Resumo: O artigo apresenta um panorama do conjunto das lutas em prol da anistia que se desenrolaram no Rio Grande do Sul, ao longo da segunda metade dos anos 1970. Situa estas lutas no seio de um vigoroso processo social que foi contemporâneo do projeto governamental da Abertura, relacionando as mesmas com a retomada do trabalho de massa e com o surgimento de novos protagonistas políticos. Destaca o pioneirismo das mulheres e a importância da pesquisa histórica atentar às representações e às batalhas de memória em torno da ditadura e da redemocratização.
Palavras-chave:AnistiaAnistia,Rio Grande do SulRio Grande do Sul,Novos movimentos sociaisNovos movimentos sociais,MemóriaMemória.
Abstract: This article presents an overview of the fights for amnesty which took place in Rio Grande do Sul during the second half of the 70’s. It places such fights amidst a vigorous social process which was contemporary to the government opening project (Abertura) and relates them to the taking over of mass work and to new political leading figures who were coming up. It also highlights the pioneering participation of women and the importance of historical research which was attentive to representations and to memory struggles around dictatorship and redemocratisation processes.
Keywords: Amnesty, Rio Grande do Sul, New social movements, Memory.
Artigos
Para uma história da luta pela anistia: o caso do Rio Grande do Sul (1974 – 1979)
Recepção: 01 Agosto 2008
Aprovação: 01 Novembro 2008
O presente artigo apresenta um panorama do conjunto das lutas em prol da anistia que se desenrolaram no Rio Grande do Sul, ao longo da segunda metade dos anos 1970. Faz parte de um esforço de pesquisa em andamento, que pretende investigar a relação entre a bandeira da anistia e outras lutas e discussões emergentes no período, destacando especialmente a participação e a liderança das mulheres numa conjuntura de retomada das mobilizações populares, frente ao projeto governamental da Distensão e da Abertura.[1]
A aproximação do ano de 2009, no qual serão lembrados os 30 anos da Lei da Anistia de 1979, foi o primeiro incentivo para a proposição e desenvolvimento deste estudo. Assim como aconteceu com outras efemérides – os 100 anos da abolição e da República, os 40 anos do golpe de 64, os 50 do suicídio de Vargas, e os 40 anos de 1968 – o próximo ano tende a ser pontilhado por eventos e publicações relativas, no caso, à anistia. Neste quadro, que contribuição os historiadores poderão dar aos debates?
Diversos fatores tendem a limitar as discussões sobre a Anistia aos seus desdobramentos atuais, especialmente no que se refere às perspectivas de revisão da lei de 1979 e às indenizações a atingidos pela ditadura. Sem desprezar a oportunidade que será proporcionada pela “comemoração” dos 30 anos da Lei para que estas questões sejam equacionadas, creio que isso não será possível sem que sejam levadas a efeito cuidadosas incursões no campo da história. Ao mesmo tempo, destaco a importância de dar visibilidade aos vigorosos processos que se desenrolaram no Rio Grande do Sul entre 1974 e 1979, parte dos quais tiveram à sua frente as mulheres. Isso ajudará a repensar abordagens muito centradas em eventos que transcorreram no centro do país e no protagonismo masculino.[2]
Mesmo que o tema da Anistia “solicite” uma abordagem de história política - uma história preocupada com as disputas pelo poder e com o controle dele -, esta história política deve, sem dúvida, ser fecundada pelas reflexões de outros campos que permitam vislumbrar, no seio das mobilizações em prol da anistia, as representações construídas, as relações de gênero presentes, as memórias em disputa, a emergência de novos protagonistas, etc.
O projeto da anistia do governo João Batista Figueiredo foi enviado ao Congresso Nacional em junho de 1979, dando continuidade à política de distensão iniciada em 1974, pelo presidente Ernesto Geisel. O ano de 1974 pode ser considerado um marco nos rumos da ditadura. Neste ano tem-se, ao mesmo tempo, a proposta da distensão, oriunda de um regime que se sentia forte, e a transformação do MDB em partido com significativo potencial de oposição. Inaugurava-se, ali, um período no qual as pretensões de institucionalização do regime e de transição pacífica para um governo civil passaram a conviver com a retomada cautelosa, mas insistente, da luta política. A luta pela anistia fez parte de, e alimentou, um vasto conjunto de iniciativas de setores da sociedade civil no sentido de acabar com a ditadura.
Ainda é pequeno o número de estudos que se dedicam à anistia de 1979. De seu escrutínio, pode-se chegar a duas diferentes abordagens: aquela que enfatiza a luta pela anistia como uma oportunidade de canalização de um conjunto amplo de demandas de transformação mais radical;[3] e aquela que situa o projeto governamental no quadro da abertura lenta, gradual e segura, que acabou garantindo uma transição conservadora do regime militar para o civil em consonância com a tradição de conciliação da política brasileira.[4] Apesar da presente proposta se identificar mais com o primeiro caminho – centrado no processo de luta pela redemocratização - procurará traçar relações entre tal processo e o projeto da abertura. Procurará, ainda, valorizar a experiência particular dos protagonistas. Para embasar tal proposta serão feitas, a seguir, algumas reflexões sobre a distinção entre projeto e processo e sobre a emergência das lutas democráticas.
A distinção entre projeto e processo já fazia parte do discurso daqueles que, no final dos anos 1970, lutavam contra a ditadura. Em estudo sobre as esquerdas no Brasil e no mundo naquela década, Maria Paula do Nascimento Araújo retoma documentos partidários e estudos acadêmicos que distinguiam “o projeto de abertura e o processo político concreto através do qual essa abertura se processou”.[5]É o caso de documento datado de fevereiro de 1979, no qual a Ação Popular Marxista Leninista (APML) denunciava a abertura como um projeto de “ditadura reformada” e concitava os movimentos sociais a alargarem “os contornos desta distensão, inviabilizando o projeto de uma transição ‘por cima’”.[6]Em direção análoga, a autora cita artigo publicado em 1981, no qual Werneck Viana distinguia “o projeto aberturista” do “processo social da abertura”. A mesma concepção, ainda segundo Araújo, norteou a análise sobre a “volta aos quartéis”, feita em 1995, por pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil (CPDOC), a partir de entrevistas com militares.[7] D’Araújo, Soares e Castro caracterizaram a abertura como “um projeto que se iniciou com autonomia pelo alto, com importantes passos liberalizantes, mas que logo virou processo, cujo rumo foi determinado por muitas forças”.[8]
Esta perspectiva também será adotada na presente pesquisa, mesmo que sua ênfase seja a das lutas pela anistia protagonizadas por diferentes organizações no Rio Grande do Sul, em especial em Porto Alegre, lutas que foram contemporâneas de outros processos de retomada do trabalho de massas. Neste caso, a anistia será encarada como uma bandeira agregadora do conjunto das oposições. A abordagem se aproxima do trabalho de Maria Paula do Nascimento Araújo, para quem a campanha nacional pela anistia deve ser vista como o ícone da frente política das oposições e da retomada do movimento de massa, “em todos os sentidos: na potencialidade mobilizatória e nos grandes problemas e divergências que levantava”.[9]Esta bandeira de luta, segundo a autora, conseguia congregar diferentes propostas políticas, segmentos sociais e gerações. Foi “um momento de congraçamento das esquerdas brasileiras com a sociedade civil, de aprendizado da luta política e de vitória (mesmo que parcial)”.[10]
A mesma autora caracteriza a luta pela anistia e as outras lutas contemporâneas como “democráticas” e como lutas de “resistência”. Com isso ela está enfatizando as transformações por que passaram as esquerdas ao longo da década de 1970, especialmente após a completa destruição da alternativa da luta armada e de boa parte dos seus militantes. Entre as organizações criadas ou reorganizadas no período, a volta ao trabalho de massas e à luta política legal colocou-se como a única possibilidade de enfrentamento da ditadura.[11] Procurou-se, com isso, romper o isolamento que havia marcado as relações entre a esquerda armada e a sociedade, durante os “anos de chumbo”.
Tais esquerdas, cuja emergência na Europa e nos Estados Unidos se dá no final dos anos 1960 e no Brasil na década seguinte, são caracterizadas pela crítica à experiência marxista e à idéia de representação, pela valorização dos aspectos subjetivos da experiência política e pela “afirmação das experiências particulares de vida”.[12]Neste quadro, cabem tanto as questões levantadas pelos movimentos de minorias como aquelas trazidas a público pelas tendências do movimento estudantil, braços legais de organizações clandestinas. Apesar do olhar crítico que estes grupos dirigiam aos caminhos trilhados pela esquerda tradicional e pela maior parte dos grupos da esquerda “revolucionária”, atuantes na fase anterior da ditadura, isso não significou rompimento com a perspectiva da revolução socialista.
As lutas seriam democráticas por revalorizarem os espaços de atuação política legal, espaços reconquistados com cautela e risco, e por alçarem a bandeira da volta ao Estado de direito.[13]Seriam de resistência por serem protagonizadas por atores ainda fracos frente à potência do inimigo, atores que resistiram à derrota, mas que mantiveram a esperança na vitória futura.
A proposta da revolução socialista, como foi apontado acima, ainda era o horizonte que unificava os diferentes grupos de esquerda. No entanto, o tema da revolução e das inúmeras divergências em torno dela (se seria diretamente socialista ou não; se se daria por via pacífica ou armada; se a luta deveria iniciar no campo ou na cidade; se contaria com as massas num primeiro momento ou não) perdeu importância. Tal tema havia tido lugar de destaque nas reflexões de intelectuais e militantes, desde antes do golpe de 1964. A perspectiva de que o país tinha entrado em um período de transformações aceleradas que o levariam a um novo patamar de desenvolvimento econômico, social e político era compartilhada por diferentes protagonistas no início dos anos 1960. Este conceito de Revolução está na base, por exemplo, do livro publicado por Caio Prado Jr., em 1966, A Revolução Brasileira. Nesta obra, o intelectual comunista criticava os caminhos trilhados pelo PCB e apresentava propostas para interferir neste processo revolucionário que ele acreditava ainda estar em curso, mesmo após o golpe.
Posteriormente, boa parte dos grupos que se envolveram na luta armada passou a ver a revolução não mais com um processo de transformações que levaria o país a outro patamar - destruindo os traços feudais ainda remanescentes ou tirando o país da situação de colônia - mas como a forma violenta de derrubada do poder militar. Neste quadro, especialmente após 1968, o trabalho de massas, mesmo quando reconhecido como importante pelas organizações, foi deixado de lado e, em muitas situações, impossibilitado pela repressão.
Um relato que tem características ao mesmo tempo literárias e memorialísticas pode ser usado para exemplificar duas situações de transição no campo da esquerda: a da opção pelas armas, frente à inviabilidade do trabalho de massas e, depois, a da percepção da derrota e do isolamento, em meados dos anos 1970, daqueles que pegaram em armas. Trata-se do livro de Renato Tapajós, Em Câmara Lenta, publicado em 1977, mas escrito nos anos anteriores.[14]
No primeiro caso, o protagonista participa do confronto armado entre estudantes da Filosofia da USP e de direito da Faculdade Mackenzie, em 1968. Ele está no prédio da Filosofia, vê seus colegas usando rojões e pedras para se defenderem de armas de fogo, assiste a um colega sendo assassinado, busca a colega perdida no meio da confusão. Neste contexto, o autor narra que: “um tiro arrancou um pedaço do batente da janela e ele se encolheu, a garganta apertada de raiva e de impotência. Não via mais nada, queria apenas ter em suas mãos uma metralhadora, para apoiá-la na janela e varrer aquele telhado, ver as balas abrirem buracos nas telhas, derrubar os inimigos como quem ceifa um campo. (...) Depois de um longo momento, conseguiu murmurar: ‘Nós também vamos ter armas. Eles vão saber quem é mais forte’”.[15]
Se pegar em armas pareceu, naquele momento, a forma de enfrentar o inimigo – no caso, militantes do Comando de Caça aos Comunistas, associados à polícia -, no segundo excerto, o mesmo protagonista faz reflexões sobre a experiência da luta armada da qual era participante. Sérios questionamentos são resultado da conversa que teve com um militante de outra organização, a qual teria começado a fazer um trabalho de massas, possivelmente no final da primeira metade dos anos 1970.[16] Essa fala se situa num momento em que o protagonista já havia perdido praticamente todos os companheiros e dele ter descoberto em que condições sua namorada fora assassinada. “Agora eu sei, eu sempre soube e não queria admitir, eu sabia e não queria saber que o gesto falhou porque quisemos fazê-lo sozinhos, que os outros, os que na verdade contam, o povo não viria atrás de um gesto isolado por mais belo, espetacular e emocionante que fosse”. Depois, admite que há organizações “que sabem disso e começam a fazer o trabalho, silencioso, invisível, subterrâneo, miúdo, paciente, o trabalho que vai explodir um dia numa grande onda...”.[17]
Como se vê este relato se aproxima muito da caracterização acima apresentada sobre as lutas da década de 1970, democráticas e de resistência. Lutas marcadas pela prudência e pela esperança.
A luta pela anistia iniciou bem antes da tramitação do projeto governamental. Já em 1975, quando se comemorava o Ano Internacional da Mulher, foi criado em Porto Alegre o Movimento Feminino Pela Anistia (MFPA), liderado pela socióloga Lícia Peres e pela escritora Mila Cauduro. Movimento congênere havia sido criado no centro do país por Terezinha Zerbini, que, já naquele ano, colheria 12 mil assinaturas num manifesto pela anistia política. Oito mil destas assinaturas foram recolhidas no Rio Grande do Sul, de acordo com a ata n. 2 do MFPA.[18] Em 1976, o Movimento participou de comícios do MDB na campanha para as eleições municipais, “por ser a anistia um dos pontos programáticos do partido das oposições”.[19]No ano seguinte, atuou em prol da libertação do jornalista Flávio Tavares, preso no Uruguai. Desde o final de 1978 e ao longo de 1979, fez esforços na campanha pela libertação de Flávia Schilling, presa também no Uruguai e de Flávio Koutzii, preso na Argentina. Trabalhou na articulação de um comitê unitário pela anistia no Rio Grande do Sul.
Tal comitê surgiu em 1978 e, neste mesmo ano, passou a ser chamado de núcleo gaúcho do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), organização de âmbito nacional. O CBA-RS, liderado na maior parte de sua existência, por Raquel Cunha Waldow, entre outras ações, promoveu discussões públicas sobre a anistia; participou das campanhas em prol da libertação dos gaúchos presos no exterior, acima mencionados; elaborou propostas para o projeto de anistia; manteve intensos contatos com exilados; mobilizou-se quando da votação do projeto pelo Congresso, em agosto de 1979. De abrangência mais ampla que o MFPA, o núcleo do CBA, pelas informações recolhidas até o momento, foi uma espécie de fórum de entidades da sociedade civil.[20] Dele participavam representantes do movimento sindical, do movimento estudantil, do movimento de justiça e direitos humanos, de organizações feministas e ambientalistas, familiares de mortos e desaparecidos, e também organizações políticas legais e clandestinas (como era o caso de setores do MDB e de organizações clandestinas que atuavam legalmente dentro do movimento estudantil, na forma de tendências).
Em 26 de julho de 1979, por exemplo, aconteceu na Assembléia Legislativa gaúcha uma reunião com a presença de três organizações voltadas para a anistia: os professores expurgados da UFRGS, os militares que haviam criado naquele ano a AMPLA, Associação de Defesa dos Direitos e Pró-Anistia dos Atingidos por Atos Institucionais e, ainda, um grupo de funcionários municipais de Porto Alegre.[21] Nas discussões ficaram claras as questões que cada grupo esperava ver contempladas na lei de anistia (como indenizações e reintegração) e também foi articulada a ida de representantes gaúchos a Brasília, no início de agosto, para participar do Congresso Brasileiro pela Anistia.
Até o momento foram recolhidas informações que permitem traçar o perfil três organizações pró-anistia atuantes em Porto Alegre: o pioneiro MFPA, como o próprio nome indica, era formado por mulheres, que desenvolviam ações de divulgação da causa e de busca de apoio entre parlamentares e entre outras autoridades. Para as militantes do Movimento, a principal demanda associada à anistia era a volta dos exilados. O CBA contava com a presença de mulheres e homens, os quais representavam diferentes organizações e movimentos sociais. Suas bandeiras, por isso, eram mais amplas e entre elas podemos citar o reconhecimento de mortos e desaparecidos, a libertação de presos políticos, a punição de torturadores, sem desprezar a importância da volta dos exilados. A AMPLA, por sua vez, era basicamente formada por homens, especialmente ex-militares, apesar de estar aberta à participação de funcionários e funcionárias públicas atingidos por atos de exceção. A reintegração profissional e a descriminalização dos atos dos atingidos apareciam como bandeiras centrais da luta.[22]Além do MFPA, do CBA-RS e da AMPLA, há indícios da importância do Setor Jovem do MDB e do Instituto de Estudos e Pesquisas Econômicos e Sociais (IEPES), ligado ao mesmo partido, na mobilização em prol da anistia. Entre os participantes destas organizações estavam ex-presos políticos que havia tido a experiência da luta armada e que, na conjuntura da segunda metade dos anos 1970, buscavam novos espaços para atuação política.[23]
Muito ainda está para ser descoberto em relação a estas organizações e seus membros, como por exemplo, seu perfil educacional e profissional, sua vinculação política, sua faixa etária, etc. Localizar quem foram estes personagens e dar visibilidade à sua atuação, à sua trajetória e às suas avaliações sobre a experiência vivida são desafios que se colocam na continuidade desta pesquisa.
A luta pela anistia foi contemporânea de um novo conjunto de movimentos sociais que emergiram na segunda metade dos anos 1970, os “movimentos de minorias políticas”, impulsionados pelo cenário internacional, mas também marcados pela conjuntura particular brasileira. Foi o caso dos movimentos feminista, negro, ambientalista e por liberdade de opção sexual, entre outros. Também foi contemporânea de intensa agitação estudantil, e do início da renovação sindical no campo e na cidade, como será demonstrado adiante.
O movimento feminista teve uma fase significativa de organização e crescimento na segunda metade dos anos 1970. O primeiro grupo feminista institucionalizado no Brasil, o Centro da Mulher Brasileira (CMB), do Rio de Janeiro, data de 1975, o mesmo ano da criação do Movimento Feminino pela Anistia, que não se identificava com o Feminismo. Este, enquanto “conjunto de teorias e práticas historicamente variáveis em torno da constituição e da legitimação dos interesses das mulheres”,[24] tem um marco no período de efervescência em torno e depois de 1968, nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, o feminismo adquiriu contornos peculiares, pela contemporaneidade com a ditadura. Segundo Raquel Sohiet e Flávia Esteves, o movimento feminista, “de um lado enfrentou a oposição do governo que via com desconfiança qualquer forma de organização da sociedade; de outro dos grupos de esquerda que consideravam que a luta deveria polarizar-se contra o governo autoritário e a desigualdade de classes, além de inúmeros destes grupos considerarem o feminismo como um fenômeno burguês”.[25]
Foram diversas as organizações criadas e também diversas as propostas de atuação, que iam desde a constituição de grupos de estudo até a ação educativa e de propaganda entre mulheres das camadas populares. A contemporaneidade com o projeto e com o processo da Abertura fez com que os grupos de mulheres se colocassem o desafio de definir qual o seu lugar naquela conjuntura que comportava o renascimento da luta política e do trabalho de massas.
Em Porto Alegre, de acordo com pesquisa de Natália Méndez, existiram sete grupos feministas entre 1975 e 1982: Costela de Adão, Grupo de Mulheres de Porto Alegre; Movimento da Mulher pela Libertação, Ação Mulher, Liberta, SOS Mulher e Acorda Maria.[26] A autora, preocupada em identificar o projeto político que estaria na base na criação e atuação destes grupos, conclui pela inexistência de um projeto homogêneo. Isso porque alguns dos grupos, a liberdade e a emancipação das mulheres não existiria até que não fosse mudado o modelo econômico. Para outros grupos, não seria suficiente acabar com o capitalismo, na medida em que consideravam que “a libertação mulher estava relacionada a uma transformação cotidiana nas relações sociais”. [27]
A bandeira da anistia também foi levantada no Rio Grande do Sul, assim como em outras partes do país, por órgãos da imprensa alternativa. De acordo com Aline do Amaral Garcia Strelow[28], circularam no estado desde 1967 até o início da década de 1980, 18 publicações que podem ser classificadas como alternativas. Algumas delas foram contemporâneas das lutas pela redemocratização, e especificamente, pela anistia. É o caso do Coojornal, jornal mensal da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, lançado em 1975 e que circulou por oito anos. Segundo Strelow, “suas páginas traziam críticas abertas ao governo e à censura. Anistia e eleições diretas eram algumas das bandeiras levantadas pelo jornal”.[29] Outro periódico publicado pelo mesmo grupo foi o semanário O Rio Grande, que circulou no estado entre maio e novembro de 1979. Além de centrar seu noticiário político em questões como a anistia e a reforma partidária, em sua breve existência, trouxe ao público uma considerável quantidade de matérias relacionadas ao período pós-64, contribuindo para a construção de uma “história imediata” da ditadura.[30]
Os dois periódicos mencionados não se identificavam especificamente a um grupo de esquerda, mas compartilhavam projetos relacionados à redemocratização. Colocavam-se como uma alternativa à grande imprensa e também como um novo campo de trabalho para os jornalistas. Outros jornais tiveram sua criação ligada a determinados movimentos sociais, como o movimento feminista ou o movimento negro. Em Porto Alegre, por exemplo, surgiu em 1978 o jornal Tição. Apesar de ter tido apenas três números publicados, sua criação é significativa para o período, pois boa parte do grupo que o compôs tinha tido a experiência de participar do grupo Palmares. Entre 1971 e 1978, o Palmares foi um dos precursores do movimento negro moderno em Porto Alegre. De acordo com a análise de Deivison Moacir Cezar de Campos, o grupo se caracterizou por uma postura e por um discurso subversivos que questionaram tanto conceitos relativos à identidade nacional e ao lugar do negro na sociedade brasileira, quanto levantaram bandeiras por melhores condições de vida e por participação política.[31]
Entre o final de 1976 e o início de 1977 o movimento estudantil já se mostrava com uma nova feição, recuperado ou renascido do desmonte realizado logo após o golpe. No Rio Grande do Sul, assim como em diversas outras partes do país, os anos de 1967 e 1968 tinham sido marcados por fortes embates entre estudantes, autoridades universitárias ou escolares e forças policiais. As lideranças estudantis, especialmente as secundaristas, foram alvo de vigilância e forte repressão. As entidades passaram por fases difíceis, mas na segunda metade dos anos 1970, as mesmas estavam nas mãos de lideranças opostas ao regime. Na vanguarda do movimento se encontravam jovens ligados a diversos grupos clandestinos de esquerda, alguns com propostas mais ousadas, outros mais cautelosos. De acordo com entrevista realizada com Carlos Barbieri, que foi estudante de Engenharia na UFRGS e que militou no Centro de Estudantes Universitários de Engenharia – o CEUE – a primeira passeata depois daquelas de 1968 teria acontecido no final de 1976 ou início do ano seguinte.[32] Esta passeata, por pressão dos militantes ligados ao grupo Liberdade e Luta, a Libelu, teria sido pioneira na reconquista da rua, já que saiu do âmbito do campus universitário. Esta e outras mobilizações, que ainda foram alvo de intensa repressão, levantavam bandeiras específicas dos estudantes, como a reconstrução da União Nacional de Estudantes[33] mas também denunciavam prisões, se engajavam na luta pela libertação de presos políticos, e pela anistia prestavam solidariedade a grevistas.[34]Tinham representantes junto ao núcleo do CBA, como foi comentado anteriormente.
Entre 1978 e 1979, período forte da luta pela anistia, o Rio Grande do Sul foi agitado por uma onda de greves e pelo ressurgimento de lutas sociais no campo. As últimas greves ocorridas no estado datavam de julho de 1968. Dez anos depois, entraram em greve os ferroviários de Santa Maria, os médicos residentes de diversos hospitais de Porto Alegre e os trabalhadores das confecções Wollens S/A também da capital.[35]No ano seguinte, aconteceu a greve dos professores estaduais. O movimento teve duração de 13 dias e contou com ampla participação da categoria, o que pode ser exemplificado pela presença de 12 mil professores na assembléia que encerrou a paralisação em 17 de abril de 1979. [36]A esta greve somou-se a dos bancários (que gerou intervenção no sindicato e prisão de lideranças); aquelas dos vigilantes de Porto Alegre e do interior, da indústria do vestuário de Porto Alegre, das indústrias de calçados de Novo Hamburgo e do Vale dos Sinos; a greve da construção civil em Porto Alegre, Erechim e Candiota, dos lixeiros de Bento Gonçalves, dos trabalhadores nas indústrias de celulose em Guaíba. Em novembro de 1979 houve, inclusive, uma ameaça de greve da Polícia Civil.[37]
No meio rural gaúcho, o período também foi marcado por conflitos que trouxeram novamente à tona a questão da reforma agrária.[38] A reserva indígena de Nonoai foi palco de um confronto entre índios e colonos em 1978. Como um dos desdobramentos do desalojamento de um grande número de família de colonos, deu-se a montagem de acampamentos, entre eles aquele da Encruzilhada Natalino. Tal acampamento foi um marco da retomada da luta pela reforma agrária no Rio Grande do Sul e no Brasil e da própria formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Além das greves e ocupações mencionadas, o movimento sindical passou a ser agitado no campo e na cidade pelo surgimento de chapas de oposição e pela montagem de comissões de fábrica que, aos poucos, iam dando uma nova cara aos sindicatos e aos embates entre trabalhadores, patrões e governo.
Este conjunto de mobilizações revela novas configurações da oposição à ditadura. Revela, segundo Maria Helena Moreira Alves, o aparecimento de novos atores, de uma “oposição de base”, a qual se diferenciaria da “oposição de elite”, com a qual o governo Geisel já aceitava discutir questões relativas ao afrouxamento do regime (o MDB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI)).[39]
Os novos movimentos acima mencionados foram contemporâneos dos projetos da distensão e da abertura e de importantes transformações na identidade e na atuação do principal representante da “oposição de elite”, o MDB que, no caso do Rio Grande do Sul, teve um vigoroso crescimento no período em questão.
Em janeiro de 1974, o Colégio Eleitoral escolheu o general Ernesto Geisel para a Presidência da República. A meta do presidente era realizar uma distensão lenta, gradual e segura que permitisse a volta ao Estado de direito e uma escolha tranqüila do seu sucessor, mas que, ao mesmo tempo, impedisse o retorno dos protagonistas de antes de 1964. O projeto de distensão visava um relativo afrouxamento dos controles sobre a sociedade civil e um maior diálogo com o MDB. Apesar do primeiro choque do petróleo em 1973, ainda se acreditava que o milagre poderia continuar rendendo votos nas eleições parlamentares de 1974. A tranqüila realização das mesmas seria importante no processo de construção da legitimidade do regime. Acreditava-se na vitória dos candidatos da Arena levando em conta a derrota do MDB nas eleições de 1970. Ao longo do governo Geisel, o governo aceitou discutir questões do regime com setores da oposição de elite, o que teve como resultado a Emenda Constitucional n. 9, que representava o fim da vigência do AI-5. Este passo liberalizante contribuiu, junto com outros fatores, para a criação do cenário no qual surgiram e cresceram os novos movimentos sociais.
O caso do MDB gaúcho merece reflexão. Durante toda a ditadura, mas especialmente nos seus últimos dez anos, o partido teve força eleitoral considerável, conseguindo alcançar, em diversas oportunidades, a maioria na Assembléia Legislativa. Medidas casuísticas – como cassações de parlamentares ou mudanças das regras eleitorais – conseguiram reduzir o ritmo de crescimento do partido, mas não estancá-lo. Além da arena eleitoral e parlamentar, o MDB gaúcho se destacou pela criação de outros espaços de atuação que congregavam especialmente intelectuais e jovens. Foi o caso do Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (IEPES) e do Setor Jovem. A presença de ambos na luta pela anistia se fez sentir em diversas ocasiões.
Nas eleições de 1974, os planos do governo foram mal sucedidos. Sem barreiras ao pleno acesso à televisão e ao rádio, o partido oposicionista aproveitou as possibilidades de divulgação de suas idéias, tendo eleito como eixo de sua campanha “o combate ao modelo econômico brasileiro, à censura e ao AI-5, pregando o retorno do Estado de direito e as eleições diretas para a presidência da República”.[40] Os resultados desta eleição surpreenderam o governo militar. No Rio Grande do Sul, o MDB conquistou mais cadeiras do que a Arena para a Câmara Federal e para a Assembléia Legislativa, além de ter eleito Paulo Brossard para o Senado.[41]
Medidas para o controle do crescimento eleitoral do MDB foram criadas e colocadas em prática nas eleições seguintes, tanto as municipais de 1976, quanto as estaduais (para Assembléias Legislativas e Governadores) e aquelas para o Congresso, em 1978. A Lei Falcão (1976) e o Pacote de Abril (1977) disciplinaram a propaganda eleitoral, mudaram os mecanismos da eleição indireta para governador e criaram a figura do “senador biônico” para impedir que o MDB tirasse dividendos das bancadas constituídas em 1974, alcançando a maioria das cadeiras no Congresso ou conseguindo eleger governadores. No Rio Grande do Sul, o governo acreditava que isso poderia ter acontecido caso a eleição fosse direta. No estado, Pedro Simon, deputado estadual oposicionista, que terminava seu quarto mandato na Assembléia Legislativa, aparecia como o candidato com grande chance de vitória.[42] Apesar das medidas casuísticas, o MDB gaúcho teve bom desempenho eleitoral em 1978, assim como tivera na eleição anterior. Pedro Simon, na ocasião, foi eleito senador.[43]
Como havia acontecido em 1966, 1970 e 1974, em 1978, os deputados emedebistas se abstiveram de participar da eleição indireta para governador, eleição que teve como novidade a ampliação do Colégio Eleitoral (com representantes das Câmaras Municipais) e a escolha do Senador “biônico”. A reação da Arena às críticas e à abstenção do MDB dá uma idéia das limitações do projeto de distensão proposto por Geisel. Em nota oficial, a bancada da Arena assim se manifestava: “É preciso que fique bem claro que só compete ao poder político da revolução ajuizar a hora e a vez de concretizar a chamada abertura política a respeito da qual o governo tem falado à nação. Cumpre registrar, aliás, que a mera notícia desta abertura já está animando a subversão a tomar posições contestatórias”. E, seguia a nota: “Só persiste uma indagação: onde estaríamos hoje, nós os verdadeiros democratas, se os nossos opositores atuais tivessem, mesmo, a força que pensavam ter nos dias que antecederam 31 de março de 1964?”.[44]
Os argumentos utilizados nesta nota exemplificam um dos tipos de pressão que incidiam sobre a proposta da distensão. Os deputados gaúchos da Arena se preocupavam com as contestações e a subversão que, segundo eles, resultavam do simples anúncio da abertura. Porém, os principais oposicionistas da estratégia que começou a ser aplicada por Geisel e que teria continuidade no governo Figueiredo foram os setores militares identificados com a comunidade de informações e de segurança.[45]
Em março de 1979, a presidência da República passou para as mãos do general João Batista Figueiredo. A partir daí, a Distensão – que passou a ser chamada de Abertura – prosseguiu com a Lei da Anistia e com a Reforma Partidária. Estas questões se tornaram o centro das discussões políticas tanto para o MDB e os grupos de oposição já mencionados, quanto para novas organizações que se formaram naquela conjuntura. Estas últimas representariam, segundo a já comentada tipologia proposta por Maria Helena Moreira Alves, uma oposição de base (associações de bairro, Comunidades Eclesiais de Base, movimento sindical, movimento estudantil, movimento contra a carestia, etc.).
Estas entidades, segundo a autora, aparecem como novos protagonistas nas disputas políticas que se desenvolvem ao longo do governo Figueiredo. Passam a pressionar o governo pelo alargamento da abrangência da Abertura, e tocam em questões que ficaram latentes na década e meia de ditadura e que nem sempre foram alvo dos discursos do partido oposicionista: o arrocho salarial, a falta de autonomia dos sindicatos, a questão agrária, etc. Estes novos sujeitos coletivos passam a exigir, para além de uma ampliação da participação política, uma série de transformações de ordem econômica.
Os dados obtidos sobre o Rio Grande do Sul revelam que o surgimento dessa oposição de base é anterior ao início do governo Figueiredo. Ela começa a se fazer presente entre 1975 e 1977, com o movimento estudantil, a luta contra a carestia, o movimento negro e o movimento feminista. Além disso, grupos que num primeiro momento poderiam ser caracterizados como “oposição de elite”, passam a ampliar suas demandas se aproximando daquilo que poderia ser visto como uma “oposição de base”. É o exemplo do núcleo gaúcho do Movimento Feminino pela Anistia, criado em 1975, mas que, entre 1978 e 1979, passou a levantar bandeiras bem mais amplas e críticas do que aquela que defendia na sua fundação, a da “reconciliação da família brasileira”. [46] Naqueles anos, passou a criticar a perseguição ideológica e a violência policial, a apoiar a luta dos sem-terra e de grevistas, a criticar o projeto de anistia do governo, exigindo, por exemplo, a imediata recondução aos cargos daqueles que foram expurgados do serviço público ou que tiveram seus mandatos cassados.
Transformações na atuação da oposição já são perceptíveis em 1977 e em 1978, mas é o ano seguinte, 1979, que pode ser caracterizado como o ápice tanto das novas lutas democráticas, quando dos planos governamentais de abertura. Neste primeiro ano do governo Figueiredo, os projetos da anistia e da reforma partidária disputaram espaço na imprensa, nos parlamentos, nas ruas, no país e no exterior, com as propostas das organizações pró-anistia e com um novo conjunto de problemas levantado pelos movimentos sociais acima apresentados. Foi uma conjuntura muito rica em discussões a respeito do futuro do país, travadas por homens e mulheres que passaram a dar nova vida à política brasileira.
Aprovada a Anistia, apesar das críticas às limitações do projeto, as atenções se voltaram para a Reforma Partidária e para a chegada de lideranças estavam exiladas. O novo quadro partidário que se formou a partir daí permitiu, por um lado, de espaços de representação política mais próximos dos diferentes projetos políticos em disputa, especialmente na oposição. Por outro lado, garantiu a vitória do partido herdeiro da Arena, o PDS, nas eleições diretas para o governo do Estado em 1982, marco final da presente pesquisa. A análise da formação dos partidos e da sua estréia na disputa eleitoral pode ser uma forma de acompanhar a trajetória seguida, especialmente por aqueles homens e por aquelas mulheres que tiveram nos movimentos sociais emergentes na segunda metade dos anos 1970, sua escola de formação política.
Procurar entender o processo de luta pela anistia requer ter acesso à/às forma(s) como os militantes envolvidos e as organizações viam a si próprios, que missão colocavam para si e para os demais grupos naquela conjuntura e também como viam o Brasil. Daí a necessidade de atentar para o conjunto de representações criadas e mobilizadas nesta luta. A noção de representação, que os estudiosos da História Cultural buscaram em Marcel Mauss e Emile Durkheim, permite compreender, entre outras coisas, a forma como a realidade é contraditoriamente construída a partir de trabalhos de classificação e de recorte realizados por diferentes grupos sociais. Permite também analisar práticas que visam “exibir uma maneira própria de estar no mundo”, expondo, assim, uma identidade social.[47] Considera-se o estudo das representações envolvidas na luta pela anistia como aspecto de fundamental importância, tendo em vista a opção de se aproximar mais dos agentes, de suas ações, de suas percepções e de suas propostas do que, propriamente, dos objetivos e projetos da ditadura.
Como foi mencionado acima, as representações sobre revolução e sobre democracia e, ainda, aquelas sobre resistência, marcaram o período e contribuíram para a construção de uma identidade coletiva para aqueles que “lutavam contra a ditadura”, apesar disso não anular as discordâncias e as disputas, entre líderes, organizações e propostas. O uso da representação do Brasil como uma família por organizações pró-anistia, especialmente o MFPA, merece algumas reflexões.
“Reconciliar a família brasileira” aparece desde 1975 e, depois, em diversas outras ocasiões, como o objetivo do movimento. Este slogan quando comparado com as bandeiras levantadas pelos familiares de mortos e desaparecidos, em 1978 e 1979 - que pedem a localização de corpos e a punição dos responsáveis – soa conciliador demais. Por outro lado, soa conservador demais quando se tem presente que o movimento feminista surge no mesmo período e que, entre outras coisas, questiona os papéis de gênero no seio da família. Enquanto algumas mulheres se voltavam para tal questionamento e ainda para a falta de atenção do Estado às demandas femininas (como creches, refeitórios, condições de trabalho, etc.), o MFPA insistia na “reconciliação da família brasileira”.
Questionada sobre isto, uma das líderes do movimento, a senhora Lícia Peres, explicou o uso desta imagem como uma forma de burlar as resistências à campanha pela anistia.[48] A fundadora nacional do MFPA, senhora Terezinha Zerbini, de acordo com Lícia, insistia em mobilizar as “mulheres mães”. Isso fazia sentido dentro de uma proposta de congregar o maior número de pessoas e de entidades em torno da anistia. Desse ponto de vista, seria infrutífera a identificação com as bandeiras que começavam a ser levantadas pelas militantes feministas, relacionadas com o direito ao corpo, ao prazer, à sexualidade. Parte destas bandeiras era vista como divisionista no seio dos grupos de esquerda, tanto por homens, quanto por mulheres. Além disso, o recurso à imagem da família era bastante adequado a um dos propósitos iniciais da luta pela anistia: trazer de volta ao país os exilados: “A gente achava”, continua Lícia Peres, “que o Brasil não pode prescindir das suas lideranças, não pode”. Neste sentido, para o caso do Rio Grande do Sul, o contato com as fontes até o momento, revela a presença de relações de parentesco e de compadrio entre militantes do MFPA e Leonel Brizola. A pesquisa procurará entender as repercussões disso, bem como o peso da identificação das militantes com o trabalhismo.
A representação da família separada pela ditadura – tanto a família nuclear, quanto a “família nacional” - foi mobilizada, no Rio Grande do Sul, em três campanhas pela libertação de gaúcho/as presos por ditaduras vizinhas. Foi o caso de Flávio Tavares e Flávia Schilling, presos no Uruguai, e de Flávio Koutzii, preso na Argentina. Estes são capítulos marcantes da luta pela anistia no estado, mesmo que campanhas a favor dos “flávios” tenham ocorrido em diversas outras partes do país. A luta pela libertação dela e deles, especialmente de Schilling e Koutzii, em 1978 e 1979, acabou por mostrar as conexões entre as ditaduras do Cone Sul. Foram situações que mobilizaram estudantes, operários, intelectuais, imprensa alternativa, além de familiares dos presos e de militantes de organizações pró-anistia.
A análise da construção e do uso da representação da família é apenas um exemplo de uma preocupação que acompanha/acompanhará a pesquisa, aquela que captar as múltiplas e diferenciadas percepções dos protagonistas a respeito de sua atuação e do cenário no qual se moviam. Mesmo que seja possível encontrar indícios disso em diversos tipos de fontes, as fontes orais são, sem dúvidas, aquelas mais apropriadas para se chegar neste objetivo.
Verena Alberti, falando sobre o fascínio que a história oral desperta nos pesquisadores, e nela própria, afirma que “é da experiência de um sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo o passado com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um indivíduo único e singular, um sujeito que efetivamente viveu – e, por isso dá vida a – as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão distantes”.[49]Além desse destaque à singularidade do sujeito, a autora chama a atenção para o caráter essencialmente hermenêutico da história oral. Essa metodologia abre ao pesquisador a possibilidade de “tornar a vivenciar as experiências do outro, a que se tem acesso sabendo compreeender as expressões de sua vivência”.[50]Para se chegar a tal compreensão, ainda segundo Alberti, é preciso um trabalho prévio que transforme o pesquisador “em interlocutor à altura de nosso entrevistado, capaz de entender suas expressões de vida e de acompanhar seu relato.”
Estas reflexões são bastante apropriadas para a presente pesquisa, que nos seus passos iniciais, fez uma primeira investigação na documentação arquivada pelas militantes do MFPA e em jornais alternativos para, em seguida, investir na história oral. O conhecimento já adquirido nas fontes escritas permitiu questionar com mais propriedade os depoentes e também fugir de relatos já bastante consolidados que marcaram a fala de alguns dos entrevistados.
Por outro lado, ao se falar sobre o uso da história oral e sobre o recurso à memória para captar diferentes vivências e avaliações a respeito da luta pela anistia, é preciso lembrar que os estudos sobre ditadura no Brasil, quaisquer sejam os temas eleitos ou as abordagens propostas, dificilmente conseguem ignorar as questões colocadas pela memória. Mais do que um problema esta é uma das especificidades da história do tempo presente, seara na qual os historiadores já adentram com alguma segurança.[51]
Diversas foram e ainda são as “batalhas de memória” suscitadas pela ditadura: aquelas entre militares identificados como moderados ou como linha dura;[52] aquelas entre militantes de esquerda e militares, a respeito da tortura; [53]aquelas entre militantes de diferentes grupos da esquerda;[54]aquelas que questionam o papel ocupado pelas mulheres na luta armada;[55]aquelas que questionam releituras de memórias feitas pelo cinema;[56]aquelas que contrapõe a imagem de uma sociedade vítima ou opositora da ditadura com a de uma sociedade, muitas vezes, apática ou conivente.[57]
Tais batalhas não têm sido travadas apenas nos livros de memória. Ela se fazem presentes no dia a dia da política brasileira, no tratamento de temas como a culpabilização de generais pela tortura, a revisão da lei da anistia, a concessão de indenizações a atingidos pela legislação de exceção, a liberação de documentos secretos da ditadura. Estes exemplos de lutas de memória e de situações que as alimentam não são exaustivos. Outros poderiam ser citados. Mas, estes já são suficientes para mostrar a importância e a necessidade, numa pesquisa sobre a anistia, de prestar a devida atenção às construções e aos usos da memória.
Para encerrar resta dizer que o esboço aqui apresentado ainda não permite que sejam tiradas conclusões. Ele, no entanto, suscita questões para a continuidade da pesquisa. Além de aprofundar o conhecimento sobre os atores envolvidos nas lutas pela anistia no Rio Grande do Sul, e de dar visibilidade ao pioneirismo e à liderança das mulheres, a pesquisa procurará analisar as “batalhas de memória” relacionadas ao tema – tão candente nos dias de hoje. Procurará também contribuir com reflexões sobre os desafios da pesquisa da história do tempo presente na realidade brasileira e sobre as conexões entre pesquisa histórica e comemoração.