Resumo: O presente artigo explora as primeiras ações realizadas no âmbito da legitimação internacional de D. João IV por meio de livros e panfletos impressos, apresentando o contexto de publicação de cada obra e os principais argumentos de cada autor. Tais escritos foram fundamentais para divulgar no exterior a versão oficial sobre o movimento restaurador, até então conhecida somente em Portugal. Dedicaram-se a esta tarefa os “repúblicos”, homens das mais distintas origens sociais e ocupações que tinham por primordial acudir às coisas da res publica. Em meio à campanha, os repúblicos foram interpelados pelo castelhano Juan Caramuel Lobkowitz, que escreveu uma resposta ao manifesto do reino de Portugal, instigando a contrarresposta de diferentes escritores portugueses. O resultado foi o despoletar de uma polêmica que abarcou vários países europeus e se estendeu por anos a fio.
Palavras-chave: Restauração de Portugal, legitimação, repúblicos.
Resumen: Este artículo examina las primeras acciones realizadas en el marco de la legitimación internacional de D. João IV a través de libros y folletos impresos, presentando el contexto de publicación de cada obra y los principales argumentos de cada autor. Dichos escritos resultaron fundamentales para difundir en el extranjero la versión oficial del movimiento de restauración, hasta entonces conocida únicamente en Portugal. A esta tarea se dedicaron los llamados repúblicos, hombres procedentes de los más diversos orígenes sociales y ámbitos laborales cuyo objetivo principal era atender las tareas de la res publica. En plena campaña, los repúblicos fueron cuestionados por el español Juan Caramuel Lobkowitz, quien escribió una respuesta al manifiesto del reino de Portugal, instigando la contrarrespuesta de diferentes escritores portugueses. Estos hechos desataron una polémica en la que estuvieron implicados diversos países europeos y que se prolongó durante años.
Palabras clave: Restauración de Portugal, legitimación, repúblicos.
Abstract: The present article explores the early steps taken toward the international legitimization of King Joao IV of Portugal by means of books and printed leaflets, outlining the context in which each work was published and the main arguments made by each author. Such writings were fundamental to publicizing the official version of the restoration movement abroad, which was until then only known of in Portugal. Dedicated to this task were the “republics”, formed by men from a wide variety of social backgrounds and professions whose primary concern was to promote the things of the res publica. During the campaign, the republics were challenged by Castilian Juan Caramuel Lobkowitz, who wrote a response to the Kingdom of Portugal’s manifesto, prompting a further response from various Portuguese authors. The result was to spark a controversy that involved various European countries and lasted for years.
Keywords: Portuguese Restoration War, legitimization, republics.
Résumé: Le présent article entend analyser les premières actions mises en œuvre pour assurer la légitimation internationale de D. João IV par l’entremise d’ouvrages et de pamphlets imprimés. Il s’agit à cette fin de présenter le contexte de publication de chacun de ces ouvrages et les principaux arguments de chacun des auteurs impliqués. Ces écrits se sont avérés fondamentaux pour diffuser à l’étranger la version officielle relative au mouvement de restauration, qui n’était jusque-là connue qu’au Portugal. Cette tâche fut confiée aux « repúblicos », à savoir des hommes de différentes origines sociales et professions dont la principale ambition était la promotion de la res publica. Dans le cadre de cette campagne, ces « repúblicos » furent interpellés par le castillan Juan Caramuel Lobkowitz, qui rédigea une réponse au manifeste du Royaume du Portugal, qui provoquera à son tour diverses réactions de différents écrivains portugais. Le résultat en fut le déclenchement d’une polémique qui impliqua de nombreux pays européens au fil des années.
Mots clés: Restauration portugaise, légitimation, repúblicos.
摘要: 本文分析葡萄牙复国运动初期印刷的宣传性书籍和小册子,探讨了若昂四世 (D. João IV) 为了获得国际合法性而采取的宣传措施和其它相关行动。文本介绍了每本书籍和宣传册的出版背景和每位作者的主要论点。这些著作是葡萄牙复国运动在国外的官方宣传文本,它们对葡萄牙复国合法性的表述至关重要。在此之前,这些作品只有葡萄牙人知道,复国运动人士采取行动,写作和出版书籍,小册子,宣传复国运动的宗旨,致力于争取葡萄牙复国的国际合法性。参与复国大业的人士,他们有着多种多样的社会出身和职业背景,他们关心复国运动,认为它是葡萄牙人共同的事业。在运动期间,卡斯蒂利亚人胡安·卡拉穆尔·洛布科维茨(Juan Caramuel Lobkowitz)对葡萄牙复国的合法性提出了质疑,他著文反驳葡萄牙国王复国宣言,从而引发了许多个葡萄牙作者从不同的侧面进行反击。其结果引发了一场涉及几个欧洲国家并持续多年的争议。
關鍵詞: 恢复葡萄牙, 合法化, 葡萄牙复国共同事业.
Artigos
Narrativa e legitimidade na Restauração de Portugal: primeiras ações no âmbito da literatura justificativa (1641-1644)
Narrativa y legitimidad en la Restauración de Portugal: primeras acciones en el marco de la literatura justificativa (1641-1644)
Narrative and legitimacy in the Portuguese Restoration War: Early steps toward its justification in literature (1641-1644)
Récits et légitimité de la Restauration portugaise : les premiers pas de sa justification par le biais littéraire (1641-1644)
葡萄牙复国的合法性及其叙事:复国运动早期的宣传文献(1641-1644)

Recepción: 13 Diciembre 2021
Aprobación: 08 Marzo 2022
Após sessenta anos de domínio dos reis de Castela sobre Portugal, os portugueses recuperaram a independência do reino por meio de uma insurreição iniciada a 1° de dezembro de 1640, quando um grupo de fidalgos1 tomou o Paço da Ribeira, aprisionou a vice-rainha D. Margarida de Mântua e defenestrou o secretário de Estado Miguel de Vasconcelos. O episódio, que ficou conhecido como “Restauração”, marcou o início de um conflito que durou vinte e oito anos e mudou a configuração política da Península Ibérica de forma definitiva.
Após o 1° de dezembro de 1640, uma grande quantidade de escritos foi publicada em defesa do até então duque de Bragança, aclamado rei D. João IV pelos revoltosos logo após terem destituído Felipe IV do poder. Tais escritos visavam principalmente convencer o conjunto dos portugueses da importância da causa da Restauração e angariar o apoio das potências estrangeiras para a luta contra Castela (TORGAL, 1981, v. 1, p. 134-165). Esta produção tipográfica tomou a forma de incontáveis gêneros literários, que iam de relações de guerra a poesias apologéticas, de sermões impressos a propagandas da diplomacia, passando por espessos volumes de discussão jurídica, política e histórica.
Dentre estes impressos emergiu uma literatura que procurou assentar em termos legais a justiça do movimento restaurador e da aclamação de D. João IV, lançando mão de argumentos que variavam entre o direito hereditário da Casa de Bragança ao trono português e o direito dos povos de elegerem os seus governantes. Em resposta, os partidários do rei de Castela publicaram outros tantos livros nos quais procuraram refutar a argumentação portuguesa e defender o domínio de seu soberano sobre Portugal, estabelecendo, dessa forma, uma polêmica que proliferou no espaço público europeu e atravessou os anos de guerra.
Na sequência da revolução cultural provocada pela invenção dos tipos móveis de Gutenberg, as monarquias europeias viram um aumento considerável de um espaço de discussão bastante próximo do público no que diz respeito, pelo menos, a sua plena consciência acerca da existência de várias opiniões que se confrontavam por meio de diferentes meios de comunicação, talvez não abertamente em termos de debate político, mas claramente em campos como o literário ou o universitário (BOUZA ÁLVAREZ, 2008, p. 135). No entanto, a Restauração de Portugal inaugurou uma situação inédita no que se refere ao espaço ibérico. Movidos pela vontade de servirem aos seus respectivos reis, portugueses e filipistas contenderam ferrenhamente no espaço público europeu, lançando mão livremente da imprensa para atacarem uns aos outros.
É válido destacar que os escritores portugueses estavam empenhados em uma causa comum, qual era a de assegurar a independência do reino de Portugal. Em certa medida eles buscavam unificar as vozes dissonantes no reino em torno do propósito de consolidar o governo de D. João IV. Por outro lado, tentavam conquistar a opinião dos estrangeiros em favor da causa portuguesa. Em ambos os casos a intenção destes escritores era a de restaurar a res publica, isto é, fazer retornar as instituições políticas – inclusive a régia – a um ponto anterior ao da incorporação na Monarquia Hispânica. Por esse motivo eles eram denominados e se autodenominavam repúblicos. No caso específico da legitimação da Restauração, os repúblicos estavam mais preocupados em preservar a res publica das ameaças externas, ou seja, assegurar – mais precisamente conquistar – a soberania nacional.
Nesse período a Europa passava por uma profunda reconfiguração em sua geografia política que logo culminaria no estabelecimento de um sistema internacional de regulação das relações interestatais. O advento da Reforma reforçou a tendência de diminuição da autoridade papal enquanto árbitro dos conflitos internacionais europeus, o que ocorreu paralelamente ao aparecimento de fontes jurídicas e doutrinais que reforçavam a autonomia do poder secular frente à Igreja, nas diversas monarquias da Europa. Em pouco tempo os reinos cristãos se envolveriam em uma guerra que duraria trinta anos, na qual “a força passou a ser a única base da resolução dos conflitos entre os Estados europeus” (HESPANHA; MAGALHÃES, 2004). A Guerra dos Trinta Anos terminaria em 1648, data do chamado Tratado de Vestfália, que na verdade foi constituído por uma série de tratados acordados entre as forças em guerra, principalmente os assinados em Münster e Osnabrück:
O tratado estabeleceu um conjunto de importantes princípios que passaram a constituir o quadro legal e político das relações interestatais da Idade Moderna. Entre esses princípios contavam-se o reconhecimento de uma sociedade de Estados baseada na soberania territorial; o reconhecimento da independência dos Estados cujos regimes jurídicos todos deviam respeitar; e o reconhecimento da legitimidade de todas as formas de governo e da liberdade de religião (cujus regio, ejus religio). [...] Em suma, estabeleceu-se um conceito secular das relações internacionais, substituindo o conceito medieval de uma autoridade religiosa universal agindo como árbitro final da Cristandade (HESPANHA; MAGALHÃES, 2004).
Quando se deu a Restauração a Guerra dos Trinta Anos entrava em seu último período, e D. João IV procurou incluir Portugal na aliança internacional formada pelas frentes anti-habsbúguicas lideradas pela França, da qual faziam parte a Suécia e a Holanda. A Inglaterra, agitada por discórdias internas que em breve desencadeariam uma guerra civil, estava impossibilitada de intervir nos negócios europeus por uns dez anos. D. João enviou embaixadas a todos esses países, mais a Dinamarca, onde o rei decidiu não receber os diplomatas portugueses por recear que isso pudesse prejudicar as suas posições no norte da Europa. Foi nesse cenário tumultuado que se desenvolveu o debate acerca da legitimidade da Restauração.
Este trabalho aborda os anos iniciais da polêmica acompanhando a sua evolução desde a publicação dos primeiros escritos até a fundamentação jurídica oficial da Restauração, dada a conhecer ao público somente em 1644 por meio da publicação do livro Justa aclamação, de Francisco Velasco de Gouveia. Em um primeiro momento serão apresentadas as circunstâncias políticas em que se deu a aclamação de D. João IV, particularmente o que se refere às ações realizadas ao nível da institucionalidade. Em seguida cotejaremos essas ações com os primeiros empreendimentos realizados no âmbito da literatura justificativa. Sempre que possível os textos serão contextualizados em relação às circunstâncias específicas da sua produção e às trajetórias particulares dos seus autores, com o propósito de estabelecer nexos entre os discursos enunciados e o contexto político no qual eles intervieram.
Esta gama de textos foi abordada de diferentes maneiras pela historiografia, tendo sido ora tomada como retrato fiel dos acontecimentos, ora problematizada à luz dos avanços historiográficos. Para este trabalho ela foi analisada à luz dos aportes teórico-metodológicos desenvolvidos no seio dos debates linguísticos ocorridos a partir dos anos 1960 no mundo anglo-saxão (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1979), os quais a historiografia incorporou ao estudo da história das ideias e do discurso político. Em linhas gerais, essa historiografia privilegia a análise dos discursos políticos inseridos tanto em seu ambiente intelectual quanto no campo semântico em que os “atos de fala” são efetuados (POCOCK, 2003; SKINNER, 1996).
Por fim, devemos mencionar que os textos analisados constituem apenas uma pequena parte do corpus de discursos políticos da Restauração, e que, portanto, não é intenção deste trabalho apresentar conclusões sobre o conjunto como um todo. Em última análise queremos demonstrar, a partir do exame desses textos, a relação entre cultura impressa e o estabelecimento de regimes na Época Moderna, particularmente o caso de Portugal.
O primeiro problema colocado para a Restauração foi o de defender a legitimidade com que os portugueses negaram obediência ao rei de Castela e aclamaram D. João IV. Diferentes medidas foram tomadas com esse propósito, algumas de iniciativa direta do governo e outras de iniciativa particular de pessoas que se propuseram a exaltar e glorificar a Restauração em panfletos impressos. Outras ainda poderiam ser consideradas, como as manifestações populares de apoio ao novo rei, mas por uma questão de objetividade nos ateremos às duas primeiras.
Quanto às primeiras, a convocação das Cortes para janeiro de 1641 foi uma das principais ações nesse sentido. Somente o rei detinha o direito de convocar a reunião dos três estados, portanto a convocação feita por D. João IV já vinha revestida de uma forte carga simbólica (CARDIM, 1998). Depois de os revoltosos o terem aclamado no dia 1° de dezembro, e da nobreza e demais representantes do clero e do povo de Lisboa em 15 de dezembro, as Cortes confirmaram de modo solene a entrega do poder de todo o reino ao novo rei, outorgando-lhe o direito de reinar sobre todos. Os direitos já anteriormente assinalados na cerimônia do dia 15 foram novamente confirmados, assim como o direito de o reino se eximir da obediência do rei de Castela e aclamar um novo rei, o que somente o reino em Cortes poderia fazer.
A esse fim, e para que ficasse “manifesto em todo o tempo”, as Cortes redigiram um assento no qual determinavam, entre outras coisas, a sua própria capacidade deliberativa em matérias de sucessão da coroa:
Os Três Estados destes Reinos de Portugal, juntos nestas Cortes, onde representam os mesmos Reinos, e tem todo o poder que neles há [...] assentaram seria conveniente para maior perpetuidade e solenidade de sua felice aclamação, e restituição ao Reino, que sendo agora juntos, tornem em nome do mesmo Reino fazer este assento per escrito, em que o reconhecem e obedecem por seu legítimo Rei e Senhor, e lhe restituem o Reino que era de seu Pai e Avô, usando nisto do poder que o mesmo Reino tem para assi o fazer, determinar e declarar justiça (ASSENTO..., 1641, fol. 1v-2).
A redação do Assento feito em Cortes foi inspirada na doutrina teológico-jurídica que dizia que os povos podiam depor os reis caso eles se tornassem tiranos, conquanto o poder dos reis advinha dos povos que primeiro transferiram neles com a condição de governarem para o bem comum. Os portugueses alegaram que era costume antigo do reino que as Cortes decidissem os casos duvidosos de sucessão, tradição inscrita na eleição do Mestre de Avis em 1385 e no seu testamento posteriormente confirmado por D. Afonso V nas Cortes de 1439. Adaptado ao caso português, o núcleo da doutrina ficou assim estabelecido:
Ao Reino somente compete julgar e declarar a legítima sucessão do mesmo Reino, quando sobre ela há dúvida entre os pretensores, por razão do Rei último possuidor falecer sem descendentes, e eximir-se de sua sujeição e domínio quando o Rei por seu modo de governo se fez indigno de Reinar. Por quanto este poder lhe ficou quando os Povos a princípio transferiram o seu no Rei para os governar (ASSENTO..., 1641, fol. 2-2v).
As Cortes de 1641 afirmaram que havia dúvidas quanto aos direitos de Felipe II, avô de Felipe IV, à coroa de Portugal, no que foram secundadas pelos repúblicos. Eles afirmaram que na ocasião da sucessão de D. Henrique, em 1580, D. Catarina de Bragança era a preferida à sucessão, visto que o rei havia falecido sem descendentes. Tanto as Cortes quanto os repúblicos afirmaram que naquela ocasião competia ao reino decidir o pleito, e tendo Felipe II desrespeitado esse costume, e entrado no reino com a ajuda de exércitos, o direito não se havia quitado, não obstante a posse de sessenta anos dos reis castelhanos.
Outro aspecto fundamental da aclamação de D. João IV também assentado pelas Cortes é que ela repetiu na “forma e ordem” a aclamação de D. Afonso Henriques, primeiro rei e fundador da monarquia de Portugal, quando foi primeiramente aclamado em campo de batalha e logo depois confirmado e aclamado em Cortes, reunidas na cidade de Lamego. A própria redação do Assento era invocada como parte da repetição do ritual realizado na fundação do reino. Ou seja, a aclamação de D. João IV era assim revestida com a aura simbólica do mito fundador da monarquia portuguesa, e a reunião de Cortes, bem como o Assento dela tirado, foram concebidos como o retorno à condição primordial do reino.
Seguindo a forma e ordem que no princípio do mesmo Reino se guardou com o Senhor Rei Dom Afonso Henriques, primeiro Rei dele [...] [quando] nas primeiras Cortes que logo subsequentemente celebrou na cidade de Lamego, pelo fim do ano de 1143, sendo juntos nelas os três Estados do Reino, tornaram outra vez, em nome de todo ele, ao aclamar e levantar por Rei com assento por escrito, do que nelas se fez, para memória e perpetuidade de seu título. (ASSENTO..., 1641, fol. 2).
O caso é que com a invocação da realização histórica das primeiras Cortes de Portugal e o assento nelas feito, os portugueses de 1640 reativaram as cláusulas contidas no dito assento, e reestabeleceram as regras de sucessão da coroa que elas supostamente haviam definido. Estas cláusulas diziam 1) que a transmissão fosse feita por herança para o filho mais velho; 2) que, não havendo filhos, fosse transmitida para o irmão, sendo necessária a confirmação das Cortes; e 3) que, não havendo filho varão, a transmissão fosse feita por linha feminina, porém com a condição de que a princesa herdeira fosse obrigada a se casar com varão nobre português, não podendo o reino passar a estrangeiros.
As chamadas atas das Cortes de Lamego surgiram publicamente em 1632, na crônica de D. Afonso Henriques contida na terceira parte da Monarchia lusitana, escrita por Antônio Brandão, cisterciense e cronista-mor do reino. O autor afirmou na obra que encontrou no cartório de Alcobaça o que seria uma cópia tardia das atas, e que tendo se reportado a pessoas que deram muito crédito a elas, decidiu incorporá-las à crônica mesmo sem estar convicto da sua veracidade (BRANDÃO, 1632, fol. 141v). A autenticidade do documento, assim como a suposta realização das Cortes de 1143 nem sempre foi ponto de pacífico acordo entre os eruditos, que ora a rejeitavam, ora a aceitavam. Foi somente na segunda metade do século XIX que Alexandre Herculano refutou definitivamente a autenticidade das atas. O fato, porém, é que elas desempenharam um papel importante na Restauração.
Com efeito, ao longo do século XVII as Cortes foram convocadas algumas vezes para tratar de assuntos relacionados à sucessão do trono. Além de 1641, quando as Cortes juraram o príncipe D. Teodósio, elas foram convocadas após a morte prematura do mesmo príncipe, em 1653, para jurar D. Afonso como herdeiro. Em 1667, foram novamente convocadas para definir os termos em que o infante D. Pedro assumiria o poder, e mais uma vez em 1679 para derrogar a cláusula que impedia a princesa herdeira de se casar com um príncipe estrangeiro (OLIVEIRA, 1894, t. VIII, p. 365, n. 2). As leis de sucessão tiveram efeito até 1698, quando, por meio de uma resolução do dia 12 de abril, D. Pedro II derrogou a cláusula que tornava obrigatória a aprovação dos três estados para que os descendentes do irmão do rei que morresse sem filhos herdassem a coroa (OLIVEIRA, 1896, t. IX, p. 484, n. 2). Durante esse período as Cortes funcionaram como um espaço de negociação, mas também de afirmação do poder real (CARDIM, 1998).
Elas também foram fundamentais para tratar dos assuntos de guerra. Em 1641 se assentou um montante de 1.500.000 de cruzados a ser dividido entre os três estados para levantar e manter um exército de 14.000 homens. Em 1642 esse valor já estava em 2.400.000, para sustentar um exército não de 14 mil, mas de 16 mil homens. Nos alvarás que implementaram e regularam a cobrança dos impostos o montante é pedido a pretexto de se manter um exército por três anos, ou enquanto durasse a guerra, e caso esta chegasse ao fim os impostos seriam suspensos.2
Mas as Cortes de 1641 não trataram somente de jurar o príncipe e organizar a defesa do reino. Elas também lançaram as bases da argumentação com que os repúblicos legitimaram a revolta portuguesa, com base na doutrina da origem popular do poder. Dessa maneira o Assento descreveu os diversos meios pelos quais o rei de Castela havia se tornado tirano:
Porque não guardava ao Reino seus foros, liberdades e privilégios, antes se lhe quebraram por actos multiplicados. Não acudia à defesa e recuperação de suas Conquistas, que eram tomadas pelos inimigos da Coroa de Castela. Afligia e avexava os Povos com tributos insuportáveis, sem serem impostos em Cortes, fazendo com força as Câmaras do Reino consentir neles. Gastava as rendas comuns do mesmo Reino, não somente em guerras alheias, mas também em coisas que não pertenciam ao bem comum dele. Aniquilava a nobreza, vendia por dinheiro os ofícios de Justiça e fazenda. Provia neles pessoas indignas e incapazes. O estado eclesiástico e Igrejas eram oprimidos com tributos, tirando-lhe as rendas e dando-se às pessoas que davam os arbítrios iníquos delas; e finalmente exercitava estas e outras coisas contra o bem comum por ministros insolentes e inimigos da pátria, dos quais se servia, sendo as piores pessoas da República (ASSENTO…, 1641. Fol. 10v-11).
Os repúblicos aprofundaram um ou alguns desses pontos. Não obstante a variedade de discursos produzidos no período, alguns de seus escritos contribuíram para estabelecer os alicerces do discurso legitimista português, sobre os quais foram erigidos argumentos que acabaram se tornando lugares-comuns da ação comunicativa, e com os quais os portugueses defenderiam a legitimidade da Restauração até o fim da guerra. Em alguns casos é possível reconhecer a iniciativa da sua publicação partindo dos círculos próximos ao rei; em outros se deduz que elas foram publicadas por iniciativa do próprio autor. Os motivos que os teriam levado a isso são variados, cabendo analisar cada caso em sua particularidade. De toda forma, mesmo no caso daqueles em que se percebe a presença da influência real, não se deve desprezar a singularidade do autor, assim como não se deve negligenciar que eles formaram uma narrativa comum sobre a aclamação.
Nos tópicos seguintes começaremos por apresentar a argumentação daquele que consideramos ser o texto que lançou a pedra angular da narrativa portuguesa, o Manifesto do reino de Portugal (VIEGAS, 1641). Em seguida apresentaremos as objeções feitas a ele pelos escritores filipistas, em particular Juan Caramuel Lobkowitz. Por fim, elencaremos as contrarrespostas portuguesas e outras iniciativas que testificam a importância do Manifesto para a argumentação justificativa da Restauração.
O Manifesto do reino de Portugal foi uma das principais peças de propaganda a favor de D. João IV no exterior. O caráter oficial desse texto é desvelado mais por outros motivos do que pela “promessa” feita no final do Assento feito em Cortes, de que um livro seria impresso em nome do reino com “todo o sobredito”, como supôs Antônio Cruz (1967). O único livro que se sabe foi encomendado pelo reino é a Justa aclamação, de Francisco Velasco de Gouveia, em que se lê no rosto “à custa dos três Estados do Reino” e “ordenado e divulgado em nome do mesmo Reino” (GOUVEIA, 1644, “Rosto”). No entanto, o Manifesto ganhou diversas impressões, foi traduzido para o flamenco e acabou se tornando o discurso oficial do reino, que veio a influenciar decisivamente todo o debate posterior.
Seu autor foi Antônio Pais Viegas, secretário do duque de Bragança, mais conhecido pelo que dele diz D. Luís de Meneses (1751) na segunda parte da sua História de Portugal Restaurado (1679). D. Luís conta que ele teria sido determinante para dissipar as dúvidas de D. João quanto a aceitar a coroa que os conjurados lhe ofereciam. Diante das notícias que chegavam de Lisboa, de que eles estavam resolutos e passariam adiante em seu plano, nem que para isso fosse necessário proclamar uma república, Viegas teria lhe feito a seguinte pergunta: caso a república fosse mesmo instaurada, qual partido o duque tomaria, o de Portugal ou o de Castela? O Duque então teria se mostrado muito afetuoso às questões de Portugal, e lhe respondido que jamais se apartaria do que quer que fosse consentimento do reino. Então Viegas teria lhe respondido que se ele estava disposto a arriscar a vida como vassalo em uma república, que não teria motivo para temer arriscá-la como rei (MENESES, 1751, p. 98).
É pouco provável que tenha ocorrido dessa maneira a conferência entre D. João e Antônio Pais Viegas, mas o certo é que após a aclamação Viegas ocupou, segundo informa Barbosa Machado (1741, t. I, p. 343), o cargo de secretário de Estado, onde permaneceu até morrer, em 1650. Na verdade, o cargo de secretário de Estado foi ocupado respectivamente por Francisco de Lucena e Pedro Vieira da Silva nesse tempo, então é mais provável que Viegas tenha feito parte do conselho pessoal do rei. Além disso, Viegas foi nomeado alcaide-mor da Vila de Barcelos, uma das principais terras da Casa Ducal de Bragança. Foi nessa condição de homem de confiança de D. João IV que escreveu e publicou o Manifesto. O texto não tinha mais do que setenta páginas e foi publicado o mais provavelmente logo após o encerramento das Cortes, que ocorreu em 5 de março de 1641. Decerto não foi publicado antes disso, mas sabe-se que em julho ele já tinha sido lido em Madri.3
No Manifesto do reino de Portugal Antônio Paes Viegas abordou duas questões distintas a respeito da legitimidade de D. João IV. De uma parte, o direito que este rei possuía à coroa de Portugal. De outra, os motivos que levaram os portugueses a negarem obediência ao rei de Castela e elegerem o duque de Bragança rei. Além desses dois pontos também abordou como teriam ocorrido os preparativos e a tomada do Paço no 1° de dezembro.
A primeira parte do livro é dedicada a tratar do direito da Casa de Bragança à coroa. Nela Viegas desenvolveu os argumentos já anteriormente enunciados pelo Assento, partindo de cinco premissas do direito: 1) que as sucessões dos reinos se resolviam, como nas sucessões dos morgados, por via hereditária em vez de via sanguínea; 2) que a herança dos reinos é indivisível; 3) que nas heranças há o benefício da representação; 4) que D. Catarina representava o seu pai, D. Duarte, enquanto D. Felipe II a sua mãe, D. Isabel, e, portanto, ela deveria ser preferida por representar a linha masculina; e 5) que as mulheres podiam herdar os reinos. Por fim reafirmou que estas regras seguiam o direito comum romano, não obstando o que dispunha em contrário as Leis das Partidas de Castela, que não se aplicavam a Portugal.
Tais princípios eram os mesmos que constavam na alegação de direito apresentada em favor de D. Catarina de Bragança em 1580. Foi com base nelas que o redator do Assento afirmou que a Coroa fora usurpada, pois enquanto era aguardada a sentença dos cinco governadores nomeados por D. Henrique, para decidirem a questão após o seu falecimento, Felipe II invadiu Portugal com exércitos e se apossou do trono. Em síntese, o direito alegado por Antônio Pais Viegas era o “antigo que os Príncipes da Casa de Bragança receberam com o sangue do Infante Dom Duarte”, o qual os “Doutores podem ampliar e confirmar” (VIEGAS, 1641, fol. 9v).
Porém Viegas foi além e desenvolveu seu argumento sobre aquilo que o redator do Assento havia dito sobre o reino ter direito de eleger D. João IV. Somava-se ao direito da Casa de Bragança outro “irrefragável título de reinar”, que era o da “concorde e voluntária aclamação do Reino” (VIEGAS, 1641, fol. 10). Com esse propósito sustentou a doutrina contida nas atas de Lamego: “como seja certo que quando por morte dos Reis há dissidio entre seus parentes sobre qual deve ser admitido à Coroa, toca a resolução disto ao povo, que é o que primeiro transferiu nos Reis, e a pode depois dar, declarando as dúvidas que nisso houver” (VIEGAS, 1641, fol. 10). Valendo-se, portanto, do direito pátrio – isto é, das fontes jurídicas produzidas no próprio reino –, o autor pôde elaborar o argumento que dizia que esse direito permaneceu adormecido no reino não obstante o domínio de 60 anos dos reis de Castela.
Esta narrativa estava implícita em alguns trechos do Assento feito em Cortes, no qual se sustentava que a posse do reino pelos reis de Castela não havia anulado esse direito em virtude da forma violenta como foi realizada. Logo, continuava Viegas (1641, fol. 10v), além do direito que tinha herdado de D. Catarina, D. João IV alcançou a declaração dos povos, não restando dúvida de que entrou no reino com “o título mais legitímo que se pode considerar”. Resolvido esse ponto, o autor passava então a enumerar os motivos que teriam levado os portugueses a negarem obediência a Felipe IV.
As Cortes de 1641 também haviam assentado que mesmo que os reis de Castela tivessem direito legítimo o reino podia “negar obediência” aos reis de Castela devido ao modo tirano como eles governaram. Na segunda parte do Manifesto o autor se dedicou a discorrer sobre os vários meios pelos quais os reis haviam se tornado “indignos de reinar”.
Viegas iniciava dizendo que a união com Castela trouxe a ruína para o Império Português, e enormes prejuízos para a Coroa. Argumentava que o poder naval, antes conhecido e temido das “nações”,4 foi primeiro destruído em empreendimentos que interessavam somente a Castela e depois enfraquecido até que se parou de fabricar navios. Com isso teria aumentado a insegurança dos mares, “e as pessoas que antes armavam navios para as conquistas, comerciando com grandes proveitos públicos e particulares, o deixaram de fazer” (VIEGAS, 1641, fol. 15). Com a redução do comércio em seus portos e a diminuição das rendas nas alfândegas as mercadorias se escassearam e os seus preços cresceram. Até a pescaria deixou de ser segura, e com isso o reino ficou desprovido de “uma parte importante do seu sustento” (VIEGAS, 1641, fol. 15v).
Segundo Viegas (1641, fol. 17v), ao mesmo tempo o reino era sobrecarregado de impostos “tão molestos pela graveza como pela ambição dos exatores”. O autor chegou a se referir a esses impostos como se tratasse de verdadeira extorsão e intromissão na vida privada, e a tentativa de tributação segundo a renda foi “intolerável” objeto de inúmeras injustiças. Em suas palavras, a ambição dos coletores era tão grande que houve gente que chegou a propor que os pescadores fossem às torres registrar suas barcas para que ali pagassem mais contribuições, “o que de antes já pagavam muito” (VIEGAS, 1641, fol. 18v).
Não era só o povo miúdo, mas também os nobres e religiosos sofriam com o fisco. Os nobres passaram a ter que pagar um tributo sobre os rendimentos das mercês e ofícios, e os eclesiásticos tiveram que abrir os cordões da bolsa para contribuir com “donativos” cada vez maiores. Além desses, ainda tinham que lidar com os impostos colocados no sal, no vinho e na carne.
Outro motivo alegado no Assento e replicado no Manifesto é o da nomeação de ministros verdugos para o governo. Neste sentido Viegas (1641, fol. 20) argumentava que afligiam particularmente a nobreza os secretários Miguel de Vasconcelos e Diogo Soares, “dous homens ligados por afinidade; mas muito mais por se conformarem na malignidade dos intentos”. O autor acusava os dois ministros de terem cometido as maiores barbaridades contra a nobreza portuguesa, incluindo conspiração, perseguição e vingança.
Por fim, somavam-se a esses motivos o acantonamento de tropas não naturais em Portugal, a nomeação de ministros castelhanos para o Conselho de Estado, a infiltração de espias da mesma nacionalidade nas alfândegas, o atropelo das jurisdições do reino, a nomeação de D. Margarida de Mântua, prima de Felipe IV, para o vice-reinado, e a convocação da nobreza portuguesa para participar da repressão contra os revoltosos da Catalunha. Todos esses fatores levavam a crer, afirma o autor, que os reis de Castela tinham o plano de destruir Portugal e transformá-lo em uma mera província tributária.
Para concluir o discurso e fechar a opinião que veio desenvolvendo, a de que o reino teve motivos justos para se libertar do domínio espanhol, e efetivamente se libertou, o autor dedicou a terceira parte do Manifesto para narrar os eventos de 1° de dezembro de 1640. Fica bastante claro o desejo do autor de dar ao evento as feições de um movimento nacional, isto é, o de todo o reino agindo unitariamente, ficando o povo miúdo representado nas aflições descritas na segunda parte, a nobreza e o eclesiástico como protagonistas da ação em Lisboa e o duque de Bragança como fiador do movimento, tendo partido dele a ordem para que a nobreza entrasse em ação (VIEGAS, 1641, 26v-33).
Em meio à argumentação acerca do direito de D. João IV, Antônio Pais Viegas citava um livro que tinha sido publicado dois anos antes, em 1639, o Philippus Prudens. A intenção do autor com essa obra, argumentava Viegas, era provar que tanto D. Afonso Henriques como D. João I haviam usurpado a coroa de Portugal dos reis de Castela, e que na sucessão dos reinos se não admitia o benefício da representação. O autor era Juan Caramuel Lobkowitz, um castelhano de ascendência polaca que vestia o hábito de Cister e era conhecido por seus dotes retóricos e intelectuais.
Com efeito, no Philippus Prudens, Caramuel Lobkowitz (1639) havia defendido que Portugal era um feudo antigo da Coroa da Leão, entregue como dote de casamento ao Conde D. Henrique, pai de D. Afonso Henriques. Daí que a fundação da monarquia portuguesa com esse rei não havia passado de usurpação. Em razão disso os reis de Castela, enquanto herdeiros dos reis de Leão, poderiam a qualquer tempo, e sempre que quisessem, invadir com armas o reino de Portugal a título de recuperar o domínio que lhes fora usurpado. O livro de Caramuel foi publicado pela oficina de Balthazar Moretti, na Antuérpia, uma das livrarias mais conceituadas da Europa, por onde passavam artistas e mecenas de todos os cantos do continente, localizada num dos centros nevrálgicos da vida ativa do Seiscentos. O esmero na edição da obra sugere que Caramuel pretendia ganhar fama com ela.
Caramuel foi instado a responder o Manifesto, e escreveu um livro que veio a lume no início de 1642 pela mesma oficina, intitulado Respuesta al Manifiesto del Reyno de Portugal. Nele, o autor se defendeu dos ataques desferidos contra a sua pessoa e o seu livro de 1639. Persistindo no Philippus Prudens, o autor voltou a defender a tese do “Condado Portucalense” e os títulos dos Áustrias sobre Portugal, além de ter comentado as circunstâncias em que havia se dado a “rebelião” portuguesa. Ele afirmou que o título alcançado pelo duque de Bragança pela aclamação dos povos era título “fingido”, e que a revolta portuguesa não passava de um motim popular que trazia à frente um duque traidor, estando a nobreza que era fiel a Felipe IV “tiranizada”.
A resposta de Caramuel provocou indignação dos portugueses, que responderam aos seus ataques em importantes livros. Apesar da indignação por eles demonstrada, os repúblicos estavam em franca vantagem em relação ao monge castelhano. Antônio Pais Viegas não havia citado o seu livro por mero capricho, ele sabia quais eram os pontos fracos do castelhano e como tirar vantagem deles. Montou a sua argumentação de forma que os portugueses pudessem manter o domínio da narrativa, e escolheu para o confronto um autor que aos poucos vinha se tornando conhecido.
Uma das respostas veio de Antônio de Sousa de Macedo, renomado jurista português que naquela ocasião ocupava o cargo de secretário da embaixada da Inglaterra. Ele sustentou em seu discurso que o Manifesto não havia defendido outra coisa senão o direito hereditário de D. João IV, mas que ainda que este não gozasse de direito o reino poderia ter se eximido da obediência de um governo sob o qual era destruído pela tirania dos seus ministros (MACEDO, 1642). De fato, Antônio Pais Viegas havia defendido a legitimidade do reino de eleger D. João IV, mas somente depois de ter discorrido extensamente acerca do seu direito hereditário. Bastava aos portugueses defenderem o direito de D. Catarina em 1580 para que todos os demais argumentos de Caramuel ficassem com a rigidez de um graveto seco. Os pontos mais dificultosos em que a majestade de D. João IV podia suscitar dúvida diziam respeito ao seu direito à coroa portuguesa, mas a aclamação do reino permanecia firme no anteparo dos redatores.
Não foi por outro motivo que Manuel Fernandes Villa Real, um comerciante cristão-novo que desempenhava o papel de cônsul português em Paris, dedicou o seu discurso praticamente inteiro a tratar da história de Portugal, particularmente o que tocava às sucessões dos reis portugueses. Estes foram os pontos atacados por Caramuel nos seus dois livros, sobretudo no que se referia à aclamação de D. Afonso Henriques e D. João I. Villa Real buscou com isso colocar de vez por terra a ideia da ancestralidade feudatária de Portugal, no que foi seguido por muitos autores que se dedicaram ao assunto. Não obstante ele estava convicto, assim como Macedo, de que D. João IV tinha legítimo direito de reinar devido à aclamação dos povos (VILLA REAL, 1643).
Caramuel não foi o único a cair na armadilha preparada por Pais Viegas. António Fuertes y Byota, jurisconsulto aragonês, também dedicou seus esforços a discutir as questões de direito relativas à sucessão da coroa em 1580, embora, na verdade, não tenha avançado em relação ao livro de Caramuel de 1639. Com efeito, se ele conseguisse provar que Felipe II foi o preferido em detrimento de D. Catarina, cairia por terra a tese da usurpação do Rei Prudente, assim como o direito alegado de que o reino podia recorrer ao direito que supostamente lhe fora tolhido na ocasião. Além disso, Fuertes y Biota defendeu com afinco a tese da feudalidade de Portugal. Contudo, essa estratégia acabou se revelando frágil (FUERTES Y BIOTA, 1643).
No já avançado ano de 1648 colhiam-se os frutos podres dessa estratégia nas páginas do livro de D. Nicolas Fernandez de Castro, Portugal convenzida con la razon para ser venzida, obra que, segundo o autor, destinava-se a responder a todos os manifestos que os portugueses haviam publicado até então. Disse o autor:
Han escrito novíssimamente por el derecho de V.M. los iuristas como si fuesen theólogos, y los theólogos como si fueran iuristas, y los historiadores como si tubieran una y otra disciplina. Y se andan passeando por el mundo Caramueles con Anti-Caramueles, y defensas de Caramueles, Manifiestos y Anti-Manifiestos, Pellizeres, Suárez, y otros libros y discursos deste género, que como se uvieran contenido dentro de los límites de su professión y el theólogo tratara de los puntos morales, el iurista de la iurisprudencia, y el chronista de las historias, verdaderamente servían bien a adornar esta Esparta, y a dissipar las tinieblas que contra la clara iusticia de V.M. ha sacado de lo profundo del abysmo la furia de los contenedores (FERNANDEZ DE CASTRO, 1648, p .6).
O senador em Milão e natural de Burgos D. Nicolas de Castro se queixava da maneira como os autores filipistas haviam lidado com os manifestos portugueses, em especial Caramuel. Segundo o autor, o religioso teria “abusado” de seus dotes intelectuais e se aventurado em um debate que não dizia respeito à sua profissão. No entanto, esse erro não era exclusivo de Caramuel.
Decerto, tanto ele quanto os outros que escreveram sobre a legitimidade de D. João IV se ativeram às questões que tocavam ao direito da Casa de Bragança, deixando para o segundo plano aquilo que o Manifesto trazia de mais inovador em relação ao Assento feito em Cortes, isto é, o direito que ele tinha alcançado por aclamação do reino. Na verdade, os filipistas se encontraram desarmados diante de uma afirmação como esta. Somente D. Nicolas de Castro percebeu, em 1648, que o trunfo da narrativa da Restauração era a definição de tirania com a qual os escritores portugueses jogavam, mas pouco pôde fazer para combatê-la. Opondo à definição de tirania enquanto rompimento do contrato entre rei e reino uma definição “clássica” do conceito, D. Nicolas questionou se os monarcas castelhanos poderiam ser efetivamente chamados de tiranos:
Que llaman aqui tyrania, si su desseo no de mudar Rey con los pretextos especiosos y falsos, que comunmente traen las rebeliones? Derramòse por ventura alguna sangre innocente? Violaronse las Yglesias? Profanaronse los conventos de Virgines sagradas? Forzaronse las donzellas? Robaronse las casadas? Diòse saco à las casas? Predicòse la heregia? Dejaronse en libertad los Saracenos, que a su antojo infestassen y talassen el reyno? (FERNANDEZ DE CASTRO, 1648, p. 1017)
Porém, o estrago já estava feito. Outros debates haviam dominado a atenção dos contendores e suscitado novas vagas de livros, e a legitimidade de D. João IV já não era debatida com a mesma inquietação do princípio da revolta.
O texto de Antônio Pais Viegas veio a exercer uma grande influência sobre os demais escritores da Restauração, não somente sobre aqueles que saíram em defesa do Manifesto, mas também sobre outros autores que escreveram em circunstâncias diversas.
Um exemplo claro dessa influência encontramos no discurso de Pantaleão Rodrigues Pacheco intitulado Alla Santitá d’Urbano VIII, publicado a primeira vez em 1642 e depois traduzido para o português e publicado em Lisboa no ano seguinte, com o título de Manifesto do reino de Portugal, presentado a Santidade de Urbano VIII. A influência do discurso de Viegas vai além do título. Apresentado no contexto da embaixada do Bispo de Lamego enviada a Roma, onde Pacheco exercia o cargo de secretário, o texto fundamenta sua argumentação na ideia de que o poder real é legitimado por meio da celebração de um contrato entre o reino e o rei, onde este tem a obrigação de governar para o bem o comum e aquele de obedecer. Felipe IV e seus antecessores haviam rompido esse contrato, liberando o reino para que ele pudesse exercer o seu direito violentamente suprimido em 1580. A argumentação de Pacheco (1643) é muito semelhante à do Manifesto, mas, mais do que isso, ela também se baseava na teoria contratualista de Francisco Suárez. Contudo, chama a atenção o modo como o autor justifica o seu argumento: para provar que os reis castelhanos haviam quebrado o contrato, Pacheco conclama o Papa a “olhar” o estado das conquistas portuguesas, utilizando para isso uma reprodução quase literal dos argumentos de Pais Viegas.
Outro exemplo é o de João Pinto Ribeiro, um desembargador do reino. Este autor também defendeu que houve o rompimento de um contrato celebrado entre o reino e o rei, porém ele enxerga esse contrato nos capítulos jurados por Felipe II nas Cortes de Tomar de 1581, que garantia, entre outras coisas, a defesa das conquistas, a manutenção dos foros do reino e que somente portugueses ocupassem, em todos os níveis, os cargos administrativos. Não obstante esse pacto, cujo rompimento ilustra com argumentos semelhantes àqueles apresentados por Viegas, além de outros, o autor defende – assim como Viegas – que 1580 foi uma usurpação. Entretanto, Antônio Pais Viegas faz essa afirmação em algumas poucas linhas, deixando que o leitor apreenda o sentido da usurpação pela preferência de D. Catarina ao trono. João Pinto Ribeiro, ao contrário, se estende longamente não só a apresentar o direito de D. Catarina, mas a descrever o interesse de Felipe II em usurpar o trono e todas as articulações que fez para alcançar o seu intento, como a “compra” dos nobres portugueses, o envio de ministros para tratar da sucessão com o papa e o roubo do “livro do porco espinho”, que supostamente continha as leis de sucessão do reino (RIBEIRO, 1642).
Em todo caso, para além da usurpação e do interesse maquiavélico por trás dela, os reis castelhanos teriam quebrado o pacto que juraram guardar quando abandonaram o ultramar, introduziram ministros castelhanos e desrespeitaram os foros portugueses, e, portanto, os portugueses podiam justa e legitimamente desobedecer ao rei Felipe IV e aclamar D. João IV. Ou seja, o que fundamentava a argumentação de João Pinto Ribeiro era a teoria da origem popular do poder civil. Mas, cabe salientar, o seu discurso complementava o discurso de Antônio Pais Viegas em pontos os quais ele não havia desenvolvido plenamente os seus argumentos.
Por fim, outro texto muito conhecido do período no qual se pode perceber a influência do Manifesto é o Justificação dos portugueses, de Antônio Carvalho de Parada, clérigo secular de reconhecidos dotes intelectuais e bem-posicionado socialmente. Seu discurso segue o mesmo padrão de apresentação das injustiças e tiranias observadas em Portugal durante o período filipino. Entretanto, some de suas páginas qualquer referência direta à teoria da origem do poder. Não que a ideia por ela expressa não estivesse ali, mas não encontramos a argumentação sobre a legitimidade do reino de eleger o rei, ou a referência a um suposto contrato rompido. Ele simplesmente apresenta as justificações dos portugueses, como lembra o seu título (PARADA, 1643).
Em alguma medida isso pode significar uma conquista da parte dos discursos anteriores, que pretenderam estabelecer o direito do reino de eleger o rei como a base definitiva da legitimidade de D. João IV. Por outro lado, o texto de Parada segue a tendência criada por João Pinto Ribeiro de desenvolver e aprofundar argumentos que ainda não tinham merecido tanta atenção. Neste sentido, o texto abusa de referências à grandeza e riqueza do Império, à violência com que eram cobrados os impostos, à arbitrariedade do provimento dos cargos e às injustiças com os portugueses. Há também a introdução de novos argumentos que até então não tinham aparecido na justificação da Restauração. O autor denunciava o que teria sido a intenção dos governantes castelhanos, especialmente o Conde Duque de Olivares, de introduzir a lei de Moisés no reino.
Há muitas possibilidades para que o autor tenha tomado essas posições, desde um preconceito pessoal contra os judeus até a necessidade de reforçar a sua posição de eclesiástico de respeito. Porém, chama a atenção o fato de que o livro foi publicado em um tempo relativamente posterior aos outros, quando acontecimentos decisivos já haviam tomado lugar. Foi um tempo suficientemente longo para que substanciais transformações no discurso pudessem ter ocorrido.
Foi possivelmente das Cortes de 1641 que saiu a determinação de publicar um livro que assentasse a legitimidade da Restauração de Portugal. Este veio à luz em 1644 pela pena de Francisco Velasco de Gouveia, sob o título de Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV, ou Tratado analytico dividido em tres partes. O autor dedica a primeira parte do tratado para falar da legitimidade do reino de Portugal para aclamar rei; a segunda para falar das causas “justas, legítimas e verdadeiras” para “privar da posse dele” o rei Felipe IV; e a terceira para responder às objeções que poderiam ser feitas às causas alegadas. A segunda parte é dividida em dois pontos, o primeiro para falar que o rei Felipe II não teve “justo título de suceder nestes Reinos” e o segundo da tirania com que os Reis Católicos governaram durante o tempo em que “estiveram de posse destes Reinos”. Todos eles foram temas abordados pela literatura legitimista publicada anteriormente; mas Gouveia dizia que tratava deles “não com palavras eloquentes, senão com razões jurídicas” (GOUVEIA, 1644, p. 386).
Com efeito, o autor assenta suas razões com as doutrinas jurídicas e teológicas mais difundidas no mundo católico daquele período, de fundo escolástico e jusnaturalista. Uma análise aprofundada do seu livro revelaria a fundamentação teórica e jurídica do poder régio em Portugal. Este trabalho já foi feito por estudiosos que se dedicaram ao estudo das doutrinas políticas do século XVII, e revelaram a filiação de Francisco Velasco de Gouveia ao pensamento de Navarro, Molina e Suárez (CALAFATE, 2012; MARTINS, 1937; MERÊA, 1923; SOARES, 1954). O que interessa demarcar aqui, no entanto, é a diferença existente entre o seu livro e os discursos publicados nos anos anteriores.
Teria sido a publicação do seu livro, mais as respostas de Antônio de Sousa de Macedo e Manuel Fernandes Villa Real à Respuesta de Caramuel, que forçaram os escritores filipistas a permanecerem em silêncio por longos quatro anos, o qual só seria quebrado com a publicação do tratado de D. Nicolas Fernandez de Castro. Sintomaticamente, D. Nicolas deu a seu tratado o título de Portugal convencida, em clara emulação do Caramuel convencido, de Antônio de Sousa de Macedo.
A legitimidade de D. João IV foi defendida de diversas maneiras, ora através de canais oficiais repletos de conteúdo simbólico, ora por meio da cultura impressa. Esta última foi de ampla utilidade no contexto das embaixadas enviadas às nações estrangeiras para reforçar favoravelmente a opinião a respeito do duque de Bragança. O Manifesto do reino de Portugal e a polêmica por ele suscitada dão prova cabal da importância que os impressos tiveram na legitimação de D. João IV na Europa. O gênio de Antônio Pais Viegas, aliado aos debates jurídicos que tiveram lugar com a aclamação do duque de Bragança, foram determinantes para a divulgação das disposições das Cortes de 1641 no espaço público europeu.
Baseado na doutrina jusnaturalista desenvolvida no seio do mundo católico, que previa o direito de depor um rei que se mostrasse tirano, Antônio Pais Viegas expandiu os argumentos contidos no Assento feito em Cortes a esse respeito para defender a legitimidade da eleição realizada pelo reino. Tão importante quanto o levantamento e juramento de D. João IV, e a confirmação destes nas Cortes, foi a publicação desses manifestos, em especial o de Antônio Pais Viegas, para estabelecer a legitimidade da nova dinastia reinante. Não obstante as inúmeras objeções movidas pelos autores filipistas, a narrativa da Restauração conseguiu cumprir o seu principal objetivo naquele início de governo, qual era o de sustentar a frágil soberania portuguesa em uma Europa atravessada por guerras.
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