Dossiê
Recepção: 01 Agosto 2008
Aprovação: 01 Outubro 2008
Resumo: O trabalho tem como objeto de estudo as imagens urbanas no campo da arte pública. O estudo caracteriza como a escultura cívica de lógica monumental perdeu relevância diante das transformações sociais do Brasil contemporâneo. De modo geral, é possível dizer que a luta pelo direito à cidade redefiniu o papel das imagens urbanas. Nos dias atuais, a arte pública na cidade participa da afirmação de identidades urbanas, de poderes locais e de forças comunitárias. Nesse contexto arte e ‘favela’ se encontraram na cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Iimagens urbanas, Arte e escultura Pública, Cidade e comunidades urbanas.
Abstract: The issue of this paper are the urban images in the field of the public art. The study characterizes how public sculpture of monumental logic lost relevance with the social changes in contemporary Brazil. In general, we could say that the strugle for the right to the city redefined the role of the urban images. In our days, public art in the city participates in the affirmation of urban identities, local powers and communitarian forces. In this context art and ‘favela’ meet each other in the city of Rio de Janeiro.
Keywords: Urban images, Public art and sculpture, City and urban communities.
No Brasil, a mania de erguer estátuas se consolidou como uma tradição, desde que foi iniciada no contexto de construção do Estado nacional a partir da Independência. Sua base era o do culto à nação, sustentado no ideário do patriotismo e afirmado em torno de práticas cívicas. Assim, em 1825, no Senado da Câmara do Rio de Janeiro foi apresentada a proposta de construção do primeiro monumento cívico para celebrar o processo de Independência e de construção da Constituição nacional por meio de homenagem pública ao primeiro imperador. Em março de 1862, finalmente, foi inaugurada a estátua eqüestre de d. Pedro I, na praça da Constituição, atual praça Tiradentes, na área do Centro do Rio de Janeiro. O monumento com a figura do Imperador exibindo na mão o livro da constituição, traduzia simbolicamente na escultura a história da afirmação do Estado nacional no Brasil. [2] A escultura de lógica de monumental era organizada a partir de uma estrutura narrativa plasticamente elaborada e complementada por uma ritualização peculiar que promovia o culto laico à nação, no contexto brasileiro de construção da política liberal. [3] Desse modo, a arte pública por meio da escultura contribuiu para mobilizar uma base afetiva capaz de construir laços sociais que estruturavam a ordem do civismo, capaz de promover a instituição simbólica da sociedade e definir a nação como sujeito central da história. [4]
Ao longo da segunda metade do século XX, essa tradição da escultura cívica de lógica monumental, no Brasil, foi sendo esvaziada com a renovação da ordem política e afirmação da democracia e o reconhecimento da diversidade social. Novos atores sociais passaram a ganhar a cena da política. E no plano simbólico, a figura individual dos ‘heróis da pátria’ foi substituída pela ação dos sujeitos coletivos capazes de encarnar a autenticidade nacional. Inicialmente, na escultura pública, novos temas impuseram novas formas. O modernismo apareceu como projeto na arte pública da cidade. Pode-se dizer que o papel das imagens urbanas foi sendo redefinido, de modo que a arte pública passou a demarcar territórios da cidade e afirmar identidades, os poderes locais e a força comunitária. É nessa altura que arte pública pode ser identificada com a valorização da diversidade das experiências urbanas. É nesse contexto que arte e favela se encontraram na cidade do Rio de Janeiro.
Desafio da arte
Em 1950, a comemoração do dia do trabalhador, foi marcada pela inauguração de uma estátua: o Monumento ao Trabalhador Brasileiro.[5] Localizada em frente à sede do Ministério do Trabalho, na avenida Presidente Antonio Carlos, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, a escultura monumental afirmava simbolicamente a participação de um sujeito social coletivo fundamental na construção da sociedade nacional. Elaborava-se, então, o princípio de que a política e a sociedade não se construíam pela ação extraordinária de sujeitos individuais, mas por grupos sociais. A cultura política era assim renovada no novo tempo político no Brasil, especialmente a partir do processo de redemocratização que seguiu ao Estado Novo a partir de 1945. Os usos públicos da escultura traduziam essa mudança social.
No ato de inauguração do monumento cívico, as autoridades públicas instaladas no palanque oficial, ao lado do presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, assistiram o desfile dos operários que ritualizava a imagem e afirmava simbolicamente a importância da classe trabalhadora na ordem social. A certa altura do rito social, animado pela banda de música do corpo de fuzileiros navais, duas operárias da Fábrica Bangu, tradicional indústria de tecidos, retiraram o pano que cobria a estátua de granito. Segundo a imprensa de época, um “oh! incontido” marcou a reação de espanto coletivo no momento em que a escultura surgiu diante de todos. Ficou ainda o registro dos que estavam no palanque presidencial e escutaram o comentário do presidente Dutra, que exclamou: “Não gostei!”. [6]
A reação espontânea, no entanto, não impediu que o protocolo fosse cumprido tal como previsto, tratando a estátua como um monumento cívico tradicional. O presidente discursou para dizer que compartilhava a alegria dos trabalhadores no seu dia e demonstrou sua gratidão por inaugurar o monumento que homenageava os construtores da riqueza nacional. Acrescentou, ainda, que o bloco de granito afrontava o tempo como símbolo de união e paz que marcaria as jornadas do futuro. Pelas classes patronais discursou o deputado Euvaldo Lodi, presidente da Confederação Nacional da Indústria / CNI, desejando que o monumento marcasse a união dos brasileiros e a grandeza da pátria. Por sua vez, em nome dos trabalhadores discursou Deocleciano de Holanda Cavalcanti, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, que declarou que a estátua traduzia o compromisso formal do governo com a proteção dos direitos sociais. [7] Mesmo diante do espanto geral, portanto, a imagem em escultura serviu para atualizar a promoção do civismo e proclamar a unidade nacional, ainda que de modo protocolar.
Mas, no dia seguinte à inauguração da estátua, alguns jornais importantes da capital federal publicavam sua crítica à obra de autoria do escultor modernista, Celso Antonio. O Correio da Manhã chamou o monumento de “símbolo monstruoso”, em uma de suas manchetes [8]. Mas, sem dúvida, a reação mais contundente foi do jornal O Globo que em sua primeira página argumentava que os trabalhadores eram vítimas de muita coisa, mas a pior de todas seria o monumento: “É uma estátua irreconhecível, barrigudona e de roupão de granito, como se fora um símbolo do banhista ou do afogado desconhecido” – definia-se nas páginas do diário. [9]
Foi assim, que no Brasil de 1950, a escultura pública levou a interrogação sobre a imagem do trabalhador na sociedade. Acompanhando os jornais, parece que o assunto tomou conta das conversas na cidade. O diário O Jornal anotava que o artista Celso Antonio “imaginou o trabalhador brasileiro um homem atarracado, barrigudo e mal ajeitado e com o peito pouco varonil. Ainda por cima vestiu-o com uma tanga e cruzou-lhe os braços”. [10] A imagem pareceu incomodar, portanto, pelo fato de não representar o trabalhador no ato do trabalho. Segundo o jornal O Globo, “o povo condenou por entre risos e chacotas a infelicidade de uma concepção que apresenta o trabalhador brasileiro de mãos para trás”. [11] Enquanto isso, o Correio da Manhã dizia enfaticamente que o “trabalhador brasileiro de braços cruzados, de pés descalços (...) é uma afronta, em vez de uma homenagem”. [12] A certa altura, o escultor Celso Antonio procurou se defender ao dizer que o seu objetivo fora “fixar o tipo mais representativo do trabalhador brasileiro, isto é, o estivador. A tanga, que tanta grita provocou, é característica do estivador.” [13]
No seio da discussão, o ministro do Trabalho, Honório Monteiro, chamou para si toda a responsabilidade pela encomenda ao escultor e procurou explicar a escultura pública por seu valor artístico ao identificá-la com a arte moderna.[14] Sua defesa desencadeou um debate sobre a arte moderna e sua capacidade de traduzir o amor à pátria e servir à promoção do civismo.
Em 1950, o conceito de arte moderna ainda não era uma unanimidade no Brasil. Por isso o Jornal do Brasil, em editorial de primeira página, considerou que as explicações do ministro não eram convincentes e definia: “a arte moderna é o recurso de quem não possui uma original inspiração e a suficiente preparação técnica.” E comentou, ainda, que “antiga ou moderna, a arte deve ser sobretudo arte, e deve ser principalmente compreensível, isto é, de compreensão espontânea e não imposta por portaria ministerial [...].” [15] A reação do crítico de arte da Tribuna da Imprensa, João Etienne Filho, terminou por definir a estátua como “uma coisa detestável, repugnante e grosseira”. Seu comentário caracterizou o ambiente artístico do qual participava a escultura de Celso Antonio por meio da referência à opinião de um trabalhador diante da escultura: “Essa coisa aí é da mesma turma de Portinari e Oscar Niemeyer”. O argumento crítico sugeria, por fim, que a solução da estátua prejudicava um longo trabalho de infiltração no povo de uma arte que queria, justamente, falar mais diretamente ao povo, mas que por seus equívocos, dele acabava se afastando. [16] O quadro que foi se constituindo então, além de desprezar as inovações plásticas do movimento modernista nas artes, não admitia que a arte moderna fosse capaz de servir aos usos públicos da arte. Desse modo, o fracasso público da escultura de Celso Antonio, dedicada à promoção da imagem do trabalhador brasileiro, não foi explicado pela renovação da política, mas pela sua concepção artística colocando socialmente em cheque as formas do modernismo nas artes plásticas.
Arte da cidade
A conseqüência foi que a estátua do trabalhador foi retirada das ruas em menos de 48 horas depois de sua inauguração, com a promessa oficial de retornar modificada ao seu local de origem. O fato é que ficou abandonada e por mais de 20 anos foi sendo jogada de um lado para outro. Em 1974, finalmente, foi doada e instalada na cidade de Niterói - o município da região metropolitana do Rio de Janeiro, do outro lado da baía de Guanabara. Mesmo sem nenhuma cerimônia especial ou placa de identificação, a peça foi colocada em um pequeno pedestal de quatro degraus de cimento na praça Enéas de Castro, no bairro de tradição operária do Barreto, como uma das iniciativas de celebração do quarto centenário da cidade. Não passou despercebida e mais uma vez o valor artístico atribuído à imagem foi posto em questão. O principal jornal regional, O Fluminense, registrou o fato do seguinte modo: “Pode ser que seja uma obra de arte. Pode ter dado um trabalhão para ser esculpido. Mas uma coisa ninguém pode negar: é horrível. [...] Apareceu de repente... Foi colocado quase de surpresa, meio às escondidas. Dizem na periferia que os funcionários municipais o puseram e saíram correndo.” [17] Novamente o valor artístico da peça era avaliado e ironicamente colocava-se a pergunta: “ Quem é ele? O que significa? À primeira vista, um negro escravo saindo da sauna. Mas nem havia sauna no tempo da escravidão - muito menos para escravos [...] O vexame está na praça. Não é força de expressão. Está mesmo.” [18]
Contudo, de algum modo, a população local se apropriou da escultura da cidade. A imagem do trabalhador foi pintada com as cores verde, amarelo e preto, pintaram sutiãs e brincos, colocaram sapatos velhos nos seus pés descalços e houve várias tentativas de vesti-la com uma camisa do time de futebol do Flamengo. A estátua ganhou, segundo a imprensa, os apelidos de “pé de chumbo” e “nego feio”, e teve o seu sentido associado à figura de algum orixá e por diversas vezes, nas noites de sexta-feira, a seus pés foram colocados velas, charutos e cachaça. De acordo com O Fluminense, a imagem “virou o ponto mais freqüentado do jogo do palitinho, ao entardecer, quando chegam geralmente dez homens barrigudos de palitos na boca e começam a disputar alguns trocados”. [19] E, por fim, numa das fotos publicadas aparecia uma surpreendente inscrição no pedestal: “Trabalhar pra que?”. Assim, ao ser revivido, o monumento ao trabalhador parecia celebrar a sua antítese. Isto tudo em um bairro conhecido pela presença de moradores e sindicatos operários.
O fato é que em sua nova fase dos anos 70, a recepção à estátua dividiu opiniões e mais uma vez retornou o debate sobre a incompreensão da arte moderna. O prefeito, procurando proteger a estátua, mandou retirá-la e fazer um novo pedestal suficientemente alto a fim de protegê-la de supostos atos de vandalismo e que não homenageavam a figura do trabalhador. O Fluminense publicou, então, em manchete na sua primeira página dizendo: “A estátua maldita: trabalhador feio não ficou no Barreto”.[20] Mas contraditoriamente, no dia seguinte, uma enquête do jornal com moradores do bairro, revelou que ninguém parecia apoiar a retirada da estátua do trabalhador. O diário terminou estampando em uma de suas páginas internas: “Saudade: Agora todos sentem falta da estátua feia que estava no Barreto”. [21] Mesmo assim, durante mais sete anos a estátua ficou depositada no horto municipal, atualmente chamado parque Monteiro Lobato, até que os moradores do bairro lutaram para reerguer a estátua na praça do bairro por meio da promoção de um abaixo-assinado apresentado à prefeitura. Em 1982, o debate foi revigorado por nova matéria na imprensa sobre a estátua publicada. [22] Um vereador do município de Cantagalo buscou transferir a estátua para o seu município, o que impôs a necessidade do pronunciamento da prefeitura de Niterói por meio do secretário de educação, que prometeu recolocar em exposição a peça urbana. [23] Em 1983, com festa, a estátua foi recolocada em novo pedestal no parque urbano sem colocar a concepção artística em questão, mas evidenciando a força que o movimento de associativismo urbano assumia num novo contexto de redemocratização da história política do Brasil. [24] Afirmava-se o sentido comunitário da escultura, destituída de seu sentido cívico original. A estátua se definiu como emblema de um bairro popular.
A história do Monumento ao Trabalhador Brasileiro retrata, antes de mais nada, a dificuldade da escultura cívica de lógica monumental se adaptar aos tempos renovados da política no Brasil, que se sustenta na valorização de atores sociais populares e caracterizam o caráter democrático da sociedade nacional. Os novos tempos da cultura política também andavam junto com o desafio da renovação artística proposto pelo modernismo nas artes plásticas no Brasil. A dificuldade e o desafio postos, porém, não deixaram de provocar a capacidade da escultura pública de ser apropriada pela sociedade por outras vias. Importa sublinhar que a mobilização em torno da estátua do trabalhador demarcou a autonomia da sociedade urbana diante da ação estatal municipal. Ao inverter os elementos originais do civismo, o movimento de promoção da escultura afirmou a multiplicidade da experiência e dos poderes urbanos a partir do controle popular do território da cidade.
Uma outra história da escultura pública no Rio de Janeiro exemplifica esse mesmo movimento contraditório, que representa o esgotamento da tradição da escultura cívica e, ao mesmo tempo, a renovação dos sentidos das imagens urbanas promovido pelo fortalecimento da experiência da diversidade social na cidade, a partir do controle popular de territórios urbanos. Trata-se da Estátua da Liberdade da Vila Kennedy, instalada em 1964, num bairro popular da Zona Oeste da cidade construído pelo governo estadual, com apoio e financiamento estrangeiro dos Estados Unidos. A Vila Kennedy, é um bairro muito distante do Centro da cidade, projetado para abrigar moradores de favelas removidas de modo forçado pelo poder público. Na época de sua inauguração, decidiu-se homenagear com o nome do bairro o presidente dos EUA, John F. Kennedy, vítima de um assassinato ocorrido pouco tempo antes. Além disso, também os nomes das ruas do bairro faziam referência à colaboração com o governo norte-americano. E, por fim, no centro do bairro, na praça Miami, se instalou um ícone da história do liberalismo nos EUA: um modelo original da Estátua da Liberdade de Nova York. A escultura pública completava o novo conjunto urbano.
O bairro e sua estátua integravam um conjunto amplo de ações que se desenvolveram no início dos anos 60 nas Américas no âmbito do programa da Aliança para o Progresso. Lançado pelo próprio governo Kennedy, o programa era uma grande iniciativa patrocinada pelos EUA, que tinha como objetivo evitar a influência do comunismo na América latina ao promover a integração continental a partir do vínculo entre liberdade e desenvolvimento. Era a resposta dos EUA ao contexto da Guerra Fria para as Américas. A identificação do poder municipal com esse projeto político norte-americano explica a promoção de uma imagem da liberdade tão associada aos EUA naquele novo bairro, aproveitando uma escultura abandonada nos depósitos da cidade. Ao colocar num bairro popular o modelo original e assinado por Bartholdi, o mesmo artista que concebeu a famosa imagem de Nova York, a estátua foi valorizada menos por suas qualidades artísticas, mas certamente pelo seu sentido social naquele contexto urbano particular.
Ocorre que a estátua como ícone da política nunca teve uma vida fácil no bairro, pois recordava uma história violenta da década de 1960, a experiência da remoção forçada de população de trabalhadores, que viviam em favelas conhecidas na cidade do Rio de Janeiro. A memória do bairro associa os EUA com o autoritarismo do uso da força a que recorreu o poder local para deslocar um grande contingente de setores populares da cidade. A presença da estátua, assim, atualiza a memória do trauma social da remoção forçada. Por outro lado, a estátua é usada como emblema da escola de samba, do festival de música, do time de futebol do bairro e se afirma como símbolo da comunidade. Assim, a estátua no costume local acompanha em fotos as noivas em dia de casamento, as famílias em dias de batizado e primeira comunhão. Em outras ocasiões, ela é a plataforma da garotada para soltar pipas no ar. Nesse sentido, a imagem é ambígua, como indica Cecília Azevedo. [25] O ícone da história do liberalismo é rejeitado na luta política pela melhoria das condições de vida. Porém, entre a música, o esporte e a vida familiar, a estátua se instala no campo do lazer e da intimidade e ganha um sentido coloquial que cativa e reconfigura o significado da estátua da Liberdade. A marca novaiorkina é substituída para assumir a marca da Vila Kennedy. É desse modo que a estátua afirma a particularidade do bairro e a capacidade popular de sobrepor sentidos à escultura pública e se apropriar do território da cidade a partir de suas imagens urbanas.
A dinâmica da política e de mobilização social urbana, portanto, foram capazes de renovar as formas e os sentidos da escultura pública no Brasil da segunda metade do século XX.
Cidade múltipla
Por outros caminhos, a história da escultura pública se encontra com a história das favelas do Rio de Janeiro. É que no fim da década de 1970, na Zona Sul, se inaugura o parque da Catacumba como área destinada exclusivamente à escultura ao ar livre, acompanhando a encosta de um morro às margens da lagoa Rodrigo de Freitas.. Ocorre que o parque foi instalado num grande terreno esvaziado a partir da remoção da favela da Catacumba. Mas o parque reuniu obras de importantes escultores contemporâneos estrangeiros, como Alexander Calder, e brasileiros, como Sergio Camargo. [26] Desse modo, a escultura contemporânea se afirmou definitivamente na cidade.
Anos depois, em 1996, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro por meio de uma nova iniciativa tornou a promover a presença da escultura contemporânea no espaço urbano. Na área do Centro da cidade, onde se localiza grande parte do acervo de monumentos tradicionais, o poder municipal patrocinou um roteiro alternativo com imagens que chamam atenção pela sua diferença em relação às formas da escultura cívica. O contraste valoriza a novidade da forma escultórica e de sua relação com o espaço da cidade.
Da mesma época da promoção da escultura contemporânea na cidade são os grandes investimentos públicos que foram feitos a partir dos anos 80 na urbanização das favelas do Rio de Janeiro, e que se consolidaram a partir de 1994 em torno do programa Favela-Bairro. [27] Esse processo se constituiu como uma resposta histórica à política de erradicação de favelas baseada na remoção forçada. Trata-se de uma conquista dos movimentos sociais de moradores destes bairros populares tradicionais da cidade do Rio de Janeiro, que conseguiram influenciar a proposição de políticas públicas para a cidade. [28]
Interessa destacar que essa nova postura sobre o desenvolvimento urbano obrigou a rever certos parâmetros estabelecidos sobre a cidade. As inúmeras iniciativas de reinventar as favelas como bairros populares da cidade deram visibilidade à diversidade da vida urbana e legitimaram várias percepções do espaço da cidade. [29]Desse modo, a urbanização de favelas conduziu também a afirmar novas leituras da história da cidade e projetou outras memórias que valorizam a participação popular na construção urbana. Esse processo inspirou ações renovadoras no campo da promoção do patrimônio cultural e da arte pública. Desse modo, em 2005 a Prefeitura da Cidade inaugurou as obras de urbanização da favela do morro da Providência, antigo morro da Favela. Considerando que se trata do morro onde se produziu a primeira favela da cidade, o projeto foi desenvolvido no sentido de constituir o Museu ao Céu Aberto do Morro da Providência. Em maio de 2006, foi inaugurado o Museu da Maré, que apresenta a experiência histórica dos moradores de um grande conjunto de favelas numa mesma região conhecida do Rio de Janeiro. O museu consolida uma iniciativa comunitária conduzida localmente durante vários anos e que obteve o apoio do Ministério da Cultura. [30]
As duas experiências museológicas possuem diferenças que precisam ser ressaltadas. A primeira iniciativa do Morro da Providência é um projeto essencialmente do governo municipal, e, portanto, se caracteriza como iniciativa de Estado. A segunda iniciativa é essencialmente um projeto comunitário que foi ganhando força e legitimidade institucional, integrando assim o programa Pontos de Cultura do Ministério da Cultura. Nesse caso, o apoio de uma política pública dirigida permitiu a consolidação de uma iniciativa comunitária profissionalmente conduzida. Nos dois casos, as bases da relação Estado-Sociedade são bastante distintas. Percebe-se, no entanto, nos dois projetos como a iniciativa comunitária e do poder público se combinaram no mesmo contexto de época para multiplicar a memória urbana e demarcar as identidades territoriais da cidade na sua diversidade. [31]
O programa de urbanização de favelas do Rio de Janeiro coloca o desafio de procurar aproximar a gente da cidade e integrar o tecido urbano admitindo a diversidade como o pressuposto da socialização na cidade. Nesse sentido, se constituiu um largo campo experimental na cidade que permitiu a aproximação do urbanismo com a promoção da arte pública em novas bases. Nesse contexto, a Bauhaus Dessau – uma das maiores escolas de arquitetura e urbanismo do mundo com sede na Alemanha, junto com a prefeitura municipal, desenvolveu o programa Célula Urbana no âmbito do projeto de urbanização da favela do Jacarezinho, na Zona Norte. O programa, a partir da introdução de soluções urbanísticas e arquitetônicas inovadoras, tem como objetivo transformar um quarteirão da favela num pólo difusor de desenvolvimento local integrando o que está fora e dentro da favela. Além das qualidades intrínsecas ao programa, a participação da Bauhaus legitima as favelas como espaço de construção de conhecimento sobre a cidade, e promove o reconhecimento das áreas populares urbanas como lugar de construção da forma artística da cidade. [32]
Em 2001, no local de acesso ao morro do Vidigal, foi inaugurada uma bela praça com inúmeras inscrições em azulejos. Trata-se de um projeto de Françoise Schein, artista radicada em Paris, conhecida pelo seu trabalho com azulejos para estações de metrô na Europa – Paris, Bruxelas, Lisboa, Estocolmo, Haifa e Berlim. Seu trabalho tematiza um Caminho dos Direitos Humanos, como a artista denominou seu projeto.[33] A criação do Rio de Janeiro para demarcar a entrada da favela do Vidigal valorizou a praça como ponto de referência comunitária e também como palco de atividades do bairro. A solução aproveitou o desnível da rua que sobe o morro, para criar degraus que servem como arquibancada, ou como banco para as pessoas sentarem, e termina funcionando também como comunicação entre a parte de cima e de baixo da curva da rua, integrando os espaços. Usando o verde e o azul para colorir a praça, o projeto investe na construção de identidade local, inscrevendo o mapa do bairro, um poema de Vinícius de Moraes tratando das características do habitante do Rio de Janeiro, o carioca. Ao lado disso, a inscrição de frases de pensadores clássicos, como Aristóteles, e dos artigos da Declaração dos Direitos Humanos procuram dar sentido geral ao trabalho que relaciona o local e o universal.
A experiência do projeto no Rio de Janeiro inspirou uma ação desenvolvida pelas ong’s Inscrire e Enda Brasil, sob a coordenação da arquiteta Laura Taves, para a levar a outras comunidades a idéia de que pintando em azulejos se pode trabalhar a mobilização comunitária e a reflexão sobre a história da sociedade urbana. Foi assim que em outras seis comunidades urbanas foram produzidos painéis públicos de azulejos com mapa do bairro, poemas e desenhos escolhidos na mobilização comunitária: Vila Parque da Cidade, Vila Benjamim Constant, na Zona Sul; Vila Moretti, Vila São Bento e União da Paz, na área de Bangu, Zona Oeste; e no morro da Providência, no Centro. O trabalho se completou ainda com a inauguração de um grande painel de azulejos na praça da estação de metrô Siqueira Campos, em Copacabana. O processo da mobilização comunitária permitiu descobrir talentos do desenho e da pintura, o que levou a constituição de uma cooperativa de produção de azulejos pintados à mão, abrindo uma frente de geração de renda e trabalho, em torno da tematização da cidade.[34]
O projeto de Françoise Schein permite interrogar o sentido da arte pública nas favelas do Rio de Janeiro. O Caminho dos Direitos Humanos surgiu da criação da artista que imaginou povoar de azulejos o cotidiano da vida urbana. Terminou por constituir uma rede de cidades. Na Europa começou a inscrever as estações de metrô - artérias intensas da circulação moderna, onde o tempo de espera na plataforma, e que permite acompanhar as inscrições nos azulejos, contrapõe-se à velocidade do trem. No Brasil, a intenção ganhou novo sentido ao se inserir na favela. Ao invés dos espaços de circulação, espaços de concentração - construindo praças e pontos de encontro. Ao invés do tempo de espera, o tempo de agir na cidade, sob a inspiração da história da sociedade, seus ícones consagrados na pintura e nas letras. Ao invés de interagir com as paredes, descobrir o outro da mesma cidade representado pelas comunidades das favelas. É por isso que o trabalho de criação se consumou como ação comunitária, escapou da artista e valorizou atores sociais locais da cidade que se tornaram co-autores da criação que é ao mesmo tempo urbanística e artística. A arte saiu de um ateliê de pintura em cerâmica e se instalou na rua, onde a cidade não se envaidece. A criação artística se tornou pretexto para a organização social.
Um outro projeto de artistas estrangeiros se desenvolveu a partir do ano de 2006 na favela Vila Cruzeiro, localizada na área conhecida como Complexo do Alemão. Favela Painting é um projeto desenvolvido por Dre Urhahn e Jeroen Koolhaas, dois jovens holandeses, profissionais da comunicação e do design, que conheceram a comunidade a partir da produção de um vídeo sobre a juventude e a música nas favelas das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.[35] No ano seguinte retornaram ao Rio de Janeiro com a idéia de desenvolver um projeto de pintura mural em larga escala, envolvendo a comunidade no processo de produção e em associação com a promoção de outras linguagens como a fotografia e o vídeo. Reuniram-se à Ong Ibiss e junto com os moradores, em 2007, foi produzida a criação da figura de um menino soltando pipa na fachada de três casas e a imagem de um rio cheio de peixes e cores na escadaria de Santa Helena. Essa segunda obra, segundo notícia de jornal, cobriria 2 mil metros quadrados de área, tendo consumido mais de 1.800 litros de tinta e verniz, dando uma idéia da dimensão da intervenção urbana. [36]
O que se observa, é que essa associação entre a favela e a arte no Rio de Janeiro afirma a criação como movimento social na cidade. As intervenções artísticas relacionam ação internacional e local, trabalhando de modo original a imagem da favela e sua representação. A imaginação termina sendo convocada para operar o reencantamento do mundo, projetando, no futuro da cidade, o horizonte de uma sociedade mais justa para todos os homens e mulheres, crianças, jovens e adultos de todas as origens e costumes. São muitos os projetos sociais que se desenvolvem na cidade e que procuram fazer da cultura, da arte e da música o campo de expressão das contradições urbanas e da diversidade social na cidade. Observa-se uma vontade de afirmar a cultura como processo de transformação social por meio da capacidade de imaginar e criar arte para defender o direito à cidade. [37]
Assim, ao longo da história do Rio de Janeiro da segunda metade do século XX, evidencia-se a capacidade da arte pública se renovar para traduzir as identidades da cidade. Desse modo, assumiu o desafio de representar a diversidade social da cidade e tornar visíveis grupos sociais urbanos. A arte pública passou a valorizar a multiplicidade das formas de percepção do espaço e de interpretação da experiência urbana. O seu desafio contemporâneo tem sido tentar fazer do território urbano um espaço compartilhado que ultrapassa as barreiras eventuais da ordem social e afirma a cidade como de todos os seus cidadãos.
Notas