Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
África/Brasil: Corpos, tempos e histórias silenciadas
Maria Antonieta Antonacci
Maria Antonieta Antonacci
África/Brasil: Corpos, tempos e histórias silenciadas
Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 1, pp. 46-67, 2009
Universidade do Estado de Santa Catarina
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Na perspectiva que história é cultura, questões abordadas neste ensaio articulam-se à reivindicação fundamental de incorporações de saberes e poderes de tradições orais de culturas africanas e afro-brasileiras em nossos debates e possíveis construções de argumentações históricas relacionadas à História da África, e a culturas africanas e afro-brasileiras entre nós. Tentando acompanhar movimentos históricos de confrontações, negociações e injunções entre saberes locais e projetos globais, procuramos enfrentar armadilhas da construção e projeção de dominâncias eurocêntricas.

Palavras-chave:Embates culturaisEmbates culturais, Tradições orais Tradições orais, Performances corporais Performances corporais, Ritmos Ritmos, Crenças Crenças, Diáspora Diáspora.

Abstract: Considering that history is culture, the topics approached in this essay are connected to a fundamental claim for the incorporation of knowledges and powers from African and Afro-Brazilian oral traditions to our debates and historical constructions related to History of Africa and African and Afro- Brazilian cultures. Attempting to follow historical movements of confrontation, negotiation and pressures between local knowledges and global projects, we try to face the traps presented by the construction and projection of eurocentric dominances.

Keywords: Cultural disputes, Oral traditions, Body performances, Rhythms, Beliefs, Diaspora.

Carátula del artículo

Dossiê

África/Brasil: Corpos, tempos e histórias silenciadas

Maria Antonieta Antonacci
Pontifícia Universidade Católica/São Paulo, Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 1, pp. 46-67, 2009
Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepção: 01 Agosto 2008

Aprovação: 01 Outubro 2008

A expansão da modernidade iluminista, com a razão científica e o conhecimento letrado sob a égide da formação do Estado Nação na Europa, marcou profundamente o Ocidente e suas formas de olhar outros tempos, espaços, povos, racionalidades, culturas. As lentes de seus filtros técnico- culturais condicionaram leituras e literaturas, crenças e corpos a suas concepções de movimento, progresso, civilização, história.

Expressando este domínio nos modos de pensar e interagir, Hegel, em 1830, na publicação de sua Filosofia da História, considerou que a “África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos, progressos a mostrar (...) nós os vemos hoje em dia como sempre foram.”[2] Às Áfricas ao sul do Sahara foram atribuídos caracteres a-históricos, sendo apresentadas – suas regiões, culturas e povos – pela ausência frente paradigmas eurocêntricos: sem códigos de escrita, sem arte, sem cultura, sem história e pelo “não ser do escravo”.

Merece atenção, em documento produzido em 1823 por Thomas Clarkson, para denunciar à Câmara dos Comuns efeitos do “tráfico homicida”, o repúdio a notícias e representações semelhantes. Pesquisando em relatos de viagem de Mungo Park – médico escocês enviado pela Sociedade Africana de Londres, em fins do XVIII, para estudar o rio Níger[3] – e em Livro de Evidências, publicado pelo Parlamento Inglês com depoimentos dos que percorreram Áfricas, Clarkson investiu contra idéias que “continuam sendo espalhadas em público no sentido de serem os africanos criaturas d´outra espécie e que tendo a África sido descoberta há uns poucos de centos anos, os seus habitantes não tem feito, como outros povos, progressos nenhuns em civilização”[4].

Desumanizar povos africanos, como desmoralizar suas autoridades e formas de poder, costumes e tradições foram procedimentos recorrentes na Europa, sendo construídas imagens em torno do primitivismo e isolamento de seus grupos culturais. A África “continuava a ser o continente ‘negro’”, enquanto “o mapa do seu interior é uma ampla mancha branca sobre a qual o geógrafo, apoiado à autoridade de Leo Africanus e Idrisi, escreve com mão trêmula nomes de rios inexplorados e povos indeterminados...”, conforme primeira ata desta Sociedade Africana.[5]

No limiar da independência de países africanos, em 1963, Trevor-Hoper retomou, em Londres, arbitrariedades em relação à África. Denegou o direito à história e ao passado para os africanos, reafirmando “não haver uma história da África sub-saariana, mas tão-somente a história dos europeus no continente, porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria da história.”[6]

Todavia, práticas administrativas de metrópoles européias, ainda que tardias, como de Portugal em relação a suas colônias, ao realizarem inquéritos sobre povos e costumes de suas posses africanas, mapeando potenciais econômicos recolheram narrativas de suas culturas, formas de comunicação e celebrações. Em relação à Luanda, Questionário acerca de usos e costumes gentílicos da província de Angola, de 1906, traz inventários sobre comércio, cerimônias, crenças, vestuário, habitações, línguas, instrumentos musicais e “tradições orais em relação a sua história”.[7]

Na região da Guiné, em sucessivos registros de 1927, 1934 e 1946, militares chegaram a produzir Boletins Culturais da Guiné Portuguesa, com estudos etnográficos e lingüísticos – destacando linguagem escrita em árabe e mandinga entre os biafadas –, ainda incluindo “linguagem por sinais, mímica, tamborilamento, sopro e linguagem falada”.[8] Considerando “sinais diversos, além da palavra, com que o homem se serve para exprimir seus pensamentos”, Gomes Barbosa anotou complexa engenharia de comunicação percussiva via linguagem tamborilada entre os balantas, “que tudo podem transmitir, mesmo nomes de pessoas, tão perfeita é ela. Não são sinais convencionais que usam: dos troncos de árvores, interiormente cavados, tiram sons quase iguais aos que produzem quando pronunciam as palavras que querem transmitir”. Além do “tambor que fala”, registrou o tabelê – “tronco grosso, cavado e forrado com pele de vaca que produz som forte e susceptível de se ouvir a grande distância”[9], em evidência de cosmologia em interações humanas com reinos animal, vegetal, mineral entre povos e culturas africanas.

Por registros escritos, iconográficos ou sonoros – como relatos de viajantes, missionários e literaturas coloniais; gravuras, fotografias, filmes ou gravações rítmicas; expressões artísticas e religiosas; provérbios, contos e mitos; rituais, danças e festas –, podemos contestar discursos e imaginários de tempos modernos que negaram historicidade às Áfricas e suas culturas, como a reinvenções de africanismos na diáspora Atlântica.

Inúmeros e impensáveis documentos, a espera de estudiosos comprometidos com métodos de descolonização de saberes,[10] permitem acompanhar africanos e povos negros da diáspora para além de primitivismos, subalternidades e alienação de mercadorias traficadas. Em relação ao continente africano, estudos locais têm permitido, tanto rever o aparente imobilismo histórico a que foram destinados, quanto ultrapassar imperativos no sentido de que “A África seria um continente sem História”[11].

Em recente publicação de PHARE, revista do Departamento de História da Universidade Cheikh Anta Diop (Dakar), recorte de entrevista com o arqueólogo Augustin Holl (Universidade de Michigan), ganhou destaque editorial: “Seria presunçoso pretender que se conhece 2% do passado da África. Não se sabe nada, mas verdadeiramente nada”. [12] Indagado sobre estudos da diáspora, Holl articulou história da África à da diáspora, comentando: “Na Jamaica há uma série de pesquisas nos sítios da diáspora que mostram competências de ferreiros, de produtores de ferro da África, que são lá reencontradas...”. Perspectivas no sentido que pesquisas da diáspora contribuem para estudos históricos sobre o continente africano, também foram levantadas pelo historiador Boubacar Barry (Universidade Cheikh Anta Diop), em Colóquio Internacional na UFAC, ao manifestar-se convencido que formas e expressões relacionadas à reinvenção das Áfricas na diáspora ampliam reflexões sobre História da África. [13]

Caminhos e desafios que a Lei 10.639 trouxe para nossos horizontes, no limiar do século XXI, focando, sob outros ângulos, a premência de estudos que enfrentem a colonialidade de saberes, derrubando muros que compartimentam nossos campos de conhecimento. Estudos africanos rompem recortes geográficos, lingüísticos, culturais do continente africano, reforçando processos ensino/pesquisa assumidos em diálogos entre profissionais de história, antropologia, sociologia, arqueologia, religião, educação, línguas e literaturas, arte, teatro, cinema e outros estudiosos comprometidos com saberes e viveres locais enquanto instâncias de resistência a projetos globais.

E formas de ser, resistir e sobreviver de africanos escravizados nas Áfricas, Américas e no Brasil, preservando relações, tempos e espaços de diferença colonial, relampejam se concentrarmos atenções no que ficou isolado e silenciado. Ouvindo e sentindo latências que ficaram nas dobras da expansão européia, esquecidas ou consideradas perdidas por não apresentarem seqüências documentais ou continuidades históricas, nós podemos produzir leituras na contra mão de pressupostos colonizadores.

Reflexões de Benjamin, no sentido de constituirmos constelações com fragmentos culturais dispersos[14]; ou de Glissant, atento à diversidade desde entrelaçamentos de rastros que irrompem da presença africana nas Américas, permitem perceber “com um só impulso a platitude vertical e o acúmulo rugoso do real”. Ancorados em pensares críticos a sistemas fechados e imperiais, podemos vislumbrar “o que é preciso deixar atrás de si e o que é preciso dispor-se a conhecer.” [15]

No Brasil, resistências à diáspora e dimensões da conflituosa escravização de africanos vêm evidenciando longas e minuciosas transgressões. No universo da literatura oral produzida no Nordeste brasileiro, além de epopéias de fugas e lutas[16], xilogravuras narram rebeldias à condição escrava, como a gravada por Lênio Braga, em mural da Estação Rodoviária de Feira de Santana, na boca dos sertões da Bahia.

Ao montar, em 1967, painel sob o corpo-a-corpo letra, voz, imagem constituinte de literaturas e culturas populares nordestinas[17], Lênio Braga evocou Lucas Evangelista, africano fugido da Fazenda Saco de Limão, em Feira de Santana, em 1824. Enquanto “figura controversa” – cangaceiro salteador ou “um negro que se recusava a viver como escravo” –, juntou-se a grupos fugitivos para roubar e distribuir “cabras, cabritos, galinhas”.[18] Preso e enforcado em 1849, após delação de outro africano foragido, que assim obteve perdão de seus “crimes”, memórias de Lucas foram narradas no ABC de Lucas de Feira. A imagética de seu corpo sensibiliza pelo que abre ao nosso olhar, conforme figuração deste “Dragão da Maldade”.


1
Dragão da Maldade
ABC de Lucas de Feira

Em posição humana, com instrumentos de seu ofício de ferreiro nas mãos, em jogo revela/esconde de imagens, Lucas de Feira foi representado em corpo híbrido: rabo de escorpião, animal da terra que espreita e ataca de tocaia; corpo de serpente, animal que interliga terra e água; cabeça, provavelmente de “papagaio falador”, ave cinzenta dos ares de Angola, Guiné, Cabo Verde, onde “fora mercadoria comum no tráfico d`África ocidental para o nordeste do Brasil”[19].

Além de seu porte físico, é possível reter simbologias transmitidas por esta representação de corpo negro rebelado. Acompanhando zonas claras e escuras de sua performance corporal, na contraposição do corpo híbrido ganham destaque sombreados esfumaçados de quem, tomando a palavra, forjou o fogo da inconformidade lutando pela manutenção de transparentes asas de liberdade. Articulando os elementos-mãe terra, água, ar e fogo, o corpo de Lucas transfigurou-se em dragão – “Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” –, conforme alegorias do épico de Glauber Rocha (1969), que retomou lutas e cantorias em sertões baianos nos anos de chumbo do regime militar.

O emblemático corpo de Lucas de Feira encarna embates em desiguais e criminalizados conflitos. Lembra insurgências a relações escravistas e reitera lutas por cidadania, retomadas por trabalhadores de todos os credos e cores, desde meados do século XX, contra prepotências de poderes colonizadores do passado e do presente então vivido nas Américas e Áfricas[20].

Importa reter, a partir do corpo de Lucas, cosmologia de culturas africanas que, em concepção de unidade cósmica, não “fatiaram o mundo em reino humano, animal, vegetal e mineral”, conforme reflexões de Hampâté Bâ[21]. Na assumida representação de dragão, entre terra, água, ar e fogo, a fumaça enuncia o ancestral empoderamento da palavra entre povos e culturas que constituíram sua humanidade e suas memórias enraizados em tradições orais.[22] No exercício da palavra cantada e ritmada por seus corpos e instrumentos musicais, africanos em diáspora no Brasil produziram o tom de suas revoltas, espalhando rastros de liberdade.

Expressivas possibilidades de apreensão de corpos negros e tradições orais africanas, em circuitos África/Brasil/África, permeiam textos de Câmara Cascudo. Por suas pesquisas, comentários e considerações relacionadas à presença africana na vida e no patrimônio histórico-cultural brasileiro, sua erudita obra contém importantes referências para aproximações a tempos, gestos, danças, narrativas e performances desprezadas pela avalanche da civilização euroocidental.

Seu livro Made in África, resultado de viagem à África em 1963, para estudar hábitos alimentares de povos bantu, contem argumentos que refutam postulados de Hegel e demais construções ideológicas da modernidade colonial. Na contra mão de tempos marcados pela mecânica do progresso e vazios de experiências históricas, Cascudo perseguiu seculares rotas comerciais e culturais que das Índias atravessaram as Áfricas e estabeleceram conexões com os Brasis, “demonstrando influências recíprocas, prolongamentos, interdependências, contemporaneidade motivadora nos dois lados do Atlântico e do Índico.”[23]

Em forma peculiar de cronista, que anota sem desprezar coisas miúdas e aparentemente irrelevantes, textos de Cascudo guardam potencial para descobertas de Áfricas em Brasis impregnado por patrimônios orais africanos. Escrito para evidenciar a unidade “Brasil n´África e África no Brasil”, este livro contém abordagens e observações de grande atualidade, adensando e diversificando enfoques sobre “rotas e raízes”[24] de culturas negras no Atlântico sul. Nas pegadas de alimentos de povos bantu nas Áfricas, Cascudo mapeou trilhas, danças e corpos que cruzaram as Áfricas e fizeram parte da diáspora de povos negros no Brasil.

Centrado na banana, “o mais popular dos vocábulos africanos no Brasil”, acompanhou seu itinerário como expedicionário em missão de descoberta de continentes velados. E, a contrapelo de isolamentos e imobilismos hegelianos em relação a povos e culturas africanas, revelou: “A banana não é nativa do continente africano sendo recebida da Índia através da África Oriental ou pelo Sudão, descida do Egito e vinda pelos caminhos do Níger e do Zaire para as demais regiões do poente, do Camerum à União Africana. E passando da Contra-Costa do Atlântico, pelas Rodésias para Angola, quando a Guiné a teria pelas vias das populações ao longo dos grandes rios do oeste negro.”

No rumo da banana ao Brasil, acrescentou que o “grande entreposto entre Congo e Portugal era a ilha de São Tomé”, de onde este alimento, aclimatado, chegou ao Brasil, tendo localizado registro de 1569 sobre bananeiras de São Tomé na Bahia, “competindo com as pacovas nativas.” Enquanto base alimentar de africanos no Brasil, que preferiam as bananas de sua terra, estas receberam tal denominação a partir da Guiné, já que eram conhecidas por nomes locais em outras regiões africanas. Da Guiné, de onde chegaram as primeiras ondas de africanos escravizados ao Brasil, Cascudo concluiu que veio a denominação desta fruta, que “ficou sendo banana, essencialmente no Brasil. Daqui é que o nome se espalhou e não da África do século XVI.” Perseguindo cultivos da banana entre Índia, África, Brasil, ultrapassou formulações a-históricas sobre o continente africano, articulando tempos de caravanas traçados ao compasso de interações comerciais e culturais de muitas épocas e espaços, sem comprometer singularidades de povos e culturas das Áfricas.

Em termos de heranças da África Centro Ocidental no Brasil, Cascudo concentrou atenções em “vozes infalíveis” pelo norte, centro e sul, captando hábitos de dança em folguedos, desafios em versejadas pelejas orais e em performances corporais. Ingredientes para alimentar – com crenças e costumes – corpos negros que reinventaram práticas culturais e memórias corporais em todo Brasil, representando dramas da diáspora, em diferentes ritos e a vozes variadas, sob cadência de artefatos sonoros. Mas silenciou sobre danças e corpos em transe entre mundo visível e invisível em cosmologia bantu.

Rastreando formas de migração e tradução de culturas africanas em diáspora, chegou a mencionar autorização de administradores da metrópole e da colônia para o exercício de danças africanas proibidas em Portugal e em suas colônias africanas. Registrou, assim, o translado e a chegada de tradições orais ao Brasil, trazendo indícios de mediações entre portugueses e africanos, no Atlântico sul. Provavelmente porque, em paisagem brasileira, onde as tensões agravaram-se pelo tráfico em massa, à longa distância, e posterior regime de plantation, o poder português ficou na contingência de, inicialmente, ser “tolerante para os escravos consentindo-lhes as trovejantes noites de batuque, os bailos, formalmente proibidos pelas Ordenações do Reino.”

Ao inventariar matrizes de tradições orais africanas em nosso patrimônio cultural, Cascudo focou atenções “nas danças ginásticas do bambelô, coco-de-roda, zambê, no jogo de capoeira vinda de Angola e ampliada no Brasil, nos cantos e, para o sertão, no ‘desafio’ que se nacionalizou, profunda e medularmente”, sem nenhuma referência a rituais e “danças iniciáticas”, “dança de mortos” e “danças de cura” entre povos do Congo e Angola.

Em seu elenco de gêneros de linguagens orais, ampliou percepções de práticas culturais de comunicação inerentes a corpos e memórias de africanos, que transportaram suas heranças para o Brasil. E, ainda tornou possível, antever significados políticos e estéticos de festas, danças, ritmos que, ética e liminarmente, vêm configurando corpos e ritos africanos como comunitários monumentos históricos[25] na guarda e transmissão de culturas sob regime de oralidade.

Suas narrativas gestuais e rítmicas de corpos negros constituem bases para pensar acervos de cultura material africana no Brasil, evidenciando que corpo, música e memória articulam-se, indissociavelmente, entre povos africanos organizados em vivências de unidade cósmica. Sua escrita sugere que – memorizadas e repassadas, de geração a geração, em presença de corpos ritmados em danças de roda, com volume e densidade –, tradições orais em diáspora materializaram-se em diferentes gêneros não-verbais de comunicação e expressão no Brasil. Perenizadas em corpos cultivados como “arquivos vivos”, emitindo “vozes do corpo”[26] prolongadas em artefatos sonoros engendrados com timbres lingüísticos de suas culturas, corpo, ritmo e instrumentos musicais constituem chaves mestras para sentir e tatear culturas africanas em diáspora.

Questões que fazem lembrar De Certeau, ao abordar histórias de corpos considerando o “Trabalho alquímico da história: ela transforma o físico em social; (...) ela produz imagens de sociedade com pedaços de corpos”. [27] No jogo revela/esconde de documentos históricos, as crônicas de Cascudo não fogem a regra. Iluminando rotas alimentares e pedaços de corpos negros, projetou sombras sobre sentidos e significados destes e de outros corpos e danças, como tentamos acompanhar, articulando música, danças e corpos em cosmologia de povos africanos.

A música, entre culturas africanas, também está “integralmente relacionada com a visão de mundo de sociedades africanas”, constituindo-se como “um símbolo de sobrevivência, permeando todos os aspectos da vida.” Sondando a existência dos éwé, de Gana, Amoaku sustenta “que o mundo invisível do espírito, o mundo do homem, e o mundo visível, o mundo da natureza, formam uma unidade”, audível pela música tradicional em seus traços psicológicos e simbólicos. “Simbólica por ser potente fonte vital do mundo natural e psicológica, por estar intrinsecamente ligada à psique, com padrões relacionados, no mais íntimo, com uma forma de ver o mundo e as experiências de vida que a sociedade considera como um todo homogêneo.”[28]

Enraizadas em confluências palavra/som/ritmo, culturas de tradições orais africanas acumulam memórias em timbres da voz[29], deixando ecos em sons e rastros em caracteres rítmicos e artefatos musicais produzidos com técnicas e formas de emissão sonoras apropriados a rituais e outros meios de transmissão e comunicação. Pesquisas de Wa Mukuna, marcando a presença de culturas tradicionais bantu na música popular no Brasil[30], evidenciam nesta direção, apontando para confluências entre tons lingüísticos, sons e instrumentos musicais entre povos africanos. Enfatiza que esta influência lingüística - o acento tonal e a força do timbre vocal - subjazem a todos os grupos culturais e lingüísticos africanos, constituindo ponto de referência para tonalidade de seus instrumentos musicais.

Este etnomusicólogo congolês ainda argumenta: “Os tons lingüísticos são considerados pelo grupo étnico no processo de seleção dos instrumentos musicais com que o grupo vai ser associado. Tal determinação está baseada sobre a capacidade do instrumento reproduzir os tons da língua (Bantu ou Sudanesa)”. Daí concluir que “os aspectos sintáticos da linguagem, afeitos à organização rítmica da música, enquanto semânticas da linguagem influenciam o nível sônico da música”. [31]

Perspectiva retomada pelo pesquisador de semiótica Mbarga, ao estudar o Nkúl – “tambor de chamada” –, entre os Beti, grupo lingüístico dos Camarões, que o utilizam como “ferramenta de comunicação e sinal de teatralização na vida”, pois “seus diversos tons constituem frases musicais que correspondem a frases da língua.” Seu “código parece traduzir o idioma em forma de linguagem tamborilada (...) reproduzindo a frase melódica falada no Nkúl por alternância dos tons”. Esta predominância dos instrumentos musicais, “verdadeiros objetos de culto”, conforme Hampâté Bâ, não perde de vista performances e interferências de seus instrumentistas, narradores ou dançarinos, pois “a estruturação do texto do Nkúl é semelhante à arte oratória dos Beti.”[32]

A equivalência entre variações tonais de línguas africanas e a tonalidade rítmica de seus instrumentos musicais, permite entender surpresas de colonizadores com a capacidade de comunicação de povos da Guiné. Mas, se tivermos presente que a síncopa de ritmos africanos traz à cena gestos e “vozes do corpo”, em intensas reverberações, tornam-se perceptíveis complexas imbricações entre cultural material e sensível em processos de transmissão e renovação de crenças e mensagens entre povos e culturas de matrizes orais, em Áfricas de ontem e de hoje. Jogando com corpos e seus prolongamentos, em termos de habilidades vocais, rítmicas e instrumentais, conjugações de dança, canto, música – carregadas de subjetividades, pois susceptíveis a ânimos, oratória e sensibilidades[33] -, emergem na centralidade de cosmogonias africanas, sustentando encontros de mundos visível e invisível de ancestrais e energias cósmicas, sob a mediação de seus mortos. Danças, expressões rítmicas e artísticas enquanto meios de comunicação assumiram relevância nas formas de compreensão e manifestação de como foram vividos tempos da diáspora e cotidianos de escravidão e de colonialismo.

Já na travessia atlântica, trazidos ao convés de tumbeiros para, na ótica de marinheiros e traficantes, respirarem, exercitarem músculos e diminuírem índices de mortalidade nas sofridas condições das viagens, africanos escravizados dançaram[34]. Intercambiaram práticas culturais, reconhecimentos mútuos, urdindo formas próprias de compreensão da captura, das guerras e trocas, dispersões e daquelas temidas viagens. Em regime de oralidade, “mundividências africanas [foram transportadas] até aos vários destinos do mundo colonial”, conforme considerações de Sweet,[35] valendo acrescentar que danças, ritmos, corpos e vozes africanas, refeitas nas Américas, trouxeram sensibilidades e sociabilidades em irreconciliáveis descompassos em relação a princípios, normas e valores da civilização ocidental cristã.[36]

Em relação a memórias corporais e seu potencial em articular crenças, interações e solidariedades frente infortúnios das viagens e desventuras do sistema escravista, relatos de danças que marcaram circuitos África/Brasil, às vezes passando por Portugal, foram anotados nas crônicas de Câmara Cascudo. Ressalvando seus silêncios e reticências, interessa acompanhar a trajetória do lundu e a proibição de seu dançar na Corte da Metrópole: “tão insistentemente bailado, que o rei D. Manoel o proibiu, ao lado do Batuque da Charanga.” Lamentando não ser “possível apurar quando esta dádiva coreográfica e melódica de Angola” apareceu no Brasil, Cascudo registra aspectos inerentes a esta onda de africanos da África Centro-Ocidental ao Brasil, sinalizando acomodações de gestos e movimentos que o lundu sofreu em sua travessia pelo Atlântico.

Derramou-se o Lundu pelo Brasil e a memória bailarina nacionalizara-o sem recordar os bamboleios iniciais em Luanda e, com variantes e acréscimos no dinamismo das ancas, do Zaire ao Cunene, não exilando Cabinda na prática do saracoteio.[37]

Esta etnografia de corpos e rumores na viagem do lundu por circuitos das Áfricas ao Brasil, acompanhando o tráfico interno e a diáspora, esbarra nos silêncios e na rigidez da modernidade européia em relação ao continente negro e às vibrações de seus incompreensíveis habitantes. Descrevendo o que fora o ritmo lundu, a escrita de Cascudo ainda permite sentir sua ironia e avaliar policiamentos frente costumes africanos e vozes de corpos negros no moderno mundo do trabalho escravo. Restrições e mesmo a proibição de danças, como a queima, em praça pública, de instrumentos musicais e de som de africanos, que ocorreu de norte a sul no Brasil[38], sem ser um pormenor no sentido de “bons costumes”, não estaria trazendo a tona o medo de perda de controle diante da ocorrência de prováveis incorporações de espíritos de antepassados, em corpos de africanos escravizados, em espaços públicos?

Enquanto no Brasil, até inícios do XIX, revelando o potencial de reinvenção de culturas orais em diáspora, o lundu era dançado até em festas de “bodas e batizados”, com “braços tipicamente erguidos”, em “espécie de convulsão inebriante” – conforme Rugendas, Spix e Martius e Ribeyrolles –, no final do século sofrera alterações. Dançado ao som de zabumba e rabeca, “pelo XIX o Lundu possui melodias características quando anteriormente era só ritmo.” Laconicamente, Cascudo escreveu “Desapareceu em Angola. Vive como uma canção no Brasil.”[39]

O que ficou do lundu, em meio a interdições de ordens eclesiásticas e civis, “estava despido das umbigadas patuscas que davam sal e pimenta para a patuléia devota; à volta de 1880, já não era bailado muito conhecido e sim canção, notada por Silvio Romero. Foi essa a forma sobrevivente.”[40] A referência à atenção cautelar de Romero frente danças, cantos e contos[41], como seu subentendido alívio ao que Cascudo considerou “lundu cantado, a canção do lundu, que ganhou popularidade no plano da simpatia”, sinaliza rearranjos a intervenções que também foram alvo, nesta margem do Atlântico, corpos, ritmos, linguagens e modos de ser africanos.

O ritmo[42] do lundu, marcado por dois tempos fortes e um lento – a síncopa, que provoca e projeta movimentos de marcação com o corpo em sons da diáspora –, parecia estar sob controle..., em salões de danças.[43] A patuléia devota do lundu encontrou como manter suas tradições; sua coreografia resiste na umbigada em samba de roda baiano, samba de terreiro carioca, dança do jongo, onde, através deste gesto, participantes de danças de roda chamam quem vem ao centro, dançar e pôr-se em contato com os presentes e os ausentes.

Se o lundu, proibido do lado de lá, aqui ficou reduzido à canção, que ainda dizem vitalizou o fado português, para onde migraram danças de roda e seus singulares significados em culturas negras? Quais suas impensáveis persistências para grupos e povos africanos que, em regime de oralidade, trouxeram em seus corpos e memórias movimentos de dançares comunitários, impregnados de relevo e textura para transitarem em seus universos cosmológicos? Como surpreender e articular ressonâncias deste ritmo e de corpos negros ondulantes que chegaram a conquistar, em textos de Cascudo, o reconhecimento de “memória bailarina”?

Este recuo do lundu, anotado por literatos e folcloristas, enuncia litígios e expectativas de “civilizar” fazeres africanos entre nós, e mais expressa vontade de sobrevivência de elites intelectuais e políticas em seus temores e constrangimentos diante de práticas culturais negras no Brasil. Este registro exige atenções e abre caminho a algumas considerações. Mesmo porque, estratégias de moralização, com conotações de racismo, empurrando éthos e reverberações africanas para clandestinidade, marcaram o reordenar de poderes e relações no advento da “abolição” e instauração da República das Letras.

Pressões e interferências, minando africanismos transmitidos à dança e ritmo do lundu, desataram laços de seus sentidos. Perdera o focus enquanto expressão de africanos em exílio, meio de diálogos entre vivos e mortos e articulador de novas identidades. Desestruturado, sem poder celebrar tradições em diáspora, nem representar o élan de muitos encontros, como vitalidades e energias de grupos e povos africanos, o lundu também vivenciou deslocamentos entre grupos e povos africanos.

Assumido como canção, com letra e melodia, por elites letradas nas margens atlânticas, o lundu já não era dínamo de culturas bantu no Brasil. Quando grupos dominantes apropriam-se de expressões populares, revertendo seus sinais, emergem indícios que estas não mais contem forças primordiais e grupos populares lhes deram as costas, como argumenta Stuart Hall, podendo advir “mudanças qualitativas, mas também fratura muito forte”[44] nas relações culturais.

Tradições culturais bantu, mais permeáveis a rearranjos por seu histórico de migrações[45], sem desaparecerem, desde tempos mais recuados refaziam formas e roupagens em injunções de suas crenças e valores com as de outros povos africanos no Brasil. Seus ritmos e corpos, envolvidos em comunicações entre si e com seus pares deste e do outro mundo, dançando, curando, celebrando a vida e a morte, ecoam desde tempos vividos em recôncavos familiares que a pena de Cascudo não alcançou.

E possibilidades de surpreender rastros de interações de povos africanos no Brasil emergem a partir do continuum de combinações de matrizes de suas tradições, enredando-os em outras configurações, em contextos históricos específicos onde renovaram suas perspectivas cosmológicas[46].

Desde primórdios do registro de cantorias (XVIII) e de literatura oral no Nordeste do Brasil (XIX), à luz da noite e som de suas tradições, contando e vivendo histórias e lutas de “Quando os animais falavam/ na remota antiguidade”[47], corpos negros transitaram entre África, Europa e Brasil, refazendo seus modos de ser em situações limítrofes. Sem renunciarem a seus valores vitais, mantiveram formas de rememoração, transmissão e curas frente perdas sofridas, marcando territórios e articulando imprevisíveis redes identitárias. Em diferentes espaços e formas que vem abrigando suas crenças e dramáticas técnicas de narrativas míticas, apreendem-se edificações de cultos, encontros e rituais, em trabalhos de memória à flor da pele, que tem revigorado capacidades de ação, comunicação e vivências de suas culturas em terras brasileiras.

Desafiando o “não ser do escravo”, expressões de oralidades negras no período colonial, registradas por pesquisadores de formação e perfis acadêmicos[48], sinalizam outros horizontes de afirmação de práticas africanas, em encontros com seus antepassados e em rituais de curas culturais, que pontificaram suas trajetórias e histórias enquanto feitiçarias, curandeirismos e demonologias. Mas foi Cascudo, em suas reticências, que chegou a “conclusão decepcionante”: “Não há Demônio preto senão como presença católica do Branco.” [49]

Estudando ritos africanos nas Minas Gerais e apreendendo, para além da Bahia, indícios do que conhecemos como religiões afro-brasileiras, Laura de Mello e Souza revisitou terreiros de calundus em debate com João Reis e Luiz Mott, Yeda Castro e Câmara Cascudo. Propondo, “ainda de forma embrionária um procedimento analítico”, tomou “calundús antes como constelação de práticas variadas do que como rito acabado ou bem definido” ou, “quando muito, constelação do mundo banto, agregando práticas, ritos e rituais que ora se aproximam de um modelo, ora se afastam dele” – mas “sempre envolvendo negros, freqüentemente referidas a danças, batuques, ajuntamentos” [50] –, a autora pontuou a emergência de palavras e práticas bantu como: calundu, lundu, calundu-angola, candomblé-angola, umbanda, macumba.

Enquanto expressões pontuais registradas nos séculos XVII e XVIII, suas pesquisas, partindo do processo inquisitorial sobre o calundu-angola de Luzia Pinta, em 1739, em Sabará (MG), indicam “a polissemia da palavra e das práticas” do calundu, mas apontam um denominador comum: “na sua maioria, referiram-se a danças, quase sempre embaladas por instrumentos musicais”. Ainda articlou à “alusão a danças, batuques, sujeição de vontades, recurso a espíritos mortos”[51]. Mesmo com variações, calandú ou calanduzes nos alcançam associados a cantos, curas, danças de roda, som percussivo tocado por “cerca de duas horas”, ou até mesmo “calundus ao som de violas – o que sugere parentesco com lundu...” [52]. A rápida sugestão: calundu assemelha-se a lundu[53], reforça o sentido de corpos em danças conjuntas, com cânticos, ritmos e artefatos musicais enquanto fontes de vibração de culturas negras que atingem êxtases em encontros com espíritos de seus antepassados.

Na direção de corpos negros que dançam, revisitando calundús Mello e Souza menciona pesquisa de Luiz Mott que registrou a “dança de tunda, ou acotunda”, no arraial de Paracatu (MG), em 1747, “trazendo tradições dos Orixás da Costa da Mina”[54], e pesquisa de João Reis sobre calundu jeje, do Pasto de Cachoeira (BA), em 1785. Mais que seqüência de práticas culturais de diferentes nações africanas no Brasil, importa reter semelhanças entre seus universos cosmológicos; sentidos comunitários em torno de danças, cantos, cerimônias de interação com seus mortos para celebrações e curas; objetos de culto e substâncias de reinos humano, animal, vegetal e mineral. Para além destas questões, fica a persistência com que africanos escravizados vivenciaram suas práticas culturais, instaurando Áfricas em Brasis ou vivendo reiteradas viagens a suas terras, onde deixaram parentes vivos e mortos.

Talvez nos calundús – práticas culturais noturnas em que dançavam, cantavam e tocavam instrumentos musicais com a “potência do verbo que cria”[55]; reuniam elementos de seu universo cósmico, equilibrando forças físico-espirituais de seus mundos visível e invisível; invocavam e incorporavam energias de seus mortos e ancestrais, socializando saberes e poderes na cura de males mentais e desesperos do cativeiro –, grupos de africanos conseguissem trabalhar, em seus horizontes de vida, as desestabilizadoras experiências do tráfico e do escravismo, alcançando formas próprias de compreensão daqueles violentos processos em seus universos cognitivos[56].

Conforme Sweet, “o calundú era um sinal que a religião africana estava bem ativa”, sem tratar-se meramente de “superstição diabólica” ou “feitiçaria”, sendo que a adesão de brancos, desacreditando seus médicos e seus padres, fez do “calundu e outras manifestações religiosas centro africanas, desafios diretos à hegemonia portuguesa, branca e católica.”[57] Este estudioso de culturas da África Centro-Ocidental e de suas recriações no Brasil, faz ressalvas ao trabalho de Thornton, em torno da “idéia de uma versão profundamente africana de Cristianismo, surgida no Congo durante o século XVI”, pois “ao privilegiar a revelação sobre a cosmologia em sentido lado, minimiza a essência do pensamento religioso centro-africano”[58]. Nesta ordem de reflexões, ainda considera que “o calundú não era uma prática sincrética no Brasil, pelos menos até meados do século XVIII” [59], quando emergiram injunções com outros povos e culturas no mundo afro-português.

Na contra mão de controles colonizadores e em precárias condições, encontros e convívios liminares, entre grupos de africanos, emergem das descrições inquisitoriais dos calundus. Se danças, batuques, usos de “fervedouros com ervas, oferendas de comida a ídolos, confecção de embrulhos com ossos, cabelos, unhas”[60] ganhassem sentidos e coerência enquanto ritos para restabelecer coesões, conforme cosmologia de povos africanos; se “sujeição de vontades” traduzisse encontro onde todos geram ritmo e movimentos para reatarem laços com seus pares da diáspora e das Áfricas, leituras em torno de tradições orais africanos tornam-se viáveis para adensar compreensões relacionadas a confrontos em zonas de contato heteroculturais[61].

Vale lembrar que Hampâté Bâ considerou como magia africana o manejo equilibrado de forças da natureza, conjugada em termos de terra, água, ar e fogo, nos reinos humano, animal, vegetal e mineral. Perspectivas presentes até mesmo em instrumentos musicais, que “por serem de corda, sopro ou percussão, encontram-se em conexão com os elementos terra, ar e água.”[62] Este filósofo do Mali, também considerou que em tradições bambara, peul e mandinga, a “relação entre o mundo dos vivos e dos mortos explica tanto o simbolismo do corpo como a complexidade de seu psiquismo”, sintetizando a cosmologia destes povos na expressão proverbial “As pessoas da pessoa são numerosas no interior da pessoa.” [63]

Se enfim, “recurso a espíritos mortos” ganhasse sentido enquanto invocação a antepassados, que como guardiões da tradição e mediadores de divindades, guardam saberes, poderes e alívios a sofrimentos, restabelecendo sintonias e vínculos com a terra natal e todos que foram coagidos a deixar para trás, poderíamos nos aproximar da “tradição viva” dos que construíram o chão que pisamos e olhar, para além da Inquisição, seus “processos rituais”. [64]

Fora de universos culturais de povos africanos em diáspora, de seus modos de pensar e estar no mundo; de suas tradições, crenças e valores; de seus imaginários proverbiais e formas de relacionarem-se em seus imaginários de unidade cósmica, o que são perspectivas de segredo/sagrado para eles, configuram-se como feitiço/quilombo e magia negra para nós.[65] Retomando leitura de Reis a partir de informações contidas no processo de invasão do calundu jeje, do Pasto de Cachoeira, sob liderança do vodunô Sebastião de Guerra: “Insisto que seu calundu tinha aquela função mais ampla de um templo onde as relações dos homens e mulheres com o mundo, o cosmos, as poderosas forças da tradição espiritual africana, os ancestrais e vodus renovavam-se periodicamente no drama ritual.” [66]

Entrando nestes debates rastreando culturas da voz em circuitos África/Brasil/África, em projeto sobre tradições orais africanas no Atlântico sul, ontem e hoje, consideramos primordial que Mello e Souza, apoiada nas pesquisas de Reis, “Reconhece a necessidade de utilizar a tradição oral como ‘estratégia de investigação da história mais remota das religiões afro-brasileiras’ e as vantagens de ler informações ‘para trás’ ”[67].

Ciente que tradições orais nos alcançam para além de relatos ou depoimentos orais de quem se dispõe a narrar suas memórias em torno de processos vividos, importa distinguir história oral de tradição oral. Recurso metodológico para apreender representações com que foram vividos fatos e acontecimentos; de formas de ser, pensar e memorizar de povos que vivem suas crenças e cosmogonias “sem dissociar o espiritual e o material”[68], em narrativas míticas, rituais e performáticas, transmitindo e atualizando tradições e singularidades culturais. Ainda vale ter presente a urgência de articulações entre leituras “para trás” com leituras para frente, no sentido do tempo presente, tentando sondar o desconhecido em nossos horizontes: a alteridade de povos e culturas negras, reinventadas na diáspora e no colonialismo nas Áfricas para além do mundo religioso, pluralizando a condição humana e potencializando interações culturais.

Sem “fatiarem cartesianamente o mundo”, distintas expressões de culturas africanas entre povos e regiões da África atual, mantém visões de mundo e viveres alheios a segmentações da vida social. São filmes – como Ngwenya, o crocodilo[69], sobre a trajetória do grande artista moçambicano Malangatana, que pensa desenhando e pintando; ou A Árvore dos Antepassados e A guerra da água[70], sobre o retorno de refugiados da guerra de independência de Moçambique e o enfrentamento da escassez de recursos pós-guerras de libertação –, que traduzem lutas e modos de ser africanos constituídos e reconstituídos em perspectivas de universo cósmico, há muito atravessados por dinâmicas interações tradição versus modernidade.

Estas narrativas cinematográficas trazem crenças e costumes, gestos e ritos, relações entre vivos e antepassados, homens e mulheres, velhos e crianças, como interações com árvores, animais, água, sem apartar momentos, espaços ou instâncias da vida. Religião, política, trabalho e subsistência; magia e justiça, família e educação; disputas e desafios vividos, como lembranças do passado e questões do presente perfazem traços culturais em laços de contigüidade entre aldeias, comunidades e agitados centros urbanos. Filmados sem atores, quase como documentários sobre a difícil vida de famílias populares em Áfricas de hoje, os diretores trazem expressões da “tradição viva” abraçando pessoas comuns, vivendo seus problemas e relembrando experiências do colonialismo, das guerras de libertação e do difícil retomar de cotidianos após anos de lutas por independência, contendas internas e guerra civil.

A cinematografia, como a literatura, arte, música, dança e teatro, das Áfricas independentes, explicitam questões e disposições culturais, da ordem das coisas e dos seres em seus universos, expondo profundas clivagens em relação à família, grupos, povos e culturas marcadas pela civilização ocidental cristã. No Brasil, esta incompatibilidade de heranças e herdeiros de culturas negras, nativas e européias, ampliadas pelos milhares de imigrantes que desde a “abolição” e a República vem configurando nossas relações em direção à mítica de democracia racial, tem marcado tensões e conflitos sob o signo de intolerâncias.

Traços e sintomas das irreconciliáveis divergências culturais que marcam o Brasil e o mundo da expansão global, habitam retóricas como imaginários de muitos tempos. E uma declaração, de 1907, do mesmo Silvio Romero, revela e sintetiza este contencioso campo: “É impossível falar a homens que dançam.” [71]

As memórias de Equiano, aprisionado aos 11 anos por traficantes de escravos em sua aldeia Ibo (Nigéria), guardam outra expressão síntese destas clivagens. Descrevendo dias de festa e júbilo em sua terra, quando dançavam homens, mulheres, crianças, registrou: “Somos quase uma nação de dançarinos, músicos e poetas”.[72] Significativamente, não abriu mão do somos e do quase, mantendo seu sentido de comunitas e expondo seu viver “entre lugares”[73]. Entre civilização ocidental e culturas africanas, entre Estado Nação e comunidades africanas, entre estar escravo e liderar lutas contra o tráfico, ser herdeiro de tradições orais e um dos nove africanos letrados na Londres a meio caminho entre colonialismo escravista e imperialista, em 1789, quando foi publicada sua auto biografia.

Somos quase uma nação de dançarinos, músicos e poetas. É impossível falar a homens que dançam.

Frente a estes ritmos de intolerâncias, onde o conhecimento e a identidade de um forja a negação do outro, reflexões de Édouard Glissant permitem repensar alternativas. Intelectual da diáspora, nascido na Martinica e formado na Paris dos tempos de lutas por independência de países africanos, ao fazer restrições ao novo liberalismo e colonialismo dos anos 1990, advogou negociações entre culturas e suas linguagens: “Chegamos a um momento histórico em que constatamos que o imaginário do homem necessita de todas as línguas do mundo”. Daí, sua veemente e criativa defesa de uma política e estética da Relação entre todas as línguas e identidades, em debate pela diversidade, em Montreal, em 1955.

(...) a poética da Relação não é uma poética domagma, do indiferenciado, do neutro. Para que haja relação é preciso que haja duas ou várias identidades ou entidades donas de si e que aceitem transformar-se ao permutar com o outro.[74]

Material suplementar
Notas

1
Dragão da Maldade
ABC de Lucas de Feira
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc