Resenha
LITURATERRA [Resenha: 2021, 2, 2] Mágoa e rancor grudados e guardados
Recepción: 19 Noviembre 2020
Aprobación: 29 Enero 2021
As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan,1 para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.
Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura de la terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.
The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.
Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.
Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。
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Um romance que avança por remordimentos, remorsos, culpas que configuram um ramalhete de ressentimentos oferecido ao leitor e logo especialmente por um personagem chamado Cândido... O autor Cristovão Tezza ambienta a trama na “República de Coritiba”, e precisamente ele que vem de Lages, Santa Catarina. Todavia, é escritor experimentado, traduzido para mais de quinze países, reconhecido e premiado com o Jabuti e Portugal Telecom, com a obra “O filho eterno”.
Que o remordimento está inscrito numa consciência culposa que pede penitência, ninguém tem dúvidas. Já o ressentimento é um pouco mais forte e foi estudado, entre outros, por Friedrich Nietzsche. Talvez seja oportuno recordar que uma tal expressão – ressentimento – e não por acaso, nas línguas de origem latina, como que duplicam o afeto para que não pairem dúvidas sobre a mágoa, o rancor; como que dobrado no ressentimento. Daí o personagem Cândido vir a calhar para personificar o otimismo iluminista de Voltaire no conto que escreveu em 1759 quando estávamos sob o impacto formidável e histórico, tanto da Guerra dos Sete Anos (1758 - 1763) quanto do terremoto de Lisboa (1759).
Mas o Cândido de Cristóvão Tezza está mesmo é ameaçado na contemporaneidade com o que se passa no Brasil de hoje, ou seja, com a conjuntura política, um conjunto de perplexidades; em parte desenhado pela formação colonial do Brasil e atingido em cheio pela pandemia do covid-19 que pegou o planeta de forma inesperada e inescapável; se não pela ciência, pelas populações aflitas em todo o mundo. “A tensão superficial do tempo” é um título que remete ao interesse de Cândido pela Química, pois é professor de um cursinho em Curitiba, tendo se tornado um dos gestores e sócio minoritário do referido curso com um adiantamento financeiro da parte de sua mãe-madrasta, pois não é mãe biológica. Com frequência o professor de Química ilustra suas conversas e reflexões íntimas com tiradas que só o conhecimento científico da Química pode possibilitar, o que confere um misto de ironia e seriedade em relação ao tema... É considerado excelente professor de pré-vestibular.
O escritor demonstra grande coragem ao discutir simultaneamente as novas subjetivações acerca da família, sexo, sexualidade, desejo com as velhas questões que persistem diante, por exemplo, do lago verde do Passeio Público, de Curitiba, onde algumas prostitutas fazem ponto.
Mas sobretudo Cristóvão Tezza calibra a sua escrita na compreensão do momento político vivido no momento pelo Brasil. “Ler notícias diárias sobre a presidência transformou-se num exercício excruciante de masoquismo, ferro em brasa no cérebro” (TEZZA, 2020, p. 76).
Assim, nestes momentos tudo virar piada ou servir para gozo particular, logo compartilhado com uma leva de leitores ansiosos. Ferino com o universo do direito, ele ironiza a postura punitivista que veste várias máscaras: desde as milícias até sabe-se lá que limite. A um procurador-personagem, o autor dá a palavra:
E o procurador deu uma risada comprida [...] Ele gostaria de matar as pessoas diretamente a tiros, de metralhadora, da rampa do Planalto, o tempo todo entrincheirado nele mesmo, porque essa parece ser a resposta de uma vida inteira de que ele dispõe para dar conta do mais ressentido fracasso mental. Ele está sempre testando o seu limite, que não existe; ele sempre pode ir adiante, porque não há nada ali, o seu vazio não tem chão nem parede. Ao mesmo tempo a projeção de seu mundo mental não ultrapassa a extensão de uma cozinha e um banheiro, mas imagina-se um Donald Trump na América, de boca cheia. É a tragédia do encontro mal-amado da imaginação esquizofrênica com a solidez da burrice, o transtorno brasileiro por excelência (TEZZA, 2020, p. 76).
A acreditarmos que na síntese acima estaríamos
[...] sem nenhum eixo de fixação, biruta ao vento; todos vivendo atiçados por uma nervura histérica e neurótica que não para de se mover. É uma estupidez ofensiva que faz da carência intelectual a sua força, extrai da própria mesquinharia o orgulho ostensivo do valor da violência. A religião é a sua muleta totalitária [...] (TEZZA, 2020, p. 77).
O personagem principal Cândido expõe suas vísceras desde os primeiros momentos. Ele mora só, após a separação da primeira mulher, Hélia, e passa a viver exclusivamente com a mãe-madrasta, já de avançada idade e surda. Se de um lado isto aproxima o personagem do leitor; por outro lado, e visando dar um certo conforto à D. Lurdes ele inaugura um quarto com um espetacular televisor último tipo para que ela pudesse se distrair e passar o tempo, na sua ausência. Faz -se aos poucos um colecionador filmes de toda sorte e então o professor de Química do Cursinho se transforma num aficionado não tanto pelo cinema, mas por disponibilizar filmes para a mãe-madrasta a quem se dedica como “cuidador”, embora à distância. Em paralelo ele narra com exuberância a história do cinema desde os primeiros DVDs aos atuais pen-drives. Ele acaba se transformando num pirata da internet que cai na malha de um circuito de recepção (criminosa?) e distribuição visando a prática do altruísmo para sua mãe, possessiva e devoradora, que acaba contribuindo para a separação com Hélia e logo, para alguns amigos e amigas mais chegados. O amigo mais próximo e sócio majoritário do curso pré-vestibular é Batista e eventualmente alguns colegas professores. Por aí vai acabar enamorando-se pela mãe (Antônia) de uma aluna (Líria), que por sua vez, é filha do procurador com quem inicia uma relação amorosa, como que pisando em ovos... Antonia, acaba de separar-se do marido procurado que se transfere para Brasília para dar a sua parte na construção do novo “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
A imagem que vem capa do livro não é sem razão. Refere-se ao filme de Louis Malle, Ascenceurrpour L’Échafaud, 1958. Ascensor para o cadafalso é um filme francês (1958) onde o suspense e o drama policial estão presentes como um marco da história do cinema. Dirigido por Louis Malle, filme de significância tanto para a atriz Jeanne Moreau e para o estilo nouvelle vague quanto para a trilha sonora por conta do jazzista Miles Davis. Cadafalso é uma palavra forte, pois designa o mais das vezes um patíbulo, arquitetura solene para a execução por enforcamento. Entretanto, a película apresenta um homícidio para sugerir suicídio, quando Florence Carala toma a decisão de matar o marido, Simon Carala, com a ajuda do amante Julien Tavernier. Este, por sua vez, atua como espião na Indochina e justamente quando Tavernier, que foi militar no passado, toma a decisão de pegar uma corda no terraço, e acaba por ficar retido no ascensor (elevador)...
O suspense do filme também está presente no romance, assim como indagações do leitor a si próprio acerca aas ambivalências entre o sentir, o pensar e o agir que impregna
Seria Cândido um ingênuo, um cândido? Esta é a pergunta que muitos leitores se fazem si mesmos certamente atravessa muitos rincões e cidades do Brasil? Os fins justificariam os meios?
A Psicanálise ou outra terapia psíquica é descartada, com ironia, pois sendo filho adotivo de D. Lurdes, não chegou a conhecer o pai Josefo, pois ele, faleceu oficial reformado do Exército Brasileiro, e quando D. Lurdes o recebeu pequenino, já era viúva. Cândido gostava de dizer pra si fazendo uma crítica tão arrasadora quanto ignorante do “complexo de Édipo”, de Sigmund Freud, “eu não precisei matar meu pai, ele morreu praticamente antes de eu nascer” (pág. 195). E disse esta pérola para Antônia, que se tornará a amante que dirá para ele alguns dias depois “você tem uma anarquia conceitual que eu acho uma graça, o inesperado como algo da sua própria natureza” (pág, 195).
Em muitas outras circunstâncias, e isso se pode facilmente admitir, as referências são cenas, enredos, atores, atrizes e mais um sem número de questões advindas pelos famosos pendrives (clandestinos mesmo?) que tanta alegria trazem a D. Lurdes. A bem da verdade histórica foi por aí que a película cinematográfica se construiu entre os cubanos revolucionários e estendeu-se, aos poucos, para os cubanos e os latinos por proximidade (Flórida) ou outros lugares, pois que estão em todo canto nos USA, até mesmo na cinematográfica Califórnia (Los Angeles, San Francisco). Entre aficionados pelo cinema pelicula é designada como peli. Para o idioma hispânico é um desgarrar do vocábulo película em espanhol. Mas em português fala-se peli (muitos portuguêses confundem com o som abreviado de peli com pele). Todavia, vários norte-americano, acabaram por utilizar a palavra peli para película ou filme. N’outro sentido, que não o de imaginário (peli), muitos falantes do “portunhol” acabam falando pele (que em espanhol é piel e não (peli)cula...
Esta arapuca do idioma acaba se constituindo numa armadilha para Cândido.
Com Antônia no lugar de Hélia, mas ainda com a eterna presença da mamãe Lurdes, quer dar-se a si nova oportunidade sexual e amorosa... Agrada particularmente Antonia, menos pela dedicação à mãe, e mais pelos filmes que consegue, praticamente todos os que deseja. A oportunidade que um colega, Edson, ofereceu quando perguntou: “Você sabe que pode baixar praticamente todos os filmes que quiser via BitTorrent? Havia percorrido esta senda e estava fascinado pelo sistema revolucionário de transmissão de dados digitais criado por uma cara chamado Bran Cohen, que tinha apenas 25 anos”. (pág. 206).
O furacão que Antônia representou na sua vida, tirou-o do sério ... e da casa da mãe por alguns poucos dias. Isto acabou por escancarar a sua vida para alguns colegas do cursinho e especialmente Batista. Acabou devendo muitas explicações, pois viveu fora de casa alguns poucos dias. Sua mãe-madrasta, sentindo-se abandonada deu o “grito de misericórdia” em estilo cinematográfico: cherchez la femme! Sentindo-se ameaçado e vivendo certo pânico dá asas ao imaginário.
Cristóvão Tezza torna-se então minucioso detalhista na coleta de fatos e no estudo da chamada psicopatologia da vida cotidiana. Através da linguagem, nos diálogos amorosos e outros, de Cândido com Antônia, através das expressões que utiliza, dos trocadilhos, cenas imortais do cinema, legendas de filmes, temas. Rememora momentos com Hélia. A busca pelos filmes para a mãe que o tornou pirata receptador, distribuidor itinerante na internet; que fosse por uma boa causa; tornara-se obsessão poderosa. Aqui e ali surgiam lapsos, atos falhos de Cândido, indícios, pistas, sintomas. A vida que agora encara tornava-o imobilizado, retido como numa caixa de elevador (ascensor) que o levava ao... cadafalso? Seria isso mesmo? Intimismo subjetivo e política apaixonada comparecem entrecruzando-se no horizonte melancólico dos personagens.
https://periodicos.uff.br/revistapassagens/article/view/50151/29338 (pdf)