Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Buscar
Fuente


Subversivos modernos: Althusius, Spinoza e Rousseau
Subversivos modernos: Althusius, Spinoza y Rousseau
Modern subversives: Althusius, Spinoza, and Rousseau
Subversifs modernes : Althusius, Spinoza et Rousseau
现代的颠覆者:阿尔图修斯、斯宾诺莎和卢梭
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 15, núm. 1, pp. 69-85, 2023
Universidade Federal Fluminense

Artigos

Autores que publicam nesta revista concordam com os seguintes termos: mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.

Recepción: 08 Junio 2022

Aprobación: 22 Diciembre 2022

DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-202315104

Resumo: A teoria política moderna é comumente referenciada pelo embate entre absolutismo e liberalismo ocorrido entre os séculos XVII e XVIII. Há, no entanto, pensadores que construíram elementos para além do Estado moderno e que informam o atual debate democrático. São modernos historicamente, mas teoricamente contemporâneos. São, portanto, subversivos modernos. Este artigo realiza uma análise comparada das ideias políticas de três teóricos que podem ser considerados como subversivos modernos: o alemão Johannes Althusius, o holandês Baruch Espinosa, e o genebrino radicado em França, Jean Jacques Rousseau. Dissertaram sobre os temas da soberania popular, da potência democrática da multidão e sobre a vontade geral como superação da representação. O que os une é a radical e subversiva esperança de estabelecer, contra qualquer forma de opressão, o demos como soberano. Ressignificados nos séculos XX e XXI, esses autores não apenas informam o debate contemporâneo sobre a democracia, como também contribuem para a própria renovação da teoria política.

Palavras-chave: Althusius, Spinoza, Rousseau, teoria política contemporânea.

Resumen: La teoría política moderna es comúnmente conocida por el choque entre el absolutismo y el liberalismo que tuvo lugar entre los siglos XVII y XVIII. Sin embargo, algunos pensadores construyeron elementos más allá del Estado moderno y dieron forma al debate democrático actual. Son históricamente modernos, pero teóricamente contemporáneos. Son, por tanto, subversivos modernos. Este artículo realiza un análisis comparativo de las ideas políticas de tres teóricos que pueden ser considerados subversivos modernos: el alemán Johannes Althusius, el holandés Baruch Espinosa y el ginebrino residente en Francia Jean Jacques Rousseau. Reflexionaron sobre la soberanía popular, el poder democrático de la multitud y la voluntad general como superación de la representación. Los une la esperanza radical y subversiva de instaurar, contra cualquier forma de opresión, el demos como soberano. Estos autores, cuyas ideas se han reinterpretado en los siglos XX y XXI, no solo alimentan el debate contemporáneo sobre la democracia, sino que también contribuyen a la renovación misma de la teoría política.

Palabras clave: Althusius, Spinoza, Rousseau, teoría política contemporánea.

Abstract: Modern political theory is commonly referenced by the clash between absolutism and liberalism to have emerged between the seventeenth and eighteenth centuries. There are, however, thinkers who built elements beyond the modern State and who inform the current democratic debate. As such thinkers are historically modern, but theoretically contemporary, they are modern subversives. This article provides a comparative analysis of the political ideas of three theorists who may be considered as modern subversives: the German Johannes Althusias, the Dutchman Baruch Espinosa, and the Genevan to have settled in France, Jean Jacques Rousseau. These thinkers discussed the themes of popular sovereignty, the democratic power of the multitude, and on the general will as overcoming representation. What unites them is the radical and subversive desire to establish, against any form of oppression, the demos as sovereign. Reconsidered in the twentieth and twenty-first centuries, these authors have not only informed the contemporary debate on democracy, but also contributed to the very renewal of political theory.

Keywords: Althusius, Spinoza, Rousseau, contemporary political theory.

Résumé: La théorie politique moderne a souvent été axée autour du conflit entre l’absolutisme et le libéralisme qui a eu lieu entre les XVIIe et XVIIIe siècles. Il existe néanmoins des penseurs qui ont construit des éléments au-delà de l’État moderne et contribuent ainsi au débat démocratique actuel. Ils sont historiquement modernes, mais théoriquement contemporains. Il s’agit donc de subversifs modernes. Cet article mène une analyse comparative des idées politiques de trois théoriciens pouvant être considérés comme des subversifs modernes : l’Allemand Johannes Althusius, le Néerlandais Baruch Espinosa, et le Genevois installé en France Jean Jacques Rousseau. Ils ont abordé les thèmes de la souveraineté populaire, du pouvoir démocratique de la foule et de la volonté générale en tant que dépassement de la représentation. Ce qui les unit, c’est l’espoir radical et subversif d’établir, contre toute forme d’oppression, le demos comme souverain. Ressignifiés aux XXe et XXIe siècles , ces auteurs ne se contentent pas d’éclairer le débat contemporain sur la démocratie, mais contribuent également au renouveau même de la théorie politique.

Mots clés: Althusius, Spinoza, Rousseau, théorie politique contemporaine.

摘要: 现代政治理论起源于发生在 17 世纪和 18 世纪之间的专制主义和自由主义之间的冲突。然而,有些思想家的思想超越了他们所处的时空限制,并为当前的民主辩论提供了理论框架。他们在历史上是属于现代的,但他们的理论日久弥新,也属于当代。因此,他们是现代的颠覆者。本文比较分析了三位堪称现代颠覆者的政治思想家:德国人约翰内斯·阿尔图修斯、荷兰人巴鲁克·斯宾诺莎和旅居法国的日内瓦人让·雅克·卢梭。他们谈到了人民主权、群氓的民主潜力和超越代议制的普遍意志。将他们结合在一起的是他们的激进思想和颠覆性的主张,即反对任何形式的压迫,建立人民的主权。这些作者在 20 世纪和 21 世纪被重新定义,不仅为当代关于民主的辩论提供了信息,而且还为当代政治理论的复兴做出了新贡献。

關鍵詞: 阿尔修斯, 斯宾诺莎, 卢梭, 当代政治理论.

Introdução

A teoria política moderna é, grosso modo, formada por um conjunto amplo de ideias que surgiram entre o fim do Renascimento e a reforma protestante, por um lado, e as revoluções americana e francesa, por outro. Dito de outro modo, pode ser localizada historicamente entre o início do século XVI e o fim do XVIII. Nesse registro, destacam-se pensadores como Maquiavel, Thomas Morus, Jean Bodin, Thomas Hobbes, James Harrington, Robert Filmer, John Locke, Hugo Grotius, Jacques Bossuet, Montesquieu, os federalistas, Edmund Burke etc. Os temas em debate são muitos, mas em geral giram em torno da formação do Estado moderno, da soberania, da representação e do federalismo. Contudo, é o embate entre o Estado absolutista e o seu contraponto, o Estado liberal, que protagoniza essa teoria política moderna.1 De um lado, Bodin, Hobbes, Filmer e Bossuet construíram importantes argumentos em favor do absolutismo; de outro, Harrington, Locke e os federalistas sistematizaram preocupações com o novo mundo onde a burguesia reivindicava por seu espaço. Mas de nenhum deles se poderia dizer um defensor da democracia. Como nos indica Norberto Bobbio (1987, p. 143), “na disputa em torno da melhor forma de governo, os clássicos do pensamento político moderno [...] são, ao menos até a revolução francesa e à exceção de Spinoza, favoráveis à monarquia e contrários à democracia”. Há, no entanto, pensadores desse período histórico que não podem ser subsumidos ao debate entre o absolutismo e o liberalismo. Pensadores que construíram elementos teóricos que vão para além do Estado moderno e que informam, ainda hoje, o debate sobre a renovação democrática. São modernos historicamente, mas teoricamente contemporâneos. São, portanto, subversivos modernos.2

O presente artigo opera uma análise comparada de três teóricos que podem ser considerados como subversivos modernos: o alemão Johannes Althusius, o holandês Baruch Espinosa, e o genebrino radicado em França, Jean Jacques Rousseau. De modo inovador, temas como a soberania popular, a potência democrática da multidão e a vontade geral como superação da representação emergem em toda sua plenitude. O que os une é a radical e subversiva esperança de estabelecer, contra qualquer forma de opressão, o demos como soberano. Ressignificados nos séculos XX e XXI, esses autores não apenas informam o debate contemporâneo sobre a democracia, como também contribuem para a própria renovação da teoria política.

Althusius e a soberania popular

Dentre os três subversivos modernos, o alemão Johannes Althusius é o mais velho e menos conhecido. Filósofo e teólogo calvinista, sua principal obra, Politica methodice digesta et exemplis sacris et profanis illustrata,3 ou, simplesmente, Política, funda o tema do federalismo e da soberania popular na teoria política moderna. Não obstante sua importância, sua obra é considerada em menor escala pelos teóricos contemporâneos, posicionada injustamente na periferia de autores clássicos como Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes e John Locke, entre outros. Em sua monumental pesquisa sobre o pensamento político moderno, Jean-Jacques Chevallier parte de Maquiavel e Bodin, para alcançar Hobbes e Bossuet sem mencionar, em momento algum, o nome de Althusius. De modo semelhante, a História das ideias políticas de Châtelet, Duhamel e Pisier-Kouchner (2000) trata de Maquiavel, Bodin, Hobbes e outros, mas ignora Althusius. Até mesmo no Dicionário de política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino, não há referências em Althusius nos verbetes sobre soberania e federalismo. A ausência também é sentida na Teoria das formas de governo em que Bobbio (1997) dedica capítulos para Maquiavel, Bodin, Hobbes e Vico, mas passa despercebido pelo alemão. Aliás, o próprio Bobbio (1997, p. 5), no prefácio à edição brasileira, reconhece que “entre os modernos, falta, por exemplo, Giovanni Althusius”. Esse esquecimento – se é que podemos dizer assim – foi corrigido por Bobbio (1987) alguns anos mais tarde com a publicação de Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política.4

Embora a presença de Althusius em Estado, governo, sociedade não passe de uma única página, Bobbio lhe aponta uma importância sem igual para certa virada da teoria política moderna e que, certamente, justifica sua categorização como um subversivo moderno. Bobbio observa que, entre os mais diversos intérpretes dos problemas do Estado, há uma fundamental contraposição: qual a posição que o intérprete assume, a do governante ou a do governado, a do soberano ou a do súdito, a do Estado ou a do cidadão? De acordo com Bobbio (1987, p. 63), “numa longa tradição que vai do Político de Platão ao Príncipe de Maquiavel, da Ciropédia de Xenofonte ao Princeps christianus de Erasmo [1515], os escritores políticos trataram o problema do Estado principalmente do ponto de vista dos governantes”. A inversão na teoria política moderna teria ocorrido com Althusius e sua problematização da questão do Estado pelo ponto de vista dos governados, dos súditos, em suma, do povo. Nesse registro, a sociedade política é entendida “como um produto voluntário dos indivíduos, que com um acordo recíproco decidem viver em sociedade e instituir um governo” (BOBBIO, 1987, p. 64).

Para melhor compreendermos a subversão de Althusius precisamos entender o contexto em que viveu e as influências sociais, políticas e teóricas que o motivaram. Althusius nasceu em Diedenshausen, na Westfália, em 1557. Estudioso dos temas jurídicos, tornou-se professor na Faculdade de Direito de Herborn, onde publicou a Política em 1603. O sucesso do livro o levou a assumir em 1604 como magistrado municipal de Emden, na Frieslândia Oriental, e lá permaneceu como dirigente até sua morte em 1638. Emden possuía uma particularidade histórica fundamental: ali, mais do que em qualquer outra parte da Alemanha, a reforma protestante havia se estabelecido com sucesso (BENOIST, 2000). Como se sabe, em 1517 Martinho Lutero publicou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, o que deu início ao movimento do protestantismo. Lutero traduziu a Bíblia para o alemão e assim espalhou suas opiniões por toda a Europa. No entanto, curiosamente não foi o conterrâneo Lutero quem exerceu a maior influência sobre Althusius, mas sim o francês radicado em Genebra, João Calvino. O protestantismo em geral e o calvinismo em particular ofereceram para Althusius o que ele precisava: argumentos teológicos para a recusa da autoridade institucional da Igreja. Com o protestantismo, Althusius estava armado teoricamente para a formulação do tema da soberania, ou melhor, da soberania popular.

A questão da soberania fazia parte do zeitgeist, do espírito do tempo. Jean Bodin, em França, havia acabado de publicar, em 1576, Os seis livros da República, obra considerada o marco de fundação da soberania na teoria política moderna. Bodin viveu em um momento conturbado da França, em que prevaleciam as guerras religiosas entre católicos e os recém-formados protestantes. Como um moderado, que buscava a tolerância religiosa e o fim da guerra, Bodin entendeu que apenas o fortalecimento do poder do rei seria capaz de superar o impasse. De certo, Bodin compreendia que todo o poder derivava de deus. Entretanto, a tradução desse poder na terra não deveria ser compartilhada ou estar nas mãos da Igreja. Ao rei, e somente a ele, caberia ser o tradutor de deus na terra. A soberania é do rei, de forma perpétua e absoluta. Como poder absoluto, esse poder do rei é independente, desvinculado de qualquer obrigação e não poder ser submetido nem mesmo pela Igreja. Claro, há limites e o soberano não deve fazer aquilo que deus não faria. O problema é que esse limite da soberania é abstrato e não há ninguém que tenha o direito de fiscalizar ou controlar as decisões do soberano. Aqui estavam as bases para o nascente absolutismo; aqui estavam as bases para a futura “teoria do direito divino dos reis” de Jacques Bossuet.

O que fez o subversivo Althusius? Inverteu os fundamentos da teoria da soberania de Bodin. Leitor de Bodin, Althusius compartilha com o francês a ideia de que todo o poder deriva de deus. No entanto, discorda acerca de quem deve ser o soberano tradutor desse poder de deus. Em Althusius, o poder soberano não pode estar nas mãos do príncipe, mas sim na comunidade, no povo. A simbiose, a associação política que forma a comunidade é o alicerce de sua teoria. É dessa simbiose de associações privadas, das famílias, que se conformam as associações públicas como a cidade, a província e o reino, em suma, a comunidade. Segundo o autor, “a política é a arte de reunir os homens para estabelecer vida social comum, cultiva-la e conservá-la. Por isso é chamada de ‘simbiótica’” (ALTHUSIUS, 2003, p. 103). Há aqui uma clara semelhança com o princípio aristotélico do homem como animal político, do homem como ser social. Essa vida social comum se dá na comunidade política; ao Estado, em última instância, cabe apenas garantir que a comunidade política fruto do consenso entre todos possa se desenvolver. Se a soberania é popular então o povo possui o direito de resistência contra governantes antipopulares, contra governantes injustos. Nas palavras do alemão,

Se o magistrado supremo não honra a palavra empenhada e fracassa na administração do reino de acordo com o prometido, então o reino, ou os éforos e os líderes em seu nome, é o promotor da punição para tal violação e quebra de confiança. É assim, permitido que o povo cancele ou anule a forma anterior de política e comunidade, e constitua uma nova. Em ambos os casos, já que as condições do pacto e da convenção foram desrespeitadas, o contrato é desfeito por seu próprio direito [...] o povo ou os membros do reino não mais reconhecem essa pessoa falsa, desleal e violadora de pactos como seu magistrado, mas a tratam como um comum, como um tirano ao qual não é mais devida obediência e o que mais tiver sido prometido (ALTHUSIUS, 2003, p. 268-269).

Althusius não foi apenas o autor de uma subversiva e original teoria da soberania popular. Também em sua obra identificamos a fundação da ideia de federalismo na teoria política moderna, o que leva Alain de Benoist (2000) a considerá-lo o “primeiro federalista”. Em Althusius vemos a valorização da descentralização e o elogio do associativismo local em favor do bem coletivo. Trata-se de um federalismo de baixo para cima, que parta da base, da família até a comunidade. Não obstante sua formulação original, os conhecidos federalistas norte-americanos do século XVIII, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, não citam o autor em momento algum dos 85 artigos que conformam a obra O federalista.

Não foram apenas os federalistas que não citaram Althusius nos Estados Unidos. Um dos mais importantes cientistas políticos do século XX, Robert Dahl, em Um Prefácio à Teoria Democrática, livro de 1956, formulou o conceito de poliarquia como síntese das democracias madisoniana e populista. Em 1972, o tema foi recuperado em seu livro mais conhecido, Poliarquia. Finalmente, em 1989, reutilizou a expressão em sua obra mais densa, A democracia e seus críticos. O que Dahl não menciona em nenhum dos três textos é que o termo poliarquia já estava presente em Althusius.5 O conceito, claro, possui algumas diferenças. Se Dahl aproxima a poliarquia da democracia, Althusius é mais amplo: como contraponto da monarquia, a poliarquia pode ser aristocrática ou democrática. Grosso modo, o que define a poliarquia democrática de Althusius (2003, p. 370), alternância no poder e direitos iguais para todos, são também alguns dos critérios usados por Dahl para definir uma poliarquia plena; já a poliarquia aristocrática pode ser identificada com aquilo que Dahl chamou de oligarquias competitivas.

Ao recuperar Althusius no século XX, Carl Joachim Friedrich definiu o autor como o mais profundo pensador político entre Bodin e Hobbes. É compreensível que, em tempos do nascente absolutismo no século XVII, sua obra subversiva tenha sido eclipsada. Mas tempo demais já se passou. Seu reestabelecimento como um clássico moderno, cujo legado permanece atual, é uma dívida a ser paga pela teoria política contemporânea.

A potência democrática da Multidão de Spinoza

Caminho um pouco diferente seguiu o legado do subversivo Baruch de Espinosa, ou, simplesmente, Spinoza. Nascido na Holanda de 1632, filho de uma família judaico portuguesa, o filósofo foi além de Althusius ao estabelecer uma pesada crítica contra deus, o que lhe rendeu, inclusive, a exclusão da comunidade judaica.6 Por essa razão, Spinoza é considerado “um autor maldito, que não é citado a não ser para denunciar o seu caráter diabólico, e cujas obras circulam às ocultas” (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 2000, p. 55). Suas obras circularam às ocultas, mas circularam. Em particular na transição do XVIII para o XIX, na Alemanha, quando passou a ser lido por nomes como Kant, Schelling, Fichte, Hegel, Marx, Schopenhauer e Nietzsche. Foi, no entanto, a partir do turbulento ano de 1968 que Spinoza foi recuperado como um autor capaz de influir na política. Nesse registro, merecem destaque os trabalhos de Martial Gueroult, Gilles Deleuze, Alexandre Matheron, Antonio Negri e Louis Althusser.

Umas das vias para esse encontro de Spinoza com a política contemporânea se deu pela aproximação teórica de Spinoza com o subversivo do século XIX, Karl Marx. Plekhanov (1976), um dos principais nomes da primeira geração de marxistas russos, já sustentava em 1898 que o materialismo de Marx e Engels seria uma variante do spinozismo. Em Ler O Capital, Althusser (1980, p. 42) coloca essa relação nos seguintes termos:

[...] a filosofia de Spinoza introduz uma revolução teórica sem precedente na história da filosofia, e sem dúvida a maior revolução filosófica de todos os tempos, a ponto de podermos considerar Spinoza, do ponto de vista filosófico, como o único antepassado direto de Marx.

Em favor dessa linhagem Spinoza-Marx, Pogrebinschi (2007, p. 66) argumenta que

Spinoza é uma das peças-chave para se entender a démarche intelectual que leva Marx à democracia, e desta ao comunismo. Foi na escola de Spinoza que Marx teria, afinal, aprendido a conciliar necessidade e liberdade, e uma vez de posse desse conhecimento lhe foi possível desconstruir a mistificação hegeliana, em particular sua metafísica do Estado. A relação inseparável entre a democracia e o homem e entre este e a liberdade, Marx certamente traz de Spinoza. [...] A associação, conceito que Marx desenvolve inspirado em Spinoza, possibilita que a democracia seja realizada em uma forma de organização política na qual a permanência do chamado “estado de natureza” impede a separação entre a sociedade civil e o Estado. Marx encontra em Spinoza a idéia de uma democracia total, e dela se beneficiará posteriormente sua noção de comunismo.

Há, decerto, dificuldades em estabelecer essa linhagem de forma tão clara. Spinoza está presente em alguns textos da juventude de Marx, como Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, Sagrada família e Ideologia alemã, e nos de maturidade como Grundrisse e O Capital. Mas nesses textos encontramos apenas passagens muito superficiais, o que nos impede de atribuir, por essas citações, influências mais profundas de um em outro. Há, contudo, um espírito subversivo, pela liberdade e pela potência democrática, que os une. Exercitando o exagero, Negri (2016, p. 44) assevera: “Espinosa, Maquiavel e Marx representam a única corrente de pensamento político da liberdade que as idades moderna e contemporânea puderam conhecer”.

Spinoza viveu apenas 44 anos, entre 1632 e 1677. Mas tempo o suficiente para constituir uma obra avassaladora, com títulos como a Ética, o Tratado Teológico-Político e o Tratado Político. É nesse último, inacabado em decorrência de sua morte, que encontramos a potência democrática do autor. Fina ironia da história. Spinoza morreu justamente quando escrevia o último capítulo do Tratado Político, intitulado Da Democracia. Assim como Marx, que morreu enquanto escrevia o último capítulo do Livro 3 de O Capital, intitulado As classes, Spinoza se foi sem deixar plenamente sistematizado o elemento teórico que o torna um subversivo moderno. O Tratado possui dois capítulos sobre a monarquia – o sexto e o sétimo – e três sobre a aristocracia – oitavo, nono e décimo. O décimo primeiro capítulo, último e inacabado, é onde absorvemos o que o filósofo entendia por democracia.

“O Tratado Político de Espinosa é a obra que funda, do ponto de vista teórico, o pensamento político democrático moderno na Europa” (NEGRI, 2016, p. 25). Assim Negri abre um de seus muitos ensaios sobre o filósofo holandês. Mas como um autor que deixou inacabado seu texto sobre a democracia pode ser considerado o fundador do pensamento político democrático moderno? Com Bobbio (1987, p. 144), sustentamos que “o Tractatus de Spinoza foi escrito para demonstrar a superioridade do governo democrático”. Com efeito, é possível encontrar no corpus do Tratado diversos elementos que constituem essa teoria. A democracia é o “governo popular”, o “Estado absoluto” onde todos possuem o direito de sufrágio e o de ocupar as funções públicas. Spinoza deixa clara sua antipatia pela tirania quando sustenta que o melhor governo é “aquele que a multidão livre institui, não aquele que se adquire sobre a multidão por direito de guerra” (ESPINOSA, 2009, p. 45).

Como já foi dito, Spinoza observa a existência de três tipos de Estado: se ele é composto por um conselho formado pela multidão comum, chama-se democracia; se de alguns homens privilegiados, aristocracia; e se de um só, monarquia (ESPINOSA, 2009, p. 20). Há aqui uma clara semelhança com Althusius. O objetivo de Spinoza ao sistematizar os três tipos de governo é, no entanto, apresentar remédios para eventuais abusos: para a monarquia, o abuso é a tirania; para a aristocracia, é a oligarquia; sobre a democracia o autor não conclui. Em Spinoza não é exatamente tão importante a forma do Estado, se monarquia, aristocracia ou democracia, mas sim se é a multidão quem o constitui. Ao tratar da monarquia, por exemplo, o autor conclui “que a multidão pode conservar sob um rei uma liberdade bastante ampla, desde que consiga que a potência do rei seja determinada somente pela potência da mesma multidão e mantida sob a guarda desta” (ESPINOSA, 2009, p. 85). Essa constatação, todavia, não o impede de apresentar o governo da assembleia como superior ao da monarquia, pois “o Estado que é transferido para um conselho suficientemente grande é absoluto, ou aproxima-se maximamente do Estado absoluto. Com efeito, a dar-se um Estado absoluto, este é realmente o que é detido por toda a multidão” (ESPINOSA, 2009, p. 90). Spinoza, como se vê, inverte os termos: acostumamo-nos a pensar, com a ideia de “absolutismo”, que o Estado absoluto seria o inverso, o oposto da democracia. Não é em Spinoza. Bobbio (1987, p. 144), na comparação que faz entre Spinoza e o legitimador maior do absolutismo, Hobbes, sustenta que “o que os divide é a diversa concepção do fim último do Estado, que para Hobbes é a paz e a ordem, para Spinoza a liberdade”.

O tema de Spinoza é a multidão. Há liberdade e justiça onde a multidão governa, pois “se forem poucos a decidir tudo de acordo apenas com o seu afeto, perece a liberdade e o bem comum” (ESPINOSA, 2009, p. 126). Essa liberdade, essa potência múltipla e diversa que governa só é possível na medida em que a multidão tem assegurado seu direito de resistência; mas não um direito de resistência pontual ou eventual, mas sim presente e permanente. Seja pela liberdade de expressão, seja pelo controle democrático das armas, a multidão exerce o seu direito de resistência permanentemente o que lhe garante a liberdade, o que lhe protege da tirania, o que lhe permite governar e não ser governada. É essa a exata medida democrática e radical que diferencia Spinoza dos demais teóricos de seu tempo e o torna um subversivo moderno. É sob esse registro que sua obra aparece viva no século XXI na irrequieta trilogia de Antonio Negri e Michael Hardt formada por Império, Multidão e Bem estar comum. Pois, como defendem os autores, “Spinoza mostra-nos como podemos hoje, na pós-modernidade, reconhecer essas metamorfoses monstruosas da carne não só como um perigo, mas também como uma possibilidade, a possibilidade de criar uma sociedade alternativa” (NEGRI; HARDT, 2014, p. 253).

Rousseau e a crítica da desigualdade

Quando Jean Jacques Rousseau publicou em 1762 suas duas principais obras, O contrato social e o Emílio, não poderia imaginar que, em menos de 30 anos, uma revolução, a mais importante do século na Europa, varreria a França empunhando seus livros e declarando-o “o primeiro cidadão”. Filho de um relojoeiro calvinista, Rousseau nasceu em 1712, em Genebra, na Suíça. Sua família havia fugido da França durante as guerras religiosas do século XVII, país onde o filósofo também viveu por muitos anos. Criado num ambiente de profunda crítica ao absolutismo, Rousseau lidará em suas obras com temas como a crítica da representação, a busca pela vontade geral e o fim das desigualdades.

Rousseau torna-se influente no ambiente intelectual francês ao vencer um prêmio da Academia de Dijon com o texto Discurso sobre as ciências e as artes, em 1750. Contudo, foi com um outro texto enviado para a Academia de Dijon, em 1755, que o nome de Rousseau se consolidou na intelectualidade francesa. Mais polêmico que o primeiro, o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens dá os primeiros passos para a formação de seu pensamento. Vemos surgir ali um Rousseau preocupado com a questão da desigualdade social, tema que ainda não ocupava grandes debates na intelectualidade europeia, ao menos não do ponto de vista crítico. A conhecida passagem que abre a segunda parte do discurso mostra bem o tom crítico do autor:

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acredita-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém” (ROUSSEAU, 1999, p. 87).

Se o Discurso sobre a desigualdade opera uma análise do mundo, a forma pela qual a sociedade, a propriedade e a desigualdade foram constituídas, no Contrato social e no Emílio há um projeto político e educacional, um projeto de reforma para a construção da nova sociedade. É possível identificar uma certa unidade dialética entre esses textos onde o Discurso cumpre um papel destrutivo e o Contrato e o Emílio a parte construtiva. A articulação entre esses dois momentos conforma a unidade da teoria política de Rousseau (COUTINHO, 1996). Nesse momento construtivo, a ferramenta para a reforma política, descrita no Contrato social, é o pacto. Por via do pacto social os homens livres, que associados se tornam povo, podem constituir a soberania. Para Rousseau (1996, p. 22), nesse pacto “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral, e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo”. Há aqui uma transformação dialética da quantidade em qualidade, já que a vontade geral é superior em relação ao somatório das vontades particulares. Ressalte-se que o pacto não é para formar o Estado ou o governo, mas sim a soberania. Cabe ao povo soberano, orientado pela vontade geral, constituir esse governo. Daí a razão pela qual a forma de governo possui menor importância em Rousseau. O homem que sai do pacto é o cidadão. Mas esse cidadão só assume sua plenitude por meio da educação e esse é o tema do Emílio.

O tema da representação era o grande problema a ser enfrentado, pois “a soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa” (ROUSSEAU, 2003, p. 114). A representação seria, portanto, um obstáculo para a plena realização da vontade geral. Mais do que isso, seria um mito, uma imagem falsa. Daí sua famosa frase sobre a falsa liberdade dos ingleses: “o povo inglês pensa ser livre, mas está redondamente enganado, pois só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, ele é escravo, não é nada” (ROUSSEAU, 2003, p. 114). Leitura absolutamente diversa daquela proposta por Edmund Burke. Em seu Discurso aos eleitores de Bristol, proclamado em 1774, Burke faz a mais vigorosa defesa do que se entende por “mandato representativo” na teoria política. Para Burke, após eleito o representante deve ter autonomia e independência em relação aos seus eleitores; a partir de sua própria razão o representante deve orientar suas ações em favor do bem geral para a comunidade. Rousseau, por outro lado, argumentava em favor de um “mandato imperativo”, ou seja, o representante deveria ser apenas um porta voz dos representados no parlamento, sem autonomia decisória. Note-se que a formulação de Rousseau não elimina a possibilidade de uma assembleia, de um parlamento.

Não obstante a influência de suas ideias entre os jacobinos durante a revolução francesa de 1789, na transição do mundo moderno ao contemporâneo essa perspectiva de Rousseau foi, inicialmente, abandonada. Para a teoria política que surgia havia razoável consenso acerca da ideia de que a forma atual da democracia era a representação. Para os liberais e conservadores, a proposta de Rousseau era “bizarra e idiossincrática” (PITKIN, 2006, p. 41). Em França, um importante ataque veio da publicação, em 1819, do ensaio de Benjamin Constant, Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Constant (1985) distingue nesse texto a liberdade dos antigos, que seria caracterizada por uma ampla participação política, da liberdade dos modernos, identificada com a preservação das liberdades individuais. A primeira vinculada a tradição de Rousseau; a segunda, associada a Locke, como sugere John Rawls na primeira Conferência de seu Liberalismo político. A liberdade dos antigos é possível na exata medida em que ignora a liberdade individual tão valorizada pelos modernos. A crítica de Constant compreende que o mundo burguês contemporâneo não poderia aceitar tal ingerência sobre o indivíduo. O problema encontrado por Constant (1985, p. 3) no pensamento de Rousseau é o de que “transportando para os tempos modernos um volume de poder social, de soberania coletiva que pertencia a outros séculos, este gênio sublime, que era animado pelo amor mais puro à liberdade, forneceu, todavia, desastrosos pretextos a mais de um tipo de tirania”. O ataque ao mundo de Rousseau permaneceu ainda por bastante tempo. Em meados do século XX a crítica contra Rousseau foi repaginada. Com a publicação de Entre o passado e o futuro, em 1954, Hannah Arendt dirigiu seu julgamento liberal ao pensamento de Rousseau com argumento semelhante ao de Constant. Repetindo os argumentos já levantados por Burke em suas Reflexões Sobre a Revolução na França, o conservador Russell Kirk (2016, p. 312) publicou livro, em 1967, onde sustentou que, “com o sistema educacional de Jean-Jacques Rousseau e a falsa política que produz, uma nação pode transigir somente até o perigo iminente. Em nome de sentimentos humanitários, os revolucionários planejam um absolutismo sanguinário”. Outro importante trabalho da primeira metade do século XX, Capitalismo socialismo e democracia, de Joseph Schumpeter (2017, p. 278), sugere, por exemplo, que os socialistas “se expuseram não só à acusação de adular as massas em um grau ridículo, como também de aderir a um rousseaunismo que, a esta altura, devia estar suficientemente desacreditado”. Como se sabe, Schumpeter argumenta em favor do que se convencionou chamar de “minimalismo democrático”, ou seja, a ideia de que a democracia é apenas um procedimento pelo qual as elites são eleitas pelas massas. Nada mais antirousseauniano do que isso. Será somente na década de 1970 que Rousseau será readmitido na teoria política contemporânea, em particular com a publicação de Participação e teoria democrática de Carole Pateman. Em contraponto ao pensamento de Schumpeter, Pateman demonstrará que essa leitura minimalista da democracia é baseada em um mito. Como alternativa, Pateman constrói uma “teoria participativa da democracia” tendo como alicerce teórico Rousseau.

Com um pouco de dificuldade há quem advogue em defesa de uma linhagem que seguiria de Marx até Rousseau (DELLA VOLPE, 1982). Com efeito, Marx cita Rousseau em textos como Sobre a questão judaica, Ideologia alemã, Introdução da crítica da economia política e O Capital. Ao comparar o Discurso de Rousseau com A ideologia alemã de Marx, Carlos Nelson Coutinho (1996, p. 15) constata “que a articulação dialética entre propriedade privada, divisão do trabalho e alienação [...] já havia sido utilizada por Rousseau como o principal instrumento conceitual da análise crítica da sociedade burguesa de seu tempo”. A abordagem de Coutinho é semelhante à de Engels (1976, p. 119) quando diz que “em Rousseau, já nos encontramos, pois, com um processo quase idêntico ao que Marx desenvolve em O Capital”. Contudo, como observa Hobsbawm (2011, p. 56), essa linhagem é difícil de ser estabelecida, na medida em que o próprio Marx jamais apresentou tal dívida teórica para com o francês. Essa constatação não deve invisibilizar o fato de Rousseau ter inaugurado, em França, a tradição crítica contra a desigualdade social que passará por Babeuf, na revolução francesa, e pelos socialistas utópicos, que influenciaram Marx7. Ao tratar do legado de Rousseau para os dias de hoje, Coutinho (1996, p. 30) nos alerta que o pensamento democrático não deve perder de vista “por um lado, sua definição da ordem legítima como uma sociedade autogovernada pelo conjunto dos cidadãos, ou, por outro, esquecer sua lição - cada vez mais atual - de que existe uma incompatibilidade estrutural entre desigualdade e democracia”. Essa foi a trilha aberta por Rousseau para a teoria política.

Considerações finais

Ao longo do presente artigo demonstrei como na teoria política moderna as obras de Althusius, Spinoza e Rousseau podem ser consideradas subversivas. As aproximações entre os autores emergem sem muitas dificuldades. Negri (2016, p. 53) identifica uma forte ligação entre Spinoza e o “radicalismo democrático do protestantismo” de Althusius. Também a relação entre Althusius e Rousseau parece óbvia. Assim como Althusius, Rousseau enfatiza que aqueles que governam são subordinados ao povo, que a soberania popular é um direito inalienável, que não pode ser cedida nem mesmo com o seu próprio consentimento. Todos os três autores sistematizam, de formas muito parecidas, a existência de três formas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Ainda que transpareça a simpatia pela democracia, o centro do argumento dos três não está em defender exatamente a democracia como tipo ideal de governo, mas sim a soberania popular, a multidão, a vontade geral. O tipo ideal de governo é aquele onde o governo é o próprio povo; onde as decisões de Estado são as decisões informadas pelo povo. Spinoza e Rousseau interpretam O Príncipe de Maquiavel do mesmo modo, pela ótica dos subalternos e não dos governantes. Na interpretação de Rousseau (1996, p. 89), Maquiavel, “fingindo dar lições aos reis, deu-as, e grandes, aos povos”. Spinoza segue pelo mesmo caminho. Do seu ponto de vista, Maquiavel não apenas deu conselhos sobre a defesa da liberdade, mas também ensinou que a multidão não deve confiar sua salvação em apenas um homem. Nessa leitura, Maquiavel

quis talvez mostrar quanto uma multidão livre deve precaver-se para não confiar absolutamente a sua salvação a um só, o qual, a não ser que seja vaidoso e julgue que pode agradar a todos, deve temer ciladas todos os dias, e por isso é obrigado antes a precaver-se a si mesmo e a armar ciladas à multidão do que a olhar por ela. E sou tanto mais levado a crer isto deste homem prudentíssimo quanto consta ele ter sido pela liberdade, para cuja defesa também deu conselhos muito salutares (ESPINOSA, 2009, p. 46).

Não se trata exatamente de buscar apenas pontos de encontro entre os três subversivos modernos. Há, decerto, radicais diferenças entre eles. Negri (2016, p. 71), por exemplo, sustenta, que “em Espinosa, a “vontade de todos”, ainda que fosse dada, jamais conseguiria fazer-se “vontade geral” – e essa conclusão antirousseauniana é uma premissa do seu pensamento”. Se em Rousseau a “vontade geral” é a construção racional de uma unidade, em Spinoza essa unidade da multidão é impossível, posto que a multidão é pluralidade. Em Spinoza, a reinvindicação democrática deve “permitir a convivência das singularidades, a recíproca tolerância, a potência da solidariedade” (NEGRI, 2016, p. 71). Não se trata, portanto, apenas do uso de termos diferentes para o demos: a multidão em Spinoza e o povo em Rousseau. O seu conteúdo é também diferente: o povo é definido por sua unidade; a multidão, por sua pluralidade. Rousseau e Althusius também estão distantes em alguns pontos específicos. Uma primeira diferença entre eles é que, para Rousseau, o contrato é essencialmente entre indivíduos, enquanto para Althusius, o pacto social é a organização progressiva de comunidades orgânicas de vários tamanhos. Outro ponto que os distancia diz respeito aos corpos intermediários. Em Althusius, a soberania popular pressupõe a existência das comunidades, das famílias, das associações etc. Em Rousseau, ao contrário, não deve haver sociedade parcial no Estado, pois as associações e facções são obstáculos para a vontade geral (BENOIST, 2000).

Na Grândola Vila Morena, música que inspirou os portugueses na Revolução dos Cravos, ouvimos em seu refrão que “o povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade”. A ideia de que o demos é o sujeito político para a emancipação encontra nesses subversivos modernos relevantes formulações. A soberania popular e a poliarquia democrática de Althusius, a potência da multidão de Spinoza e o povo de Rousseau com sua vontade geral são elementos que não devem ser esquecidos pela teoria política contemporânea, na exata medida em que ainda há todo um mundo a ser transformado.

Referências

ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

ALTHUSSER, Louis. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. v. 2.

BENOIST, Alain. The first Federalist: Johannes Althusius. Telos, v. 2000, n. 118, p. 25-58, 2000. Disponível em: https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/alaindebenoist/pdf/the_first_federalist_althusius.pdf. Acesso em: 3 jun. 2022.

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: UNB, 1997.

CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das ideias políticas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2000.

CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista Filosofia Política, Porto Alegre, n. 2, p. 1-7, 1985. Disponível em: http://caosmose.net/candido/unisinos/textos/benjamin.pdf. Acesso em: 3 jun. 2022.

COUTINHO, Carlos Nelson. Crítica e utopia em Rousseau. Lua Nova, São Paulo, n. 38, p. 5-30, dez. 1996. https://doi.org/10.1590/S0102-64451996000200002

DAHL, Robert. Polyarchy, Pluralism, and Scale. Scandinavian Political Studies, v. 7, n. 4, p. 225-240, 1984.

Della Volpe, Galvano. Rousseau e Marx: a Liberdade Igualitária. Lisboa: Edições 70, 1982.

ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Edipro, 2011.

ESPINOSA, Baruch. Tratado político. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

KIRK, Russell. Edmund Burke: redescobrindo um gênio. São Paulo: É Realizações, 2016.

LENIN, Vladimir Ilyich. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: ______. Obras escolhidas. Lisboa: Avante, 1980. v. 1, p. 35-39.

MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. livro 1.

NEGRI, Antonio. Espinosa subversivo e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2014.

PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo, n. 67, p. 15-47, 2006. https://doi.org/10.1590/S0102-64452006000200003

PLEKHANOV, Georgi. Bernstein and materialism. In: ______. Selected Philosophical Works. Moscow: Progress Publishers,1976. v. 2, p. 325-339.

POGREBINSCHI, Thamy. O enigma da democracia em Marx. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 22, n. 63, p. 55-67, Feb. 2007. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10706305. Acesso em: 4 jun. 2022.

ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999. Coleção Os pensadores, v. 2.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. São Paulo: UNESP, 2017.

Notas

1 Por óbvio, o republicanismo de Maquiavel também mereceria ser lembrado como central nesse período, mas essa discussão não é exatamente o tema do presente artigo.
2 Devo a Negri (2016) a percepção de que Spinoza pode ser considerado um subversivo. O que fiz no presente artigo foi ampliar o espectro ao incluir Althusius e Rousseau nessa categoria.
3 Na tradução, “A política metodicamente concebida e ilustrada com exemplos sagrados e profanos”.
4 Teoria das formas de governo foi publicado originalmente em 1976. O prefácio à edição brasileira em que reconhece a ausência de Althusius é de 1981. Já Estado, governo, sociedade, onde o alemão foi incluído, é de 1985.
5 Em uma pequena nota de rodapé do artigo Polyarchy, Pluralism, and Scale, publicado na Sandinavian Political Studies,Dahl (1984) diz que desconhecia o uso do termo em Althusius. Teria sido o cientista político Arendt Lijphart quem o teria alertado sobre essa referência.
6 No posfácio da segunda edição do Capital, publicada em 1873, Marx (2013, p. 91) nos diz que o filósofo judeu-alemão Moses Mendelssohn, em meados do século XVIII, considerava Spinoza um “cachorro morto”. Essa passagem ilustra a forma como o holandês era tratado até ser recuperado pelo idealismo alemão no início do século XIX.
7 Engels (2011) e Lenin (1980) apontam as seguintes influências em Marx: o socialismo utópico de Saint Simon, Robert Owen e Charles Fourier; a economia política inglesa de Adam Smith e David Ricardo; e a filosofia alemã de Hegel e Feuerbach. Nenhum dos dois trouxe Rousseau como importante influência na obra de Marx, ainda que Engels (2011, p. 67) considere o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens uma “obra prima de dialética”.

Notas de autor

* Doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Pesquisador de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/ Bolsa da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro).

Información adicional

redalyc-journal-id: 3373

Enlace alternativo



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS por