Resumo: Problematiza a recepção das teorias racialistas, produzidas no contexto acadêmico da Faculdade de Medicina Bahia, pelas autoridades jurídicas e policiais da Bahia republicana, através da análise de um conjunto de processos crimes de homicídio e tentativas de homicídio ocorridos em Salvador, bem como de teses apresentadas à referida faculdade e relatórios produzidos nas dependências prisionais do Estado. A partir da leitura de Nina Rodrigues e de algumas teses de formandos de medicina, adeptos das suas teses e proposições de inspiração lombrosiana, busca compreender a recepção delas dentro e fora dos meios acadêmicos, onde parece ter melhor vicejado. Dialogando com diversos autores, tem os conceitos de biopolítica e biopoder, pensados por Michel Foucault, como perspectiva de compreensão do fenômeno de racialização da justiça a partir de um determinado saber médico.
Palavras-chave: saber médico, biopolítica, criminalidade, justiça, racialização.
Resumen: Este trabajo cuestiona la recepción de las teorías racialistas, en el contexto académico de la Escuela de Medicina de Bahía, producidas por las autoridades judiciales y policiales del Salvador de Bahía republicano. Analiza un conjunto de procesos por delitos de homicidio e intento de homicidio ocurridos en Salvador de Bahía, así como las tesis presentadas en esa facultad y los informes redactados en las instalaciones penitenciarias del Estado. A partir de la lectura de Nina Rodrigues y de algunas tesis de estudiantes de Medicina partidarios de sus tesis y proposiciones de inspiración lombrosiana, busca comprender la recepción de sus ideas dentro y fuera de los círculos académicos, donde parecen haber florecido mejor. En diálogo con varios autores, utiliza los conceptos de biopolítica y biopoder, pensados por Michel Foucault, como perspectiva para entender el fenómeno de la racialización de la justicia desde una determinado saber médico.
Palabras clave: saber médico, biopolítica, criminalida, justicia, racialización.
Abstract: The following work problematizes the reception of racialist theories within the academic context of Bahia Faculty of Medicine, as produced by the legal authorities and the police in the Bahia of the Brazilian Republic. It analyzes a set of legal cases concerning homicide and attempted homicide to have occurred in Salvador, as well as theses presented to the Faculty and reports produced in the state’s prison facilities. Based on a reading of Nina Rodrigues and several theses proposed by medical graduates inspired by his theories and those of Lombroso, we seek to understand their reception inside and outside the academic sphere, where they seem to have better flourished. In a dialogue with a variety of authors are Michel Foucault’s concepts of biopolitics and biopower, as a means of understanding the phenomenon of the racialization of justice based on specific medical knowledge.
Keywords: medical knowledge, biopolitics, criminality, justice, racialization.
Résumé: Ce travail met en perspective la réception, dans le contexte académique de la Faculté de médecine de Bahia, des théories racialistes produites par les autorités judiciaires et policières de la Bahia républicaine. Seront ici analysés un ensemble de procès afférents à des homicides et tentatives d’homicide ayant eu lieu à Salvador, ainsi que différentes thèses soutenues auprès de la faculté susmentionnée et autres rapports rédigés dans les établissements pénitentiaires de l’État. À partir de la lecture de Nina Rodrigues et de quelques thèses d’étudiants en médecine adeptes de ses positions et propositions d’inspiration lombrosienne, nous chercherons à comprendre leur réception dans et hors les milieux académiques où elles semblent avoir eu le plus de succès. Dans un dialogue avec différents auteurs, nous nous appuierons sur les concepts de biopolitique et de biopouvoir pensés par Michel Foucault comme perspective de compréhension du phénomène de racialisation de la justice à partir d’un certain savoir médical.
Mots clés: savoir médical, biopolitique, criminalité, justice, racialisation.
摘要: 巴西共和时期,巴伊亚州的司法和执法当局采纳了巴伊亚州医学院的关于危害生命罪的话语,该学院的医学犯罪学深受意大利犯罪学家切萨利·伦勃罗索(Cesare Lombroso)学派的影响。这个学派认为犯罪具有遗传特征,一些人“生来就是罪犯”,他们有共同的“生物缺陷”。在此话语影响之下,巴伊亚的犯罪学迅速种族化。本文分析了萨尔瓦多的一系列杀人犯罪和未遂杀人的案件记录,以及巴伊亚医学院的师生针对该州监狱及其附属设施所作的一些调研报告。作者重点阅读分析了尼娜·罗德里格斯(Nina Rodrigues)的论著和他所指导的学生们的一些论文,我们认为,他们深受伦勃罗索的生物犯罪学影响,把犯罪学种族化。由于这种思想深受学术界内外的青睐,从而更加剧了司法界与警察界的种族主义行为。我们引用米歇尔·福柯(Michel Foucault)的生物政治和生物权力的概念,批判这种所谓的医学知识把犯罪问题种族化,从而导致了司法与执法行为的种族化。本文指出了司法种族化的荒谬论及其产生的社会后果。
關鍵詞: 医学知识, 生物政治学, 犯罪, 司法, 种族化.
Artigos
Crimes e criminosos em Salvador (1890-1930): Teses médicas, discursos e recepção jurídico-policial
Delitos y delincuentes en el Salvador de Bahía (1890-1930): tesis médicas, discursos y recepción jurídico-policial
Crimes and criminals in the Salvador, Bahia (1890-1930): Medical theses, debates, and the reception by the law and police
Crimes et criminels dans la Salvador (1890-1930) : Thèses médicales, discours et réception juridico-policière
巴西共和时期 (1890-1930年) 萨尔瓦多市的危害生命罪:医学论著,话语以及司法界与警察界的采用
Recepción: 21 Diciembre 2020
Aprobación: 03 Marzo 2021
Considerações gerais acerca da criminalidade nas cidades, do final do século XIX e primeiras décadas do século XX, com acentuado apoio nas teorias sociológicas, concluem por sua associação aos processos rápidos de industrialização e urbanização e à intensidade dos movimentos migratórios deles decorrentes. Sugerem, ainda, que os crimes contra a vida são mais comuns nas áreas rurais, enquanto os crimes contra o patrimônio – roubo, furto e estelionato – seriam típicos das áreas urbanas (PINHEIRO, 1983).
Todavia, o fato destes últimos aparecerem em maior número nas estatísticas policiais das principais capitais brasileiras na Primeira República não significa que nelas tenha havido um baixo índice de violências interpessoais naquele período da história. Pelo contrário, os crimes contra a vida – homicídios e tentativas de homicídios – foram ocorrências igualmente favorecidas pela concentração de indivíduos que, nas cidades, experimentaram a desintegração e o afrouxamento de normas e regras de convívio, supostamente garantidos por instrumentos de controle social como a família, a comunidade e a religião. Acrescente-se a estes aspectos as frustrações, a opressão e a miséria, bem como a cultura de individualização de muitos homens submersos no anonimato da massa de despossuídos das populações citadinas, que instituíam a violência como moralidade. (FRANCO, 1983).1
Pensar a criminalidade implica em também refletir sobre os instrumentos de punição e vigilância. As reflexões então correntes, notadamente nas grandes cidades europeias e norte-americanas, colocaram em discussão os procedimentos de prevenção da criminalidade, as práticas carcerárias e a possibilidade de recuperação do criminoso. Em Vigiar e punir, Foucault (1987, p. 92) observa que, a partir do século XIX,
[...] a relação de poder que fundamenta o exercício da punição começa a ser acompanhada por uma relação de objeto na qual se encontram incluídos não só o crime como fato a estabelecer segundo normas comuns, mas o criminoso como indivíduo a conhecer segundo critérios específicos.
Da relação acima mencionada – que remete à ideia de deslocamento das ocorrências criminais da alçada exclusivamente jurídico-policial para a competência das ciências – decorreu a formulação de diversas teorias, especialmente médicas, explicativas da conduta delinquente, e a elaboração de projetos de prisões, casas de correção, fábricas, escolas, orfanatos etc. Nestes projetos constavam reformas arquitetônicas e administrativas, com vistas ao aperfeiçoamento destas instituições de micropoderes encarregadas das tarefas de isolamento e regeneração dos infratores e criminosos, da disciplinarização dos corpos e mentes dos trabalhadores, bem como da doutrinação de indivíduos considerados potenciais delinquentes.
Michelle Perrot (1988), ao abordar a problemática carcerária da França oitocentista, faz um curioso relato das opiniões em torno da prisão ideal defendida pelos franceses e que tiveram como referências básicas os modelos penitenciários americanos de Cherry-Hill e Auburn. O primeiro, “que prevê o sistema celular de dia e de noite”, e o segundo, que defende a adoção “do isolamento celular à noite e o trabalho coletivo e silencioso durante o dia” (PERROT, 1988, p. 262-263). No Brasil republicano, de um modo geral, a organização carcerária remete ao modelo de Auburn. Em Salvador, por exemplo, conforme demonstram os relatórios policiais e outros documentos consultados, a penitenciária era dotada de oficinas e oferecia educação primária aos detentos.
Na Bahia, a percepção da criminalidade ocasionava discussões em torno da população pobre e analfabeta de trabalhadores desqualificados, alvos preferenciais das ações da polícia e da justiça. Recém-saída da escravidão, Salvador apresentava uma composição populacional na qual os afrodescendentes representavam a maioria dos pobres, cuja violência, real ou imaginada, foi tema recorrente das preocupações de magistrados, médicos e autoridades policiais. Estes últimos produziram relatórios anuais onde fizeram constar os tipos de delitos e as características dos infratores, além de abordarem questões sobre as condições carcerárias e as inovações técnicas de setores da polícia, a exemplo do setor de identificação de criminosos.
Os relatórios policiais de 1916 e 1929 revelam dados importantes da criminalidade na Bahia e sua capital. Conforme esses dados, fornecidos em detalhados quadros estatísticos, os homicidas representavam a maioria da população carcerária no ano de 1916: 201 homicidas para um total de 322 detentos.2 Em 1929, os presos por furtos e deserções, em número de 37 e 21, respectivamente, superam os homicidas, que aparecem em número de 19, num universo de 109 sentenciados. Se somarmos a estes os presos por tentativas de homicídio (3 casos), os também chamados crimes de sangue superam o de deserção. No que se refere ao ano de 1916, os atentados contra a vida alcançam a cifra de 205 ocorrências quando aos homicídios se adicionam as tentativas de homicídio.3
Quanto às características individuais dos criminosos, estes eram majoritariamente mestiços, solteiros, analfabetos, naturais do Estado da Bahia e situavam-se na faixa etária de 22 a 30 anos. Quanto à profissão, registra-se o predomínio de lavradores e “operários rurais”. As demais profissões arroladas apontam para uma maioria absoluta de trabalhadores braçais, sendo rara a presença de profissionais liberais entre os detentos. Informações sobre a vida familiar, a saúde e comportamento de parentes mais próximos também constavam dos referidos relatórios, através das quais se podia concluir que uma significativa parcela dos penitenciados nascera de uniões ilegítimas e fora frequentemente educada em casa de estranhos. Cabe aqui ponderar a relevância dos critérios da hereditariedade e da relação familiar dos denunciados presos, evocados para determinar seu grau de desajuste social e/ou tipo de personalidade, nos julgamentos e pareceres de livramento condicional. Destacava-se ainda o discurso médico higienista da importância do papel da família na formação dos cidadãos, então amplamente aceito quando se tratava de avaliar a responsabilidade criminal dos que cometiam assassinatos ou agrediam fisicamente a outrem.
A análise do saber médico produzido em torno da criminalidade e do criminoso na Bahia republicana, quando colacionada aos pronunciamentos de autoridades jurídicas e policiais, registrados em alguns processos dos crimes contra a pessoa e a vida do mesmo período, permite apreender as expectativas de interpretação da criminalidade e do criminoso a partir do conhecimento médico científico, bem como aferir a recepção daquele conhecimento e suas respectivas teorias no âmbito das práticas jurídico-policiais. Esses são os objetivos da reflexão proposta nesse artigo. Aqui, o entendimento dos propósitos das teorias médicas, então defendidas, é perpassado pelo diálogo com algumas ponderações de Michel Foucault.
Na segunda metade do século XVIII, as práticas usuais de supliciar os corpos de assassinos – às vezes prolongados espetáculos de sadismo e crueldade considerados legítimos – passaram a ser motivo de críticas de filósofos e teóricos do direito. Nestas, com o propósito de respeitar no criminoso a sua humanidade, “o homem é posto como objeção contra a barbárie dos suplícios, mas como limite de direito, como fronteira legítima do poder de punir” (FOUCAULT, 1987, p. 70). A própria compreensão de um homicídio como assassinato, visto que este último era considerado pelos critérios da premeditação e da intenção de matar, sofreu modificações das quais se encarregaram os sistemas legais das sociedades europeias e americanas. Com o estabelecimento das sociedades modernas, tirar a vida de outrem ou tentar fazê-lo passa a ser universalmente, à princípio, reputado como crime sujeito à investigação e julgamento. Na Inglaterra oitocentista, por exemplo, “todos os casos de homicídio eram tratados como assassinato. Dependia do defensor provar que o homicídio era justificado e, dessa forma, não era assassinato” (McLYNN, 1991, p. 36). Esta compreensão da morte provocada, ao contrário dos sistemas legais dos séculos posteriores, implicava em admitir que a pessoa acusada de cometer assassinato era culpada até ser provada inocente.4
No final do século XIX, os debates sobre a criminalidade tomavam como referências básicas os conceitos de responsabilização moral e interação social dos indivíduos criminosos. Sob forte influência dos saberes médico e jurídico, na determinação da responsabilidade dos réus e na decisão do que fazer com eles, entraram em debate teorias, suposições e técnicas das quais se originaram as duas principais escolas de Direito brasileiras: a Escola Clássica de Direito Penal e a Escola Positivista de Direito Penal. Esta última, de inspiração francesa, assentava a sua argumentação nas noções psiquiátricas de atividade mental, na revisão das análises da mente criminosa e nas novas estratégias de prevenção e controle do crime que, segundo Ruth Harris (1993, p. 12), “abalavam os alicerces tradicionais do sistema judiciário francês”.
Os critérios de responsabilização moral e a pena de morte foram os pontos mais polêmicos nos debates envolvendo médicos e juristas. Entre os primeiros, com base nos estudos da fisiologia humana, nos conhecimentos clínicos e na antropometria,
[...] qualquer sinal de doença física incentivava os argumentos dos defensores da abolição da pena de morte e era interpretado como prova da ignorância de um sistema judicial que poderia aprovar a imposição de penas irrevogáveis a indivíduos possivelmente anormais, doentes e irresponsáveis (HARRIS, 1993, p. 38).
Uma discussão mais aprofundada desta perspectiva de interpretação dos crimes e de seus agentes não cabe nos limites do presente texto, porém, é relevante lembrar que as noções de “insanidade criminal” dela decorrentes foram amplamente divulgadas e discutidas entre médicos e juristas brasileiros, respaldados nas teorias de Gustave Le Bon, Darwin, Enrico Ferri, Garófalo e, principalmente, de Cesare Lombroso – figura de destaque da Escola Italiana de Antropologia Criminal que também influenciava os estudiosos franceses.
Mais do que em quaisquer outros crimes, as ocorrências de homicídios e tentativas de homicídio remetiam às características pessoais – psicológicas e emocionais – dos indivíduos, quer agentes, quer pacientes da ação. Quanto aos agentes, em oposição às ideias positivistas do Direito, a Escola Clássica estabelecia que: não havia o criminoso nato enquanto variedade morfológica da espécie humana; o ato criminoso acontecia pela vontade do agente; a responsabilidade penal era consequente da doutrina do livre arbítrio; e, por fim, que “o sujeito criminoso, agindo conscientemente, devia responder pela ação praticada” (MARTINS, 1995, p. 122). Entre os magistrados do Brasil, esta interpretação de inspiração rousseauniana, que valorizava a noção de rompimento voluntário do contrato social, coexistiria, ao longo da Primeira República, com a teoria lombrosiana de que “o criminoso verdadeiro (já) nasce como tal, a sociedade dá-lhe apenas as possibilidades e motivos para a manutenção da sua disposição criminosa” (SEELIG, 1957, p. 44-45). Sobre o assunto, as inquietações e polêmicas da época renderam estudos e estudiosos que também fizeram a história da primeira Faculdade de Medicina da Bahia.
Médico psiquiatra e legista maranhense, interessado nos assuntos relativos aos efeitos da herança africana no Brasil, o doutor Raimundo Nina Rodrigues elegeu a sociedade baiana como espaço empírico para as suas pesquisas. Na Bahia, a composição racial como um todo e a da cidade de Salvador em particular, além da superioridade numérica de indivíduos afrodescendentes, apresentava um grau de miscigenação que lhe permitia observar as reações e os comportamentos da população denominada de mestiça. Sintonizado com as teorias racialistas da época em que viveu, Nina Rodrigues (1938, p. 187) afirmava a superioridade biológica dos brancos, salientando “a imprevidência que revela a nossa população mestiça em rude contraste com o extremo oposto dos brancos, silicet dos portugueses que, mesmo pobres, paupérrimos, em nosso país, ao fim de pouco tempo são os seus grandes capitalistas”.5
Para os adeptos das teorias racialistas, a ideia de livre arbítrio – presente no Código Penal Republicano brasileiro, em vigor a partir de 1890 – contribuía para que se julgasse e punisse o crime, não levando em conta as características do criminoso. Nina Rodrigues (1938, p. 145) se opunha àquela ideia e perguntava se era possível “conceder que a consciência do direito e do dever que têm essas raças inferiores seja a mesma que possui a raça branca civilizada”. Seguindo este raciocínio, o médico maranhense afirmava que o mestiço, o afrodescendente, enquanto resultado do cruzamento inconsequente, “mostrava-se mais propício ao cometimento de atos ilegais” (MARTINS, 1995, p. 123). Baseadas em critérios físicos e psíquicos, as inspeções médicas procedidas por Nina Rodrigues e seus discípulos os fizera chegar à conclusão de que indivíduos negros e afrodescendentes eram tipos acabados de criminosos potenciais. Toda a obra de Nina Rodrigues, testemunha a convicção do aclamado psiquiatra quanto à inferioridade, e consequente periculosidade, dos afrodescendentes. Em Africanos no Brasil, por exemplo, Rodrigues faz questão de destacar as ponderações do também psiquiatra e antropólogo Enrico Morselli, segundo as quais
[...] o negro, principalmente, é inferior ao branco, a começar da massa encefálica, que pesa menos, e do aparelho mastigatório, que possui caracteres animalescos, até as faculdades de abstração, que nele é tão pobre e fraca. Quaisquer que sejam as condições sociais em que se coloque o negro, está ele condenado pela sua própria morfologia e fisiologia a jamais poder igualar ao branco” (MORSELLI, apud RODRIGUES, 2008, p. 241)
Embora argumente que “o conhecimento dessa desigualdade na capacidade de evoluir e civilizar-se dos negros e brancos [...] não encerra a questão dos negros no Brasil”, sua argumentação fundamentava-se na ideia de
[...] que a primeira diferença a fazer entre os africanos vindos para o Brasil é a distinção entre os verdadeiros negros e os povos camitas que, mais ou menos pretos, são ainda um simples ramo da raça branca e cuja alta capacidade de civilização podia ser comprovada pela antiga cultura do Egito, da abissínia, etc.” (RODRIGUES, 2008, p. 242).
Ou seja, mais uma vez, remete à superioridade do branco. Como bem argumenta Sueli Carneiro, a irredutibilidade de Nina Rodrigues pautava-se no convencimento de que “verdadeiros negros são incapazes de civilização e, se civilização houve na África, não pode ser atribuída aos povos negros e sim a um ramo da raça branca” (CARNEIRO, 2005, p. 107).
Nas décadas finais do século XIX, a intransigência de Nina Rodrigues estava a serviço de propósitos mais ambiciosos. Tomando de empréstimo a feliz expressão de Iraneidson Costa, o prestigiado médico “não se dirigia a moinhos de vento”. Quando defendia suas ideias, tinha no horizonte
[...] acumular forças e granjear adeptos para a pretendida reforma do Código Penal Brasileiro, nascido com a República mas desde o berço anatemizado por um significativo contingente de intelectuais, sobretudo aqueles de formação médica (COSTA, 1997, p. 13).
Como bem destaca Mariza Corrêa (2001, p. 91), Nina Rodrigues tinha em perspectiva a utilização política da cientificidade do conhecimento por ele produzido, particularmente no que respeitava à sua finalidade sobre os critérios de responsabilização e penalização criminais. Apesar da ambição frustrada, posto que na reforma do referido código as teses médicas propostas por Nina Rodrigues não foram levadas em maior ou explícita consideração, é inegável a influência dos seus ensinamentos e teorias nos meios acadêmicos. Porém, em que pese a inexistência de artigos no código penal que adotassem os seus pressupostos científicos teóricos, na determinação do indivíduo criminoso, depois da reforma do ensino de 1891 a medicina legal ganha fôlego. Nas primeiras décadas do século XX, essa área do saber ocupará lugar de destaque no conjunto das práticas do direito penal, alargando sua atuação no campo da perícia e do parecer médico-legal. Que se diga sem receios, Nina Rodrigues fez escola.
Outros médicos e peritos baianos, que seguiam os ensinamentos de Lombroso, constituíram o que se passou a chamar exatamente de Escola Nina Rodrigues e “reivindicavam para si a independência no tratamento do criminoso, entendido enquanto um doente que se diferenciava dos demais apenas devido a seu tipo de moléstia” (SCHWARCZ, 1993, p. 211). Os que se opunham à teoria da degenerescência dos afrodescendentes brasileiros, como o jurista Pedro Lessa, condenavam a aplicação do determinismo racial para a realidade brasileira baseada na criminologia italiana, alegando que este era “o resultado de um movimento reacionário contra as teorias humanitárias” (SCHWARCZ, 1993, p. 179).
O médico Juliano Moreira, considerado o pai da psiquiatria no Brasil, é o mais lembrado opositor das ideias de Nina Rodrigues. Segundo Iara Rios (2016, p. 1),
[...] enquanto as teorias raciais de Nina Rodrigues defendiam a ideia da degeneração do povo brasileiro devido à miscigenação, Moreira elaborou seu pensamento e discurso médico-higienista pelo viés da política saneadora, defendendo as condições socais como causadora dos distúrbios mentais e, consequentemente, dos comportamentos considerados “anormais”.
Diferente de Nina Rodrigues, que fora seu professor, Juliano Moreira defendia que o conhecimento médico não deveria orientar-se por “ridículos preconceitos de cores ou castas”, salientando que os problemas a serem enfrentados eram vícios como o alcoolismo, enfermidades como a sífilis e as verminoses e, do ponto de vista político, as precárias condições sanitárias e educacionais do país. A preocupação com as questões sociais e institucionais do Brasil marcou tanto a prática clínica quanto a produção intelectual do médico Juliano Moreira. Para Evandra Freitas (2018, p. 82), “Seus esforços pessoais e científicos foram, na contramão do pensamento majoritário vigente, para combater a ideia de uma diferença irredutível e da hierarquia de ‘raças’”. Cabe destacar que, apesar do seu inegável reconhecimento como cientista da sua época, sua trajetória profissional também foi atravessada pelo racismo. Consta que, na ocasião em que se submetera à concurso público para professor da Faculdade de Medicina da Bahia, “Moreira desacreditaria da idoneidade da banca, já que a Faculdade tinha fama de, por racismo, preterir negros e mestiços” (SANTOS, 2014, p. 50). Na condição de professor, Juliano Moreira se dedicou à cátedra e à pesquisa, publicando os resultados dos seus estudos e reflexões nos principais periódicos médicos da sua época.
A Gazeta Médica da Bahia, reconhecida como fórum privilegiado para as discussões dos argumentos da medicina legal, publicou uma série de artigos que, ao questionarem a influência de fatores como a degenerescência racial e a alienação mental nos atos criminosos dos seus agentes, resultou numa longa disputa entre direito e medicina ou, melhor dizendo entre os saberes médico e jurídico, que já vinha em curso desde as últimas décadas do século XIX. As polêmicas remetiam recorrentemente à pergunta: “afinal, quem era o responsável pelo arbítrio sobre o crime? Os juízes de direito aptos a aplicar a lei, ou os médicos peritos, que com sua ciência diagnosticavam o ‘doente criminoso’?” (SCHWARCZ, 1993, p. 211-212). Por outro lado, nas práticas estritamente judicativas, tanto os pressupostos do direito clássico quanto os do direito positivo – que, segundo Ribeiro (1995, p. 55), apresentavam-se de forma complementar no Código Penal Republicano – eram igualmente evocados por promotores e advogados de defesa e acusação de acordo com as respectivas conveniências de buscar absolvição ou condenação dos indivíduos submetidos a processos crimes.
Ainda sobre a influência do saber médico nos debates referentes às práticas criminosas é necessário destacar as teses da Escola de Medicina da Bahia, que, versando sobre as mais variadas moléstias e características biológicas e psíquicas, associavam-nas à criminalidade potencial de determinados indivíduos ou grupos. Veja-se, a título de exemplos, as teses para a conclusão do curso de medicina apresentadas pelos formandos Ignácio de Carvalho (1911) e Marialvo Cotias (1928). O primeiro, ao problematizar as relações entre tatuagem e criminalidade, concluiu que “não existe relação aparente entre tatuagem, degeneração e loucura”, mas admite que aquelas “que representam vingança, são características nos criminosos” (CARVALHO, 1911, pp. 26 e 48). Pretendeu com seu argumento rechaçar a teoria de Lombroso, que defendia haver uma relação constante não só entre a tatuagem e a criminalidade como também entre o desenho escolhido e a infração cometida. À exceção dos casos de criminosos violentos, Carvalho (1911, p. 27; 59) observou que as tatuagens “revelam muito mais a personalidade do tatuador que a do tatuado”, sendo as mesmas mais frequentes “nos indivíduos que têm um gênero de vida elementar, monótono, animal e nas profissões mais grosseiras”.
Marialvo Cotias se empenhou em resgatar dos Archivos do Instituto Nina Rodrigues e da Secção de Estatística do gabinete de Identificação e Capturas uma significativa amostra de 831 fichas de homicidas e vítimas de homicídio registradas entre os anos de 1895 e 1927. Através da quantificação dos dados nelas constantes, o autor procurou demonstrar a influência da cor, da raça, do sexo, da idade, do estado civil, da nacionalidade e do grau de instrução dos indivíduos nas ocorrências homicidas, chegando a conclusões semelhantes àquelas dos relatórios policiais acima mencionados quanto ao perfil dos homicidas sentenciados. Para o formando em medicina, o fato de entre 831 dos criminosos de morte encontrar-se uma significativa maioria de indivíduos solteiros – 631 para 149 casados, e apenas 51 viúvos – era prova cabal de que o “matrimônio é uma escola de aperfeiçoamento moral, de moderação das paixões e dos vícios, um corretivo das impulsões que abalam a voz da consciência, que pervertem a razão e arrastam ao crime” (COTIAS, 1928, p. 28-27). Sobre a pouca representatividade dos estrangeiros entre os criminosos, apenas 10 indivíduos tal fato se devia à “índole e aos costumes não hostis do baiano, que acolhem bem aos estrangeiros”, bem como ao comportamento destes últimos, que, visando o enriquecimento, ficavam “entregues à faina comercial, [...] por interesse ou por temperamento, insensíveis se tornam aos insultos e aos maltratos (sic) dos fregueses” (COTIAS, 1928, p. 30-32). Quanto à pouca participação feminina nos casos de crimes de morte, apenas 6 casos de condenação, considerou que “a devoção ao lar, aos trabalhos domésticos e aos cuidados da família” afastariam as mulheres dos “vícios degradantes e das paixões fortes aos quais estão sujeitos os homens, arrastados pelas solicitações da luta pela vida” (COTIAS, 1928, p. 24-26).
Na mesma faculdade de medicina e dois anos antes da defesa da tese de Marialvo Covas, em 1926, uma mulher já se interessara pela criminalidade feminina, tomando-a como objeto específico de investigação. Tratava-se da então formanda em medicina, e futura destacada psiquiatra, Nise da Silveira. Em sua tese, admite:
[...] no Brasil, a estatística que ensaiamos levantar, revela igualmente fraca percentagem na criminalidade da mulher. Esta menor criminalidade da mulher depende principalmente de questões de ordem social. Sendo a luta pela vida para ela menos intensa e acre, não lhe oferece, como ao homem, tão múltiplas ocasiões de delinquir. É a este motivo que os criminologistas em geral atribuem as diferenças numéricas entre a criminalidade de homens e mulheres (SILVEIRA, 1926, p. 34).
Todavia, problematizando a questão, traz para o seu estudo as observações do psiquiatra médico-legal alemão Gustav Aschaffenburg, segundo as quais “o número de mulheres condenadas pouco [teriam] aumentado em relação ao papel cada vez mais ativo que elas [iam] de dia a dia tomando no combate pela existência, numerosíssimas trabalhando no comércio e na indústria” (SILVEIRA, 1926, p. 34-35). Nise da Silveira também desconfiava da pertinência jurídico-legal do conhecimento e das teses médicas inspirados nas conclusões de Lombroso, afirmando:
[...] o justo valor dos dados antropológicos está longe ainda de ser apurado. Os anormalismos encontrados frequentemente nos criminosos, homens e mulheres, nada têm de restrito e especial, e equivalem tão só a estigmas físicos de degeneração [...]. No Brasil [...], caracteres peculiares à raça negra e outros aos aborígenes, valem para os brancos como estigmas degenerativos (SILVEIRA, 1926, p. 45).
Para seu estudo específico conclui:
[...] os números fornecidos pela antropometria têm, como se sabe, largas variações étnicas. Daí termos pensado que nenhuma útil dedução poderia fornecer o exame antropológico das poucas criminosas que tivemos oportunidade de estudar, não só pelo seu pequeno número, como ainda por serem umas brancas, outras negras e outras mestiças de categorias diversas (SILVEIRA, 1926, p. 46)
De qualquer modo, cabe salientar o pouco interesse do próprio Lombroso em ocupar-se da classificação da criminalidade feminina, haja vista ter encontrado “o seu tipo delinquente com muito menor frequência entre as criminosas que entre os criminosos”, dando ao fato uma explicação atávica, segundo a qual “a mulher primitiva era mais uma prostituta que uma criminosa” e – sendo em seus instintos primitivos mais propensa à prostituição do que ao crime – “o tipo antropológico da criminosa-nata seria verdadeiramente raro” (SILVEIRA, 1926, p. 43). Problematizando a afirmação de Lombroso de que “o máximo da criminalidade feminina é ocasional, correspondendo o mínimo aos delitos passionais”, Nise da Silveira encontra mais uma oportunidade de discordar do médico italiano, rebatendo: “afigura-se-nos precisamente o inverso, apreciando a psicologia da mulher e sua posição social que certo devem ter relações estreitas com o seu modo de delinquir” (SILVEIRA, 1926, p.61).6
O caminho escolhido por Nise da Silveira foi o diálogo com o conhecimento feminino da psicologia e psiquiatria da sua época. Nomes como o da italiana Gina Lombroso, filha de Cesare Lombroso, e da russa Pauline Tarnowsky são evocados para respaldar as suas conclusões, segundo as quais as mulheres seriam mais passionais do que os homens ao cometerem crimes, particularmente crimes contra a vida. Ao concluir sua tese, a futura médica admite que não tivera acesso a dados que ela reputava “interessantíssimos”, referindo-se a informações como “idade, cor, estado civil, profissão e grau de instrução das mulheres que delinquiram, no Brasil, em 1925” (SILVEIRA, 1926, p. 111). Apesar dessa afirmação, a autora registra em sua tese dados bem afinados com as teorias racialistas lombrosianas, acompanhados de fotografias das detentas que compunham o seu universo de análise. Mesmo considerando que os dados já estavam registrados conforme modelos adotados pelas casas de detenção e penitenciárias, é flagrante a diferença de critérios – e, consequentemente, na abundância de detalhes – adotados nas fichas de descrição das detentas de acordo com a cor da pele. Quando brancas e negras, poucos dados adicionais eram registrados; quando miscigenadas, detalhes físicos e características antropométricas associadas a ilações de criminalidade inata faziam parte do prontuário. Eis alguns exemplos:
C...M..., 30 anos. Alagoas. Mandante do assassínio da amante do esposo. Branca, educação rudimentar.
Maria dos Anjos, 26 anos. Pernambuco. Assassínio do esposo. Condenada a 12 anos de prisão (Fig.1). Parda, analfabeta. Orelhas alongadas segundo o eixo vertical; o bordo superior do helix em forma angular aguda. Ligeira assimetria facial: supercílio esquerdo mais alto que o direito, nariz um pouco desviado para a direita.
Pai alcoólico. Possui uma irmã extremamente nervosa e uma tia epilética.
Josefa Calixta da Silva, 22 anos. Pernambuco. Ferimentos graves na pessoa do amante. Negra, analfabeta.
Joaquina Rosa de Jesus, 28 anos na época do crime (1910). Bahia. Cumplicidade no assassínio do marido. Condenada a 30 anos de prisão. (Fig. 3 e 4). Mulata clara, analfabeta. Dados antropométricos: diâmetro anteroposterior – 186. Diâmetro transversal – 146. Comprimento da orelha – 60. Largura – 36. Grande envergadura – 1m71. Estatura – 1m57.
Fisionomia viril, malares e mandíbula proeminentes. Ligeiro estrabismo convergente do olho esquerdo. Anomalia dentária: ao incisivos e caninos superiores são afetados de nanismo (SILVEIRA, 1926, p. 68-71).
Os dados trazidos por Nise da Silveira merecem atenção tanto no que revelam quanto no que omitem. A detenta de iniciais C. M., por exemplo, tem sua identidade preservada, apesar de ter ordenado aos executores do assassinato da amante do seu marido que praticassem o crime com requintes de crueldade, no que foi atendida. A omissão de seu nome e sobrenome talvez se devesse ao fato de que, além de branca, provavelmente também era membro de uma família de posses, pois, segundo o prontuário da casa de detenção, os mandatários do crime eram empregados de um engenho pertencente a um membro da família de C.M. Com nomes e sobrenomes, a mulata clara Joaquina Rosa de Jesus e a parda Maria dos Anjos, por sua vez, são apresentadas minuciosamente pelas medidas e traços antropométricos, bem como pelas informações de suas respectivas hereditariedades, capazes de respaldar, cientificamente, o caráter inato da criminalidade de ambas, segundo os critérios racialistas da época.
Tratavam-se de critérios baseados numa noção de raça socialmente construída no século XIX, que nas Américas, alerta Hebe Mattos (2000, p.13), está “estreitamente ligada às contradições entre direitos civis e políticos inerentes à cidadania estabelecida pelos novos estados liberais e o longo processo de abolição do cativeiro”. Processo de conquista da liberdade e da cidadania que, na chamada Primeira República, colocava para os indivíduos de origem africana uma soma de obstáculos de caráter prático, simbólico e institucional.
Uma outra chave para a compreensão da produção e recepção das teorias racialistas do período é a demanda por controle de uma sociedade recém liberta de três séculos de escravidão, experiência traumática cuja principal base era a violência, sobretudo a violência sobre os corpos escravizados. Nesse ponto cabe refletir junto com Foucault (2008b, p. 80), para quem, nos processos de controle da sociedade “o corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política”. Estratégia que produziu um determinado tipo de saber cuja efetiva recepção e operacionalidade precisam ser verificadas, posto que recaía sobre os mesmos corpos afrodescendentes agora pertencentes a homens e mulheres livres. É ainda Foucault (2008c, p. 161) quem propõe que
[...] para examinar o estatuto da doença e os privilégios do saber médico no mundo moderno, também é necessário passar por trás do hospital e das instituições médicas, para tentar chegar aos procedimentos de responsabilização geral pela vida e pela doença no Ocidente.
Destacando a psiquiatria, o filósofo francês ainda adverte que, no processo de determinação de uma veridicidade – exercício bastante comum no julgamento de crimes e criminosos –,
[...] o problema está em trazer à luz as condições que tiveram de ser preenchidas para que se pudessem emitir sobre a loucura – mas a mesma coisa valeria para a delinquência, a mesma coisa valeria para o sexo – os discursos podem ser verdadeiros ou falsos de acordo com as regras que são as da medicina ou as da confissão ou as da psicologia, pouco importa, ou as da psicanálise.
Só tem importância a determinação do regime de veridição que lhes permitiu dizer como verdadeiras e afirmar como verdadeiras algumas coisas que, aliás, hoje sabemos talvez não fossem tanto assim (FOUCAULT, 2008b, p. 50).
Mais do que servir de base morfológica para a ratificação da superioridade dos brancos, como bem coloca Costa (1997, p. 32), as teses médicas da escola de Medicina da Bahia também representaram um esforço de produção de verdades. Verdades que, na República, cumpriam a contento o papel de reafirmar a inferioridade biológica, moral, emocional e psíquica dos brasileiros de origem africana. Resta saber como essas teorias foram recepcionadas pelos protagonistas da liturgia jurídico-policial do período.
Em estudo realizado em 1996, foi possível avaliar a recepção às teses produzidas médicas racialistas – entre os muros e lentes da Faculdade de Medicina da Bahia – no cotidiano das práticas jurídico-policiais na cidade de Salvador. Foram analisados 86 processos de homicídio e 42 de tentativa de homicídio, ocorridos entre 1890 e 1930. Nesses processos, representantes da defesa e da acusação pouca ou nenhuma referência fizeram às teorias médicas então vigentes – à exceção das recorrentes menções aos efeitos do vício da embriaguez –, ressaltando antes questões que envolviam comportamentos e valores morais. O caso a seguir representa o padrão encontrado nos julgamentos analisados.
Trata-se do assassinato do mestiço Manoel da Paixão, vulgo “Caveirinha” por Ângelo de Oliveira, vulgo “Mata Escura”, “ambos considerados desordeiros e amantes da vadiagem” (ASSIS, 1996, p. 141). O acusado, descrito como solteiro, de 21 anos, carregador e de cor “parda”, alegava que além de não querer lhe pagar uma dívida de jogo, a vítima dera-lhe uma bofetada. Foi em torno da bofetada recebida que giraram as falas da defesa e da acusação. Visando fazer prevalecer a versão de que o acusado desagravara-se de uma indignidade, o advogado de defesa argumentava:
E quem poderá suster uma ação ou um gesto como o do denunciado, para incontinenti salvar o seu nome e sua dignidade de um insulto vergonhoso? Qual o homem que não sente o seu brio calcado pela blasfêmia alheia, a injúria que deprime, que rebaixa, que humilha e que depreda?7
O promotor público apela da sentença de absolvição do réu, contra-argumentando que,
[...] sendo o réu frequentador de toscas, habituado ao uso da faca, arma com matou a vítima, chegarão os dignos julgares à conclusão de que não seria um indivíduo como o apelado, que a injúria de uma bofetada doeria tanto que lhe cegasse as faculdades de discernimento.8
Têm-se aqui, no centro do debate, a ideia de dignidade masculina enquanto um direito subordinado ao “merecimento” individual de cada um, mensurado a partir do seu comportamento social num contexto em que outras indignidades – como a de adotar o hábito do jogo como meio de vida, beber e portar armas brancas – desautorizavam o sentir-se ofendido, por exemplo, com uma bofetada. Semelhantes discursos de relativização da dignidade e da honra foram encontrados em vários outros processos analisados. Assim, quando os agredidos por tapas no rosto eram associados à imagem de homem trabalhador, branco e bom “pai de família”, a tese de legítima defesa era aceita sem muita ou nenhuma oposição, o mesmo não ocorria quando o crime era protagonizado por indivíduos afrodescendentes e pobres, ainda que fossem trabalhadores.
Censuras às relações sexo-afetivas interraciais também estiveram presentes na imprensa, influenciando a opinião pública e o processo de julgamento. O homicídio da doméstica Durvalina Ribeiro, descrita como de cor branca, de 32 anos e alfabetizada, é exemplar. O acusado, o sapateiro José de Jesus, descrito como “mestiço”, de 28 anos e alfabetizado, matara a companheira depois de seis anos de relacionamento. No dia seguinte ao crime, o jornal A Tarde publicava:
É que as coisas para o lado de Durvalina, depois da morte do seu primeiro companheiro, não andavam boas. O sapateiro pouca importância dava à doméstica, que apesar de lhe ser superior em qualidade, ella branca e elle mulato escuro, para sustentar-se precisava ensinar aos meninos da visinhança, ou, quando não, lavar e gommar de ganho.9
No dia seguinte o jornal voltava a insistir no argumento da inferioridade do acusado, comentando sobre a vida sexo-afetiva da vítima que já estivera em dois outros relacionamentos conjugais em matéria intitulada “Ciúme feroz: Durvalina, a victima do sapateiro, descendia de boa família”.
A sua primeira ligação, illegal embora, não lhe deu desgostos, pois Lucas tinha por ella verdadeira adoração. [...] O sapateiro José F. de Jesus matou-a numa explosão de ciúme injustificado, por que a opinião pública de quantos conheciam a victima é que ella era pessoa séria.
As notícias pontuavam insistentemente a inferioridade do acusado pelo fato dele ser “mulato escuro” e por não sustentar a casa, obrigando a vítima a trabalhar. Note-se que a ilegalidade do relacionamento anterior da vítima foi minimizada, “quando tratou de referir-se ao primeiro companheiro da vítima, provavelmente um homem branco, pois na edição anterior a filha da mesma é descrita como uma mocinha, de cor branca, e bem simpática” (ASSIS, 1996, p. 110, grifo do autor). Os jornais soteropolitanos foram pródigos na produção de discursos políticos com os quais se reafirmava a inferioridade biológica dos negros, no afã de explicar “as diferenças entre os sujeitos e os povos”, reafirmando sempre a humanidade dos indivíduos negros “como essencialmente doente, desviante e criminosa” (CATOIA, 2018, p. 275).
Entre os argumentos usados para sensibilizar e/ou convencer os jurados não foi raro encontrar menções às dificuldades de sobrevivência e aos percalços da vida enfrentados por acusados e vítimas. Este foi o caso de Seraphina Moreira, doméstica de 30 anos, solteira, analfabeta e mestiça, acusada de matar a Elpídio Almeida, um lavrador mestiço de 32 nos, durante uma discussão. Elencando as dificuldades da vida enfrentadas pela acusada, seu defensor pretextava que estava claro que ela agira por impulso e que sua impronúncia se impunha “como simples acto de justiça”, sendo “a denunciada uma infeliz digna de piedade”. O promotor público não se deixou comover, decidindo pela pronúncia com indicação de pena máxima. Entretanto, “as absolvições de Serafina Moreira, levada a julgamento três vezes por conta das apelações do promotor, sugerem que o defensor da acusada conseguia sensibilizar pelo menos os jurados” (ASSIS, 1996, p. 136).
Em nenhum dos dois julgamentos acima – que correspondem ao padrão encontrado para os demais processos – se verificam nos autos quaisquer indícios de adesão às classificações propostas pelo saber médico, que estivera em disputa institucional e acadêmica na construção da chamada Primeira República. Resta verificar os Relatórios de Pedido de Livramento Condicional nos quais as avaliações médico-psicológicas eram procedimento obrigatório. Para o caso de Elysio Santa’Anna, tanoeiro e vendedor de peixes, conhecido como “Amorzinho”, solteiro 28 anos analfabeto e preto, é possível acesso ao processo de julgamento do crime e ao pedido de livramento condicional.10
Amorzinho, que não era bem-conceituado entre os negociantes do Mercado da Baixa dos Sapateiros – local de grande movimentação popular e onde ocorreu o crime –, foi condenado por matar a ganhadeira Maria Alexandrina em janeiro de 1918. Na ocasião do processo criminal, testemunhas afirmaram “que sempre via[m] o acusado em roda de peixeiros e desordeiros”. A imprensa local também se encarregara de destacar a má conduta do acusado, enquanto destacava o fato da vítima ter deixado dois órfãos. Certamente, ambas as alegações, de ser rixoso e bêbado contumaz, contribuíram para a sua condenação. No pedido de livramento condicional, o relator informava “ser o detento filho de união ilegítima, que sempre buscou trabalhar, mas ‘sempre com pouca sorte’, acrescentando que a vítima era uma mulher ‘mundana’, de ‘maus costumes’ e de ‘vida fácil’”. Nenhuma informação consta no relatório sobre os dados antropométricos, psicológicos ou psiquiátricos do apenado.
Em seu relato e parecer ao Conselho Penitenciário do Estado, peticionado pelo detento sírio Camilo Chidid, condenado por homicídio motivado por ciúmes, o promotor Estácio de Lima foi veemente em sua negativa
[...] ora, que é que afinal sabemos a respeito da vida pré-penitenciária do liberando presente? Quasi nada. Filho de um país onde as luctas, a mão armada são diárias, onde, hoje em dia, ainda salteadores de profissão superambundam, onde o choque de raças é tremendo, as comoções religiosas são incríveis, que podemos nós assegurar em garantias da sociedade brasileira, quanto a um filho daquelas paragens em convulsões ininterruptas e que houvesse praticado, premeditadamente, um homicídio como aquelle? Será página merecedora de carinhoso estudo, a psychologia dos árabes ou sírios recolhidos às nossas Penitenciárias. [...] Tenho como pouco desejável, a nós outros, a emigração de uma gente que não amina terra, nem apascenta criações.11
Condenado a 6 anos de prisão, o sírio só seria libertado em 1929, depois de cumprir toda a pena que lhe foi imposta. A acusação, contratada pela viúva da vítima, o árabe Miguel Dib, contou com um “aliado quase invisível, o preconceito relativo a estes povos e países” (ASSIS, 1996, p. 138).
Do total de 128 processos analisados foi possível chegar a alguns números significativos, cujos dados permitem cotejamentos e conjecturas que revelam mais do que meras variáveis estatísticas. São dados que informam sobre o cotidiano e os comportamentos, conflitos e valores nos espaços de convivência e sobrevivência da população pobre, negra e mestiça da cidade de Salvador. Da leitura dos autos também podemos apreender como os corpos e mentes dessa população foram abordados pela polícia e pela justiça da época.
Quanto ao critério cor, 57,14% dos réus eram afrodescendentes, classificados como de cor preta e parda. Entre as vítimas, 36 % eram pretas e 75,14% eram pardas e apenas 40,2% não tiveram a cor registrada. Os dados revelam a predominância dos afrodescendentes entre os indivíduos levados à justiça por cometerem crimes de violência contra a vida. Porém, chama a atenção o percentual de réus que são apresentados como de cor ignorada – 61,54% dos homicidas e 61,90% dos réus por tentativa de homicídio –, revelando uma certa negligência, tanto por parte da polícia quanto da justiça, no registro de um dos dados mais importantes e visíveis a partir do qual as teorias racialistas dos médicos baianos se debruçavam em medições, contagens e pesagens no afã de legitimar suas teses. Embora os negros figurassem como a esmagadora maioria entre os apenados submetidos à craniometria e outros processos “científicos” de determinação de periculosidade, na construção das peças processuais utilizadas como instrumento de julgamento esses dados raramente ou nunca aparecem.
Os relatórios médicos com os quais eram iniciados os pedidos de recuperação da liberdade, conquanto estivessem respaldados nas chamadas avaliações médico-psicológicas, revelam pouca ou nenhuma influência das teorias lombrosianas defendidas pelos adeptos da “Escola Nina Rodrigues”, apesar da relativa riqueza de registros antropométricos realizados nas unidades carcerárias do Estado. À exceção de três casos, em que restou provado que os condenados sofriam de distúrbios mentais ou da personalidade, os demais pedidos tiveram como critérios de análise o comportamento carcerário, a vida pregressa dos detentos e as demonstrações que estes davam de estarem capacitados a viver em liberdade, ou seja, que estavam dispostos a trabalhar, para prover a própria subsistência, e a viver pacificamente.
Mais uma vez, a liturgia de julgar e punir remete a Foucault quando adverte para o fato de que nesse mecanismo disciplinar o culpado surge como um terceiro elemento, lembrando que fora dos liames do legislativo e do ato jurídico de punir o culpado surge um conjunto de técnicas dos campos do saber médico, da psicologia, da polícia, “que são do domínio da vigilância, do diagnóstico, da eventual transformação dos indivíduos” (FOUCAULT, 2008c, p. 8). De certo modo é o que se pode inferir dos autos analisados nos quais todo o esforço de delegados, advogados, promotores e juízes foram norteados, de acordo com suas intenções de buscar condenar ou absolver, pelas ideias recorrentes de que, entre os indivíduos sem posses – majoritariamente classificados como negros e pardos –, grassando a ausência de regras morais e de respeito às leis, uns seriam dignos de compaixão, enquanto outros deveriam ser condenados por seus atos. Não resta dúvida, porém, de que a condição social e, sobretudo, a cor foram elementos dos mais relevantes nos processos de julgamento, independente dos demais “traços de periculosidade” que aqueles rostos e corpos pudessem revelar.
Fora e além dos corredores, salas e publicações da Faculdade de Medicina da Bahia e seus teóricos lombrosianos, encontramos uma rotina e uma prática de registros de dados bastante heterogêneas. Enquanto uns se apresentam ricos e minuciosos – como as fichas das penitenciárias –, outros são áridos e até negligentes. Era a partir deles que as autoridades competentes elaboravam seus relatórios nos quais logo passavam a analisar os casos pelo viés de uma psicologia e/ou sociologia criminal baseada em critérios de raça, classe e gênero herdados de longos séculos de escravidão e não necessariamente alinhados às teses médicas então em voga. Em todo caso, em ambas as situações, com grandes desvantagens para os indivíduos afrodescendentes. Desvantagens que já revelavam o que hoje é conhecido por racismo estrutural.
https://periodicos.uff.br/revistapassagens/article/view/47952/29332 (pdf)