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Direitos humanos, globalização e soberania: sobre os efeitos das crises paradigmáticas
Derechos humanos, globalización y soberanía: sobre los efectos de las crisis de paradigma
Human rights, globalization, and sovereignty: On the effects of paradigmatic crises
Droits humains, mondialisation et souveraineté : les effets des crises paradigmatiques
人权、全球化和主权:论范式危机的影响
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 14, núm. 2, pp. 204-224, 2022
Universidade Federal Fluminense

Artigos

Autores que publicam nesta revista concordam com os seguintes termos: mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.

Recepción: 27 Noviembre 2021

Aprobación: 11 Enero 2022

DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-202214203

Resumo: A pesquisa propõe-se a investigar de que modo(s) a globalização e os direitos humanos interferem na concepção e exercício da soberania estatal (cujas transformações serão o delimitador da análise relativa à crise paradigmática em curso) e como essas inter-relações impactam o Estado e o Direito. Objetiva-se demonstrar que ambos os fatores impactam decisivamente a dinâmica das instituições forjadas na modernidade, tornando necessário um novo paradigma de compreensão para essas relações a partir de um amplo repensar dessas estruturas. A investigação adota metodologia de abordagem fenomenológico-hermenêutica, fundamentada, especialmente, na máxima heideggeriana “para as coisas elas mesmas!”, já que a proposta, em concordância com o método adotado, não caracteriza uma essência real dos objetos da investigação, mas o seu modo, o seu como, em oposição a construções soltas no ar ou a descobertas acidentais.

Palavras-chave: direitos humanos, globalização, soberania, crise.

Resumen: La investigación se propone investigar el/los modo(s) en que la globalización y los derechos humanos interfieren en la concepción y ejercicio de la soberanía estatal (cuyas transformaciones serán el delimitador del análisis relativo a la crisis paradigmática actual) y el impacto de estas interrelaciones en el Estado y el Derecho. Con ello, se pretende demostrar que ambos factores influyen decisivamente en la dinámica de las instituciones forjadas en la modernidad, haciendo necesario un nuevo paradigma de comprensión de estas relaciones a partir de la amplia reconcepción de tales estructuras. La investigación adopta una metodología con un enfoque fenomenológico-hermenéutico basada, especialmente, en la máxima heideggeriana «a las cosas mismas», ya que la propuesta, de acuerdo con el método adoptado, no caracteriza una esencia real de los objetos de investigación, sino su modo, su cómo, en oposición a construcciones en el aire o a hallazgos fortuitos.

Palabras clave: derechos humanos, globalización, soberania, crisis.

Abstract: This research aims to investigate how globalization and human rights interfere in the conception and exercise of state sovereignty (whose transformations delimit the analysis of the paradigmatic crisis underway) and how these interrelations impact the State and the Law. We aim to demonstrate that both factors decisively impact upon the dynamic of the institutions forged in modernity, creating the need for a new paradigm of understanding for these relations based on a broad rethinking of these structures. The investigation adopts the methodology of the phenomenological-hermeneutic approach, based, especially, on Heidegger’s maxim of “the things themselves”, since the proposal, in line with the method adopted, does not so much characterize the real essence of the objects of investigation, but rather their means, that is their ‘how’, in opposition to constructions floating in the air or discovered accidentally.

Keywords: human rights, globalization, sovereignty, crisis.

Résumé: Cette recherche propose d’analyser de quelle manière la mondialisation et les droits humains interfèrent sur la conception et l’exercice de la souveraineté de l’État (dont les transformations jalonneront l’analyse relative à la crise paradigmatique en cours) et comment ces interrelations affectent l’État et le droit. Notre but est de montrer que ces deux facteurs affectent de manière significative la dynamique des institutions issues de la modernité, rendant ainsi nécessaire un nouveau paradigme de compréhension de ces relations à partir d’une nouvelle façon de penser ces structures. La recherche adopte la méthodologie de l’approche phénoménologico-herméneutique, principalement fondée sur la maxime d’Heidegger « vers les choses elles-mêmes », étant donné que notre proposition, conformément à la méthode adoptée, ne caractérise pas l’essence réelle des objets de la recherche, mais leur mode, leur « comment », en opposition à des constructions aléatoires ou à des découvertes accidentelles.

Mots clés: Droits humains, mondialisation, souveraineté, crise.

摘要: 本文研究全球化和人权运动如何干扰主权国家对主权的行使,并重塑国家与主权的概念(主权的概念的变化主要原因是当下普遍存在的范式危机),以及这些相互关联的力量(全球化和人权)如何影响主权国家及其法律。作者目的是证明全球化和人权这两个因素都对现代化进程中形成的制度产生了决定性影响,促使人们重新思考现有的关系与制度范式,尝试为这些关系与制度提供一种新的范式。本项研究采用现象学-解释学方法,遵守海德格尔的格言“让事物说他们自己的话”,力图揭示调查对象的存在方式和运作方式。

關鍵詞: 人权, 全球化, 主权, 范式危机.

Introdução

Serão abordados, aqui, temas que, embora não sejam exatamente novidades, estão longe de uma resolução. De fato, compreender as circunstâncias do Estado e do Direito na emergência de um contexto marcado por intensas mudanças não é tarefa fácil.

Nestes tempos de incerteza e complexidade que se vive, no entanto, torna-se indispensável enfrentar as dificuldades e possibilidades que “tempos de crise” aportam. As “crises”, inclusive aquela conceitual, acerca da posição de instituições que pautam o modo de organização da vida política e social na modernidade, aportam questões que devem ser enfrentadas para que se possa compreender os papéis, estrutura e funções do Estado e do Direito contemporaneamente.

Diversos aspectos podem e são apontados como indícios dessa(s) crise(s), recebendo inúmeras abordagens. Um ponto de convergência para tão variadas análises, contudo, pode ser identificado no entorno da noção de soberania, tradicionalmente vinculada ao núcleo conceitual do próprio Estado.

Igualmente variados e complexos são os fatores que se acusam de enfraquecer ou modificar a ideia e o exercício da soberania estatal, sendo que, para os fins do presente trabalho, serão investigados apenas dois desses fatores: o fenômeno da globalização e aquele do reconhecimento e proteção dos direitos humanos.

Com efeito, o problema que se pretende investigar pode ser assim expresso: de que modo(s) a globalização e os direitos humanos interferem na concepção e exercício da soberania estatal (cujas transformações serão o delimitador da análise relativa à crise paradigmática em curso) e como essas inter-relações impactam o Estado e o Direito?

Para tanto, o texto desenvolve-se em duas partes, compreendendo (i) uma análise da relação entre globalização e soberania e suas respectivas influências e interferências para o futuro do Estado; e, num segundo momento, (ii) uma investigação acerca das tensões dialéticas entre direitos humanos e soberania e as novas perspectivas para o processo de internacionalização do Direito.

Objetiva-se, de um lado, demonstrar que um dos principais elementos do fenômeno da globalização que impactam a soberania diz respeito à perda da centralidade e exclusividade do Estado quanto ao exercício do poder político, o que ocorre, sobretudo, diante da emergência de novos poderes que exercem significativa influência no cenário global. Consequentemente, faz-se necessário um novo paradigma de compreensão para essas relações. De igual modo, de outro, a consolidação dos direitos humanos e a responsabilização estatal para além das fronteiras é outro fator de mudança que contribui para um contexto de crise(s), já que coloca em xeque critérios geográfico-territoriais e vínculos de nacionalidade que remontam às origens do Estado e do Direito modernos.

Metodologicamente, o estudo se vale de uma abordagem fenomenológico-hermenêutica, fundamentada, especialmente, a partir da máxima “para as coisas elas mesmas!” (HEIDEGGER, 2009, p. 66), já que a proposta, em concordância com o método adotado, não caracteriza uma essência real dos objetos da investigação, mas o seu modo, o seu como, em oposição a construções soltas no ar ou a descobertas acidentais. Tudo isso permitirá, ao final, ter claro que estas “crises” trazem, ínsitas, a chamada para que o “nada é possível” seja confrontado com o “tudo é possível”. Entre globalização e direitos humanos há muitas portas novas a exigir respostas inéditas.

Globalização, soberania e o futuro do estado

Embora recorrentes, os estudos sobre crise(s) que partem da premissa de que a globalização afeta a soberania do Estado, ao menos quanto ao seu exercício, em geral, a gravidade e a profundidade dessa afirmação não são levadas as suas últimas consequências, as quais compreendem uma ruptura conceitual e estrutural com relação ao Estado e, assim, quanto ao próprio Direito, sendo este tomado em sua formulação moderna, como expressão da ação/opção estatal.

É preciso, porém, examinar essa relação desde uma perspectiva ampla, a fim de que se possa mensurar até a máxima extensão possível as repercussões que um novo tipo de inter-relação entre poderes e instituições acarretam para a dinâmica organizacional político-jurídica contemporânea.

Iniciando pelo elemento talvez mais evidente, que consiste na perda de centralidade e exclusividade do Estado diante da “concorrência” com poderes privados, revela-se um aspecto de crise que se pode chamar de conceitual, justamente porque isso o afeta no plano da soberania, que lhe constitui o núcleo fundante (BOLZAN DE MORAIS, 2011, p. 27).

Ao impactar a soberania do Estado-nação, condição epistemológica indispensável da teoria jurídica moderna, a globalização alcança o núcleo no entorno do qual se desenvolve e se sustenta a figura estatal, protagonista da modernidade. Com esse fenômeno, “as estruturas institucionais, organizacionais, políticas e jurídicas forjadas desde os séculos XVII e XVIII tendem a perder tanto sua centralidade quanto sua exclusividade” (FARIA, 2004, p. 16). No âmbito econômico, essa perda inverte a relação entre os problemas internacionais e internos, ao ponto de que os primeiros não só passam a estar acima dos segundos, como também passam a condicioná-los (FARIA, 2004, p. 16-32, passim).

Mais do que um processo de superação das economias parciais do Estado, a globalização implica um salto qualitativo na exploração do capitalismo, que ao desvincular-se do Estado converte-se em um capitalismo sem raízes e sem território, que transita sem dificuldade de um lugar a outro buscando incessantemente o máximo de benefício (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, p. 22) e um novo capitalismo sustentado pelas possibilidades e potencialidades da revolução tecnológica atual.

Uma das questões chave para a compreensão desse cenário diz respeito não apenas à globalização em si (que é um fenômeno consolidado e, portanto, inevitável), mas à forma como é gerida. As grandes empresas conseguiram fazer com que os governos definissem as “regras do jogo” de modo a aumentar-lhes o poder negocial junto a trabalhadores e, até mesmo, condicionando a máquina política para redução ou eliminação de impostos (“ameaçam o país onde se encontram: se não baixarem os nossos impostos, iremos para outro lado, onde somos taxados com impostos mais baixos”) (STIGLITZ, 2016, p. 127).

Quanto a isso, é preciso considerar um aspecto extremamente sensível e cujos riscos e dificuldades já são evidentes: os instrumentos de controle do exercício do poder político (essenciais, inclusive, à garantia de direitos e liberdades individuais) desenvolvidos pelo Constitucionalismo desde o século XVIII foram, tradicionalmente, pensados e organizados em torno das instituições estatais (revelando-se, até então, insuficientes perante os poderes que se agigantam fora desse domínio). O Estado, com todo o poder que exerceu soberana e exclusivamente até as rupturas revolucionárias que forjaram o Estado de Direito de feição liberal, era a ameaça a ser contida.

Com efeito, a partir desses e outros fatores, opera-se uma inversão da relação entre política e economia que tem produzido uma profunda crise institucional, alcançando, de maneira preocupante, as próprias democracias (as quais também foram moldadas numa perspectiva atrelada à estatalidade). Tal crise compromete tanto a dimensão formal quanto substancial das democracias políticas (FERRAJOLI, 2015, p. 155).

Inevitavelmente, esses movimentos acabam permitindo que outros interesses e agentes disputem espaço com o Estado ao se converterem em efetivos centros de poder, o que gera reflexos sensíveis no âmbito político, pois ao invés de uma ordem soberanamente “produzida” pelo sistema político estatal, locusmoderno de organização da sociedade, o que se verifica é uma ordem crescentemente recebida dos agentes econômicos (FARIA, 2004, p. 35).

Em termos diretos, “o vínculo exclusivo entre o território e o poder político rompeu-se” (HELD; McGREW, 2001, p. 30-31). Se, por um lado, isso não necessariamente significa o fim da política nacional, de outro, implica e revela que “novas instituições internacionais e transnacionais têm vinculado Estados soberanos e transformado a soberania num exercício compartilhado do poder” (HELD; McGREW, 2001, p. 30-31), convertendo o tradicional espaço de formulação de decisões políticas em uma arena fragmentada.1

Oferecendo uma perspectiva de análise distinta, ainda que não propriamente oposta, Sassen fala em novos papeis para o Estado, tendo em vista que os espaços estratégicos em que os processos globais ocorrem são, frequentemente, nacionais, assim como as novas formas jurídicas necessárias à globalização são, em geral, parte das instituições estatais. Definir o Estado-nação e a economia global como mutuamente excludentes é problemático, na mesma proporção em que a condição do Estado-nação não pode ser reduzida a uma significação declinante. Por conseguinte, soberania e território seguem sendo características chave do sistema internacional, contudo, “reconstituídas e, em parte, deslocadas a outros âmbitos institucionais fora do estado e fora da estrutura do território nacionalizado”. A soberania passa a ser descentralizada e o território parcialmente desnacionalizado (HELD; McGREW, 2001, p. 45).

Não obstante as dificuldades e incertezas que o tema suscita, não há como ignorar ou mesmo negar as transformações em curso e a sua repercussão “para o” e “no” Estado. Permanece a dúvida, todavia, quanto à intensidade desse abalo, se suficiente para significar o fim do Estado ao reduzir-lhe a soberania característica desde as origens, ou se apenas capaz de recondicionar a forma e os rumos para o exercício do poder político.

Em uma construção analítica rigorosa na tentativa de apresentar diversas perspectivas sobre essas transformações, Sørensen (2010) argumenta que os estudiosos dos principais âmbitos da ciência social têm se concentrado sempre nos Estados soberanos e, a partir disso, desenvolve sua obra entre duas perspectivas que se referem ao tema: o ponto de vista “del repliegue” – segundo o qual o Estado tem perdido influência e autonomia – e o ponto de vista “del estado-céntrico” – segundo o qual, ao contrário, o Estado vem se fortalecendo. Desse modo, os mais variados argumentos são analisados, durante toda a obra, sob três perspectivas teóricas distintas: realista, liberal e crítica. Os realistas tendem a sustentar que os Estados seguem fortes; os liberais, que o Estado está cada vez mais enfraquecido; e, os críticos, tendem a apontar um processo complexo de transformação do Estado. Esse autor vai sustentar, inclusive (e até na contramão de algumas teorias), que todo esse espectro de crise não infirma a soberania do Estado, na verdade a confirma e reforça, em determinados pontos (SØRENSEN, 2010, p. 21-27, passim).

Um desses pontos é assinalado por Sassen ao abordar a renacionalização da política no que diz respeito à imigração, em contraste com a desnacionalização da economia operada pela globalização. Quando se trata de fluxo de capitais, informações, serviços, há um consenso crescente na comunidade de Estados pela supressão dos controles fronteiriços. O mesmo consenso se dá, apenas em sentido inverso, quando se trata das migrações, diante dos quais os Estados reivindicam ou são chamados a reivindicar (o que pode significar seu uso instrumental apenas) “todo o seu antigo esplendor, afirmando seu direito soberano de controlar as suas fronteiras” (SASSEN, 2001, p. 73). Renunciam ou são levados a renunciar à soberania em alguns âmbitos, mas aferram-se ou servem-se dela em outros, o que, mais uma vez, reforça o argumento das contradições do mundo contemporâneo.

Até mesmo porque indivíduos ou empresas, sozinhos, não conseguiriam chegar a concentrações tão extremadas de riqueza - o que lhes dá, consequentemente, maior controle econômico e poder político em amplos e variados cenários. Ou seja, não se trata meramente de capacidades individuais, mas de “capacidades sistêmicas” que combinam inovações técnicas, mercadológicas e financeiras, mas, também, a permissão governamental (SASSEN, 2016, p. 22-23).

Em síntese, diferentes visões e versões acerca da relação entre globalização e soberania, para colocar em termos amplos o debate, mostram-se presentes na cena acadêmica atual. Se, de um lado, faz-se possível avaliar que “este processo de fenecimento da soberania está, muito provavelmente, vinculado com o fenecimento do próprio Estado,” permitindo-se “especular, já sem muita preocupação com erro essencial, que o Estado – pelo menos o Estado Constitucional surgido das revoluções burguesas do Século XVIII – esteja exaurido” (CRUZ, 2002, p. 12; 21), de outro, o argumento acerca do suposto enfraquecimento da soberania do Estado pode ser acusado de representar uma tentativa neoliberal – partida de novos modelos associativos de mútua interdependência estatal – de fortalecer a soberania do mercado, a qual encontra na soberania nacional uma barreira ao projeto recolonizador das gigantescas associações de capital (BONAVIDES, 2003, p. 21).

De todo modo, não parece ser o caso de considerar-se o Estado uma forma de organização (completamente) ultrapassada; apesar de toda(s) a(s) sua(s) alegada(s) crise(s), trata-se de uma figura que “ainda persiste na atualidade como o princípio fundamental de integração das sociedades e o local de formação das identidades coletivas” (CHEVALLIER, 2009, p. 23), ou seja, como o elemento essencial em torno do qual se organiza a vida internacional. “Entretanto, essa persistência é acompanhada de um conjunto de mudanças que, longe de serem superficiais, são de ordem estrutural e contribuem para redesenhar a figura do Estado” (CHEVALLIER, 2009, p. 23).

Antes de identificar essas mudanças como necessariamente materialização de uma crise – no sentido da extinção da fórmula Estado -, impõe-se a advertência de que desde sempre os Estados têm experimentado mudanças, de modo que a transformação é a regra e não a exceção (SØRENSEN, 2010, p. 33), logo, é certo que nem toda transformação sinaliza o seu fim.

Conforme anota Sørensen, o debate sobre o suposto fim da soberania e, de certo modo, assim, da própria estrutura estatal (pelo menos no molde tradicional), não raro se desenvolve a partir de um erro categorial, uma confusão da realidade material do Estado com a instituição jurídica da soberania. A soberania, conforme sustenta o professor dinamarquês, tem por núcleo jurídico a independência constitucional, que assegura aos Estados o pertencimento à ordem internacional em igualdade de condições. Portanto, formal e juridicamente todos os Estados são iguais, no sentido de que têm os mesmos direitos e obrigações na órbita internacional. Mas, substantivamente, contudo, são enormes as desigualdades, no que diz respeito à realidade material do Estado, relacionada à capacidade real para a ação (SØRENSEN, 2010, p. 140-141). Resta saber, apenas, até que ponto uma soberania meramente formal é suficiente para alicerçar o Estado, notadamente se retomadas as suas origens e o que então designava.

Que a engrenagem institucional forjada à volta do Estado-nação e o pensamento jurídico constituído a partir daí, sobretudo associado à ideia de soberania, têm sido crescentemente ameaçados pelos processos complexos deflagrados pela globalização, parece não restar dúvida. Nesse novo contexto socioeconômico, conquanto continuem a exercer soberanamente autoridade nos limites de seus territórios (em termos “formais”), muitos Estados “já não mais conseguem estabelecer e realizar seus objetivos exclusivamente por si e para si próprios”, descobrindo-se “materialmente” limitados em sua autonomia decisória. Tomando de exemplo uma manifestação básica do exercício do poder estatal, como a tributação, “numa situação extrema, os Estados chegam ao ponto de não mais conseguirem estabelecer os tributos a serem aplicados sobre a riqueza – esta é que, se transnacionalizando, passa a escolher onde pagá-los”2 (FARIA, 2004, p. 23-24). O grande desafio é reestabelecer o vínculo rompido entre soberania “formal” e autonomia decisória “substantiva”, pois mantidas as circunstâncias atuais – e a tendência é que o fenômeno da globalização avance, não recue –, a soberania do Estado-nação não está sendo simplesmente limitada, mas comprometida na base (FARIA, 2004, p. 23-24).

Outra linha de pensamento acerca dessas variações é oferecida por Chevallier (2009), que interroga a dimensão das transformações que todos os Estados conheceram, ainda que em diferentes graus e momentos – o autor chega a mencionar a coexistência de “Estados pré-modernos” (embora se considere o Estado um produto da modernidade, a formulação se esclarece pelo contexto da obra) modernos e pós-modernos. Conclusivamente, afirma que a concepção tradicional de Estado deve ser reavaliada (CHEVALLIER, 2009, p. 20).

A hipótese parte da constatação da historicidade de um modelo estatal que foi construído na Europa Ocidental e que sofreu transformações profundas junto à sociedade (que também foi se modificando). A partir daí é traçado um detalhado panorama do que vai chamar de “Estado pós-moderno”, contrastando esses novos contornos aos do “Estado moderno”, de modo a demonstrar como e a partir de quais mecanismos essa “evolução” foi ocorrendo. Por isso será dito que esse Estado pós-moderno se apresenta tanto como uma “hipermodernidade”, na medida em que leva ao extremo certas dimensões presentes no cerne da modernidade (tais como o individualismo) e, simultânea e paradoxalmente, como uma “antimodernidade”, na medida em que se desvincula de certos esquemas da modernidade (como a própria ideia de soberania) (CHEVALLIER, 2009, p. 20).

De fato, a expansão de poderosos aparelhos de Estado na modernidade é subproduto lógico de uma construção simbólica herdada desse período, revestindo-o de atributos da razão e o erigindo à condição de garante do bem-estar coletivo. Entretanto, essa concepção e, seu corolário, o movimento de expansão estatal, entra em conflito ao final do século XX, especialmente devido à “influência de duas dinâmicas, uma interna, outra externa, que se conjugaram: (1) a reavaliação do lugar do Estado, da relação Estado/sociedade; e (2) a internacionalização (globalização) que contribui para minar certas posições conquistadas pelo Estado” (CHEVALLIER, 2009, p. 29).

No que toca à relação entre globalização e soberania, já despontam observadores a indicar um novo tipo de soberania (elemento que atrai a dúvida de até quando nomeá-la soberania), supraestatal, difusa e policêntrica, que vem limitar a "antiga soberania" do Estado e de suas instituições públicas. É uma novidade teoricamente relevante para a filosofia política e jurídica, pois coloca em xeque o núcleo central da teorização moderna da própria cidadania (CAPELLA, 2005, p. 21).

Discute-se, e há que se discutir, uma “soberania pós-moderna”, que considere a complexidade das (des)estruturas institucionais que se superpõem hoje, a qual o modelo de Estado construído na modernidade já não consegue dar conta. Impõe-se repensar o caráter soberano do Estado contemporâneo, que não mais se constitui em uma ordem “toda-poderosa”, absoluta; pelo contrário, tudo sugere o seu esmaecimento ou, pelo menos, para a sua transformação, mormente quando se trata de apontá-la – a soberania - como elemento caracterizador do poderio estatal (BOLZAN DE MORAIS, 2011, p. 33).

Admitir que o poder soberano do Estado se encontra em estágio avançado de um processo de deterioração não significa atestar, desde logo, que o poder desaparece. Tal efeito se produz tão-somente quanto a uma forma específica de organização do poder, que teve seu ponto forte no conceito jurídico-político de soberania (vinculado ao Estado) (CRUZ, 2014, p. 103).

Na representação de Beck (2004), a globalização significa a abertura de um novo jogo, cujas regras e conceitos fundamentais são igualmente novos, embora alguns insistam em permanecer jogando conforme o tabuleiro antigo. Com a globalização, surgem outros espaços e marcos de ação, aparecem jogadores adicionais, novos papeis e recursos, regras desconhecidas, contradições e conflitos. Se no jogo antigo alguns praticantes, como o "Estado nacional", dispunham de fichas e jogadas iguais aos demais, o mesmo não se pode dizer do novo jogo. As fichas do "capital", por exemplo, têm maior mobilidade, garantindo-lhe uma qualidade estratégica incomparável. Alguns antigos atores seguem na disputa, mas é urgente que se reinventem, adaptem-se, pois, um dos poucos rumos certos dessa jornada é a eliminação daquele que se apega à antiga dogmática do jogo (da qual faz parte a soberania) (BECK, 2004, p. 27-28).

Diante de tudo isso, constata-se a emergência (necessária) de um novo paradigma de compreensão do Estado e do Direito que reconheça as circunstâncias peculiares desta época da história e busque construir respostas novas, adequadas aos novos arranjos político-jurídicos. E, no espectro das questões que se põem o tema dos direitos humanos ganha relevância pois, se durante bom tempo seu lócus privilegiado se confundia com o espaço de atuação – território – dos Estados, desde, pelo menos, o pós-Segunda Guerra Mundial, operou-se um trânsito do nacional ao internacional, seja pelo reconhecimento das insuficiências dos Estados – ou mesmo de suas práticas contrárias -, seja pela identificação de que o tema dos direitos humanos, como direitos universais tem conexão direta e imediata com um âmbito que ultrapassa aquele dos Estados Nacionais, muito embora, nestes tempos de crise, dele não possa se desconectar totalmente, como se verá na sequência.

As tensões dialéticas entre direitos humanos e soberania e as novas perspectivas ao processo de internacionalização do direito

Ao analisar o Direito na economia globalizada, em meta tão explícita que vai definida como título, Faria, já no início deste século, não hesita em identificar como crise – diretamente conectada à perda de centralidade do Estado-nação – o que perturba o Direito e que o conduz ao que o autor chamará, amparado em Thomas Kuhn, de “exaustão paradigmática”. Muitos dos conceitos e categorias fundamentais até então prevalecentes na teoria jurídica são esvaziados em impressionante velocidade pelo fenômeno da globalização, de modo que “seus códigos interpretativos, seus modelos analíticos e seus esquemas cognitivos revelam-se cada vez mais carentes de operacionalidade e funcionalidade” (FARIA, 2004, p. 39).

Trazendo à base do estudo as noções desenvolvidas por Kunh (2011, p. 72), consideram-se paradigmas “[...] as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” Quando, no entanto, o que antes era solução começa a ser questionado (período pré-paradigmático) e os debates a respeito dos métodos, problemas e padrões de soluções legítimos passam a ser frequentes e profundos, as certezas paradigmáticas de então ficam desestabilizadas. Isso não significa que durante os períodos de “ciência normal” – quando se estabiliza o paradigma – os debates desapareçam; embora sejam, de fato, pouco frequentes, “ocorrem periodicamente pouco antes e durante as revoluções científicas – os períodos durante os quais os paradigmas são primeiramente atacados e então modificados” (KUHN, 2011, p. 72-73).

Atacar e, finalmente, modificar paradigmas é basicamente o que centraliza um dos maiores debates contemporâneos sobre manter/resgatar ou superar o paradigma da modernidade - conflito que pode ser observado por diversos ângulos, recebendo variadas e não unânimes denominações, mas cuja existência já não pode ser negada, posto que se apresenta como fato, como contexto.

Tome-se, por exemplo, a tensão a partir do Estado, classicamente identificado a partir dos elementos povo, território e soberania. A ideia de povo, simplificadamente tomada como ao qual pertencem os nacionais que, em nome dessa condição, são legítimos sujeitos de direitos e deveres perante a figura estatal, mostra-se hoje precária diante da imperatividade do Direito internacional dos direitos humanos e de situações tão delicadas como as migrações. Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) oferecem um demonstrativo da gravidade do caso. Em seu relatório anual de Tendências Globais (Global Trends) divulgado em junho de 2019, consta que cerca de 70,8 milhões de pessoas estão em situação de deslocamento forçado, fugindo de guerras, perseguições e conflitos; o número é o maior já registrado pela ACNUR ao longo de seus quase 70 anos de atuação (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019).

Não há mais condições, tampouco justificativas, para se pensar que as responsabilidades dos Estados e governos se restringem aos seus cidadãos, pois a proteção e efetivação dos direitos humanos é um dever, moral e jurídico (como âmbitos distintos), que precisa ser atendido globalmente. Trata-se de obrigações que, além de superarem o âmbito “doméstico” que por muito tempo as circunscreveu à esfera exclusivamente estatal, impõem-se a cada ser humano em relação aos demais.

A cidadania nacional foi uma resposta moderna eficiente para o enfrentamento das identidades fragmentárias de determinado período histórico, mas o pluralismo cultural que toma conta dos países e das relações internacionais atualmente, bem como os problemas de escala global que afetam a humanidade como um todo (apenas para mencionar alguns, fome, guerras, terrorismo, meio ambiente, pandemia...) não podem ser atacados em toda a sua complexidade por esse mesmo paradigma de cidadania, pois sequer guardam relação específica com a noção de território e de nação (LUCAS, 2010, p. 109).

São inúmeros os temas para os quais as inciativas e ações pensadas em âmbito meramente local/estatal já não são suficientes. Com relação aos direitos humanos, em alguma medida, é possível constatar certa predisposição e abertura dos Estados nacionais com relação às decisões internacionais, por exemplo, do que emerge, inclusive, uma discussão importante acerca de uma (possível e provável) dicotomia entre soberania estatal e direitos humanos.

Quanto à “existência física” dessa contradição, anota-se que, por independerem os direitos humanos de qualquer traço de nacionalidade, por desbordarem as distinções daí consectárias, é perfeitamente possível que possam ser considerados potencialmente contestatórios da soberania do Estado e desvalorizadores da cidadania. Mais do que isso, antecipando alguns efeitos de longo prazo, mas que desde logo começam a ser sentidos, é perceptível o deslocamento do próprio conceito de nacionalidade, que, de um preceito tradicionalmente voltado ao reforço da soberania estatal, a autorizar, em nome da autodeterminação e por meio do Direito e do poder do Estado, a delimitação clara de quem são “os seus nacionais” – e, assim, de certa maneira, também delimitar o seu âmbito de responsabilidades –, passa a incumbir ao Estado compromissos perante todos os seus residentes, nacionais ou não, baseando-se na força de documentos internacionais de direitos humanos (SASSEN, 2001, p. 97; 104).

Assumindo, então, ainda que timidamente, essa contradição, algumas Constituições latino-americanas podem ser indicadas – e mesmo que não sejam as únicas, evidentemente, é válida a nota pelo caráter ilustrativo,3 já que o objetivo em foco não é o exaurimento de uma investigação analítica e, sim, uma demonstração substancial que diz respeito a conteúdos opostos conciliados textualmente.

Neste sentido, na primeira parte da Constituição argentina, o artigo 33 faz constar que as declarações, direitos e garantias aí enumerados não podem ser interpretados como uma negação de outros direitos e garantias não listados, acrescendo, ao final do dispositivo, a previsão de que sua origem remonta ao princípio da soberania do povo e da forma republicana de governo (ARGENTINA, 1994). Assemelha-se, em parte, à previsão da Constituição brasileira, no que reconhece e promove uma abertura a direitos e garantias advindos de tratados internacionais (ARGENTINA, art. 5º, §2.), ou seja, não necessariamente relacionados de modo explícito no texto constitucional – este que expressa a soberania do povo e legitima o seu exercício pelo poder estatal.

Factualmente, diversas Constituições contemporâneas referem-se sem rodeios aos tratados de direitos humanos, inclinação que não escapa à América Latina, em que as Constituições “concedem um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos internacionalmente consagrados” (TRINDADE, 2001, p. 311).

Singularmente notável no que tange ao tema, no entanto, é a Constituição chilena, que assenta em seu texto, clara e inequivocamente, a resposta que muitos outros documentos constitucionais para o “dilema soberania-direitos humanos”, como os aqui relatados, concebem apenas tacitamente. Estatui o artigo 5º da Constituição do Chile que “a soberania reside essencialmente na Nação” e que o seu “exercício reconhece como limitação o respeito aos direitos essenciais que emanam da natureza humana” (CHILE, 2021), promovendo flagrantemente a primazia dos direitos humanos em detrimento da soberania (com todas as precauções que essa afirmação entusiasmada exige).

A partir de todas essas conexões, observa-se que a tensão dialética entre a soberania dos Estados e os direitos humanos resolve-se pela remodelação e transformação da primeira. Por serem soberanos, os Estados têm obrigações jurídicas, em matéria de direitos humanos, notadamente, que ultrapassam a sua esfera territorial, pois dizem respeito à comunidade internacional em seu conjunto. Em face do reconhecimento e da consagração dos direitos humanos resultantes da Carta das Nações Unidas e dos seus desenvolvimentos normativos posteriores, o Direito internacional penetrou progressivamente no coração da soberania, que persiste, porém, como dito, remodelada e transformada (SALCEDO, 2001, p. 17).

Tudo aponta à constatação de que as antigas hierarquias de poder e influência dentro do Estado estão sendo reconfiguradas e, uma dessas frentes, sem dúvida, é liderada pela crescente globalização econômica, contudo, insuspeitamente, o auge do estatuto dos direitos humanos internacionais4 também é fator decisivo para esse realocar de forças (SASSEN, 2001, p. 105-106).

Apenas considerando, então, a lógica dos sistemas contemporâneos de proteção dos direitos humanos, “a polêmica clássica entre dualistas e monistas, em seu inevitável hermetismo, parece ter sido construída sobre falsas premissas” (TRINDADE, 2001, p. 306). Vários fatores autorizam a dizer que o quadro atual não é nem puramente nacional, nem puramente internacional, é “internacionalizado” e, nenhum dos extremos serve à busca da efetividade do Direito na realidade adversa da globalização. A submissão do poder, enquanto razão de ser (genericamente falando) do Estado de Direito, “implica uma organização complexa, capaz de funcionar em diversos níveis, incluir conjuntos de atores estatais e não-estatais, e de ordenar os diferentes setores do Direito.” Diante disso, “quanto mais tarde o direito tarda a reconhecer-se como mutante, mais ele reduz sua capacidade de influenciar um processo histórico que galopa” (VENTURA, 2008, p. 236).

É preciso, finalmente, aceitar a história e assumir que a relativização da soberania refletida no Direito vai aos poucos moldando um Direito novo. Novo, sim, e não outro termo, porque já não é mais elaborado de modo confinado aos problemas e demandas estritamente nacionais e assimila influências externas diretamente. Previsões constitucionais como as retratadas indicam uma tendência global de abertura da soberania em favor dos direitos humanos e, ainda que venham refletindo-se sutil e gradativamente no âmbito interno,5 algumas manifestações já puderam ser sentidas em máxima potência, superando nada menos do que previsões constitucionais expressas, como no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343, pelo Supremo Tribunal Federal, em que a Corte se utilizou da Convenção Americana de Direitos Humanos para interpretar (e “superar”) o texto constitucional brasileiro (BRASIL, 2008).

Aliás, “a crescente incidência do regime de direitos humanos no Estado de Direito e o uso cada vez mais generalizado dos instrumentos de direitos humanos nos tribunais nacionais”, seja como suporte interpretativo ou fundamento de decisões, representa uma “instância de desnacionalização na medida em que se trata de mecanismos internos do Estado-nação [...], mas os instrumentos invocam uma autoridade que transcende o Estado nacional e o sistema interestatal”, desestabilizando as noções de soberania estatal exclusiva que por muito tempo predominaram, reiterando o potencial desses documentos internacionais para (trans)formar o Direito nacional (SASSEN, 2006, p. 388).

Nesse sentido, há que pensar, também, que se opera uma passagem da decisão política sob a forma organizada nos Estados nacionais – que passam pelo parlamento, privilegiadamente - para normativas produzidas negocialmente, em escala internacional, no âmbito das organizações internacionais, exemplificativamente, pondo em cheque a figura do Estado legislador.

Trata-se de um processo complexo, que vai muito além do deslocamento de autores e atores, consubstanciando verdadeiros processos legislativos extranacionais, onde o Direito passa a ser “formado por uma série de regras que vão além de tratados internacionais, e incluem padrões procedimentais, regras transnacionais e outra série de formas distintas de legislar” que, consequentemente, escapam ao controle dos Estados, os tradicionais tomadores de decisão. Esse novo processo legislativo extranacional, de dimensões globais, sequer se fundamenta na noção de ordenamento jurídico estatal/interno (LUZ, 2015, p. 35-36).

Com efeito, há que se descartar a compartimentalização entre Direito nacional e internacional, como se fossem “Direitos diferentes” que simplesmente se comunicam. Com a interação dinâmica entre “um e outro” e o auxílio mútuo no processo de expansão e fortalecimento da proteção do ser humano é o Direito em si que se enriquece. Não deixa de ser alentador, como sustenta Trindade (2001, p. 313), perceber que no “umbral do século XXI [...], direito internacional e direito interno finalmente caminham juntos e apontam na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último de proteção do ser humano em todas e quaisquer circunstâncias”.

Trata-se de um movimento, em realidade, que supera a interação entre “Direitos” ou entre “níveis do Direito”, por mais qualificada que seja, conforme vem sendo defendido. Abriu-se uma via pela qual o Direito circula permanentemente6 e que já não pode mais ser fechada, pelo menos não sob as condições atuais.

Tal abertura cria um espaço “onde as fronteiras estatais já não são obstáculos para a realização dos direitos humanos/fundamentais com elementos de conexão internacional”, trazendo também à tona – e impedindo que se continue a negar7 – uma outra concepção de soberania – se é que de soberania ainda se trate – “cujas fronteiras, aquelas próprias do modelo moderno do Estado, seriam flexíveis, sem que se saiba ao certo onde se iniciam e onde terminam, se é que se iniciam ou terminam, em algum lugar demarcado” (BOLZAN DE MORAIS; VIEIRA, 2013, p. 135), acompanhada de um estatalismo relativizado. Ambos implicam “em uma recomposição das paisagens jurídicas nacionais, regionais e internacionais”, tornando obrigatório e indispensável o esforço de “convencionar um direito comum através da harmonização entre as normas provenientes dos mais diversos ordenamentos” (BOLZAN DE MORAIS, 2013, p. 169).

Muros e fronteiras começam a desvanecer diante desses e outros acontecimentos para, assim, serem vistos como a abstração fictícia que, em realidade, sempre foram. O componente território, a demarcar os limites geográficos (físicos) sobre os quais o Estado exercia o poder em caráter exclusivo é desmontado por problemas transfronteiriços cada vez mais graves e urgentes, não só pelos impactos de uma globalização que se impõe sob, muitas vezes, os influxos de um novo projeto capitalístico em muito viabilizados pelas transformações tecnológicas de uma nova revolução científica.8

Para que o Direito possa retomar suas funções em plenitude é preciso recompô-lo, deixar que absorva e seja absorvido por um novo paradigma. Se, de um lado, verifica-se a circularidade entre as instâncias locais/nacionais e as instâncias externas/internacionais, também o fato de que as relações entre essas diferentes instâncias estão mais permeáveis serve como indicativo de que há transformações inéditas e inegáveis em curso e que, portanto, mesmo que não se queira ou não se possa afirmar a completa ruptura com as fórmulas político-jurídicas da modernidade, o paradigma atual já não lhe corresponde, posto que estranho e distinto em elementos decisivos.

Ao transitar para um novo paradigma espaço-temporal o Direito deixa de ter o Estado como fonte irradiadora exclusiva e, assim, não pode mais ser pensado em uma forma meramente nacional, pois movimenta-se em um sentido diferente.

Evidente que esse “trânsito” gera efeitos marcantes, já que a lógica da soberania precisa ser substituída por uma lógica de diálogo, cooperação e consenso entre os Estados e outros atores e instituições não-estatais para a produção e efetivação deste novo Direito, cujos resultados ainda não se conhecem, cujos métodos ainda estão se construindo.

Considerações finais

Ao longo do texto buscou-se responder de que modo(s) a globalização e os direitos humanos interferem na concepção e exercício da soberania estatal e como essas inter-relações impactam o Estado e o Direito, assumindo essas transformações como delimitadoras da análise relativa à crise paradigmática em curso.

Num primeiro momento, analisando as conexões entre globalização e soberania, conclui-se que a emergência de novos poderes gera uma perda da centralidade e exclusividade estatal em domínios tradicionalmente associados à atuação do Estado. Os complexos processos deflagrados pela globalização, a expansão do sistema capitalista e sua desterritorialiação produzem um novo contexto socioeconômico no qual os Estados, ainda que continuem a exercer “soberanamente” a autoridade nos limites de seus territórios (em termos formais), descobrem-se materialmente limitados, sem uma autonomia decisória substantiva.

Abalada a soberania estatal, classicamente identificada pela inexistência de poder superior ou equivalente e que, por séculos, constitui(u) o núcleo conceitual do Estado, impõe-se a rediscussão e redefinição dos seus aspectos consectários, inclusive, quanto ao papel do Estado e do próprio Direito – tido, neste contexto, como resultante da própria atuação estatal - neste novo cenário.

De igual modo, a consolidação dos direitos humanos também colabora para tensionar a concepção de soberania, à medida que permite e promove a responsabilização estatal para além das fronteiras, colocando em xeque, assim, critérios geográfico-territoriais e vínculos de nacionalidade que remontam às origens do Estado e do Direito modernos.

Em síntese, o Estado perde exclusividade quanto ao controle efetivo das relações de poder e o Direito deixa de tê-lo como fonte irradiadora exclusiva, de modo que as relações dependentes dessas instituições já não podem mais ser pautadas unicamente por contornos nacionais, pois insuficientes.

É preciso repensar, refundar e relegitimar esses vínculos por meio de diálogo, cooperação e consenso entre os Estados e os demais atores e instituições não-estatais concretamente atuantes no cenário global para que se produza e se efetive um novo Direito, guiado pelo já iniciado processo de internacionalização a partir dos direitos humanos.

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Notas

1 Há, como sugere Bauman (2007, p. 7-8), uma ruptura entre “poder e política”.
2 Ou, pior, escolher não os pagar, conforme evidenciam dados divulgados pela OXFAM, de que, por meio de uma rede global de “paraísos fiscais”, “os super-ricos estão escondendo pelo menos US$ 7,6 trilhões das autoridades fiscais”, sonegando, assim, cerca de US$ 200 bilhões em impostos. Os países em desenvolvimento, que mais precisariam desses recursos, “estão perdendo pelo menos US$ 170 bilhões por ano em impostos não pagos por empresas e super-ricos” (OXFAM, 2018, p. 9).
3 Estipulações dessa índole são encontradas nas Constituições do Peru (artigo 3), Venezuela (artigo 23), Equador (artigo 11, 7), mas também em Constituições de países europeus, como Alemanha (artigos 1 e 25), Portugal (artigo 16) e Espanha (artigo 10) e, inclusive, em Constituições orientais, como na do Japão (artigo 11) – para reforçar o argumento da universalidade –, onde se atribui aos direitos humanos, além de um caráter diferenciado e especial, uma vinculação para com as gerações futuras, na condição de direitos eternos e invioláveis.
4 Importante não se deixar apanhar, contudo, pela falsa e limitada noção de que os direitos humanos equivalem meramente às abstrações textuais e aos conceitos jurídicos contemplados formalmente em diversos documentos internacionais. Tais direitos são atrelados, em geral, a um discurso jurídico produzido institucionalmente (sobretudo na perspectiva ocidental), cabendo, portanto, rememorar o que Gallardo (2014, p. 30) denomina de abismo entre o que se diz e o que se faz sobre direitos humanos, já que a presença do conceito no âmbito jurídico tem se mostrado insuficiente para garantir-lhe alguma efetividade e concretização, predominando, ao invés disso, uma verdadeira e perigosa cisão entre teoria e prática.
5 Nesse sentido, recomenda-se a leitura do estudo sobre “O impacto no sistema processual dos tratados internacionais” (BOLZAN DE MORAIS, 2013.).
6 Sobre o tema, mais aprofundadas reflexões podem ser encontradas em (GERVASONI, 2017).
7 Pois “falar em soberania, nos dias que correm, como um poder irrestrito, muito embora seus limites jurídicos, parece mais um saudosismo do que uma avaliação lúcida dos vínculos que a circunscrevem” (BOLZAN DE MORAIS; VIEIRA, 2013, p. 135).
8 Esta é uma questão relevante, a qual, todavia, nos limites deste texto, não vem abordada. Sobre o tema e alguns de seus impactos, ver (BOLZAN DE MORAIS, 2017).

Notas de autor

* Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com período sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Mestre e Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Professora de Direito Constitucional e Ciência Política na Faculdade Meridional - IMED/Passo Fundo. Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado em Direito na Faculdade Meridional - IMED/Passo Fundo. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais, Democracia e Desigualdade, vinculado ao CNPq.

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