Resenhas

LITURATERRA [Resenha: 2022, 2, 1] “Lula, volume I”: Uma reflexão sobre a acidentada redemocratização do Brasil e um presidente mais que improvável

Antonio José Alves Júnior 1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil

LITURATERRA [Resenha: 2022, 2, 1] “Lula, volume I”: Uma reflexão sobre a acidentada redemocratização do Brasil e um presidente mais que improvável

Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 14, núm. 2, pp. 361-369, 2022

Universidade Federal Fluminense

Autores que publicam nesta revista concordam com os seguintes termos: mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.
MORAIS Fernando. Lula: Biografia.. 2021. São Paulo. Companhia das Letras. 416pp.. 6559212920

Recepción: 03 Abril 2022

Aprobación: 10 Mayo 2022

Em novembro do ano passado, o primeiro volume da biografia de Lula chegou às mãos do público. Não fosse o biografado, cuja vida política se mistura com a história do país nos últimos 40 anos, o livro já despertaria interesse pelo biógrafo, Fernando de Morais. Ele reúne a habilidade de jornalista, a sensibilidade do político com experiência nos poderes legislativo e executivo do Estado de São Paulo, além de ser um escritor e biógrafo consagrado, tendo vendido mais de 5 milhões de livros no Brasil e no exterior.

Morais, inicialmente pretendia escrever um único livro, “um relato sobre a trajetória política de Lula” desde os anos 1980, até a posse de Dilma. Durante a tomada dos depoimentos, iniciados em 2011, o país entrou num percurso inesperado, que o próprio biógrafo denominou de “golpe de Estado constitucional”, em que se formou a “crise que levaria Bolsonaro ao poder”. Morais, então, decidiu reconfigurar o plano para a obra para relatar o que viu de uma posição privilegiada. E argumentou que, por causa do excesso de material, decidiu publicar dois volumes.

Eis, então, o plano da obra, tal como exposto no posfácio. O segundo volume, prometido para 2023, discorrerá sobre os bastidores das 5 campanhas de Lula, avaliará os mandatos petistas e elaborará, a partir do que testemunhou, ao lado do Presidente, sobre a “crise em que o país foi mergulhado a partir de 2013” (p. 420). O primeiro volume cobre a trajetória de vida de Lula até o dia 8 de novembro de 2019, quando o STF anulou os seus processos e declarou Moro um juiz suspeito. Evidentemente, a publicação do segundo volume dará novo significado ao primeiro, pois além de interpretar uma parte muitíssimo relevante da trajetória política de Lula que esse primeiro volume não cobre, permitirá um mergulho mais a fundo nas causas da “crise em que o país foi mergulhado”. Por ora, é certo que o material publicado no primeiro volume tem muito mais do que essa brevíssima descrição.

Para além dos seus critérios estéticos e da sua responsabilidade jornalística, o modo como Morais estruturou esse primeiro volume dirige o leitor a duas indagações. A primeira diz respeito às possibilidades do Brasil se transformar numa sociedade inclusiva, rica, soberana e com estabilidade democrática. E é a partir dela que também se pergunta como foi possível que Lula, cuja vida inicia em uma condição material precária, sem vinculação com a política, chegasse a posições tão influentes na acidentada e ameaçada redemocratização brasileira. O livro é uma narrativa dividida em três partes, mesmo que não explicitadas no sumário. Ei-las:

A primeira parte, que vai do capítulo 1 ao 6, gira em torno dos eventos contemporâneos da prisão de Lula pela operação Lava-Jato. Ela termina com a libertação gloriosa de Lula, em 8 de novembro de 2019, num discurso inflamado para a militância na vigília Lula Livre, em frente à sede da Polícia Federal, em Curitiba, que culmina com um beijo em sua namorada, conhecida pela alcunha de Janja. É o anúncio do retorno ao jogo político-eleitoral, da maior liderança popular viva, e em plena vitalidade, nos últimos 40 anos. Mas qual o significado desse momento, acompanhado pelas mídias em todo o mundo?

Morais defenderá a tese de que a prisão de Lula, em 2018, fora por razões essencialmente políticas, em um país cujas instituições democráticas há tempos apodreciam. Fora o ápice do golpe midiático-jurídico-parlamentar-empresarial que conseguiu seu primeiro tento dois anos antes, com a derrubada do governo de Dilma Rousseff, ainda que às custas de uma crise institucional gravíssima ainda não dimensionada. A Lava-Jato, uma articulação entre agentes da justiça e a mídia numa “cruzada judicial contra a corrução”, decompôs o sistema político e degradou o próprio sistema de justiça até um ponto que não pode ser minorado.

A mistura da campanha para as eleições de 2018 com o avanço do julgamento de Lula em meio a uma série de violações às suas garantias individuais e ao devido processo legal evidenciava, na verdade, o desgaste institucional. Um de seus cumes foi o conhecido episódio do Twitter do General Villas Boas direcionado ao STF, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula.

Por falar no Twitter, Morais não deixa escapar o papel que o uso profissional e inescrupuloso das redes sociais por Bolsonaro, nas eleições de 2018, contribuíram para mais um ataque à frágil institucionalidade. Operando fora do alcance do impotente Tribunal Superior Eleitoral, empresários financiavam disparos em massa de fake news, de cunho moralista, visando o benefício de Bolsonaro às custas dos ataques à reputação de Haddad e seus aliados.

O resultado fora uma reviravolta do tabuleiro político. Os partidos tradicionais da direita, a saber, PSDB, MDB e DEM, que organizaram e dirigiram o golpe e, por ele, chegaram ao poder, foram esmagados nas eleições. Bolsonaro, político do baixo clero e de extrema-direita, sai vencedor do certame, elegendo, com seu nome e bandeiras, uma série de políticos novatos comprometidos com seus ideais. Bolsonaro, ainda, traz para o jogo político, diversos generais militares. No judiciário, as divisões políticas entre os lavajatistas e os seus opositores se tornaram nítidas.

Em meio ao quadro de degradação institucional, Morais destaca o papel de Lula, do PT e sua militância, bem como dos demais partidos de esquerda e dos movimentos sociais na resistência à Lava-Jato e ao bolsonarismo. O vigor da vigília Lula-livre, o prestígio nacional e internacional de Lula, que recebeu mensagem de apoio até do Papa, a atuação determinada nos tribunais são exemplos da capacidade de organização e de luta, mesmo diante de intenso bombardeio.

Cabe, por fim, observar como Morais atribui peso decisivo ao acaso na libertação de Lula, que recusara a fuga quando havia uma oportunidade, que descartar qualquer resistência pela força. A estratégia de Lula de enfrentar seus opositores pelas vias institucionais recebera uma ajuda fundamental advinda da divulgação de mensagens trocadas por membros da Lava-Jato, obtidas pelo Walter Delgatti Neto, o Vermelho ou o Hacker de Araraquara. “A história de Lula iria sofrer uma reviravolta – talvez a mais importante, ou uma das mais importantes de seus 74 anos de vida”. O Vermelho “iniciaria um processo que poria fim ao calvário de Lula e transformaria num traque a Operação Lava-Jato e todos os seus mandachuvas” (p. 155).

Eis uma pergunta importante, uma especulação possível ao fim dessa primeira parte, depois da leitura do discurso de Lula livre e da declaração pelo STF – hoje referendada também pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU: E se não fosse as mensagens do Delgatti? Ou, por outra, a divulgação das mensagens apenas precipitara o retorno à normalidade democrática ou propiciara apenas uma súbita e breve mudança no curso do golpe?

A segunda parte (capítulos 7 e 8) transporta o leitor, subitamente, para o passado, para a primeira prisão do Lula líder sindicalista, em 1980. Numa analogia entre eventos separados por 4 décadas, Lula, mais uma vez - eis aí um paradoxo temporal provocado pela inversão da cronologia - é encarcerado como preso político, dessa feita, no regime militar.

Lula, como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, era uma destacada liderança no movimento sindical brasileiro, uma das cabeças na organização das grandes greves de 1979 e 1980. Os sindicatos do ABC mobilizavam centenas de milhares de trabalhadores que demandavam reajustes salariais para compensar as grandes perdas inflacionárias. Sua luta contava com apoio crescente de intelectuais, políticos, advogados, artistas, religiosos e das camadas populares, sem falar na crescente solidariedade internacional, não só aos trabalhadores, como dos que se opunham à ditadura.

O regime era confrontado nas greves de grande porte nos ramos industriais mais modernos, como na indústria metalmecânica, comandados por grandes empresas, que, na melhor das hipóteses, conviviam bem com o autoritarismo, sejam elas as grandes nacionais ou as poderosas montadoras multinacionais. Mesmo diante da brutalidade policial, da parcialidade da Justiça do Trabalho e da pressão econômica e política dos empresários reunidos na FIESP, a organização dos trabalhadores conquistara uma posição política que não poderia ser desconsiderada.

Do avanço do sindicalismo vêm a criação o PT, o Partido dos Trabalhadores, em que Lula, seu primeiro presidente, vai jogar um papel fundamental. Criava-se um partido de esquerda de novo tipo, que não era dirigido por uma vanguarda, mas por trabalhadores com atuação sindical. Logo, foi por ser um partido de trabalhadores que agregou intelectuais, religiosos, políticos e outras personalidades em torno da estratégia de se tornar um grande partido de massas na luta pela melhoria imediata e estrutural das condições de vida da classe trabalhadora.

Em meio à maior greve na indústria brasileira, os riscos, para Lula, presidente do PT e líder sindical não eram desconhecidos, como lembra Morais: “Fosse a serviço dos patrões ou do governo, a polícia tinha motivos de sobra para querer tirar Lula de circulação” (p. 170). Não havia tolerância ou vontade de negociar, por parte do poder autoritário, que era confrontado com todas essas inovações políticas enquanto o descontrole da inflação, o aumento da dívida externa e interna, e a indisposição do empresariado em investir nos projetos do II PND apontavam para uma crise econômico-política da ditadura.

Enfim, a terceira parte dessa biografia é sobre o caminho percorrido por Lula até adquirir uma estatura que lhe permitiu ocupar posições muito relevantes e influentes na história da redemocratização, seja a do fim da ditadura, seja aquela da crise política-econômica-institucional “em o país foi metido desde 2013”. Ocorre que a trajetória de Lula é muito distante daquelas percorridas pelos demais presidentes brasileiros. Lula nasceu na pobreza extrema, viveu como trabalhador e até se posicionar como uma grande liderança política, não tinha qualquer acesso à alta roda do poder e do dinheiro. Seria um presidente improvável?

Outro presidente reivindicara para si ter sido “O improvável Presidente do Brasil”. Esse é, precisamente, o título da autobiografia do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que diz: “[Na] história de minha jornada até o topo, [...] contribuíram a sorte, bons amigos e, sim, um generoso quinhão de acidentes propícios pelo caminho” (CARDOSO; WINTER, 2015, p. 23). Com honestidade, contudo, revela que o seu ponto de partida para o topo não foi propriamente do zero. Logo depois de relembrar que o tio-avô fora ministro da Guerra de Getúlio, relata:

[...] cresci ouvindo histórias fantásticas sobre meu bisavô, senador provincial, por duas vezes vice-governador de um estado no árido e atrasado planalto central do Brasil; sobre meu avô, um general que participou da fundação da República; e sobre meu pai, também general, preso duas vezes em malsucedidas rebeliões na década de 1920...Mas embora a política fosse aparentemente um ofício de família para muitos de meus parentes, passei o início da vida tentando evitá-la, acabando, contudo, por sucumbir aos seus encantos (CARDOSO; WINTER, 2015, p. 16-17).

É claro que o destino de Fernando Henrique não poderia ser deduzido de sua infância, de sua formação privilegiada, de sua linhagem política ou da sua intensa relação com políticos e intelectuais. Certamente muitos acidentes, além de sua vocação e desejo pela política, alimentados desde o berço, o levaram para o caminho da Presidência. Mas, não parece exagero reconhecer, o desvio do curso não parece assim tão exagerado, se é que se pode medi-lo de alguma forma aceitável, ao ponto de chamá-la de improvável.

Se o título de presidente improvável é, por reivindicação, de FHC, o que dizer da trajetória de Lula. Houve quem dissesse que a biografia de Morais é a construção de um mito, ao estilo da jornada do herói (TRAUMANN, 2021). A apresentação de condições de vida tão precárias durante a infância e da adolescência, do seu histórico de operário despolitizado à líder sindical seria, precisamente, para supervalorizar os feitos de Lula.

Já John French, outro estudioso da trajetória de Lula, parte, sem qualquer receio, da jornada incrível. Para ele, é mesmo um problema de pesquisa entender

Como Lula - um homem conhecido em todo o mundo apenas por seu apelido – ascendeu do seu status de um migrante rural pobre para a pobreza urbana de São Paulo, para se tornar um torneiro-mecânico, um líder sindical grevista, e um político radical de esquerda antes de, finalmente, chegar à Presidência [...] (FRENCH, 2020, p. 13, tradução nossa).

Evidentemente, tal como no caso de FHC, o acaso teve seu papel nessa história, mas é preciso equilibrá-lo com o “[...] franco reconhecimento de que a estória extraordinária de Lula é a respeito de um homem muito sortudo e talentoso”.

Extrai, a partir daí, uma hipótese sobre as relações entre o caminho de Lula e as posições que ocupou, o que pode ser resumido na ideia de que as suas dificuldades e as de sua classe também o formaram. Da experiência da miséria rural e urbana à condição de trabalhador da elite do operariado paulista, da vivência no mundo sindical sob a intervenção da ditadura à criação do PT, emergiriam a indignação com a miséria, a valorização das instituições e a abertura para negociar em nome de benefícios imediatos.

Comentários finais

Esse primeiro volume da biografia de Lula, especialmente à luz “dessa crise em que o país foi metido”, apresenta uma liderança que emerge da pobreza extrema e da ditadura como um candidato à presidência viável, durante a redemocratização. Infelizmente, o país desandou e forças poderosas concorreram para afastar o país da trilha da inclusão social, da soberania e da prosperidade econômica pela via democrática. Hoje, em meio a esse impasse em que se vive, as instituições ainda cambaleiam, a economia segue sem horizonte e a miséria campeia. E aí vem a história com suas ironias, oferecendo Lula, até pouco tempo o presidente tornado mais que improvável, o caminho mais claro para a retomada da redemocratização. E o jogo segue sendo jogado.

Referências

CARDOSO, Fernando H.; WINTER, Brian. O improvável Presidente do Brasil: recordações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FRENCH, John. Lula and his politics of cunning: from a metalworker to President of Brazil. North Carolina: The University of North Carolina Press, 2020.

TRAUMANN, Thomas. Biografia de Lula é a construção de um mito, analisa Traumann. Poder360, 18 nov. 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/biografia-de-lula-e-a-construcao-de-um-mito-analisa-traumann/. Acesso em: 22 mar. 2022.

Notas de autor

1 Professor Titular do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e Coordenador do Grupo de Pesquisa Economia e Conjuntura do Sistema Financeiro - ECSIFIN. Foi Assessor-Chefe da Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento e Orçamento (2004-2005), Chefe da Assessoria Especial da Casa Civil da Presidência da República (2005-2008), Consultor Sênior da Diretoria da Executiva do Brasil e outros países, no Banco Mundial (2009), Chefe do Departamento de Relações com o Governo e Assessor do Presidente do BNDES (2009-2015).

Enlace alternativo

HTML generado a partir de XML-JATS por