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A “musealização” do presente: Mídia, Memória e Esquecimento, questões para pensar a história hoje
Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 1, pp. 123-135, 2009
Universidade do Estado de Santa Catarina

Artigos



Recepção: 01 Julho 2008

Aprovação: 01 Novembro 2008

Resumo: O presente artigo problematiza as relações entre mídia, memória e esquecimento na sociedade contemporânea. Nesses termos, temos como ponto central a reflexão sobre a ação dos recursos mediáticos na produção de acontecimentos e sentidos sobre o passado uma vez que, consideramos ser fundamental pensar a influência de tais recursos na própria produção histórica do tempo presente.

Palavras-chave: Mídia, Memória, Esquecimento.

Abstract: The present article addresses the relationship among media, memory and forgetfulness in contemporary society. The central point is a reflection on how media resources act to produce events and meanings about the past, considering it is fundamental to reflect on the influence of such resources in the historical production of the present time itself.

Keywords: Media, Memory, Forgetfulness.

Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. (...) Minha memória, senhor, é como depósito de lixo.[1]

Perdido em meio às suas infinitas lembranças, Funes, o Memorioso, solta esse lamento como quem aceita, resignadamente, a condição de prisioneiro da memória. Seu fardo era carregar, no presente, todo peso do passado. Esse inquietante personagem foi imaginado por Jorge Luis Borges, escritor argentino que, pela fatalidade de uma doença degenerativa, desde cedo começou a perder a visão. Curiosamente, embora a doença o impossibilitasse de olhar o mundo por seus próprios olhos, o enxergava pela literatura e é através de sua obra que conhecemos o intrigante Irineo Funes.

Para Funes, cada lembrança tornava-se outra, cada dia podia ser recordado em todos seus detalhes; o Memorioso guardava dentro de si todas as imagens, sons e dores que via e vivia, “podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos”. Irineo era, no dizer de seu próprio criador, “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso”, distrair-se do mundo lhe era impossível, pois sua existência era um insuportável ato de recordação. Embora enxergasse tudo, o Memorioso era cego, porque não podia escolher, em meio o amontoado colossal de suas lembranças, o que o que deveria ser esquecido.

Ao nos depararmos com o personagem de Luis Borges, dificilmente não somos tentados a um olhar desconcertante para este tempo, para a condição de memoriosos em uma sociedade saturada por imagens, eventos e informações. As últimas décadas do século XX viram se apresentar de forma pungente aquilo que Huyssen[2] denominou cultura da memória.

A mudança de sensibilidade sobre as relações com o passado, presente e futuro ganhou novos contornos nessa configuração, sobretudo, quando o ocidente viu emergir, em diversos países, a tentativa de monumentalização do presente, agora saturado pelos rastros de um passado cada vez mais marcante no cotidiano. Se, como afirmou Koselleck[3], antes o presente carregava um forte potencial de futuridade, amparado por uma tradição filosófica e religiosa de caráter teleológico, no século XXI assistimos a um presente carregado pela intenção de preservação obsessiva do passado.

Essa reordenação sobre os códigos de significação temporal remete aquilo que Nietzsche chamara atenção no século XIX, quando advertia sobre o os riscos de excesso de passado no presente. Para ele, “a história pensada como ciência pura e tornada soberana seria uma espécie encerramento e balanço da vida para a humanidade”[4]. Erradicava a vida, porque lhe interessava apenas o passado morto, tornado conhecimento enciclopédico que desenraizava e ordenava memórias para que, posteriormente, fossem consumidas “sem fome e mesmo contra a necessidade” perdendo seu caráter transformador.

Nietzsche se referia, sobretudo, à intenção historicizante de seu próprio tempo, considerado momento capital na estruturação do campo científico da história. Ao se interrogar sobre “até que grau a vida precisa em geral dos serviços da história”, lançava um olhar crítico para uma sociedade na qual o conhecimento histórico jorrava “de fontes inexauríveis, sempre novo e cada vez mais” fazendo com que o estranho, o estrangeiro e o desconexo entre si se aglomerassem em uma intenção universalizante, condenando ao homem moderno “ a arrastar consigo, por toda a parte uma quantidade descomunal de indigestas pedras de saber”[5]

Mas, se aos olhos do filósofo o excesso da ciência histórica e suas pretensões de domestificação do passado causavam incomodo, o que dizer da produção desenfreada de memória nos dias de hoje que interfere de maneira contunde na formulação de sentidos históricos? O final do século XX assistiu ao desenvolvimento de uma consciência histórica difusa, reticular que segue engendrando uma complexa construção de significados incessantemente renovados. Estabeleceram-se formas de experiência que modificaram drástica e rapidamente as percepções sobre o tempo e o espaço, o que pode ser percebido em uma crescente musealização no cotidiano, termo utilizado pelo filósofo alemão, Hermann Lübbe[6] em princípio dos anos 80, para destacar o deslocamento da sensibilidade temporal.

A proliferação de museus em vários países, os gigantescos projetos de restauração de cidades, bairros, a defesa da preservação dos centros históricos e a construção de monumentos e efemérides se apresentam como o paradoxo aparente em uma época que se divide entre a manutenção do passado e o medo da obsolescência.

Tal dilema é estimulado pelos incessantes avanços tecnológicos que tornam ultrapassadas as mais espetaculares descobertas em questão de meses, bem como pelas ansiedades decorrentes da fluidez das relações humanas e a quebra dos tradicionais laços subjetivos e identitários. Conforme chamou atenção Remo Bodei, “o desejo de usufruir imediatamente como dádivas únicas do amor, da amizade, do prazer ou do bem estar”[7] nos colocou em um estado de alerta ininterrupto em espaços nos quais a velocidade, que impõe um presente contínuo, importa mais que a duração. Situação que explica, em parte, o sucesso e a proliferação gigantesca indústria de manuais de auto-ajuda, sites de relacionamentos, conselheiros sentimentais, agências de casamento e de amizades, tão próprios deste tempo.

Para Hartog[8], esse momento começa se apresentar a partir da segunda metade do século XX, quando a sociedade ocidental passou por mudanças significativas em suas relações com o tempo, na verdade, o autor argumenta que as últimas décadas desse século assistiram ao declínio do moderno regime de historicidade no qual predominava uma visão teleológica da história tomada como uma marcha linear e contínua rumo a um futuro previsível. Ainda dentro desse ideal vislumbrava-se a possibilidade de uma história universal e um tempo instrumentalizado em uma cronologia precisa e meticulosa.

O futuro agora é o lugar no qual o passado deve permanecer em rastros. Seu valor, portanto, apresenta-se muito mais pela possibilidade que terá de guardá-lo do que por seu potencial de redenção inovadora. Dessa forma, tornamo-nos colecionadores vorazes de bens culturais amparados pela quase ilimitabilidade de registros e formas de armazenamento. Constrói-se a quimera de um passado retido em todas as cenas capturadas pela máquina digital, filmadoras, scaners, gravadores, mp4, pendrives, palmtops, recursos apresentados em uma violência mercadológica impossível de ser acompanhada por qualquer vida humana.

Nesse sentido, essa busca aflitiva satura o presente de uma quantidade cada vez maior registros que se avolumam em computadores, gavetas e estantes em uma proporção nunca imaginada. A utopia de um arquivo total, que seria possibilitado pelo desenvolvimento dos novos recursos tecnológicos, pode representar de maneira metafórica uma sociedade que inventou, nas palavras de Huyssen, a comercialização em massa da nostalgia. Se Funes, pela fatalidade do destino foi forçadamente aprisionado no labirinto de suas lembranças, parecemos ter construído nosso aprisionamento em um presente devorador de passados.

Andreas Huyssen situa a emergência dos discursos sobre memória no começo da década de 80, na Europa e nos Estados Unidos, impulsionados pelos debates em torno do Holocausto; evento tornado exemplar para a estruturação das reflexões em torno dos acontecimentos emblemático no século XX.

A recorrência de políticas genocidas em países como Ruanda, Bósnia, Kossovo, bem como, a divulgação das atrocidades, torturas e perseguições efetivadas nos Regimes Ditatoriais na América Latina, desencadearam uma ampla política de memória nesses países, por outro lado, nos adverte Huyssen:

na medida em que as nações lutam para criar políticas democráticas no rastro de histórias de extermínio em massa, apartheids, ditaduras militares e totalitarismo, elas se defrontam (…) com a tarefa sem precedentes de assegurar a legitimidade e o futuro das políticas emergentes (…).[9]

Em meio a esse tumultuoso balbuciar de falas figura um agente central: a atuação dos recursos midiáticos na difusão de informações e na espetacularização do acontecimento. Sua presença se manifesta também em um trabalho que coloca o passado como horizonte de realização no presente, seja através de rastros, seja na elaboração narrativa dos eventos imediatos.

Nesse jogo de formulações vimos emergir com uma força surpreendente questões relacionadas à (re)elaboração de conceitos basilares da história enquanto campo de conhecimento. Inquietações ampliadas quando as diversas concepções de escrita trouxeram à tona um universo novo e complexo de objetos e sujeitos históricos. Embora no século XIX tenha havido um esforço de institucionalização e legitimação de um lugar próprio para sua composição, o final do século XX veio demonstrar, de forma contundente, que tal conhecimento será sempre um campo em litígio.

Os percursos assumidos pela idéia de História – na verdade devemos falar em “idéias de história” – adquiriram nuances bastante peculiares nesse século, ora oscilando entre uma postura na qual a “Magistra Vitae” foi novamente evocada como a velha aliada provedora de lições, instituição pedagógica; até o desencadear de debates acalorados entre aqueles que anunciavam uma ciência em crise, tendo a morte anunciada em canais de televisão e bancas de revista[10].

Nesse universo, os lugares de história e de memória tornaram-se cada vez mais heterogêneos, sobretudo, a luta pelo controle destes, a começar pelos próprios processos de governabilidade contemporâneos. Não que a instrumentalização da história ou da memória pelo poder tenha sido artifício recente, mas houve uma mudança considerável em seus usos.

A difusão de acontecimentos tornados emblemáticos no século XX efetivou em uma dupla face: primeiro; eventos como guerras, desastres ambientais, massacres, dentre outros, apresentaram-se como ocorrências midiáticas de “primeira grandeza”; uma divulgação espetacular que priorizou o apelo à sensibilidade e à comoção coletiva. Estas, por sua vez, acabaram por estabelecer um elo de historicidade muito mais elástico entre povos e sociedades em várias partes do mundo, posto que, sua divulgação quase inesgotável, tornou vários grupos humanos partícipes e testemunhas de acontecimentos que de outra maneira somente se fariam conhecidos por aqueles que antes os vivenciassem diretamente.

Segundo, no momento de sua efetivação, tais eventos emergem construídos a partir de uma série de narrativas que os delimitam como marcos históricos representativos. Estes dois fatores ajudaram a torná-los multifacetários, problemáticos e objeto de intensas disputas e embates político-sociais, sobretudo, porque recaem sobre eles polêmicas em torno da constituição de identidades e reparações sociais.

Essa questão se aprofunda quando nos reportamos ao próprio significado do conceito de acontecimento histórico para a sociedade contemporânea. Se, em termos acadêmicos, essa definição passou a ser pensada como resultado de uma complexa elaboração de sentidos, como realizar a crítica historiográfica sobre eventos que passaram a ter um apelo social e ético tão fortes? O que dizer de eventos que parecem ser carregados pela áurea da objetividade e que põem em cena a necessidade de memória, ritos de comemorações e lugares de catarses coletivas? Voltamos a um ponto essencial presente nos debates historiográficos dos séculos XIX e XX: o problema sobre a verdade histórica, a questão de saber se alguns acontecimentos colocam, ou não, limites à interpretação do historiador.

Nestes termos, no final do século XX, o fazer histórico parece ter seguido cambaleante com duas pesadas cabeças: de um lado, uma produção historiográfica excepcional, com sofisticadas metodologias para a investigação de sociedades, imaginários, práticas culturais, cotidianos, tornando a escrita da histórica uma tentativa de mergulho na “totalidade” das relações humanas. De outro lado, a profusão acontecimental difundida pelos meios de comunicação. Como afirmou Nora[11] “um acontecimento sem historiador”.

Deparamo-nos com um paradoxo: um acontecimento pensando como construção e outro como um dado. Trava-se, portanto, um luta cotidiana sobre a própria legitimidade do evento histórico e de sua elaboração.

No século da sedução pelo acontecimento, objeto oferecido tal qual mercadoria em uma feira barulhenta, a idéia do acontecimento memorável se tornou presença quase indelével nos dias de hoje, numa ditadura ansiosa, nervosa e irreprimível pela novidade. Como efeito mais imediato desse momento nos deparamos com a sensação de aceleração temporal, para alguns, como o sociólogo Zygmunt Bauman, vive-se uma vida líquida “vida precária, vivida em condições de incertezas constantes”[12], para ele, fazendo com que estejamos constantemente assombrados pela impossibilidade de não conseguirmos acompanhar a rapidez dos eventos.

Parte desse movimento pode ser explicada pela construção de uma idéia de opinião pública estruturada desde os séculos XVII e XVIII, quando para Habermas a “esfera pública burguesa desenvolve-se no campo de tensões entre o estado e a sociedade”[13]. Nestes termos, o envolvimento de um número cada vez maior de pessoas nos eventos públicos impulsionou uma acelerada produção de panfletos, jornais e outros tipos de informativos, que trabalhavam para a construção de uma opinião pública cada vez mais presente como referencial para as produções midiáticas.

Nesse sentido, a imprensa, ainda segundo Habermas, era a própria instituição “por excelência” da esfera pública na medida em que ela estimulava o desenvolvimento de um público consumidor, “como uma espécie de mediador e potencializador”[14] que era convocado a atuar a partir do que lhe comunicado.

Esta esfera pública trouxe como conseqüência a formação de comunidades de consumidores de bens culturais que ajudou a organizar novos campos específicos de produção simbólica, sendo o próprio jornalismo um deles[15]. A percepção de que havia um público a ser atingido, tornou-se fundamental na abrangência das mídias modernas, principalmente, naquilo que Bourdieu definiu como mercantilização das formas simbólicas. A sistematização de uma idéia de opinião pública partia do pressuposto de que era possível estabelecer uma comunicação em larga escala para um grande número de pessoas, informando, mas, sobretudo, formando opiniões.

Esta esfera pública servia à difusão de informações políticas, atitudes e valores compartilhados em determinadas classes ou grupos sociais e, em torno dela, estabelecia-se um constante espaço de disputa, de lutas simbólicas entre grupos que concorriam pelo controle de informações. “Dessa forma, os governos foram sendo forçados a utilizar o jornalismo e a contribuir tanto para a difusão de uma consciência política popular (…) quanto para o surgimento dos jornalistas (…) como uma nova força nos assuntos políticos, e que mais tarde seriam descritos como quarto poder”[16].

Nesse mundo em constante movimento a circulação dessas informações como mercadoria tornou-se uma prática. A ampliação desse movimento trouxe à tona a discussão acerca do desenvolvimento de uma comunicação de massa, como sendo um amplo processo de difusão e distribuição desses recursos tanto em termos de espaços como de receptores.

Contudo, o próprio conceito de comunicação em massa deve ser problematizado, pois se baseia em uma falsa idéia de que os meios de comunicação conseguem estabelecer uma uniformidade cultural ou uma homogeneidade informativa e formativa. Por lado o termo “massa” passa uma idéia de passividade na recepção desses recursos, como se aqueles que os recebessem fossem meros espectadores, não estabelecendo sobre eles um consumo produtivo e criador.

No decorrer do século XX, o apelo à opinião pública aprofunda-se, consideravelmente, uma vez que, à regularidade da informação, acrescenta-se agora o ideal da simultaneidade entre a ocorrência e o seu relato ao consumidor. Através do rádio, televisão e mais recente da internet são postos no mesmo salão virtual, em um ballet de ritmos desencontrados, o acontecimento – entendido em sua dimensão pragmática; a narrativa efetuada pela mídia sobre ele, e o espectador que, através do meio que utiliza, torna-se também testemunha participante e novo narrador.

Nesse sentido, os meios de comunicação ajudam a elaborar narrativas próprias para o mundo urbano contemporâneo, reconstruindo-o a partir da definição de novos signos e significados, pois “mesmo onde não foram destruídos os centros históricos, as praças, os lugares que manifestavam viva a memória”, as cidades e os espaços agora são vistos e narrados pela imprensa, pelo rádio e pela televisão, naquilo que Cancline destaca como sendo “um tumulto heterogêneo e disperso de signos de identificação e referências”, que parece se apresentar como “um espetáculo reconfortante”[17] no qual o homem moderno tem conformado a construção de sua própria historicidade.

Mas é preciso considerar que essa sede de memória é também uma sede de história, mas a memória produzida hoje, é bem diferente da memória gestual, intuitiva, transmitida entre silêncios e “saberes reflexo”, ela é, sobretudo, uma memória vivida como um “dever e não mais espontânea”[18].

A revolução comunicacional passou por campos distintos desde as artes aos próprios meios que, a partir da segunda metade desse século, organizam-se em grandes conglomerados de informação e, certamente, própria idéia de globalização moderna passa pela ordenação dos sistemas de comunicação contemporâneos.

A formação das grandes periferias nos centros urbanos fez com que seus habitantes perdessem os limites de seu próprio território. A urbanização e a desurbanização de muitos lugares, que deixaram de ser tomados como suportes de memória, colocou em cena a atuação dos meios de comunicação na mediação de novas categorias, agora equilibradas a partir dos relatos midiáticos.

Tais relatos ajudam a imaginar uma sociabilidade que quer se apresentar sob o véu de uma pretensa homogeneidade e estes recursos acabam criando comunidades que se vinculam em lógicas organizativas que obedecem a códigos de construção de identidades que poderíamos definir como midiáticos. “As cidades da era da vídeo-cultura ou do ciberespaço são situadas em um âmbito incomensurável, em um conjunto de redes e fluxos existentes tanto no mundo físico como no mental”[19].

Em princípios do século XX, quando parte do mundo pode acompanhar pelo rádio as notícias da I guerra Mundial, a idéia de acontecimento começou a ser significativamente transformada. Contudo, é no século XXI, que a partilha de eventos e informações em larga escala tornou o mundo esquadrinhado por ilimitados ângulos de objetivas, celulares, câmeras de TVs, internet, rádio, jornais, revistas e satélites.

A idéia de privacidade, desta forma, foi diluída no espaço público sob o argumento de que, a sociedade tem que ser abastecida incessantemente pela informação posto que, a opinião pública precisa saber. Nesse contexto, o argumento, muitas vezes falacioso, da publicização total esconde a dissimulação de interesses, a manipulação da informação e o próprio papel de formulador e selecionador de eventos desempenhado pelos meios de comunicação.

Finalmente parecemos ter alcançado o ideal da sociedade controlada pela presença, ou “onipresente” de olhares panópticos em todas as esquinas de cada uma das grandes e pequenas cidades. É provável que, nos anos 40, quando George Orwell[20] pensou uma sociedade vigiada pelo olhar do grande irmão, não imaginasse que sua metáfora fosse se delinear com tanta precisão.

Em nome da democratização da informação, construiu-se a justificativa de uma verdadeira ditadura da visibilidade amparada pelo corolário de um registro total sobre os acontecimentos cotidianos. A espetacularização do vivido trouxe a tona não somente a exploração dos grandes eventos, mas também, levou ao culto ao grotesco, ao pitoresco e à violência cotidiana como se fossem tramas encenadas para satisfazer espectadores que já não se saciam mais com o folhetim das sete.

Desenraizamos os referencias de memória arrastando-os para contextos humanos distintos. Fazendo com que a foto de uma menina – sobrevivente na guerra do Vietnã – ou a imagem de um jovem enfrentando sozinho a fileira de tanques, estejam entre nossas lembranças mesmo que jamais tenhamos conhecido ou estado em nenhum desses lugares. Se para Nora, há muito, desabitamos a memória, uma vez que precisávamos de lugares para depositá-la, agora são os lugares que parecem ser também despovoados de memória, muito embora, seja provável que nunca tenha havia tanta preocupação com a construção de lugares para sua guarda.

Tal constatação nos coloca a imperativa necessidade de refletirmos sobre como os novos processos de constituição da memória e do esquecimento desencadeados no cotidiano, uma vez que o remédio contra o esquecimento, amparado pela fabulosa indústria midiática, pode torna-se o veneno para a memória, uma vez que, selecionar o que é importante para ser lembrando ficou cada vez mais difícil.

A ação dos meios de comunicação, nas últimas décadas do século XX, influenciou poderosamente nas maneiras de apropriação e percepção do real. Demonstrou-nos que há uma produção de conhecimento histórico fora do próprio campo científico da História e que parece influenciá-lo de maneira desconcertante.

Nunca se viu tão forte a necessidade do respaldo do discurso histórico como meio de argumentação e justificativa de idéias e ações. Revistas, jornais romances históricos, genealogia de família, documentários, surgem diariamente tentando alimentar uma sede de história que parece ter tomado conta da sociedade contemporânea. Nenhum outro momento talvez tenha tido um presente tão possuidor de sentido histórico como este, já afirmava Pierre Nora, nos anos 70, ao discutir um provável retorno do fato na narrativa histórica.

Nesse caso, é necessário considerarmos a produção do conhecimento histórico por aqueles fazedores de história[21], que estão dispersos em vários lugares e meios, ou seja, compreendermos a composição de uma memória historiográfica elaborada por não historiadores de ofício. Com isso devemos interrogar que outros lugares e fazeres de produção de conhecimento histórico estão presentes nesse cotidiano.

Para finalizarmos chamamos atenção para os desafios colocados aos historiadores nesse momento. Se a mídia trabalha em um movimento incessante de produção de sentidos tanto sobre o passado, como sobre o presente, que papel deve assumir a história, entendida como campo do conhecimento, na contemporaneidade?

Pergunta difícil e problemática uma vez que nos acostumamos a “utilizar” a mídia somente como produto empírico na pesquisa histórica. Jornais, revistas, filmes, fotografia, músicas, etc, sempre foram tomados como “retrato” dos vários passados que tentamos construir, contudo, para além de seu potencial como registro do passado, ele é objeto de significação sobre ele, tanto ontem, como hoje.

São fragmentos de significação que são constantemente re-elaborados em diversas temporalidades, não somente pelos historiadores, mas por grupos humanos diversos com interesses variados. A exemplo disso mencionamos grupos étnicos, movimentos sociais e políticos que reivindicam a apresentação de suas próprias versões da história.

Manifesta-se, portanto, uma troca de um patrimônio que é ao mesmo tempo memorial e cognitivo, lingüístico e ideológico, pois, os meios de comunicação atuam como lugares de experiência e ao mesmo tempo como recursos que interpretam e reconfiguram tal experiência. Desta maneira, é preciso levar em consideração que subsistem em suas formulações diversos fluxos de sentido que obedecem a interesses, visões de mundo, posturas políticas que colocam em evidência tanto dimensões superficiais como subterrâneas dessa própria experiência no mundo e da cultura.

O conhecimento produzido por esses lugares além de ter se tornado um recurso poderoso para o ensino e a reprodução de conteúdos históricos, efetiva também olhares e atitudes sobre o seu passado uma vez que, é preciso termos clareza que a produção científica da História é, tão somente, uma parte da formação histórica de uma sociedade.

A apologia ao não esquecimento se tornou a fuga para uma sociedade que esqueceu a si própria por não saber o que é importante lembrar, alem disso, segundo Huyssen, “de fato a ameaça do esquecimento emerge da própria tecnologia à qual confiamos o vasto corpo de registro eletrônico de dados”[22]. No meio desse conjunto de novos problemas, uma constatação: a história se tornou um produto cobiçado, não somente de legitimação, mas mercadoria simbólica vendida em bancas de jornal. Produto que desencadeou a corrida de uma série de novos produtores, ou “fazedores” de História.

Além de produzir história, vender o passado tornou-se uma atividade estimulante, pois, o interesse quase obsessivo por ele, levou a uma verdadeira profusão na distribuição de obras e produtos que incentivaram e alimentam uma sede de história em nosso cotidiano. O rápido registro do passado resultou em uma inesgotável demanda de datas, lugares e personagens que, por apresentarem certo valor de antiguidade, tornaram-se memoráveis. A informação veiculada nesses recursos percorre diferentes fluxos apropriação e conformação que por sua vez evidenciam aspectos da própria historicidade contemporânea.

Por fim, gostaria de terminar mencionando outro escritor que, brilhantemente, apresenta uma boa metáfora para pensarmos essa época. Se Luis Borges criou um personagem aprisionado e cego pelo peso de suas lembranças, Saramago em sua obra, Ensaio sobre a Cegueira[23], apresenta uma sociedade atingida pela repentina e inexplicável perda da visão.

De súbito seus personagens começam a ser acometidos por uma estranha cegueira branca, disseminada como uma praga incontrolável entre os habitantes daquele país imaginado. Ao invés de escuridão, era uma claridade violenta que os impedia de enxergar. Assim como Irineo, mal podiam dormir porque era como se estivessem mergulhados em um imenso rio de Luz, talvez em Lete, o mitológico rio grego do esquecimento. Em sua narrativa os personagens não têm nome porque, possivelmente, podiam ser qualquer um de nós. Assim como o personagem Borgeano é provável que estivessem cegos pelo excesso, mas nesse caso, principalmente, pelo obscurantismo da indiferença.

Este, talvez seja o maior desafio da contemporaneidade: a superação da indiferença. Embora, estejamos vivemos um momento no qual quase todas as situações e eventos não pareçam nos causar espanto e terem perdido a aura de significação em nossas estruturas de sentimentos, para citar Raymond Williams, é preciso lembrar que a memória e o esquecimento nos povoam e são necessários principalmente porque a partir deles significamos nossas experiências subjetivas, sociais e culturais, portanto, é preciso não nos acostumar com o excesso que banaliza e cega.

Referências

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Notas

[1] Borges, Jorge Luis. Funes, o Memorioso. In: __. Prosa completa. Barcelona: Editora Bruguera, 1979. v. 1.
[2] HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumento, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora. 2000.
[3] KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC, 2006.
[4] Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1991, p. 24.
[5] Idem, p. 26.
[6] Cf. HUYSSEN. op. cit.
[7] BODEI, Remo. Livro da Memória e da Esperança. Bauru, São Paulo: Edusc, 2004, p. 15.
[8] Cf. hARTOG, François. Regime de Historicidade. Disponível em: . Acesso em 08 maio 2006.
[9] Huyssen, op. cit., p. 16
[10] Aqui me refiro à polêmica desencadeada por Fukuyama no final dos anos 80 e início dos anos 90, associando a crise do chamado socialismo real ao pretenso fim da história.
[11] Nora, Pierre. O Retorno do Fato. In: NORA, Pierre; LE GOFF, Jacques. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 185.
[12] Bauman, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 8.
[13] HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural na Esfera Pública. São Paulo: Coleção Biblioteca do Tempo Universitário, 2003, p. 169.
[14] Idem, p. 216.
[15] Cf. Bourdieu, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
[16] Burke, Peter; Briggs, Asa. Uma História Social da Mídia. De Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 99.
[17] CANCLINI, Néstor Garcia. Cidades e cidadãos imaginados pelos meios de comunicação. Opinião Pública, vol VIII, n. 1, Campinas, 2002, p. 40-53.
[18] Nora, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, vol. 10, 1993.
[19] Cancline, op. cit., p. 44.
[20] Orwell, George. 1984. São Paulo: IBEP, 2003.
[21] MENESES, Sônia M. Silva. Os historiadores e os “fazedores de História”: lugares e fazeres na produção da memória e do conhecimento histórico contemporâneo a partir da influência midiática. Revista OPSIS, Goiânia, v. 7, n. 09, jul/dez. 2007.
[22] Huyssen, op. cit., p. 33.
[23] SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


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