Resumo: O artigo examina algumas questões referentes à abordagem da História do Tempo Presente relacionando-a com as Ditaduras de Segurança Nacional. As reflexões sobre o Tempo Presente como campo de análise da História expressam: a tentativa de delimitar este campo de análise e de intervenção do historiador; a adequação do seu arsenal teórico-metodológico e a elaboração de novos instrumentos que lhe permitam enfrentar eficientemente o desafio da aceleração histórica das últimas décadas.
Palavras-chave:Tempo presenteTempo presente, História do tempo presente História do tempo presente, Ditadura de Segurança Nacional Ditadura de Segurança Nacional.
Abstract: The article examines some issurs about the History of the Present Time approach establishing relationships with Dictatorships of National Security. The reflections about the Present Time as a field of analysis of History express: the attempt to delimit this fields of analysis and of intervention from the historians; the adequacy of her theorical-methodological apparatus and the elaboration of new instruments which may enable him to face properly the challenge of the historical acceleration in the last decades.
Keywords: Present time, History of the present time, Dictatorships of National Security.
Dossiê
História do tempo presente, ditaduras de segurança nacional e arquivos repressivos
Recepção: 01 Agosto 2008
Aprovação: 01 Outubro 2008
A História do Tempo Presente, área específica de intervenção crescente dos historiadores, tem sido fortalecida nos últimos anos a partir de reflexões de autores como Eric Hobsbawm, Marina Franco & Florencia Levín e Julio Aróstegui, entre outros, os quais têm contribuído na reafirmação do seu peculiar rigor científico. As Ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul latino-americano, entre as décadas de 60 a 80, assim como a atualidade do debate sobre questões não-resolvidas produzidas por aquelas experiências históricas, constituem importante campo para o exercício e a aferição das reflexões teórico-metodológicas que embasam o debate sobre a vitalidade da análise do Tempo Presente.
O historiador inglês Eric Hobsbawm, quando define o Tempo Presente como o “nosso próprio tempo”[1] aponta para essa “história em aberto”, uma história cuja dinâmica parece dificultar a apreensão de movimentos de mudança ou de persistência de permanências. Contudo, o “fato” analisado numa perspectiva crítico-científica de história-processo, não se mostra desconectado ou deslocado da realidade histórica que lhe dá sentido. Para que as análises do presente, mesmo parciais e provisórias, não se restrinjam às interpretações desconexas, fragmentadas, desarticuladas e superficiais da “cena contemporânea”, devem identificar e avaliar tendências e esclarecer as mudanças básicas de estrutura que funcionam como sedimento do contexto analisado.
As dificuldades encontradas na construção da História do Tempo Presente devem ser encaradas a partir da perspectiva de que o fundamental é fornecer uma base explicativa que, mesmo efêmera, seja plausível. Desta forma, responde-se, legitimamente, a uma primeira demanda sobre o assunto em questão. Para tanto, deve-se ressaltar o papel que cumpre a utilização de uma perspectiva global e lógica da história; tal perspectiva enfatiza a necessária vinculação entre o acontecimento e o processo histórico que torna inteligíveis os marcos balizadores da “história mais contemporânea”. Isto é fundamental, pois é a partir de uma base analítica que se pode apreender a história como processo, e não como fragmentação desarticulada, ligando o presente aberto, com todas as suas possibilidades, com o passado mais recente.[2] Em relação às Ditaduras de Segurança Nacional[3], as primeiras tentativas de armar tal “quebra-cabeça” se defrontaram com inúmeras lacunas resultantes de “proibições oficiais” e de silêncios cúmplices dos primeiros governos pós-ditaduras. Tal situação foi o fruto de negociações que encaminharam processos de transição política e redemocratização em um quadro de relação de forças onde os militares impuseram, como condição essencial, o silêncio institucional e a impunidade presente e futura dos seus atos passados. Como conseqüência disso, os arquivos oficiais foram interditados ou removidos, reduzindo a possibilidade de conhecer aquele passado traumático somente através da única informação disponível, a dos sobreviventes e das vítimas. Quer dizer, através de uma informação fortemente marcada pela fragmentação da experiência nas difíceis situações do cárcere político, do exílio, da clandestinidade e do medo cotidiano.
O fato de que algumas das explicações plausíveis sobre processos do Tempo Presente permaneçam provisórias, não desmerece o esforço por tentar dar sentido a cenários ainda desordenados ou com lacunas. Em realidade, o que para alguns pode ser uma demonstração de insuficiência ou fragilidade dessa metodologia, é, ao contrário, uma das suas principais características. Nesse sentido, mesmo com todas as carências evidentes, uma primeira sistematização desse emaranhado de informações sobre acontecimentos que muitas vezes são apresentados de forma caótica pela grande mídia (por exemplo, a superinformação fragmentada e desconecta sobre conflitos étnicos ou crises financeiras globais que irrompem “de repente”), pode constituir um ponto de partida mais qualificado para futuras análises. Em decorrência disso, essa primeira sistematização/ordenamento/esclarecimento inicial de informação realizado pelo historiador do presente, contribui, também, no posicionamento da sociedade diante de fatos que começam a se tornar mais compreensíveis, como no caso das primeiras exigências de Verdade e Justiça em relação aos regimes autoritários do Cone Sul. Essa é, logo, uma outra função vital da História do Tempo Presente. Aquela que possibilita que, com as suas primeiras interpretações dos fatos, os setores sociais que se sentirem lesados durante experiências traumáticas, possam agir com certa agilidade e imediatismo na esfera da Justiça, sem esperar pesquisas que poderão demorar décadas em ser produzidas, se realmente só forem validadas como tal, aquelas que se apóiam na lógica dos documentos oficiais e no distanciamento cronológico entre os sujeitos que analisam e os fatos acontecidos.
Em outra ordem de coisas, a análise do Tempo Presente demanda, mediante pressupostos teóricos, o dimensionamento, a hierarquização, a contextualização, a inserção e a relação dos eventos com o processo histórico. Sua natureza científica da apreensão está garantida se os historiadores que trabalham nesse campo e com essa abordagem consideram as seguintes operações metodológicas: a análise do acontecimento com profundidade histórica; o rigor crítico no trabalho com as fontes; a explicação dos fatos, hierarquizando-os e integrando-os numa perspectiva de processo.[4] Em outras palavras, a necessidade de considerar uma abordagem teórica macro-explicativa (abrangendo e interelacionando as variadas esferas), processual (fundamentada no passado histórico), estrutural (construindo explicações mais consistentes assentadas nas regularidades para assim identificar tendências, permanências e rupturas), global (dimensão essencial do Tempo Presente em função da intrínseca associação entre as diferentes realidades) e dialética. Complementarmente a estas questões é preciso apontar que o especialista do presente, dadas as características do próprio cenário do Tempo Presente precisa ser um historiador generalista, ou seja, aquele que, terá como objetivos fundamentais a procura de uma compreensão que vá além da superfície do que é visível (mesmo sabendo que, pela urgência da sua atuação, o grau de profundidade da sua análise seja diferente daquele historiador que trabalha com objetos já sedimentados dentro de uma lógica temporária de maior duração) e que, acima de tudo, procure fazer as conexões possíveis (temporais, geográficas, sociais, econômicas, etc).
A inconclusão dos processos analisados constitui uma outra problemática importante dessa abordagem. Entretanto, ela também é outra das suas especificidades e expressa a sua condição de inacabada, em fase de realização.[5] Pode ser a marca de um evento ainda em estágio aberto quanto a todas as suas possibilidades de desenvolvimento. Mas também pode ser, como no caso das experiências autoritárias do Cone Sul, o reconhecimento de que a análise científica sobre eventos decantados há várias décadas, ainda está relativamente limitada pela persistência de um silêncio oficial instituído. Porém, essa limitação que reforça o caráter provisório da explicabilidade sobre tais acontecimentos, na lógica do Tempo Presente, não pode ser vista como insuficiência da análise, no sentido de ausência de rigor científico da mesma. Em realidade deve, sim, ser vista como especificidade de um método de abordagem que procura dar inteligibilidade inicial a fatos pontuais ainda nebulosos.
No caso das Ditaduras de Segurança Nacional, o fator inconclusão está relacionado, principalmente, às dificuldades já apresentadas sobre a acessibilidade das fontes oficiais assim como ao tempo necessário para que certos “testemunhos vivos” venham publicamente a se pronunciar, sejam eles vítimas ou repressores (no caso destes últimos, são os que Martha Huggins nomeia operários da violência[6] e que eu identifico como semeadores de medo[7]). Há consciência sobre a falta de informação em relação a aspectos pontuais e a questões individuais que se ressentem da falta de esclarecimento, inclusive dos governos posteriores às ditaduras. O silêncio institucional constrange os fundamentos básicos da democracia ao gerar impunidade e reforçar a sensação negativa de persistência da corrupção e do medo estrutural de uma sociedade onde o funcionamento da justiça parece não ter, como objetivo básico, a proteção dos cidadãos nem o tratamento igualitário destes diante da lei. Por outro lado, uma espécie de sinistro “pacto de silêncio” das Forças Armadas, semelhante em toda a região, tem contribuído, sistematicamente, para bloquear a luta da busca da verdade por parte dos familiares e amigos dos mortos e desaparecidos. Entretanto, se é bem verdade que ainda falta muito por descobrir sobre as experiências repressivas recentes, as tendências gerais das mesmas, bem como seus aspectos essenciais, são conhecidos. Tal afirmação não significa desconhecer que, a eventual abertura de novos arquivos oficiais ou o acesso a novos depoimentos de ex-integrantes do sistema repressivo, possam apresentar, efetivamente, dados qualitativos que, extrapolando demandas e interesses particulares (por exemplo, das famílias dos desaparecidos), contribuam para maior precisão de algumas análises.
Um questionamento comum às abordagens sobre o Tempo Presente parte do pressuposto de que falta objetividade no produto que resulta de uma ação intelectual onde analista e fato a ser analisado são contemporâneos entre si e compartem o mesmo cenário. Este entendimento, na prática, inverte o eixo da questão, pois o componente subjetivo, nunca está totalmente ausente do exercício de produção de conhecimento, independente de ser uma temática vinculada ao presente mais imediato ou a um passado remoto. É no uso conseqüente de instrumental teórico-metodológico, de conceitos pertinentes e de abordagens ancoradas em marcos teóricos rigorosos que se pode superar ou limitar o impacto produzido pela pressão da carga subjetiva imanente a todo analista. O diálogo crítico e fluído com as fontes existentes e com o conhecimento socialmente produzido e acumulado reforça o rigor científico da pesquisa. Logo, uma história objetiva não anula o sujeito, mas há mecanismos de controle e aferição do mesmo e que garantem a legitimidade e validação científica do que é produzido.
Diante dos argumentos apresentados pode-se afirmar que a análise do Tempo Presente e, especificamente, quando aplicada à experiência das Ditaduras de Segurança Nacional, coloca o desafio de entender que há contemporaneidade do autor com seu objeto de estudo e que, independente de ter consciência disso, ele está imerso tanto naquele contexto analisado (quando efetivamente ocorreram os fatos em questão), quanto no cenário sobre o qual se projetaram seus desdobramentos posteriores. Longe da crítica da falta de objetividade, Josefina Cuesta identifica, em esta inflexão particular, um dos aspectos centrais da metodologia da História do Tempo Presente, a dimensão de coetaneidade, ou seja, a simultaneidade de existência concreta entre o historiador e seu objeto de estudo, ambos sobre o mesmo plano, ao mesmo tempo.[8] Inegavelmente, essa situação gera momentos de tensão entre a objetividade do historiador e a subjetividade da experiência vivida. O reconhecimento da relação marcada pela coetaneidade entre o evento e sua análise permite identificar, em relação ao sujeito-historiador, a existência e a manifestação de lembranças, de sentimentos e de imagens de um cotidiano passado que se torna presente, em diversos momentos da pesquisa e da produção do texto.
Vinculado à produção do conhecimento científico e ao debate objetividade-subjetividade situa-se certa atitude de julgamento do passado expressa por alguns historiadores, iniciativa que perturba a cientificidade balizadora da produção de conhecimento. A função primordial do historiador (e é claro, também do historiador do presente) não é julgar o passado e sim decodificá-lo, interpretá-lo e explicá-lo. As motivações de ordem político-ideológicas, sempre sedutoras, não devem ofuscar o rigor da transparência da análise. Carlos Pereyra[9] aponta para o efeito negativo da substituição da interrogação sobre o por quê por aquela que inquire quem é o culpado? Essa inversão de centralidade confunde o objeto e o objetivo da ciência histórica. Sua invocação julgadora acaba sendo desrespeitosa com o conjunto da sociedade, a quem cabe efetivamente decidir o que fazer com esse conhecimento produzido e socializado. Dentro de essa perspectiva, optar por determinados temas já é um sinal significativo de querer contribuir na resolução de questões não respondidas pertencentes a temas abertos do Tempo Presente marcadas por experiências traumáticas e induzidas a uma condição amnésica por parte do poder vigente. O trabalho de pesquisa que levanta dados, afere informação, identifica arquivos, relacionar fatos, explica processos e propõe conclusões expressa um trabalho social de primeira grandeza. Esse produto poderá, se conhecido, ser apropriado pelo conjunto da sociedade, cenário e instância legítima para tomada de decisões cidadãs de toda ordem como, por exemplo, a de querer julgar determinados fatos. Quer dizer, o conhecimento gerado pelas pesquisas sobre as Ditaduras de Segurança Nacional pode ser utilizado pela sociedade, se for do seu interesse, para posicionar-se e levar adiante suas exigências de Verdade e Justiça. Esta é uma das grandes contribuições sociais que a pesquisa pode oferecer.
Em último lugar, cabe vincular a problemática do Tempo Presente a uma outra questão, também fundamental: a tensão entre o lembrar e o esquecer. No caso das ditaduras latino-americanas recentes, entretanto, a questão do esquecimento relaciona-se a uma ação institucional de esquecimento induzido, “de cima para baixo”, desmemoria. Esta desmemoria, tem sido um dos aspectos centrais na complexa relação lembrar-esquecer, ao mesmo tempo que, tem explicitado o desconhecimento de parte desse passado diante da impossibilidade concreta de conhecer e acessar certos fatos que deveriam permitir a elaboração e a seleção de lembranças. Sem dúvida, a desmemória tem sido sinônimo de silêncio ou de apagamento da memória; mas, simultaneamente, também tem sido o silêncio e o apagamento de parte da própria história. Por isso, a análise da temática da memória permite reconhecer a existência do esquecimento, dos silêncios e dos não-ditos. O esquecimento pode resultar de uma opção individual ou coletiva de restringir certas lembranças ao essencial. Mas pode também servir para uma ação qualitativamente diferente, a de ocultar. Diante disso, é sempre útil a fórmula que propõe Peter Burke: “quem quer que quem esqueça o quê e por quê”.[10] Esta fórmula de desnudamento dos interesses concretos permite entender a amnésia social, os atos de esquecimento e os interesses dos protagonistas no embate.
Para que a memória tenha significado para o ser humano, este deve esquecer a maior parte do que viu, ouviu e experimentou. Essa é uma condição básica do lembrar. Além de classificar, combinar e destacar lembranças o ser humano deve poder esquecer. O esquecimento deve ser uma opção, principalmente no que diz respeito a experiências traumáticas como a tortura, o seqüestro, os expurgos, os fuzilamentos simulados, os desaparecimentos, as prisões, o exílio, o insílio, o desexílio, as detenções clandestinas, o “botim de guerra”, as execuções e outras modalidades de violência repressiva estatal, todas elas políticas de terrorismo de Estado encontradas, de forma geral, nos regimes de Segurança Nacional. Esta é a conclusão de especialistas como Mauren e Marcelo Viñar, Daniel Gil, Diana Kordón e Horacio Riquelme, os quais, há anos, acumulam experiência no tratamento e na recuperação de pessoas que tiveram essas vivências traumáticas.
Inegavelmente, as ditaduras do Cone Sul, com as suas conhecidas motivações repressivas de controle, de censura e de enquadramento de memórias e de consciências, fomentaram um “esquecimento organizado”, o que se consolidou com o encaminhamento de leis de anistia ou similares, que tentaram impor esse esquecimento institucional da violência executada dentro da dinâmica estatal. Se esse esquecimento institucional se expressou na forma da anistia, a impunidade, a corrupção, a banalização da violência e o imobilismo foram efeitos da tentativa de impor uma “amnésia coletiva” sobre a sociedade civil e se projetaram como parte dos desdobramentos não-resolvidos que conectam a conjuntura atual dos países da região, em processo de consolidação da democracia de cunho eleitoral, com esse passado recente que não deixa de estar presente.
Paralelamente, os defensores da desmemória da violência do terrorismo de Estado produto da aplicação das diretrizes da Doutrina de Segurança Nacional, apostaram, com relativo sucesso, na apatia resultante da combinação singular dos efeitos (nem tão) residuais da “cultura do medo” (implementada durante a experiência autoritária) com a “cultura da desesperança” (resultante dos efeitos da posterior onda neoliberal). Também apostaram na ação do tempo, desmobilizando pressões e isolando sobreviventes e vítimas. Ou seja, a espera de que a passagem do tempo silenciasse os sobreviventes e os familiares das vítimas atingidas. Em relação aos desaparecidos, a morte daquela geração configuraria, segundo aquelas previsões, a ausência definitiva de tal caixa de ressonância; o decorrente silêncio apagaria o último vestígio da luta pela memória dos desaparecidos, configurando um “desaparecimento” final das vítimas concretas assim como de toda discussão a esse respeito.
Na prática, a falta de respostas concretas para as questões que conectam o passado recente da ditadura com o nosso atual Tempo Presente, correspondem a ações que continuam atingindo, por omissão ou desrespeito, à história, à memória, à justiça, às vítimas da dinâmica repressiva e às novas gerações que têm interditado o conhecimento e a experiência da geração anterior, experiência que constitui história e que pertence a todos enquanto coletividade. A persistente tentativa de institucionalizar o silêncio oficial, e a tentativa de suprimir a memória coletiva tornaram-na palco de batalha política.
Na perspectiva da análise do Tempo Presente, a natureza e a diversidade de fontes existentes, assim como a amplitude da documentação disponível, permite ao historiador realizar os cruzamentos e as verificações correspondentes para realizar suas avaliações e elaborar suas conclusões. No que diz respeito às fontes sobre os regimes de Segurança Nacional, tal problemática também está colocada e essa preocupação deve ser vital na postura do pesquisador. Tal cautela deve nortear o tratamento a ser dado, por exemplo, aos depoimentos e aos testemunhos, uma das fontes que têm se tornado freqüentes nos últimos tempos. Por mais sedutoras que possam ser essas falas, é fundamental perceber o quanto elas podem ser produto da aplicação consciente de filtros “corretores” ou que podem estar marcadas por “lapsos” que incidem nessa complexa dimensão que é a memória. Justamente, a existência de testemunhas/protagonistas dos acontecimentos, verdadeiros arquivos vivos, e a oportunidade de ouvi-los, são das particularidades mais valiosas que o Tempo Presente disponibiliza. O fato do pesquisador poder ter contato direto com tal testemunha, trocando informações, fornecendo pontos de vista, aferindo o conhecimento nas fases de coleta de dados, de elaboração de hipóteses, de sistematização de dados e até de publicização de resultados parciais ou finais, é um trunfo para quem trabalha com períodos históricos recentes. Sem dúvida, esses arquivos vivos constituem-se em fonte interativa e aferem, enquanto tal, as informações colhidas durante a caminhada da pesquisa e interagem, como protagonistas dos eventos analisados, com a leitura interpretativa do factual. Contudo, é claro, não podem ser utilizados como fonte exclusiva dos acontecimentos em questão, sob risco de produzir leituras idealizadas, parciais, laudatórias, apologéticas, etc.
O mesmo tipo de problema ocorre se a pesquisa for baseada exclusivamente em jornais, ignorando os interesses em jogo por detrás das informações contidas nos mesmos, sobretudo se não há uma posição política assumida. Há jornais que permanentemente tiveram que enfrentar a tensão resultante da procura de um limitado equilíbrio de sobrevivência entre a ameaça da censura e da autocensura preventiva. Já outros foram orgânicos das ditaduras (em termos políticos, ideológicos e econômicos) e tiveram oportunidade de beneficiar-se de múltiplas formas, como nos casos dos jornais O Globo brasileiro e El Mercurio chileno, embora seja necessário destacar, que, em alguns casos, houve gradativo distanciamento crítico nos momentos finais daqueles regimes autoritários. Por outro lado, a evolução da mídia nas últimas décadas coloca um novo desafio para a metodologia de análise do Tempo Presente, a configuração dos grandes conglomerados de informação. Efetivamente, tais conglomerados detêm crescente concentração de informação (em escala planetária), multiplicidade de mídias através das quais se expressam, e intensa diversificação de seus investimentos, tornando-se cada vez menos empresas de comunicação, enquanto acentuam sua inserção corporativa na lógica do mercado e das concepções globalitárias.
Ainda em relação ao uso das fontes, cautela semelhante ao uso dos testemunhos e dos jornais deve ser manifestada no tratamento dado aos denominados documentos oficiais, cuja lógica interna (informação, contra-informação, pontos de vista, etc.) pode capturar o leitor desatento prejudicando seu discernimento quanto à avaliação dessa documentação específica levando-o a uma aceitação tácita de que o seu conteúdo é expressão imediata de veracidade. Por outro lado, pode ocorrer, com essas fontes oficiais, um problema de outro teor, ou seja, a existência de limitações importantes quanto ao seu livre acesso, seja em função da falta de sistematização ou pelas restrições impostas por parte das administrações governamentais (o problema concreto da desclassificação dos documentos oficiais). Tal situação conforma, segundo alguns críticos da interpretação do Tempo Presente, uma situação de “história sem arquivo”. Segundo eles, isto inviabilizaria a formulação de uma análise histórica do período recente diante da impossibilidade de efetuar um levantamento exaustivo das fontes tradicionais. Trata-se de uma crítica baseada em uma visão muito estreita que, de certa forma, além de evidenciar a vigência de um lastro positivista, considera inviável a investigação histórica sem o acesso aos arquivos estatais. Na projeção lógica dessa argumentação, as pesquisas sobre experiências traumáticas de Segurança Nacional estariam interditadas aos historiadores já que, de forma geral, os arquivos militares permanecem desaparecidos. Por detrás dessa singela equação há um elemento muito mais nocivo para a sociedade e para a consciência cidadã. A desqualificação do campo da pesquisa sobre as ditaduras seja pelo argumento da ausência de documentos oficiais ou por qualquer outro motivo, deixa transparecer, implícita ou explicitamente, uma ação invisível que impossibilite atender às legítimas demandas sociais de Verdade e Justiça que setores significativos das sociedades da região continuam reivindicando.
Passando da avaliação das fontes para a dos arquivos, se deve fazer a distinção entre os arquivos sobre a repressão e os arquivos repressivos.[11]Os arquivos sobre a repressão são o produto da atuação das organizações de direitos humanos; quase sempre, foram os primeiros que foram organizados e tornados públicos (inclusive, ainda durante a vigência dos regimes de exceção), com o objetivo de assessorar e embasar demandas de informação ou atitudes de denúncia. Fundamentalmente, se compõem de testemunhos e depoimentos de sobreviventes, listagens de vítimas, de repressores (“vitimários”) e de locais de detenção (legais ou clandestinos) bem como de acervos fotográficos, cópias de documentos de identidade e relação de vítimas com suas organizações políticas e sociais de origem. Estes arquivos foram essenciais na elaboração das primeiras avaliações sobre as experiências traumáticas específicas se constituíram, também, em fontes seminais para os primórdios da pesquisa jornalística e histórica sobre aquele período. Seus idealizadores e administradores foram aquelas pessoas reconhecidas como empreendedores da memória, as quais, mesmo em condições difíceis, defenderam a necessidade de documentar tudo o que era possível, particularmente diante da negativa estatal de dispor sua documentação.
Quanto aos arquivos da repressão, estes podem conter duas categorias de documentos. De um lado, o conjunto de objetos roubados das vítimas ou expropriados de organizações que foram alvo da violência estatal, como documentos, livros, fotos, objetos, atas de reunião, fichários de associados, panfletos e outros materiais. Do outro lado, estão os documentos repressivos propriamente ditos, ou seja, aqueles produzidos pelas forças de segurança durante as ações repressivas (batidas policiais, seqüestros, interrogatórios, torturas, etc.): dossiês, fichas, pastas, pedidos de informação ou de busca, confissões, ordens de serviço, etc. Trata-se da documentação produzida pelas cadeias de comando das forças de segurança mediante trabalho meticuloso e burocrático de levantamento, de extração de informação e de checagem da mesma; às vezes, dependendo de como foi obtida essa informação ou da qualidade da fonte, pode estar carregada de falsidade. Característico destes arquivos foi o fato de que a informação obtida circulou em rede pela estrutura da burocracia repressiva sendo que, no plano da coordenação repressiva regional, extrapolou fronteiras e conectou esquemas binacionais e, depois, a própria estrutura Condor.[12]
O debate sobre a existência dos arquivos repressivos, da sua destruição[13] ou das dificuldades dos governos democráticos em descobri-los, torná-los públicos ou tornar menos rígida a legislação específica para seu acesso, é parte dos problemas com os quais se defrontam, na atualidade, os pesquisadores do presente. A disputa pela sua abertura está contaminada pelo tema do revanchismo, acusação feita por setores vinculados ou simpatizantes do antigo establishment autoritário aos setores que exigem conhecer a verdade sobre aqueles fatos do passado recente. É o medo de que apareçam os nomes dos responsáveis pela aplicação da tortura, nomes de delatores, o uso de métodos criminosos, confirmação de apropriação de bens, posturas ignóbeis, etc.
Mas há uma outra questão delicada, para as vítimas, em decorrência do perfil da documentação que deve estar contida naqueles arquivos. Documentação considerada “material sensível”. Documentos que podem ser portadores de informação delicada em função da possibilidade da exposição das vítimas. Se for documentação inverídica que registra falsos testemunhos e manipula informação, obriga às organizações de direitos humanos a assumirem uma ofensiva de esclarecimento e de manifestações de indignação, protegendo as vítimas e seus familiares de qualquer difamação. Porém, em caso de que essa documentação não seja falsa, pode revelar, em relação aos sobreviventes, memórias traumatizadas e escondidas, lembranças apagadas. Pode trazer de volta imagens e sensações de dor, humilhação, constrangimento; talvez, a exposição da fragilidade, da claudicação. Pode revelar condutas ambíguas diante da provação, da ameaça de violência e da aplicação da violência concreta. Esse “material sensível” pode ser gerador de angústia, de temor da publicização de comportamentos provocados pela aplicação do terror na forma mais direta e brutal. No fundo, há o temor de que, descontextualizados, tais comportamentos possam ser incompreendidos e seja atingida a imagem que a vítima construiu ou teve construída como sobrevivente. Desde a perspectiva das vítimas, a exposição pública desse “material sensível” sobre aquele período das suas vidas pode gerar nova experiência traumática, e esta, por sua vez, atingir os mecanismos de defesa (inclusive frente ao seu entorno mais imediato), construídos para enfrentar a retomada da vida cotidiana após tal sofrimento. Portanto, há uma discussão ética que diz respeito à tênue fronteira entre o que é de foro privado e o que é de tratamento público.
Em geral, as organizações de direitos humanos consideram que, no caso das vítimas, deve haver o consentimento destas para qualquer divulgação de informação e/ou documentação a seu respeito, evitando situações constrangedoras das mesmas. Quanto aos “vitimários”, confirmada a veracidade das informações, as organizações consideram desnecessária tal preocupação, pois foram eles os que, mediante tratamento desumano, causaram e continuam causando, nas memórias das vítimas, constrangimento e dor. Também se entende que eles têm sido sistematicamente preservados pelos mecanismos da impunidade, da imunidade e da desmemoria (esquecimento induzido).
A importância da abertura dos arquivos repressivos está vinculada a quatro dimensões do exercício da cidadania (individual ou coletiva): histórica, política, pedagógica e administrativa. Em termos históricos, implica na possibilidade de desenvolver a pesquisa sobre os acontecimentos na produção de conhecimento histórico e na sua socialização. Em termos políticos, possibilita que a sociedade, de posse desse conhecimento, se posicione sobre tais acontecimentos e, se assim o entender, responsabilize os culpados e apele à justiça. Em termos pedagógicos, o conhecimento desse passado pode gerar “ações” (pedagógicas) que reforcem o caráter democrático e a necessidade de não esquecer. Por último, em termos administrativos, as pessoas que se sentem prejudicadas individualmente pelas ditaduras podem exigir, junto à justiça, direitos de reparação, restituição de empregos ou de bens, fim de punições e expurgos, etc., o que significa a possibilidade de reconstruir memórias “lastimadas” pela tortura, pela perseguição política e pelo exílio. Neste caso particular, a existência de documentos gerados pelo sistema repressivo para, originalmente, perseguir e condenar às vítimas pode ser utilizado, após o final da ditadura e a superação do entulho persistente, para mostrar que aquelas foram vítimas do sistema repressivo; ou seja, o mesmo documento criado para justificar a detenção ou a condenação de alguém, no contexto discricionário, pode servir, depois, para desempenhar um papel diametralmente oposto ao qual foi concebido. Feito para acusar e punir sua posterior existência se torna prova que incrimina a violência estatal; é o denominado efeito bumerangue dos documentos repressivos.
Finalmente, deve-se esclarecer que não se pode ter a expectativa de que esses documentos, quando revelados, se tornam portadores de uma verdade cristalina, trazem informações essenciais ou grandes novidades e descobertas. A própria legitimidade das informações ali coletadas deve ser questionada com muita cautela, pois são informações que, em muitos casos, foram arrancadas das vítimas em situações constrangedoras, sob forte coerção ou, então, elaboradas por funcionários estatais (policiais, militares, diplomatas, médicos, funcionários públicos, etc.) que transmitiram a informação de acordo com seus interesses e simpatias, dos seus chefes ou das instituições em que desempenharam funções. Como já se afirmou, a validação desses documentos para a pesquisa ocorre na medida em que são cruzados com outras fontes a fim de aferir a veracidade de informações. Geralmente eles confirmam o que já se sabia, o que era comentado em voz baixa, em sussurro, o que circulava como suspeita ou denúncia. Portanto, os documentos elaborados pelo Estado repressivo, além de ajudar a precisar questões pontuais (individuais e/ou coletivas), conferem legitimidade e credibilidade às denúncias realizadas muitos anos antes.
Para fechar esta discussão reforçamos que o questionamento do uso de fontes que possam ser percebidas como insuficientes para atender as necessidades da dinâmica colocada pelo Tempo Presente, se mostra insustentável, pelo menos no que diz respeito ao caso das Ditaduras do Cone Sul. A variedade de materiais existentes que podem ser potencialmente transformados em fontes de pesquisa contribui para superar os entraves colocados pela falta de acesso a determinados documentos estatais e proporciona, através do cruzamento das mesmas e da análise resultante, exercícios de complementação, aferição, comparação e interdição das informações coletadas. Se o cruzamento de fontes é uma necessidade do rigor metodológico da história, esta exigência deve ser muito maior quando se trata de analisar processos traumáticos recentes, pois é a única forma de evitar, também, o subjetivismo de protagonistas que estão disputando politicamente um cenário ainda marcado por importantes lacunas e onde se confrontam opções, trajetórias, justificativas, interpretações, memórias e histórias.
François Bédarida,[14] quem tanto contribuiu na difusão do debate sobre o Tempo Presente e na aplicação metodológica dessa perspectiva, indicou, em seu momento, que o historiador não pode omitir-se quando experiências históricas traumáticas são atingidas por um processo de questionamento de fundo negacionista. Embora ele se referia especificamente ao caso nazista, pode-se traçar um paralelo entre a tentativa de “apagamento” daquela experiência histórica e a das Ditaduras de Segurança Nacional. Estas também apelaram para fórmulas conhecidas de desresponsabilização dos seus atos. Ignoraram acusações concretas, negaram fatos, geraram pistas falsas, mentiram, assumiram posturas negacionistas, impuseram anistias protetoras e, em tempos de democracia, garantiram a impunidade das suas decisões. Bédarida argumentava que, diante de tais fatos, o saber do historiador devia extrapolar as fronteiras do cenário acadêmico e devia intervir na esfera pública a fim de pronunciar-se diante das manifestações desses fenômenos.
Nesse sentido, o Tempo Presente é cenário privilegiado para esse tipo de embate. No caso do Cone Sul, esse cenário está marcado e remarcado pela experiência vivida e sofrida das Ditaduras de Segurança Nacional e por um presente onde inúmeras questões vinculadas àquela dinâmica, não deixam de se manifestar. Assim, muitas são as questões que permanecem abertas, inconclusas ou como sintomas de algo que ainda não terminou de passar: a falta de respostas sobre tudo que diz respeito aos desaparecidos (inclusive, a devolução dos restos mortais às famílias), a não-abertura dos arquivos repressivos, a violência policial e a persistência da tortura, a criminalização de movimentos sociais, a impunidade, a corrupção, a desresponsabilização dos crimes (políticos, econômicos, éticos) cometidos durante as ditaduras, a postura corporativista e antidemocrática das forças armadas sonegando informações sobre seus atos, os vôos do Condor, etc. A procura de tantas respostas e a superação dos entraves que persistem no tempo exigirão atenta e contínua atuação do historiador do presente e das suas ferramentas analíticas e metodológicas.