sete Partidas, feitas per ElRey de Castella, ao qual o Regno de Portugal nom he sobgeito: mas bem livre, e izento de todo” (AMARAL,1945, p. 213-214). Um Direito próprio com identidade jurídica e legislativa portuguesa se fortalecia, encaminhando-se à hierarquização crescente das fontes do Direito e suas subsidiárias (HESPANHA, 1982, p. 495).
D. João I de Portugal (1383-1433) teria de lidar com estes dilemas agravados pelo seu próprio contexto de quebra dinástica onde se agravava a fricção entre as duas naturezas de vinculação. Após a ascensão da dinastia de Avis o papel dos juristas e da Universidade mostra-se ainda mais determinante na construção da legitimidade de autonomia portuguesa frente às teorizações e experiências castelhanas. D. João I por volta de 1424 patrocinaria a tradução do Código Imperial de Justiniano na versão que dispunha da Glosa de Acúrsio e Comentários de Bártolo de Sassoferrato, romanistas italianos da primeira metade do século XIV e dois anos depois a cristalização dos conteúdos válidos destas fontes através da redação de cópias idênticas disponíveis aos jurisconsultos na Câmara de Lisboa. Tal iniciativa visava a promoção de uma interpretação unívoca do Direito, estabelecendo uma hierarquia entre as várias fontes do Direito Comum e, nos casos em que estas fossem indecisas ou obscuras, a um padrão obrigatório de decisão (HESPANHA, 1982, p. 496-500).
Uma aproximação preferencial a um Direito transpirenaico cuja conotação cívica e comunal atendia aos objetivos da dinastia ascendente. A começar pela construção de uma base unívoca de fontes de Direito subsidiando a uniformização a partir dos princípios do Direito Comum submetendo os iura propria e o Direito feudal, em particular, a uma dimensão secundária. O vínculo da natureza que aproximava de forma direta os súditos cidadãos ao rei sublimava as indesejadas intermediações dos vínculos particulares, vassálicos. Assim, a lei e a justiça válidas seriam, cada vez mais aquelas formuladas pela burocracia régia tentando sempre aproximar seus conteúdos e razões das experiências do coletivo português afim de promover a empatia de reconhecimento mútuo e validade destas formulações por parte das bases sócio-políticas municipais e dos estratos excedentes da nobreza tradicional que o cercava mais diretamente.
As sobreposições ou hierarquizações indevidas das fontes de Direito permaneceriam gerando dúvidas da legitimidade de alguns princípios e práticas o que demandaria ainda em vida de D. João I o fomento da iniciativa de organização de uma obra que pudesse agregar uma reflexão de validade de leis e juízos anteriores ao esforço de aplicação de uma Justiça em termos quatrocentistas.
[...] Acordamos per acordo dos do Nosso Conselho fazer huma geeral compilaçom delas, tirando algumas, que nos pareceo sobejas, e sem proveito, e outras declarando, e acrescentando, e interpretando, segundo per direito, e bôa razom achamos, que o deviao seer, emendando, e fazendo outras de novo, segundo nos bem pareceo, que a uzança da terra, e pratica das gentes deseja (COSTA; NUNES, 1984, v. 1, p. 7)
As Ordenações Afonsinas, outorgadas apenas em 1446 pelo Regente do reino, o Infante D. Pedro, responderiam a estas demandas de formatação das bases da singularidade jurídica portuguesa em conjunção aos princípios do Direito Comum.
Estabelecemos, e poemos por Ley, que quando alguu caso for trazido em pratica, que seja determinado per algua Ley do Regno, ou estilo da nossa Corte, ou custume dos nossos Regnos antigamente usado, seja per eles julgado, e desembargado finalmente, nom embargante que as Leyx Imperiaaes acerca do dito caso ajam desposto em outra guisa, porque onde a Ley do Regno dispõem, cessam todalas outras Leys, e Direitos; e quando o caso, de que se trauta, nom for determinado per Ley do Regno, mandamos que seja julgado, e findo pelas Leyx Imperiaaes, e pelos Santos Canones (COSTA; NUNES, 1984, v. 2, tít. IX, p.161-162).
As Ordenações Afonsinas, por exemplo, estabelecem uma clara acepção da crescente singularidade jurídica portuguesa, assim, o Direito imperial (Corpus Iuris Civilis), a glosa de Acúrsio e a opinião de Bártolo seriam, nesta ordem, consideradas fontes subsidiárias do Direito em Portugal (COSTA; NUNES, 1984).
Além disso, representariam importantes atualizações dos textos de autoridade sem fazer um recurso estrito a um dos textos, mas promovendo uma interpretação e adequação dos princípios neles contidos à realidade coeva a estes juristas do XIV e XV. Uma saída indispensável aos reis ascendentes após uma crise dinástica demonstrando que o contexto podia acelerar a recepção de tendências do Direito e da Justiça. A uniformização das práticas jurídicas num contexto de convivência do Direito Comum com os Direitos particulares limitava, no entanto, a sua covigência num mesmo nível de validade. Os diálogos com o contexto extrajurídico demandante destas normas e das legitimidades aspirantes tornava-se, assim, fundamental para o reconhecimento das leis, penas e conceitos jurídicos aplicados construindo a cultura jurídica medieval em constante relação com o social (FERNANDES, 2016, 2018).
As crises dinásticas se multiplicavam e seus efeitos seriam agravados por importantes quebras demográficas, inclusive nos quadros nobiliárquicos e municipais afetados pela pandemia da peste e pelos efeitos da Guerra dos Cem Anos e seus ecos na Península Ibérica. As transformações dos modelos e valores válidos para a cultura cavaleiresca impactariam nas relações régio-nobiliárquicas promovendo um estreitamento de maior interesse e menor concorrência entre a monarquia e os quadros nobiliárquicos de mais baixo escalão por ela atraídos (FERNANDES, 2013). O Direito Comum e o predomínio do vínculo de natureza sobre o feudal teriam, assim, neste contexto, menos concorrência.
A crise da espiritualidade unitária que se abriria com o Cisma do Ocidente promoveria uma verdadeira crise de identidade da legitimidade espiritual concedida pelo Papado. Roma e Avignon dividiriam entre si as facções em disputa na guerra desgastando ao longo dos cerca de cem anos de duração dos dois fenômenos devastadores da legitimidade pontifícia, o Exílio de Avignon e o Cisma do Ocidente, pelo menos no seu âmbito de aplicação. Além disso, ainda que o Direito Canônico mantivesse sua autoridade sobre os temas espirituais e eclesiásticos teria menos espaço de interferência nos assuntos relativos à governação régia. Os reis latinos assimilariam conceitos universais que lhes atribuíam dimensão imperial dentro de seus limites territoriais convivendo com esforços de resgate da universalidade abalada da Auctoritas Sacrata Pontificum. A Justiça e a Lei seriam suas ferramentas indispensáveis para reforçar a ideia da governação a partir da justiça emanada do rei e da lei ditada pelo rei, (FERNANDES, 2016) último grau de apelação e plenipotenciário da construção e manutenção da Paz e do Bem Comum junto ao corpo cívico da coletividade do reino.
Conclusões
O Direito e o conceito decorrente de Justiça aplicada pela monarquia especialmente a partir do século XIV manifestavam a adoção do senhorio natural. As especificidades portuguesas seriam assim, espelhadas na legislação e Justiça dimensionadas em termos do alcance pretendido pelo Direito Comum.
O particular não corresponderia apenas aos interesses de grupos particulares, mas sim, às tonalidades identitárias do povo português sintetizado e projetado pelos agentes do Direito em consonância com os interesses das monarquias neste contexto de esgotamento de sistemas e valores feudais.
A Justiça válida era do rei, não porque ele decidisse arbitrariamente sobre as questões que lhe eram trazidas, mas porque a monarquia que o rei representava seria o filtro de validade da sistematização promovida pelos juristas. O crime de traição ao senhorio natural, à terra, assumia, neste contexto, uma dimensão de gravidade que não seria minimizado pela concorrência de uma vassalidade particular a outro senhor que não fosse o rei. E com esta acepção de Justiça e Direito cada ser humano nascido ou morador oficial e permanente no reino português ganhava estatuto de vassalo do rei, independentemente de seu estatuto social.
Assim, o incômodo da frágil legitimidade régia associado à obrigação de subordinar direitos particulares ao Direito Comum levaria os reis a buscarem cada vez mais nas camadas municipais diretamente a eles vinculados pelo senhorio natural, o apoio necessário à sua manutenção no poder. As resistências nobiliárquicas à sua ascensão seriam dirimidas formalmente a partir do princípio de prioridade do vínculo de natureza sobre o feudal. A Justiça régia, por sua vez, teria resistência imediata manifesta por boa parte dos estratos nobiliárquicos, mas também, na sequência da estabilização das dinastias ascendentes, das autarquias, lesadas em boa parte de sua autonomia, direitos e foros tradicionais. A monarquia portuguesa dos séculos XIV e XV lidaria com os meios de aplicação legal e jurídica destes princípios relacionando-se com seus cidadãos através de uma burocracia que construiria uma expressão portuguesa a partir de um Direito Comum.
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