Resumo: Neste artigo procuramos compreender as posições das três revistas cariocas, Careta, Fon-Fon e O Malho, acerca do papel da mulher no conceito de “família moderna” durante a primeira metade do século XX, sendo filha, esposa ou mãe. A partir do conceito de patriarcalismo moderno, visamos compreender as novas formas do patriarcado no Brasil republicano e como isto afetava o comportamento feminino, seu cotidiano nas famílias, nas relações sociais e de poder nos espaços privados e públicos neste período de mudanças aceleradas. Partindo desta análise, pensamos como a imprensa noticiava aos seus leitores sobre o casamento, os casos de separações e como apresentava o desejo feminino pelo divórcio.
Palavras-chave: história, imprensa, relações de gênero, direito feminino.
Resumen: El objetivo de este artículo es comprender las posiciones de tres revistas de Río de Janeiro, Careta, Fon-Fon y O Malho, de cara al papel de la mujer en el concepto de «familia moderna» durante la primera mitad del siglo XX, en su papel de hijas, esposas o madres. A partir del concepto de patriarcado moderno, buscamos entender las nuevas formas de patriarcado en el Brasil republicano y la manera en que ello afectó el comportamiento de las mujeres, a su vida familiar diaria y a las relaciones sociales y de poder en los espacios privados y públicos en este período de cambios acelerados. Tomando como base este análisis, reflexionamos sobre el modo en que la prensa informaba a sus lectores sobre el matrimonio y los casos de separación, y en cómo presentaba el deseo femenino de divorcio.
Palabras clave: historia, prensa, relaciones de género, derecho de la mujer.
Abstract: This article seeks to understand the positions of three Rio de Janeiro journals, Careta, Fon-Fon and O Malho, in terms of a woman’s role in the concept of the “modern family” during the first half of the twentieth century, whether as a daughter, wife, or mother. Based on the concept of modern patriarchy, we seek to understand the new forms of patriarchy in republican Brazil and how these affected women’s behavior, their everyday lives in the family sphere and in social and power dynamics in private and public spaces, during this period of accelerated change. Based on this analysis, we consider how the press reported to its readers on marriages and separations and how it presented female desire through divorce.
Keywords: history, press, gender relations, women’s rights.
Résumé: Dans cet article, nous essaierons de comprendre la position de trois revues cariocas, Careta, Fon-Fon et O Malho, sur le rôle des femmes – en tant que filles, épouses ou mères – au sein du concept de « famille moderne » de la première moitié du XXe siècle. À partir du concept de patriarcat moderne, nous chercherons à comprendre les nouvelles formes assumées par le patriarcat dans le Brésil républicain et la manière dont elles ont affecté le comportement des femmes et leur quotidien en famille et au sein des relations sociales et de pouvoir dans les espaces privés et publics de cette période de changements accélérés. Sur la base de cette analyse, nous nous intéresserons à la manière dont la presse abordait le mariage, les cas de séparations, le désir féminin et le divorce.
Mots clés: histoire, presse, relations de genre, droit féminin.
摘要: 本文作者分析了 20 世纪上半叶在巴西城市里约热内卢出版发行的三本女性杂志 Careta, Fon-Fon 和 O Malho, 它们关于 “现代家庭”的定义,巴西女性在“现代家庭”里作为女儿、妻子和母亲的角色,以及这些杂志对女权问题的立场。从现代父权制的概念出发,本文分析了巴西女性在共和政治体制和父权主义下,在快速发展变化的历史时期,她们的行为、她们在家庭中的日常生活、她们在私人和公共空间中的社会地位和权力关系。在此背景下,作者反思了媒体如何向读者报道婚姻与婚礼、分居案件以及如何表述女性的离婚的愿望。
關鍵詞: 历史, 新闻, 性别关系, 女权.
Artigos
Imprensa, divórcio e casamento: o papel da mulher na família moderna (1910-1950)
Prensa, divorcio y matrimonio: el papel de la mujer en la familia moderna (1910-1950)
Press, divorce, and marriage: The role of women in the modern family (1910-1950)
Presse, divorce et mariage : Le rôle de la femme dans la famille moderne (1910-1950)
新闻、离婚和婚姻:巴西女性在现代家庭中的角色(1910-1950)

Recepción: 21 Septiembre 2022
Aprobación: 22 Diciembre 2022
Selecionamos as revistas O Malho, Careta e Fon-Fon, importantes publicações cariocas na primeira metade do século XX, como fontes e objetos por considerá-las formadoras e reprodutoras de opiniões e comportamentos da sociedade carioca deste período. Para melhor entender essas revistas, é importante saber quem são seus organizadores: a revista Fon-Fon circulou de 1908 a 1958, sendo integrada pelos simbolistas Lima Campos, Gonzaga Duque e Mário Pederneiras até 1914. Posteriormente, foi dirigida por Álvaro Moreyra e Hermes Fontes. A Careta existiu entre 1908 e 1960, sendo dirigida pelo jornalista e empresário Jorge Schmidt, que exerceu a sua direção até 1935, ano de seu falecimento.1 Logo depois, seu filho, Roberto Schmidt, entrou no comando e permaneceu até 1960. Por último, a revista O Malho, que foi fundada pelo jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva e por Crispim do Amaral, caricaturista francês, sendo inaugurada em 1902 e durando até 1953.
O objetivo dessas revistas era de ampliar seu público leitor, para isso criaram várias colunas que uniam literatura, humor, variedades e utilidade pública, mas uma parte considerável da produção era para o público feminino, tendo como base o modelo de mulher burguesa que a classe dominante queria divulgar. Eram consumidas por homens e mulheres majoritariamente da classe dominante, mas seus discursos traziam muitos aspectos que objetivavam moldar o comportamento feminino independente da classe ou etnia. Além disso, tratava-se de homens dizendo às mulheres como elas deveriam se comportar. É possível notar que a partilha binária e a divisão desigual do gênero são utilizadas em seus discursos em torno da construção dos modelos de mulher e de comportamentos femininos modernos. Sendo assim, defendemos que essas revistas definiam papeis de gênero determinados e procuravam difundi-los no momento em que as mulheres ocupavam cada vez mais os espaços públicos e atuavam profissionalmente.
É difícil medir o impacto que estas revistas tiveram sobre as mulheres, mas podemos supor que devido às altas tiragens, elas alcançaram um bom público leitor. Possivelmente, muitas delas, ansiosas com as mudanças que ocorriam no período, absorviam muitos dos posicionamentos dos periódicos e consolidavam a partir deles as suas próprias opiniões. Sendo assim, segundo afirma Susan K. Besse (1999, p. 78), as revistas orientavam as mulheres que:
[...] em primeiro lugar deveriam demostrar que o único caminho para a verdadeira felicidade e realização pessoal encontrava-se no cultivo permanente do papel de esposa virtuosa. Em segundo lugar, instruía-as sobre o modo de cumprir melhor sua missão de preservar a estabilidade familiar e social, de criar forças de trabalho produtiva e de promover a prosperidade doméstica e nacional.
Ou seja, a mulher foi conquistando o espaço público ao mesmo tempo em que se fortalecia a ideia de uma função natural feminina caracterizada por ser mãe, esposa e dona de casa. Estas revistas exigiam das mulheres sacrifícios que não eram destinados aos homens. Muitas leitoras seguiam os conselhos práticos nelas expostos para alcançar as exigências da sociedade que, segundo Jeni Vaitsman, passava por um processo de modernização patriarcal. Para a autora, “a modernização no plano da subjetividade e da família seria muitas vezes apenas aparente, com a persistência de elementos tradicionais coexistindo com comportamentos aparentemente modernos” (VAITSMAN, 1994, p. 14). Portanto, entendemos que essas revistas analisadas são marcadas por aspectos conservadores e defensoras dos papéis tradicionais femininos, evidenciando a tradição como parte da modernidade.
A ideia de Vaitsman sobre um “patriarcalismo moderno” no Brasil, a partir do início do século XX, enfatiza que a família moderna é de fato uma família patriarcal. Segundo a autora, a família conjugal moderna se formava a partir de algumas mudanças, como a vontade individual do homem e da mulher (o amor romântico), tinha uma maior participação da mulher em atividades lucrativas (como a de costureira, professora, datilógrafa, secretária, entre outras) e, em alguns casos, ocorria o desquite ou o casamento com desquitados, além da diminuição da autoridade paterna e do aumento do controle sobre a natalidade. Estas mudanças são os conteúdos distintos que modificaram o patriarcalismo rural do moderno vivenciado no país no período analisado neste artigo. Nesse sentido, as mulheres continuavam enfrentando as desigualdades de gênero, nos âmbitos público e privado. Isto porque a participação crescente das mulheres na esfera pública e a conquista de direitos eram vistos como uma ameaça à família e ao patriarcado, “[...] sendo alvo do ataque dos representantes do próprio Estado que promovia a industrialização” (VAITSMAN, 1994, p. 56).
Sendo assim, a valorização do casamento se tornava necessária para a realização destas novas formas do patriarcalismo. Isto pode ser percebido em um texto irônico sem autor da revista Careta, em 27 de agosto de 1910:
Em uma roda smart defendia-se que o casamento é um logro. Cada qual emitia a sua opinião. [...] - E você coronel, que pensa do casamento? - Lá para meus lados a mulher cria os filhos, arruma a casa, olha a cosinha, cose para a família, cuida da criação, prepara a manteiga, e á noite ainda ensina os meninos a lêr. Tudo isso de graça; não ganha nem um vintém por mez. Por isso não posso achar que o casamento seja logro nem mau negocio.2
O texto acima mostra um relato da realidade daquele tempo, os homens lucravam com o trabalho doméstico não remunerado das suas esposas. Assim, como parte da construção moderna capitalista, o trabalho no interior da família era visto como invisível, sem valor e improdutivo. Desta forma, imprensa, classe dominante, Estado e Igreja entendiam que o triunfo da “civilização e do progresso” na esfera pública dependia da “salvação” da família. Para Besse (1999, p. 63-64), eles tinham o objetivo de:
[...] transformar a sociedade oligárquica “anacrônica” que, continuara a existir dentro de um país burguês moderno, próspero e ordeiro. Grande parte de sua atenção concentrava-se no fortalecimento das famílias de classe média e alta, uma vez que as mulheres dessas classes eram mais desabridas no ataque ao casamento e uma vez que eram essas classes que estabeleciam as normas da sociedade.
Neste sentido, a imprensa ficava responsável por disseminar essas normas “modernas” a fim de obter aceitação por meio da indução feita de várias formas. As três revistas (O Malho, Fon-Fon e Careta) apresentavam estratégias muito parecidas para defender diante de seus leitores que o casamento continuava sendo de extrema importância para a sociedade, visando o fortalecimento da família e da ordem. Podemos destacar alguns exemplos como: a exposição de correspondências dos leitores sobre a importância do casamento; horóscopo com previsões de matrimônios para os diferentes signos; propagandas de vestidos de noivas; poemas; colunas com ênfase para a divulgação de fotografias de casamentos das famílias de classe média e alta das principais capitais do país e discursos de políticos, intelectuais e artistas conhecidos que expressavam suas opiniões sobre o tema. Afinal, o reconhecimento social dessa “nova” sociedade republicana era muito importante na busca por pertencimento e prestígio. Para Carla Bassanezi Pinsky (2013, p. 482), mesmo com o ideal do casamento por amor:
[...] a família ainda era forte e a autoridade paterna mantinha poder de veto, especialmente em namoros considerados inadequados por questões (preconceitos) de classe, “raça” ou religião. Portanto não se apostava no sucesso de uniões desaprovadas pela família.
Sendo assim, ao divulgar fotos com as legendas contendo os sobrenomes dos noivos, por exemplo, a sociedade, além de conhecer os laços entre as famílias, interpretava que havia a aprovação delas. Podemos destacar também uma fala de Rui Barbosa publicada na Careta em 27 de abril de 1935:
A família divinamente constituída, tem por elementos orgânicos a honra, a disciplina, a fidelidade, a bemquerença, o sacrifício. É uma harmonia instintiva de vontade, uma desestudada permuta de abdicações, um tecido vivente de almas entrelaçadas. [...] Multiplicai a família e tereis a Patria.3
Constantemente, as revistas trabalhavam a ideia de família relacionada com o fortalecimento do país. Rui Barbosa já havia falecido, mas o periódico não por acaso relembra sua fala. Seu discurso se encaixava nas ideias da década de 1930 e, por isso, era reapropriado. Esse foi um período de fortalecimento do patriarcalismo e da cultura religiosa católica no Brasil. Sendo assim, o casamento sendo considerado sagrado não poderia ser desfeito. Como afirma Gizlene Neder (2007, p. 134), “[...] a família dita moderna vai assumir cada vez mais os contornos da Sagrada Família”. Para a autora, Rui Barbosa era “[...] sinceramente católico e não admitia a dissolução dos casamentos” (NEDER, 2007, p. 153). Suas ideias conservadoras influenciaram profundamente o campo jurídico no país. No Código Civil de 1916, na esfera do “Direito da família fez promulgar uma lei do casamento civil sem o divórcio” (NEDER, 2007, p. 157). Rui Barbosa alterou e restringiu a liberdade feminina, discriminava a mulher tratando-a como um ser inferior e relativamente incapaz, necessitada de proteção, orientação e aprovação masculina. Neste sentido, entendemos que a Careta ao publicar um texto de Rui Barbosa em 1935, expõe seu posicionamento sobre o casamento, colaborava para a manutenção da desigualdade de gênero, induzindo seus leitores a pensarem da mesma forma. O objetivo era fortalecer a ideia da necessidade do casamento, sua durabilidade e felicidade. Desta forma, como afirma Mary Del Priore (2013, p. 62): “Criaturas opostas, homens e mulheres deveriam se unir por uma razão: construir família”.
Mas, as mulheres, principalmente as mais jovens que viviam com mais intensidade as mudanças do período, começavam a agir de maneira diferente dos padrões exigidos e valorizados no século anterior, usando roupas leves para passeios nas praias, para a realização de esportes ou mesmo para dançar. Para a autora, o século XX inventou o “[...] corpo novo e exibido. Mas também, um corpo íntimo e sexuado que, lentamente, veria afrouxar as disciplinas do passado em benefício do prazer” (PRIORE, 2011, p.106). Porém, acreditamos que seria um prazer comedido, controlado e vigiado. Isto porque os pais estavam perdendo cada vez mais o controle das escolhas de casamento dos seus filhos e filhas e os maridos se encontravam temerosos com a perda de controle também sobre suas esposas. Afinal, mesmo com todo o esforço para se manter o patriarcalismo no Código Civil de 1916, apesar da recusa ao divórcio, o desquite foi permitido por lei. A possibilidade do desquite, as discussões sobre o divórcio, o amor romântico e a liberdade do corpo feminino, enfraqueciam a visão patriarcal de propriedade e domínio sobre a mulher. Portanto, a fim de combater estas ameaças, reformadores começaram a pensar como adaptar a manutenção do casamento, do controle do corpo feminino e dos papéis sexistas, com as mudanças vindas no novo século. Como afirma Michelle Perrot, o corpo feminino era “objeto do olhar e do desejo, fala-se dele. Mas ele se cala. As mulheres não falam, não devem falar dele. O pudor é a própria marca da feminilidade” (PERROT, 2003, p. 13). Foi em meio a esta relação entre liberdade e censura, tradição e modernidade que viviam as mulheres da primeira metade do século XX. Neste contexto, iniciava-se a discussão de propostas para a reformulação ou renovação do casamento. Como afirma Besse (1999, p. 65):
O empenho em reformar o casamento sofria uma dupla pressão. Em primeiro lugar, devido ao descontentamento das mulheres, as relações marido-esposa tinham que ser modernizadas, adquirindo pelo menos uma aparência superficial de igualdade e reciprocidade. Em segundo lugar, os reformadores procuravam tornar o casamento mais “higiênico”, mais racional e, portanto, mais funcional na produção de cidadãos bem socializados e competentes, cujo comportamento promoveria a civilização e o progresso.
Os reformadores decidiram divulgar quais mudanças seriam necessárias para a manutenção do casamento. O papel da imprensa seria informar sobre essas novidades. Para isto, novas colunas e textos com dicas de como manter um casamento harmonioso e saudável começaram a surgir com maior frequência. Desta vez, não apenas para as leitoras, mas também para o público leitor masculino. Nessa nova perspectiva, conselhos baseados no amor, no consenso e na intimidade, começavam a ser direcionados aos homens. Estes eram encarados como as únicas bases possíveis para garantir a estabilidade na modernidade. Segundo Priore (2011, p. 122), uma segunda onda de sexologistas nos anos de 1940, “[...] proclamavam os aspectos positivos do sexo dentro do casamento. Para eles o sexo não era visto apenas como instinto de reprodução, mas como reflexo do sentimento entre esposos”. Ou seja, a demonstração de afeto do marido pela sua esposa era um reflexo das discussões que circulavam no período como uma nova maneira de se relacionar dentro do casamento.
A imprensa passa a valorizar estas ações como uma forma de estabelecer que a afetividade tinha a ver com sucesso e felicidade no casamento. Percebemos nas fontes que as modificações aconteciam de forma controlada e as manifestações de afetividade deveriam acontecer sem “exageros”, para o homem não parecer “afeminado”, pois as emoções estariam ligadas ao feminino. Desta forma, a imprensa trabalhava com contradições, divulgando ao mesmo tempo um lado “novo” do homem, mais carinhoso e atento a sua esposa. A vida conjugal ganhava novo sentido para homens e mulheres. Além das mudanças nas relações conjugais, a ciência passou a ser utilizada como uma fonte de convencimento na comprovação de que o casamento seria de extrema importância, não apenas para a sobrevivência da espécie humana, mas também para o bem-estar individual. Portanto, além do Estado e da Igreja, o casamento teria agora, também a supervisão da medicina. De acordo com Rachel Soihet (2013, p. 32):
A higienização da família com vistas ao estabelecimento da saúde física e psíquica, garantindo uma prole saudável e uma futura classe dirigente sólida e respeitosa das leis e dos costumes, das regras e das convenções, é o objetivo. Mas tais propostas não representam um abrandamento na divisão de esferas, como se reafirma nesse discurso: o homem na órbita pública e a mulher na esfera privada.
Ou seja, a proposta era destacar que as famílias modernas precisavam ser higiênicas e sem modificar a ordem dos gêneros. Mas, acreditamos que mesmo não tendo a intenção, a ideia de renovar ou reformar o casamento automaticamente redefiniu as relações de gênero. A comunidade médica observou a necessidade de tratar possíveis problemas da sexualidade que afetavam a vida conjugal. Desta forma, o papel da imprensa era informar e colaborar para que estes discursos fossem amplamente divulgados e aceitos o projeto de casamento higiênico estaria bem encaminhado. Homens e mulheres seriam orientados pela ciência que tentava controlar as mudanças que ocorriam nas relações de gênero. Até então, não havia nas revistas ilustradas informações sobre sexo, algo que se aprendia durante a vida na sua individualidade. Para a maioria das mulheres, uma vida de silêncio e culpa. Segundo Priore (2011, p. 126), foi a partir do ano de 1930 que se iniciaram os primeiros trabalhos sobre o tema. Afinal:
[...] essa é a época de ouro dos higienistas, os especialistas em sanitarismo. A conscientização sobre a necessidade de educação sexual entre os jovens. Como funcionariam os casamentos de forma saudável se as jovens continuassem educadas “para nada saber” e os rapazes indo ao bordel? Resposta: explicando tudo direitinho, mas treinando a castidade.
Mas, a maneira como as informações sobre sexualidade chegava até os jovens, era diferenciada por gênero. A preservação da castidade, como enfatiza Del Priore, era direcionada à mulher juntamente com informações sobre a maternidade. Isto pode ser percebido em propaganda do livro intitulado Biologia da mulher na revista Fon-Fon do dia 27 de janeiro de 1940. Nela consta a apresentação dos capítulos do livro do médico Dr. F. Haro sobre a sexualidade feminina. Logo no início da propaganda vemos com letras destacadas a chamada para as mães darem o livro para suas filhas. Ou seja, as orientações médicas responsabilizavam as mães por fornecerem a educação sexual para suas filhas. Assim, cada vez mais as mães acumulavam obrigações e funções dentro da nova família moderna e higiênica. Nos capítulos expostos na propaganda, notamos que não se tratava somente do corpo e da sexualidade da mulher, mas também da moral cristã destacada na sinopse dos capítulos do livro: “Capítulo III - O casamento, com temas que envolvem o espírito de sacrifício e intimidade espiritual. Também na orientação de quando ter o primeiro filho”.4 O objetivo, portanto, não era a informação, para trazer conhecimento e liberdade sexual feminina. A mulher só poderia se relacionar sexualmente dentro do casamento com o objetivo de ser mãe e, mesmo assim, tinha que seguir as regras da moral cristã que limitava as informações sobre a sexualidade feminina. Ou seja, o conhecimento era limitado. Ainda segundo Priore (2011, p. 126), estas informações eram divulgadas com o intuito de combater o aborto, manter em vigilância a virgindade feminina até o dia do casamento e tentar minimizar os erros cometidos nos atos sexuais que causavam dor ou incômodo nas mulheres. Desta forma, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres continuariam sendo controlados pelo poder das instituições patriarcais.
Para os homens, as informações sobre sexo eram mais detalhadas e o foco dos livros era a orientação de como se prevenir das doenças venéreas, principalmente porque os exames pré-nupciais começavam a ser frequentemente cobrados pela família da noiva como garantia de um casamento e filhos saudáveis. Assim, as mulheres foram formadas nessa cultura na qual não poderiam dispor livremente de sua sexualidade. Segundo Soihet (2013, p. 126), a mulher enquanto solteira deveria se manter virgem e quando casada fiel ao seu marido, o que “era sinônimo de honra feminina, a qual se estendia a toda a família, constituindo-se num conceito sexualmente localizado”.
Desta forma, o projeto de casamento higiênico estaria bem encaminhado. Homens e mulheres seriam orientados pela ciência que tentava controlar as mudanças que ocorriam nas relações de gênero. Os homens eram estimulados ao livre exercício da sexualidade, símbolo de masculinidade e virilidade. Enquanto as mulheres que tinham tal atitude eram condenadas, tendo que reprimir seus desejos e vontades. Afinal, a pureza e a maternidade eram papéis fundamentais para as mulheres que tinham como referência a imagem da Virgem Maria para seguir. Neste contexto, a ideia de pureza articulava-se à preocupação em produzir “bons filhos”. Como afirma Vaitsman (1994, p. 33):
Dentro destes limites, a individualidade feminina e masculina só podem se expressar legitimamente como manifestações da dicotomia público/privado- dilema que já se instaura com a relação que institui a família conjugal moderna, o casamento moderno, resultado de uma escolha pessoal, mas igualmente constrangida pelos papéis que definem os contornos da individualidade de cada um.
Estas eram as características da família moderna e patriarcal. Mas, sabemos que nem todas as mulheres concordavam e seguiam estas orientações. Algumas agiram de forma diferente questionando os padrões. Mulheres que desejavam se separar ou não queriam se casar e que enfrentavam a reprovação social.
Requerer um divórcio a collocará numa situação indefinida na sociedade, sendo alvo de commentarios nunca lisonjeiros. Todos dirão da mulher: “Aquella é uma divorciada” – o que significa uma criatura degenerada, que abandonou a santa paz do lar em busca de aventuras deshonestas, do ouro, do luxo. Nunca será feliz porque é inconsciente; fará ao segundo o que fez ao primeiro, ao terceiro o que fez ao segundo; terá um triste fim de cigarra no inverno da vida. Pobre mulher!5
O trecho acima foi publicado em 28 de junho de 1924 na revista Fon-Fon. Nele percebemos um aviso ou conselho às mulheres que estariam pensando em se divorciar dos seus maridos. O trecho destaca que ao tomar esta decisão, elas seriam colocadas como “indefinidas na sociedade” e desqualificadas por terem abandonado a “santa paz do lar”, rejeitando, assim, a função “natural” feminina de ser esposa. Além disso, seriam consideradas dignas de pena, pois, não conseguiriam fazer durar um casamento, atribuindo-lhes a culpa pelo fim da relação. A ameaça é utilizada como forma de manipular as possíveis decisões femininas. Pois, caso não fossem como o esperado pela sociedade patriarcal e moralista, eram consideradas desonradas, degeneradas, desonestas, infelizes e interesseiras.
No Brasil, o divórcio foi instituído oficialmente somente em 1977, regulamentado pela lei 6.515 do dia 26 de dezembro. A lei permitiu extinguir por inteiro os vínculos de um casamento e autorizava que a pessoa se casasse novamente. No contexto aqui analisado, a legislação brasileira só autorizava o desquite.6 É importante destacar que os conceitos de divórcio e desquite se confundiam muitas vezes nos periódicos. Em diferentes momentos, a palavra divórcio era generalizada, pois nem sempre significou separação com possibilidade de novas núpcias. Sendo assim, as palavras “desquite e divórcio” ora eram colocadas como sinônimas, ora como antônimas. Por isso, devemos ler com cautela, para que possamos entender e interpretar o contexto e a intenção da narrativa. Como afirma Koselleck (2006, p. 108):
Todo conceito se prende a uma palavra, mas nem toda palavra é um conceito social e político. Conceitos sociais e políticos contêm uma exigência concreta de generalização, ao mesmo tempo em que são sempre polissêmicos. A par disso, são entendidos, pelas ciências históricas sempre como palavras, pura e simplesmente.
Palavras tornam-se conceitos a partir do momento em que passam a ser empregadas com diferentes sentidos. Sendo assim, acreditamos que os variados sentidos destes conceitos nos periódicos aconteciam por dois motivos. O primeiro está relacionado à forma patriarcal de se julgar as mulheres que não queriam permanecer casadas. Elas eram desmoralizadas e desqualificadas, mesmo exercendo o seu direito por lei, como era o caso do desquite. Isto é percebido no trecho da Fon-Fon, citado acima, no qual transparece que a conquista jurídica não seria o bastante para alterar a construção social sobre o papel do gênero feminino. O outro motivo está relacionado à estratégia destes periódicos em não esclarecer ou se aprofundar no assunto, a fim de confundir ou influenciar os leitores, orientando-os em uma determinada posição. Podemos destacar outro exemplo publicado na revista O Malho de 17 de agosto de 1912, anos antes do artigo da Fon-Fon:
O divorcio... Mas vocês já viram que idéa estapafúrdia?! Porque o divorcio? Onde a sua necessidade? Onde a sua opportunidade? Não resta duvida que de um ponto de vista doutrinário de idéa é excelente. É uma das mais formosas utopias que podem anhelar a phantazia humana. Mas na realidade, na pratica, o divorcio só tem uma significação: o estimulo aos maus costumes, a dissolução da família. Por isso que ahi fica dito, e por tudo o mais quanto não fica, somos contra o divorcio.7
O trecho foi escrito por um jornalista que usava o pseudônimo de J. Bocó, que aparecia frequentemente na revista. Ele escreveu quatro anos antes da lei do desquite, o que exemplifica o quanto a discussão sobre o divórcio já acontecia há algum tempo e causava incômodo nos conservadores. O autor procura apresentar ainda a opinião como não apenas sua, mas da revista, quando afirma: “somos contra o divórcio”. Além disso, constantemente ao divulgar alguma notícia sobre o tema, ele era visto como o fim da família e da prática dos maus costumes. Isto porque, como vimos no início deste capítulo, o matrimônio representava a manutenção da ordem e dos privilégios masculinos. Ao mesmo tempo, significava maior reconhecimento e prestígio social. Desta forma, foram feitos esforços para convencer a sociedade de que o casamento seria a melhor forma de proteger a família e o país como um todo dos possíveis males da excessiva liberdade individual.
Durante a primeira metade do século XX, trechos como os que vimos acima faziam parte de constantes posicionamentos divulgados na imprensa sobre o divórcio e as mulheres divorciadas. O debate em torno da aprovação do divórcio no país começou no século XIX, entre religiosos e conservadores defensores da Igreja, contra liberais que prometiam o progresso com o Estado Laico. Ou seja, a preocupação com a aprovação da lei do divórcio estava relacionada com o início da República e a separação entre Estado e Igreja. O debate tornou-se mais intenso e polêmico a partir do dia 24 de janeiro de 1890, quando foi aprovado o Decreto n.181, que estabeleceu o casamento civil no Brasil. Segundo Clóvis Bevilaqua (jurista responsável pela autoria do Código Civil), era preciso mudar as relações de poder entre o Estado e a Igreja. Bevilaqua (1938, p. 61) dizia:
Fazia-se mais urgente uma reforma legislativa mais radical. Desde 1854, apareceram tentativas de secularizar-se. Mas, somente com a transformação do sistema de governo, com a proclamação da República, é que tivemos o decreto de 24 de janeiro de 1890, criando o casamento civil, como consequência necessária da separação de poderes, o temporal e o espiritual, objetivava o decreto de 7 de janeiro de 1890, completou essa evolução o Código Civil regulando o casamento de acordo com os princípios da constituição republicana.
Segundo Priore (2013, p. 60), este período foi de grande agitação social e motivo de muitas discussões familiares: “É pecado ou não casar no civil?”. Isto porque a Igreja fez forte oposição ao casamento civil e criticou a transformação do ato matrimonial divino em um mero contrato civil. Para a Igreja, casar no civil era um atestado de maus costumes. Na Careta do dia 13 de março de 1909, quando um reverendo noticiava o corpo docente do “Gymnasio do Estado do Espirito Santo”, afirmou durante um discurso: “O casamento civil é uma mancebia, é uma imoralidade. O único casamento legitimo para se constituir família, é o casamento catholico”.8 Segundo Gilson Ciarallo (2009, p. 259), a instituição religiosa definia o casamento como:
O último Sacramento dos sete instituídos por Cristo Nosso Senhor [...] um contrato com vínculo perpétuo, e indissolúvel, pelo qual o homem, e a mulher se entregarão um ao outro [...] significando a união que há entre o mesmo Senhor e a sua Igreja.
Ao se estabelecer o casamento como perpétuo e indissolúvel, não haveria espaço para individualidades. Sendo assim, qualquer medida que representasse a quebra deste contrato, seria condenada pela Igreja. Por isso, o divórcio foi estigmatizado pelo catolicismo. Como vimos nos capítulos anteriores, no Brasil, mesmo sendo uma república com um Estado Laico, a Igreja continuava interferindo em vários assuntos, o que também aconteceu com o divórcio. Para a Igreja, o matrimônio funda uma família cristã, na qual a moralidade da mulher em relação a do homem é muito mais vigiada. Sendo assim, ao casar, a mulher era submetida a funções como respeitar e obedecer ao marido, ser mãe, formar os filhos na fé cristã e administrar a casa, como afirma Marlene de Fáveri, que cita o pensamento do monsenhor Arruda Câmara:
[...] matrimônio vem de mairis munin, ofício da mãe, porque a mulher não casa senão para ser mãe. Se a maternidade só podia ser exercida mediante o sacramento do matrimônio, o divórcio seria o fim da humanidade, com sua tendência ingênua a esterilizar, a instabilizar a família, vai aos poucos destruindo a veneração à mãe, a deferência à esposa. Fica só a mulher, a mulher brinquedo, a mulher máquina de prazer, a mulher manequim de joias e vestidos (FAVERI, 2007, p. 342).
Segundo o trecho acima do monsenhor, era pela condição de mãe que a mulher deveria manter a família, cumprindo os deveres de boa esposa, cedendo às leis, exigências e expectativas não só da Igreja, mas do Estado, do marido e dos filhos. Ou seja, não se entendia a mulher como um indivíduo, com desejos, vontades ou direitos. Segundo Cláudia Maia, esta ideia estava presente também nas leis republicanas brasileiras, que foram criadas com a “aparência de igualdade de direitos, mas de fato legitimavam a subordinação das mulheres aos homens” (MAIA, 2007, p. 93). Isto aparece, por exemplo, na lei do casamento civil na qual as mulheres tinham condição jurídica inferior, sendo consideradas incapazes e submissas ao marido. Como podemos observar no artigo 6 do Código Civil brasileiro:
Art.6 - são incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos;
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal;
III. Os pródigos;
IV. Os silvícolas (BRASIL, 1916).
As leis instituídas, portanto, reafirmavam o modelo patriarcal de família e diferenciavam os espaços dos maridos e esposas hierarquicamente separados, retirando das mulheres casadas a condição de indivíduos. A autora também destaca que o Código Civil afetava o trabalho feminino remunerado; não proibia diretamente, mas:
[...] criava um instrumento jurídico de controle da autonomia delas durante o casamento e após o desquite, já que caberia ao marido autorizar ou proibir a esposa a seguir uma carreira profissional. Além disso, o marido era oficialmente o chefe da sociedade conjugal, ele detinha a representação legal da família, determinava onde iam morar, e, como detentor do “pátrio poder” e do “poder marital”, podia dispor dos bens tanto do casal como da esposa (MAIA, 2008, p. 286).
Portanto, o Código Civil de 1916 legitimou a divisão sexual entre trabalho produtivo e reprodutivo ao tornar as mulheres incapazes e dependentes. Para Carole Pateman (1993, p. 17), o casamento civil assegurava aos homens o controle sobre as mulheres, pois “tais direitos foram criados pelo contrato social original e, nesse sentido, ele é também um contrato sexual”. Segundo a autora, a história sobre o contrato social foi contada pela metade pelos clássicos teóricos, porque excluiu a forma como o patriarcado moderno se estabeleceu. Nela, o contrato social teria acabado com o patriarcado (entendido como direito político do pai), assegurando a liberdade civil aos homens. Contudo, para Pateman (1993, p. 21), o contrato social ao mesmo tempo em que concede a liberdade para os homens, cria formas de manutenção do patriarcalismo no qual:
Os filhos subvertem o regime paterno não apenas para conquistar sua liberdade, mas também para assegurar as mulheres para si próprios. Já que o contrato é feito entre homens, as mulheres são participam dele como indivíduos, pelo contrário, elas são o objeto do contrato.
Neste sentido, entendemos que os direitos civis acabaram funcionando como um instrumento de legitimação do Estado e dos homens sobre as mulheres, já que elas estavam sujeitas ao pátrio poder, ou seja, do pai quando não casadas ou do marido quando casadas. Permanecer solteira ou desquitar-se constituía “uma das formas para escapar das determinações do contrato de casamento, ao mesmo tempo, expor a condição de submissão das esposas” (MAIA, 2008, p. 292). Assim, para evitar a possibilidade de realização dessas alternativas para as mulheres, foram criadas várias formas de persuasão para contê-las dentro da ideia do casamento, seja ele civil ou religioso. Vejamos a charge da revista O Malho, de 31 de agosto de 1912:

Legenda: As ligas catholicas contra o divorcio: Pobre divórcio... Encontrou oposição das mulheres? Está mortinho da silva... Pois se “ce que femme veut, Dieu le veut”!...
Fonte: O Malho. Anno XI, n. 520, 31 de agosto de 1912.Na charge, vemos a representação de mulheres cristãs com objetos nas mãos em manifestação contra o divórcio, que seria o inimigo comum a elas. Segundo Darlene Oliveira, a atuação das mulheres das Ligas Católicas no combate ao divórcio foi uma das formas encontradas pela Igreja, para enfraquecer o movimento feminista e as ideias progressistas:
As Ligas Católicas do século XX, apesar de possuírem particularidades, ambas se aproximam quanto à participação leiga, com um caráter marcadamente religioso e devocional e com atividades de assistência social aos pobres. A mulher, neste momento, é mostrada, não estando servindo à Igreja somente nesse requisito de caridade, mas também era intenção, colocar a mulher em um patamar que lhe conferisse sentimentos de importância perante a sociedade para afrontar o feminismo e as práticas laicas de intervenção social (OLIVEIRA, 2010, p. 107).
Desta forma, a revista ao divulgar a charge, direciona seus leitores, e principalmente as leitoras, ao posicionamento de que mulheres cristãs deveriam ser contrárias ao divórcio. Isso porque, opor-se ao dogma cristão que afirmava a indissolubilidade do matrimônio, seria opor-se à vontade de Deus. Sendo assim, como romper um casamento sem ofender a vontade divina? A estratégia aqui utilizada para o convencimento das leitoras foi a de apresentar a oposição ao divórcio como sendo também uma vontade da mulher cristã. Ou seja, não só porque Deus quer, mas também, por ser um desejo feminino, como é destacado em francês femme veut, Dieu le veut.9Perrot (2015, p. 151) destaca que as associações femininas eram entendidas como um espaço mais conveniente para o protagonismo feminino, pois eram:
Associações piedosas, caridosas e filantrópicas. [...] em que se engolfam a energia das mulheres e sua vontade heroica. Pela ação social podiam ser úteis e mesmo construir um nome. A ação local, concreta e limitada, era mais conveniente para as mulheres. Era a preparação à ação municipal, primeiro degrau para uma intervenção mais política na sociedade civil.
Ou seja, as mulheres que participavam das Ligas Católicas, ou as que acreditavam ou defendiam seus posicionamentos, se sentiam reconhecidas não só no ambiente religioso, mas também sociopolítico do país. Acreditamos que a ambiguidade foi uma maneira encontrada pela Igreja e a imprensa para intervir e direcionar suas posições sobre o divórcio. Neste sentido, algumas ideias de liberdade foram utilizadas para manter medidas conservadoras. Portanto, entendemos que na charge a representação exposta traz uma ideia de que as mulheres das Ligas Católicas foram as que decidiram por aquela opinião, tentando amenizar o sentido de ordem ou obrigação imposta pela Igreja e enfatizar o protagonismo feminino, mantendo, assim, a tradição e os privilégios existentes sem grandes alterações nas relações de gênero.
As três revistas que analisamos (O Malho, Careta e Fon-Fon) assumiram uma posição contraditória, mas prevaleciam os discursos contra a lei do divórcio. O que vemos em sua grande maioria são charges e matérias tendenciosas, como as que vimos acima. A partir da década de 1930, os periódicos começaram a buscar culpados pelas ideias consideradas liberais demais e que estariam ganhando cada vez mais força entre os jovens. Um dos escolhidos como o grande influenciador da mudança do comportamento de homens, e principalmente de mulheres, foi o cinema norte-americano. Como podemos observar abaixo na revista Careta de 1 de agosto de 1931:
O divorcio, em Hollywood, entre os artistas do cinema americano, é um passa tempo divertidíssimo. É um sport inconsequente, mas interessante. As stars de Hollywood se divorciam todos os meses, para casar de novo. Paulina Frederick que é campeã internacional de divorcio, conta-se um episodio curioso: o encontro do sétimo com o primeiro marido dela: - O senhor é meu parente não é? – Francamente, não me lembro. – É isso mesmo: o senhor foi o primeiro marido dela, eu fui o sétimo... E foram tomar um drink, para comemorar a piada.10
A notícia utiliza a ironia e a misoginia para tratar dos divórcios que aconteciam com frequência entre os artistas de Hollywood. Como vimos, as revistas constantemente noticiavam algo sobre o tema do divórcio, relacionando-o com uma imagem feminina corruptora, imoral e indecente. Novamente é possível notar a culpabilização da mulher pelo fim da estrutura padronizada da família tradicional. Um ano antes, em 20 de novembro de 1930, no mesmo periódico foi publicada uma charge com este mesmo sentido direcionado às mulheres:

Legenda: A visão dos factos. É a sua oportunidade senhorita. Os jornaes noticiam que vão sêr instalados grandes studios cinematográficos aqui no Rio. – É inútil, seu Clarimundo. Emquanto não tivermos uma lei de divorcio como nos Estados Unidos nunca teremos estrelas de cinema.
Fonte: Careta. Anno XXIII, n. 1170, 22 de novembro de 1930.A partir do diálogo da charge acima, podemos notar duas críticas feitas pela Careta. A primeira está direcionada ao cinema norte-americano que estaria influenciando na campanha a favor da lei do divórcio, reduzindo, assim, sua real importância na luta pela ampliação dos direitos civis, sendo colocado apenas como uma moda ou algo passageiro. A outra crítica está relacionada às atrizes, que na charge eram apresentadas como promíscuas, por se divorciarem. Mas, nada foi dito a respeito dos atores na mesma situação. Ou seja, um homem divorciado não incomodava, a mulher sim. Desta forma, os periódicos colaboravam para o esvaziamento de assuntos importantes que precisavam ser debatidos, na tentativa de torná-los fúteis e desnecessários.
Acreditamos que a ideia passada por estas revistas, relacionando as mulheres divorciadas ou desquitadas à desonestidade e à indecência, possuía duas finalidades: a primeira era convencê-las a não requererem o desquite, permanecendo sob o controle de seus maridos, presas à família e ao casamento heterossexual. A segunda era que, caso a mulher se desquitasse, seria vinculada à imagem de adúltera ou com a reputação duvidosa, criando condições para a exclusão dos bens do casal e a negação do seu direito à pensão alimentícia e/ou à guarda dos filhos, pois, como afirma Maia (2008, p. 297):
Ao provar que ela é “culpada”, o marido ficava desobrigado do pagamento dos meios de subsistência para os filhos. A representação de mulheres desquitantes era como corruptoras da família. A subordinação das mulheres aos maridos estendia-se para além do desquite, uma vez que havia a possibilidade de ele condicionar a pensão alimentícia dos filhos ao celibato das ex-esposas.
Ou seja, mesmo fora do casamento muitos homens conseguiam manter o controle sobre os corpos femininos. Eram muitas as formas de controle e fugir desta condição exigia muita luta e estratégia das mulheres. E elas resistiram, pois mesmo com todo esforço e aparato da Igreja, do Estado, da medicina e da imprensa em manter o casamento como indissolúvel, os casos de desquites foram aumentando com o passar dos anos e eram elas que na maioria das vezes pediam a separação. Este fato foi comentado na Fon-Fon, no dia 30 de junho de 1951, por um Juiz da Primeira Vara de Família, Dr. José Murta Ribeiro, convidado a escrever sobre o assunto:
O número de desquites vem aumentando de ano para ano, como consta a estatística das Varas de Família desta Capital. Em 1940 eram apenas duas essas Varas, passando a quatro, em 1945, e a seis, em janeiro do corrente ano. [...] Surgiu modernamente o tipo de mulher que se convencionou chamar de emancipada. É a mulher que refoge à sua missão de mãe de família e, desvencilhando-se dos filhos em algum jardim de infância, somente cuidam de suas ambições mundanas, de seus caprichos de vaidade, nas sessões de cinema, desperdiçando tempo numa azafamada ociosidade. [...] A maior incidência de desquites é motivada, não resta dúvida pelo afrouxamento dos laços familiares, consequência do egoísmo e da ambição dos conjugues esquecidos da grandeza do sacramento do matrimônio bem sintetizadas na Epístola de São Paulo aos Efésios. [...] Talvez que meditando sobre as mesmas, a leitora possa remover os obstáculos que se apresentem à sua integral felicidade no lar e não peça o desquite11.
Esta ilustra o vínculo entre as ideias religiosas, as leis e a justiça no país, principalmente no direito de família. Ao citar uma passagem bíblica, o juiz não age de maneira imparcial e laica sobre os casos. Era a partir de ideias como as deste juiz que muitos pedidos de desquite eram analisados. Ao final, ele ainda tenta convencer os casais a não se separarem, alegando o sofrimento dos filhos: “Os filhos sofrendo, como sofrem com o desquite dos pais, estes devem ponderar muito antes de recorrer aos tribunais de justiça. [...]”. O discurso do sofrimento dos filhos como consequência do desquite era frequentemente utilizado nas revistas para gerar dúvidas sobre a separação, principalmente nas mulheres, percebidas como a protetora do lar e dos filhos.
Segundo Vaitsman (1994, p. 97), foi no período da década de 1950 que um grupo significativo de mulheres da classe média entrou no ensino superior e no mercado de trabalho, abrindo um campo de possibilidades para projetos pessoais que “seriam bem diferentes dos de suas mães, um mundo de possibilidades de autodesenvolvimento fora do casamento”. Surgiam, portanto, novas oportunidades e expectativas para as mulheres que, muitas vezes, recorriam à separação. Neste sentido, percebemos neste artigo que este período foi um momento de transição importante para modificações nas relações de gênero e, consequentemente, no casamento e na família. As mulheres foram as protagonistas deste processo reconstruindo os significados de feminino e masculino predominantes até então. Assim, a resistência conservadora a estas alterações foi aumentando e implementando estratégias diferentes, na tentativa de conter a maior quantidade de separações conjugais e as opiniões a favor da lei do divórcio.
redalyc-journal-id: 3373
https://periodicos.uff.br/revistapassagens/article/view/55959 (html)

Legenda: As ligas catholicas contra o divorcio: Pobre divórcio... Encontrou oposição das mulheres? Está mortinho da silva... Pois se “ce que femme veut, Dieu le veut”!...
Fonte: O Malho. Anno XI, n. 520, 31 de agosto de 1912.
Legenda: A visão dos factos. É a sua oportunidade senhorita. Os jornaes noticiam que vão sêr instalados grandes studios cinematográficos aqui no Rio. – É inútil, seu Clarimundo. Emquanto não tivermos uma lei de divorcio como nos Estados Unidos nunca teremos estrelas de cinema.
Fonte: Careta. Anno XXIII, n. 1170, 22 de novembro de 1930.