Resumo: De que maneira fazer a história das populações? A resposta é fornecida por Louis Henry à INED, que nas décadas do pós-guerra promove uma demografia histórica essencialmente estatística, da qual em seguida se ocupa também Fernand Braudel e a escola dos Annales. Mas nos anos 1980 a desconstrução das categorias inspirada em Michel Foucault, a crítica do objetivismo, a descoberta feita pela história da estatística das raízes ideológicas ambíguas da demografia (natalista, eugenia, controle biopolítico) são elementos que desestabilizam a disciplina. Para impedir que a reflexividade venha a substituir a produção de conhecimentos são introduzidos novos métodos (a micro-história) e novos objetos (as instituições). À antiga demografia histórica sucede-se uma história social e política das populações. Seu objeto é a construção simultânea de instituições, de políticas e de saberes relativos a elas. Condorcet combatido por Malthus; Achille Guillard, criador da palavra demografia, tal como naturalmente Maurice Halbwachs, formalizaram a natureza «social» da população. Em oposição às tentações sociobiológicas contemporâneas, o vínculo orgânico entre população e proteção social desperta toda a questão da auto-criação da sociedade.
Abstract:
During the first decades following World War II, population history was dominated by the model of “historical demography” designed by Louis Henry at INED, and taken over by Fernand Braudel and the Annales school. But in the 1980s, the Henry model was called into question by deconstructionist approaches derived from Michel Foucault, and by critics against objectivism. At the same time, history of statistics discovered the ambiguous ideological roots of demography (pronatalism, eugenics, biopolitical thought). To pick up again, the discipline introduced new methods (micro-history) and new issues (institutions). As a result, nowadays, historical demography is more and more replaced by a social and political population history. It focuses on how institutions, policies and knowledge devoted to populations construct each other in an interactive, simultaneous process. Condorcet, who was fought against by Malthus; Achille Guillard, who coined the word « demography”, and of course the durkheimian sociologist Maurice Halbwachs, have formalised the « social » dimension of population. Contrary to current sociobiological temptations, the deep, organic tie between population and social protection raises the fundamental issue of how society endlessly shapes itself.
Traduções
Por uma história política das populações*
Desde os anos 1950 o estudo das populações do passado é considerado como sendo da alçada da «demografia histórica». Este monopólio é contestado nos anos 1980 após três décadas de conquistas historiográficas. Enquanto entra na fase das grandes sínteses[1], a demografia histórica, com seu programa de trabalho concluído, se dá conta do esgotamento das investigações fundadas sobre seu método e de suas problemáticas iniciais. Desta «crise» ou desta libertação em relação a um modelo tornado sufocante[2] - emergem novos caminhos e novos métodos. Inicialmente originadas por percursos individuais, devemos, no entanto, constatar, vinte anos mais tarde, a coerência das orientações que elas demarcam. O objetivo deste artigo é explicitar o programa de história social e política das populações em direção ao qual convergem estas transformações, assim como sua pertinência para a historiografia em sua totalidade.
Este programa estabelece uma ruptura com a demografia histórica em vez de se resumir a uma mera continuação que se valha de outros meios. A «demografia» de modo algum detém o monopólio do tratamento científico da «população». O reflexo imediato de pensamento que as associa não se estabelece que de forma tardia ao fim do período entre-guerras e corresponde, sobretudo, a uma situação francesa. Sem contar países como a Alemanha e a Itália, onde sua associação respectivamente com o Nazismo e o Fascismo lhe valeu um longo eclipse, na maior parte dos outros casos ela conheceu uma dominação meramente efêmera de seu objeto e travou uma difícil competição com as outras disciplinas, notadamente a economia da família e da população no mundo anglo-saxão[3]. Mais especialmente, a supremacia da «demografia histórica» durante os gloriosos Trinta não seria o bastante para nos fazer esquecer que ela se construiu inicialmente contra uma «história das populações», esta sem dúvida menos sistemática dentro de um plano quantitativo, mas muito mais exigente e mais integrada desde o ponto de vista historiográfico. Para compreendermos esta distinção entre demografia e população devemos evocar brevemente as raízes da demografia histórica. Longe de ter uma finalidade antiquária, este desvio envolve a necessária reflexividade da atividade científica: o recurso à história das ciências sociais será aqui pensado como uma condição de produção de um saber positivo, sem por isso cair no «presentismo». Precisamente desta abordagem a demografia foi privada durante tanto tempo: aos expedientes habituais às histórias espontâneas e finalistas produzidas pelos representantes da disciplina, acrescentaram-se as projeções das querelas ideológicas contemporâneas em relação a um passado fabricado ou simplificado.
Caracterizar a tendência da demografia histórica em direção à história das populações ou, mais exatamente, a libertação dos historiadores com respeito à dominação de um modelo demográfico que foi frutífero durante três décadas, mas que perdeu a sua pertinência, é indispensável para identificarmos as trilhas contemporâneas de investigação sem cairmos na nostalgia da Idade do Ouro. Indispensável, sobretudo, para mostrarmos a articulação entre problemáticas que se desenvolveram de maneira aparentemente discrepante, enquanto reconstituíram discretamente um setor historiográfico rico em potencialidades. Sair do implícito e dos rótulos obsoletos permite-nos mostrar como um domínio respeitado, mas mantido à margem pela historiografia, recobrou furtivamente suas preocupações centrais e pode esperar então contribuir para o seu aprimoramento.
A demografia histórica conquistou rapidamente seu monopólio ao longo do terceiro quarto do século XX. Pela unidade de suas fontes (os registros de estado civil), de seus métodos (codificados, em 1956, pelo demógrafo Louis Henry e pelo arquivista Michel Fleury[4]), e mesmo de suas problemáticas, ela é provavelmente a especialidade mais cumulativa que as ciências históricas conheceram. Desde 1980 contam-se oitocentas monografias estabelecidas segundo o modelo definido por Louis Henry[5], de dissertações de mestrado a obras doravante clássicas[6]. Durante todo este período, a demografia histórica forneceu uma ilustração das mais convincentes em relação a duas grandes palavras de ordem da «escola dos Annales»: produzir um saber sobre os grupos sociais os mais vastos e os mais anônimos, promover a história como ciência graças à quantificação. De fato, os resultados obtidos mostraram-se à altura destas expectativas. Eles revelaram que não se casava mais jovem sob o Antigo Regime que nas sociedades contemporâneas, que as populações rurais antigas eram bastante móveis, que o núcleo familiar era já dominante no Ocidente na era moderna ou até mesmo antes: vários duros golpes incididos às teorias da modernização as quais, férteis sob os gloriosos Trinta, postulavam a radical singularidade do mundo contemporâneo. A exploração dos comportamentos domográficos conduziria à exploração das almas via mensurações estatísticas espetaculares (a importância das concepções pré-nupciais, a diminuição do respeito pelas interdições religiosas), e viria a servir como pilar à antropologia histórica. O modelo de Louis Henry era mundialmente exportado. Aprimorado, ele contribuía ao desenvolvimento da história social da família no Reino-Unido, ao mesmo tempo cúmplice e concorrente[7].
Apesar das aparências – rigor do método, riqueza de resultados – este success story não fora escrito antecipadamente. A demografia histórica não apareceu em um deserto. Durante todo o século XIX - para não ir além - em toda a Europa, historiadores e estatísticos interessaram-se por outros aspectos da história das populações, aspectos estes frequentemente mais contextuais [8]. No imediato pós-guerra os modelos se multiplicam [9]. Em Lyon, Abel Châtelain se esforça para promover a «demogeografia», um tipo de geografia histórica das populações [10]. Jean Meuvret e, depois, Pierre Goubert estendem à população os métodos de investigação da história econômica[11]. Fernand Braudel dedica toda a sua atenção ao iconoclasta René Baehrel que propõe uma história econômica das populações baseada sobre a experimentação, os jogos de escalas, a diversidade de fontes[12]. Louis Chevalier, do Instituto Nacional de Estudos Demográficos (INED) e da Sociedade de História Moderna, da qual ele é um dos seus membros, elabora uma história social das populações que consiste menos em estabelecer novas ordens estatísticas do que em contextualizar os dados quantitativos produzidos no passado[13].
De diversas formas, cada uma destas abordagens mobiliza todo o domínio dos historiadores e geógrafos. O contraste com o «método Henry» é patente; este que antes consiste em estender os métodos da análise demográfica aos dados antigos. História das populações de um lado, demografia histórica de outro. Durante todos os anos 1950, as vozes dos historiadores elevam-se contra a hegemonia demográfica. Acusa-se o método Henry, fundado sobre a lenta reconstituição do estado civil, de não ser suficientemente rentável: um ano de despojos repetitivos para cerca de um século de história demográfica de uma paróquia. Censura-se-lhe também causar um curto-circuito entre os historiadores e onerar a formação de futuros pesquisadores devido ao seu caráter padronizado e serial.
Como frequentemente ocorre na história das ciências, o rigor e a coerência da demografia histórica não são suficientes, neste imediato pós-guerra, para explicar o seu sucesso final. Certamente devido à sua austeridade quantitativa, ela participa deste ideal de cientificidade que, de Emmanuel Le Roy Ladurie a François Furet passando por Michèle Perrot ou Michel Vovelle, anima a jovem geração da época[14]. Um ideal reforçado pelo prestígio da estatística administrativa cuja administração central acaba de ser reforma da (criação do Institut National de la Statatisque et des Éstudes Économiques (INSEE) em 1946), e cuja contabilidade nacional é uma figura de proa[15]: a este respeito é significativo que desde 1958 Louis Henry legitime a demografia histórica por sua capacidade de prolongar, em direção ao Antigo Regime, as séries demográficas tiradas (desde 1801) dos recenseamentos[16]. Resta que o sucesso do modelo Henry junto dos historiadores tornou-se possível por sua desunião. Os antagonismos ligados à diversidade de seus modelos são reforçados por apostas institucionais e querelas pessoais. Por sua virulência, René Baehrel contribui a uma confederação negativa do meio às suas custas[17]. Louis Chevalier, que entrou com quarente anos no Collège de France no ano de 1951, poderia vir a tornar-se o líder da história social das populações; mas este jovem historiador, além do mais engajado em um conflito desde logo perdido com Fernand Braudel, está muito mais para o criador individual do que para o empreendedor de pesquisa. De mais a mais, ao lhe dar as rédeas soltas, sua eleição o afasta de um domínio no qual ele havia investido em parte por razões de carreira[18].
Louis Henry, ao contrário, benificia-se de um duplo monopólio. Único demógrafo francês a interessar-se prioritariamente pelas populações do passado, ele também desfruta de todo o peso – relacional, institucional e financeiro – do organismo ao qual pertence, o INED, com o apoio pessoal de seu diretor, Alfred Sauvy. Esta conjunção demanda também uma explicação. Seu caráter é eminentemente contingente: Louis Henry entra como poli-técnico no INED em 1946 e inicia sua carreira durante a idade de ouro da demografia. A disciplina que acaba de ser unificada e formalizada[19] segue seu movimento de expansão mundial iniciado nos anos 1930. Favorecido pelas fundações americanas, ele se ocupa de agora em diante de grandes organizações internacionais a começar pela ONU, a qual estabelece uma Divisão e uma Comissão da população.
De todos os seus objetos, é à fecundidade que a demografia do pós-guerra concede maior interesse. Decidir sobre o caráter perene ou efêmero do inesperado baby boom que, no Ocidente, rompe com décadas de declíneo de natalidade, levanta urgentes questões sobre políticas públicas. Estudar as motivações dos casais em matéria de contracepção através de enquetes quantitativas é uma prioridade recente dos demógrafos, surgida nos anos 1930. Além disso, para os mais católicos dentre eles (a começar por Louis Henry), este se torna um problema moral ligado à sua atividade científica. Especialmente a expansão demográfica do «terceiro mundo» agita os demógrafos anglo-saxões e os leva a demandar uma política massiva de restrição de nascimentos nas regiões do Sul em nome da teoria da «transição demográfica» que eles acabam de reformular[20]. Entre as questões comuns a estes três dossiês figura a mensuração da eficácia relativa à contracepção. Retomando as construções biologisantes de grandes autores do entre-guerras, Raymond Pearl nos Estados Unidos, Corrado Gini na Itália fascista, os demógrafos interrogam-se sobre o número de crianças nascidas de casais «não-contraceptores»: ao qualificá-lo de «fecundidade natural», eles vêem aí um padrão que possibilitaria medir o impacto das práticas contraceptivas. Ora, sua determinação é impedida por um problema de fontes: as estatísticas demográficas do «terceiro mundo», e mais notadamente a estatística colonial, são incompletas ou pouco confiáveis. Em nome de uma equivalência «tempo/espaço» que é bem conhecida dos antropólogos[21], Louis Henry julga que a única maneira de contornar o obstáculo é estudar a fecundidade das populações européias antes da difusão da contracepção em massa. Infelizmente, o período em questão, em geral o Antigo Regime, precede a era dos recenseamentos. Após un longo período de tentativas e erros, Louis Henry acaba por superar a aporia: em relação à era moderna, a coleta e a exploração de dados contidos nos registros paroquiais fornecem dados demográficos tão rigorosos e, às vezes, mesmo mais precisos, do que aqueles de hoje em dia. Assim possibilitadas, as mensurações sobre a fecundidade natural são tão logo utilizadas para padronizar as enquetes conduzidas sobre o mundo contemporâneo e são recebidas como uma contribuição maior à ciência demográfica[22].
Se o método Henry simbolizou por si só durante três décadas a história das populações, é devido ao fato de que seu autor logrou reunir um conjunto de condições das quais este domínio do saber nunca antes houvera se beneficiado. Conforme o caso, as fontes eram demasiado incompletas, as populações demasiado reduzidas, as problemáticas demasiado nacionais ou mesmo nacionalistas e os métodos demasiado frustrantes para serem críveis junto ao domínio internacional dos historiadores e estatísticos[23]. Por outro lado, a «demografia histórica» articulou durante um certo tempo historiografia, demografia e políticas populacionais.
Os historiadores, pensando desde o ponto de vista de sua disciplina, não perceberam esta conjunção nem sobretudo suas implicações. A demografia histórica não é um ramo da «demografia» no sentido mais geral e vago deste termo, aquele de uma ciência das populações. Ela é concebida por Louis Henry, segundo uma problemática mais precisa, que tem suas raízes nos anos 1930, quando é qualificada de «demografia pura»[24]. A expressão é reconhecida desde uma perspectiva da história das ciências. Forjada na metade do século XIX, a demografia tem por propriedade compreender a população em suas dinâmicas internas: ela a reduz a um jogo de variáveis, tais como, a natalidade, as núpcias e a mortalidade, considerando suas outras determinações (inclusive, e o mais frequentemente, as migrações) como exógenas[25]. Contrariamente àquilo que postulam todos os relatos finalistas, esta definição proveniente de Louis-Adolphe Bertillon, cria uma ruptura com as ciências que antes se ocupavam da população: a aritmética política, a astronomia e a teologia à era moderna; a estatística administrativa e a economia política no século XIX[26]. Durante a primeira parte do século XX, Alfred Lotka reforça esta visão autônoma da demografia ao lhe emprestar uma tradução matemática e totalizante. Ao enfatizar a redução da população às suas dinâmicas «vitais» ela torna-se compatível com a tendência biologisante que marca o entre-guerras[27]. A população é compreendida como uma entidade orgânica e dinâmica que contém de maneira endógena o princípio da sua própria evolução. Os outros aspectos – sociais, econômicos, políticos, institucionais – são secundários em relação a este esquema. Ainda que permanecendo receptivo à dimensão histórica e cultural dos comportamentos demográficos, é por esta construção cognitiva que Louis Henry é movido ao voltar-se para as populações do passado: seu interesse pela «fecundidade natural» vai no mesmo sentido, mesmo se este conceito possui mais de um culturalismo do que seu autor parece supor[28]. Os anos 1960 foram certamente marcados por uma reavaliação dos interesses propriamente historiográficos no uso da demografia histórica, notadamente sob a incitação de Pierre Chaunu e de Jean-Pierre Bardet, do Centro de Pesquisa da História Quantitativa, de Caen, e de Jacques Dupâquier, da Sorbonne, fundador do Laboratório de Demografia Histórica da Escola Prática de Estudos Superiores e, de forma mais geral, da Sociedade de Demografia Histórica e de seus Annales.
Mas este reequilíbrio não foi suficiente para dobrar a tendência mantida pela disciplina desde a sua fundação. Nos anos 1970 as críticas que são expressas acabam por retomar as interrogações deixadas sem resposta nos anos 1950. Em registros diferentes, André Burguière e Louis Chevalier apontam para a opressão de uma disciplina ameaçada por sua acumulação decrescente[29]. Os historiadores italianos que lançam então as bases da microstoria, ao mesmo tempo em que vêem na demografia histórica um modelo historiográfico de referência, consideram, como Edoardo Grendi, que ela na verdade não se articulou com a história social[30]. A introdução da informática, posterior ao estabelecimento do método Henry, revela-se paradoxalmente nefasta: na ebulição dos grandes equipamentos, das enquetes coletivas, da programação «sob medida», ela afasta ainda mais do domínio do historiador as competências requeridas pela demografia histórica. No momento preciso em que o modelo Henry estende-se ao estrangeiro[31], a jovem geração de historiadores que se mostra interessada por seus objetos, mas que se preocupa em escapar às amarras do seu método para aproximar-se das outras ciências sociais, investe antes em uma história social da família - esta em seu pleno vôo. Estas dinâmicas fazem parte de um movimento mais vasto, e doravante melhor conhecido, de questionamento em relação a uma quantificação descontextualizada, paralisante e que negligencia a construção narrativa que é central para a atividade histórica[32]. Elas irão desembocar num profundo questionamento da própria disciplina.
Nos anos 1980, a demografia histórica submete à crítica a objetivação estatística de seus objetos. Podemos ver aí uma ruptura com o seu percurso até então visivelmente positivista à condição de simplificarmos um pouco a sua história. Em Crulai, obra que ilustra seu método e fixa o formato das monografias que se seguirão, Louis Henry coloca em marcha uma construção de objeto onde cada componente é discutido e controlado. O demógrafo alerta seu leitor contra toda ilusão reificante: «reconstituir» a população desta pequena paróquia normanda não significa senão propôr um modelo dependente de toda uma série de hipóteses explicitadas ao longo da obra[33]. A precaução é particularmente clara no que toca à variável que poderia parecer a mais evidente, a saber, o número de habitantes da paróquia: ao encontro dos reflexos de pensamento provenientes da prática administrativa, este parâmetro de estoque é relativamente secundário para a demografia histórica que se concentra sobre o movimento das populações e, notadamente – como vimos, – sobre a fecundidade.
O ramo o mais «matematizado» da história das populações permaneceu fiel a este autocontrole metodológico[34]. São antes os historiadores que, inspirando-se no «modelo Henry», ignoraram sua importância. O mecanismo de «achatamento» positivista que eles impuseram à demografia histórica aparenta-se àquele descrito por Jean-Yves Grenier e Bernard Lepetit a propósito da recepção do modelo labroussiano em história social[35]. A estimativa do nível da população do reino da França ao fim do Antigo Regime é uma boa ilustração deste caso. Este antigo objeto de discussão é carregado de tomadas ideológicas sobre a apreciação geral da Revolução[36]. Apesar de Louis Henry ter tido o cuidado de não supervalorizar a determinação do «número de habitantes» pela demografia histórica, o debate foi considerado fechado desde 1975 ao término de uma grande enquete nacional lançada pelo INED dezessete anos antes[37]. Durante estas duas décadas, as prudências de Crulai foram varridas pelo vigor das expectativas historiográficas e, sobretudo, sua relação demasiado imediata com as fontes, os métodos e os produtos estatísticos da demografia histórica.
É necessário, portanto, esperar até os anos 1980 para que se possa ver um questionamento sistemático deste frenesi da contagem. Participando da crítica já evocada da história «labroussiana», um foucaultismo mais ou menos bem digerido promove uma «análise das categorias» enquanto a leitura de Jack Goody distancia os quantitativistas do seu produto de predileção, o quadro estatístico[38]. Os efeitos são aí particularmente marcados, em um domínio até então dominado pelo objetivismo e pouco receptivo aos alertas epistemológicos provenientes da sociologia bourdiana. Evidenciando o impasse sobre a questão dos objetivos da especialidade e sobre a natureza do saber que ela deve produzir, esta boa vontade reflexiva acaba chegando ao extremo num relativismo que prolonga à sua maneira o positivismo da era de ouro. O paradoxo não é senão aparente: da tardia tomada de consciência quanto ao caráter construído da realidade social, vários objetivistas desapontados acabam por concluir que esta é artificial, não dependendo senão do ponto de vista dos administradores, dos eruditos e dos indivíduos eles mesmos[39]. Sob a desconstrução aflora a tentação de «reformar» as categorias inadequadas para reencontrar uma ilusória coisa em si.
Da importância desta oscilação são testemunhos, no início dos anos 1990, o sucesso das conclusões de Alain Desrosières sobre a história da estatística[40], mas também as discussões que elas imediatamente suscitam: postular que as «convenções» estatísticas moldam o mundo social nos faz correr o risco de hipostaziar a supremacia da estatística, exatamente ao querer desconstruí-la[41]. O debate, que se abre ao mesmo tempo sobre a pertinência da introdução das categorias étnicas na estatística francesa, ilustra bem esta ambiguidade. Seus delatores apontam para os efeitos auto-realizadores das imposições identitárias sem questionar a idéia de uma eficácia sistemática da estatística: dez anos mais tarde, não podemos senão constatar que a etnização das relações sociais na França realizou-se sem ela[42]. Estamos mais próximos da historiografia do que parece. As problemáticas deste debate projetaram-se com efeito sobre as populações do passado, ilustrando até que ponto sua história permanece imbricada nas tomadas ideológicas contemporâneas das políticas demográficas[43].
Da mesma maneira, não é indiferente que este retorno da demografia sobre si mesma tenha ocorrido no momento em que, parafraseando um célebre título, a França esforçava-se por deixar no passado o seu passado vichysta. As interrogações sobre a gênese do INED e suas ligações com a Fundação Carrel, criada sob a Ocupação, encontram um eco crescente nos anos 1980[44]. O embaraço do instituto com os grupos de pressão natalistas é a ocasião de se fazer a tardia descoberta dos laços entre «demografia e política» e da maneira de aí envolver-se ou não em nome da cientificidade. Surgem então abordagens moralizantes e denunciadoras as quais, não sem explorar a «fascinação repulsiva dificilmente menos alienada do que a adesão entusiasmada da véspera[45]» pelas raízes mauditas da demografia (nacionalismo, eugenia, racismo), vêem aí a fonte exclusiva dos falsos conceitos que adulterariam sua percepção da realidade: os «nascimentos» seriam reais, a «natalidade» artificial e sua representação ligada a uma vontade de poder... Não sem ironia reemerge assim, sob uma forma inversa, a configuração dos anos 1950: o INED, as políticas demográficas, a contabilidade nacional das pessoas e das coisas, tornam-se novamente centrais; desta vez, contudo, como objetos de polêmicas que transbordam até a grande imprensa[46].
Este «momento sensacionalista», simétrico à recusa imposta pelos fundadores das políticas de população francesas de se debruçar sobre as origens da disciplina ao longo dos gloriosos Trinta[47], vem certamente a impedir a formulação de um programa de pesquisa articulado: mesmo em seu domínio de predileção, a denúncia dos pecados originais da demografia, ele logo deixará o caminho livre para as abordagens mais «laicas» da história da disciplina[48]. Com a «desconstrução das categorias» ele compartilha de uma mesma crença em uma encenação ou mesmo em uma manipulação do mundo real que seria aquele das práticas demográficas, e traduz assim uma mesma dificuldade em sair da crítica para produzir um saber sobre as dinâmicas das populações. Tomar parte na necessidade reflexiva sem renunciar aos objetivos de uma história sócio-demográfica irá progressivamente mostrar-se como o horizonte de trabalho de uma nova geração de pesquisa.
Duas orientações surgidas na segunda metade dos anos 1980 vão lançar as bases desta recomposição. A primeira pode ser qualificada de «experimental». Ela consiste em multiplicar os pontos de vista sobre o objeto, em reler as fontes libertando-se das categorias historiográficas adquiridas, em fazer da dimensão nominativa, puramente instrumental no «método Henry», o objeto central da análise[49]. Trata-se, em uma palavra, de desconstruir e de reconstruir de maneira prática, ligando estreitamente a história e as ciências sociais. A micro-história italiana, que desde sua origem concede uma atenção crítica à demografia histórica, desempenha evidentemente um papel maior neste processo[50]. Mas na França a sua recepção por um meio dos Annales, que na época opera a sua «virada crítica», imprime aí a sua marca, centrada em particular sobre a questão das formas da experiência e dos jogos de escalas. A obra de Bernard Lepetit, Les villes dans la France moderne, surgida em 1988[51], empresta-lhe uma das formulações maiores em relação à demografia histórica considerada em sua intersecção com a história econômica[52]. Trata-se aí de um inesperado retorno das coisas: o adversário mais virulento do modelo Henry era precisamente a linha experimental preconizada, uma geração anterior, por René Baehrel. Sem falar dos deslocamentos conceituais das ciências sociais, a aparição de novas ferramentas estatísticas, permitindo trabalhar sobre pequenas amostras muito mais do que sobre grandes massas, permitindo pensar em termos de processo muito mais do que em termos de medidas descritivas e representativas, desempenha um grande papel nesta oscilação.
Uma segunda evolução concomitante é mais específica ao domínio dos demógrafos historiadores: da fecundidade às maternidades, dos fluxos de mobilidade às políticas migratórias, da mortalidade infantil às medidas sanitárias destinadas à primeira infância[53], assistimos a uma mutação sistemática dos seus objetos de estudo. Para os historiadores, cujas certezas estavam abaladas quanto aos seus métodos e mesmo quanto aos seus objetos, e que sentem uma maior familiaridade com a história social do que com aquela das representações, a aplicação de uma virada político-institucional geral na historiografia à população[54], aparece como o caminho de re-conversão mais pertinente. Ele marca, bem mais do que uma diversificação, a primeira verdadeira ruptura com a demografia histórica. As abordagens desconstrucionistas, apesar de sua aparente radicalidade, haviam perpetuado a concepção «naturalizante» da população ao atribuir-se a tarefa de analisar as representações supostamente arbitrárias de comportamentos supostamente os únicos reais. De agora em diante, pelo contrário, impõe-se a idéia de que toda população deva ser compreendida como o produto de uma fabricação política e jurídica.
Inicialmente, esta virada increve-se ela também na leitura de trabalhos de Michel Foucault consagrados ao controle social. Mas com a difusão dos métodos experimentais e micro-analíticos, esta visão unilateral irá rapidamente se complexificar, e os historiadores irão aprender a compreender a população no seio de uma rede de relações políticas e sociais mais rica. Este trabalho de reconstrução opera de acordo com dois eixos complementares. O primeiro está centrado sobre uma antropologia política das populações e, o segundo, sobre a questão da objetivação estatística e demográfica.
Longe de um princípio impassível e repetitivo de construção do objeto, que de uma certa maneira viria a substituir as rotinas do «método Henry», a virada «institucional» afeta os próprios conceitos através dos quais correntemente se caracteriza as populações. Em demografia, definir o «migrante» é tarefa do objetivismo: é dado aos pesquisadores discutir quais as fronteiras administrativas, qual a distância percorrida e qual a duração do deslocamento que justificam falar de «migração». Ao contrário, a história política das populações incita a levar a sério as construções jurídicas sobre o status das pessoas que efetuam uma mobilidade geográfica. A aparente naturalidade do fenômeno, que autoriza todas as comparações quantitativas, é desde logo evidentemente questionada: o respectivo estudo dos «forasteiros» dos Andes coloniais espanhóis, dos pobres deixando sua paróquia no Reino-Unido do século XIX, conservando ao mesmo tempo seus direitos à assistência, ou ainda das dezenas de milhões de migrantes internos mais ou menos clandestinos no seio da China contemporânea, nos dá uma idéia da heterogenidade das construções oficiais sobre o status de migrante[55].
Estas abordagens contribuem para uma releitura dos objetos da história política. O artigo de Lutz Raphael sobre as demandas de naturalização em Lorraine na segunda metade do século XX, estuda os efeitos da interação entre os serviços administrativos diversos[56]. Este mergulho microscópico – que pela atenção dada às instituições não se reduz a uma etnometodologia – visa a reconstruir uma cronologia e uma compreensão da ação pública que não se sobrepõem necessariamente àquelas das disposições oficiais nem àquelas das políticas ministeriais.
Tratamento de massa e individualização de casos: esta dialética esboça uma temporalidade longa que remonta pelo menos à época moderna[57]. Ela confere ao objeto «população» um alcance particular para a decomposição das dinâmicas institucionais à maneira de outros domínios historiográficos, algo que afasta ainda um pouco mais a história social e política das populações da demografia histórica. Esta última compreendia as populações do passado como entidades passivas, sobre as quais tratava de identificar as características o mais precisamente possível, servindo-se de traços administrativos «micro-» (registros paroquiais) ou macroscópicos (séries estatísticas agregadas). Os historiadores contemporâneos, pelo contrário, tomam por objeto as modalidades de produção dos dados objetivados no registro administrativo e estatístico. Eles privilegiam o estudo das interações entre as populações e as instituições sobre as quais se debruçam, interações entendidas ao mesmo tempo como um objeto historiográfico em si e como uma dimensão indispensável à crítica das fontes. Em um estudo pioneiro, Morgane Labbé analisou as estatísticas demográficas «enquanto indicadores que medem não apenas a frequência dos acontecimentos, mas também as práticas institucionais às quais eles estavam associados, em particular as relações entre os indivíduos e os serviços públicos». Ela mostra em que medida, no Kosovo dos últimos anos da Iugoslávia, as flutuações estatísticas dos nascimentos refletiam assim um repúdio das instituições sanitárias e administrativas pelas populações[58]. Da mesma maneira, a reconstrução da fecundidade francesa no século XIX feita por Noël Bonneuil, repousa sobre uma análise crítica das séries estatísticas da Estatística geral da França, a qual, pela estimativa da extensão do sub-registro dos nascimentos, objetiva uma empreitada regionalmente diferencial do Estado sobre as populações[59].
Tais abordagens permitiram romper com a oposição entre «comportamentos» e «representações», a respeito da qual evocamos o peso sobre este domínio de estudos, para assim insistir em sua mútua construção. Mais especificamente, porém, elas complexificaram o princípio talvez o mais fundamental de toda análise demográfica, a saber, a pré-definição da população de estudo por critérios objetivistas. A emergência de estudos que venham a interrogar-se sobre a definição e os contornos que as populações dão a si mesmas e que simultaneamente pretendam analisar as suas práticas, é fruto das evoluções que acabamos de descrever[60]. Estas exercem igualmente seus efeitos sobre a análise da antiga e estreita associação entre populações e objetivação estatística.
À medida que os historiadores tomavam consciência do caráter construído de toda forma de objetivação estatística e demográfica, o estudo da interação entre populações e instituições obrigava também a incluir a interação entre os saberes. Para aí medirmos as suas implicações podemos nos reportar a um emblema do gênero, a obra Fertility, class and gender[61]. Seu objeto, a fecundidade social diferencial no Reino-Unido do século XX, associa-se à demografia. Mas o seu percurso é inédito ao não se reduzir nem à reutilização de séries estatísticas publicadas, nem à produção de dados alternativos provenientes de fontes nominativas. Rompendo com a tradição da disciplina, Szreter primeiramente consagra seu esforço a uma história das ciências sociais. A genealogia britânica do conceito de «transição demográfica» o conduz a um dos corpus empíricos sobre os quais batem-se mantenedores e adversários da eugenia no começo do século XX: o recenseamento da população de 1911. O autor reconstitui as interpretações às quais deu lugar, mas, - segunda inflexão em sua abordagem – não se detém a este percurso genético: pelo contrário, ele daí tira partido para «reinventar» as fontes estatísticas antigas, mas inéditas. Ele constrói assim uma história «alternativa» da fecundidade britânica no século XX, colocando em primeiro plano variáveis, inicialmente, negligenciadas: o gênero[62], mas também a dimensão regional do fenômeno. O modelo demográfico é aqui construído sobre uma história das ciências, ao mesmo tempo, indispensável para inventar as fontes e prevenir-se contra todo «presentismo».
Sinal da pertinência de tais abordagens para uma refundação da história das populações, Patrice Bourdelais coloca em marcha ao mesmo tempo na França um percurso comparável, apoiando-se sobre uma arqueologia da noção de «envelhecimento da população» para reinterpretar a evolução dos grupos de idade com respeito à longa duração[63]. Da mesma maneira, Éric Brian apoia-se sobre a história social e política das matemáticas para explorar uma enumeração efetuada pela administração real em 1784. A fonte que indica os movimentos demográficos das quarenta mil paróquias do reino é, ao mesmo tempo, rica e inexplorável: a demografia histórica se vê num beco sem saída com respeito a uma investigação deste tipo de documento, cuja estranheza retrospectiva coloca de maneira prática a questão da incomensurabilidade. Por densos e coerentes que eles sejam, os dados desta enumeração não podem ser submetidos a nenhum procedimento padrão: sua exploração requer a aplicação de uma demografia alternativa. Ela supõe, para além do trabalho estatístico, a construção de uma articulação entre as categorias e os procedimentos quantitativos do século XVIII e aqueles de hoje em dia[64]. Éric Brian e Marie Jaisson demonstram a reprodutibilidade deste percurso ao efetuar a gênese do estudo de Maurice Halbwachs sobre Le point de vue du nombre, para em seguida o aplicar à análise demográfica do coeficiente de masculinidade, objeto de predileção do sociólogo ao mesmo tempo em que objeto da história de longa duração das ciências das populações[65].
Não é por acaso que estes últimos trabalhos se situam como um prolongamento daqueles conduzidos, uma geração mais cedo, por Jean-Claude Perrot[66]. Para promover uma história material «construtivista», tratava-se já de combater em duas frentes, refutando simultaneamente a história quantitativa objetivista e a renúncia à medida. Domínio por excelência da quantificação, a história das populações mais do que qualquer outra necessita de uma tal fundação teórica para superar os obstáculos que a demografia histórica acabou por encontrar. Ela certamente rompe com o biologismo inerente a esta última, mas também com o relativismo crítico o qual, acorrentando cada categoria ao contexto estrito da sua produção, cai na aporia da incomensurabilidade[67]. Os fenômenos demográficos não são mais entendidos como essências que seriam acessíveis aos pesquisadores se elas não estivessem deformadas por categorizações artificiais e «situadas». Pelo contrário, o tríptico práticas-instituições-saberes, concebido como integrado e indissociável, é doravante colocado junto ao princípio da construção do objeto «população». Suas relações internas, historicamente variáveis[68], tornam-se alvo de estudo ao desvelarem-se pelas objetivações que elas produziram. Em retorno, a historicização destas construções sucessivas permite, ao explicitar os partidos tomados sobre os quais elas repousam, colocá-las em relação umas com as outras; e – como vimos – nos permite utilizar um recenseamento de 1911 ou uma enumeração de 1784 como a base de produção de um saber contemporâneo.
Ao término de vinte anos de questionamento historiográfico, a história das populações rompeu com a idéia de uma realidade demográfica bruta que o «bom método» permitiria exumar. De agora em diante ela propõe a visão de uma realidade sempre-já-construída que é, no entanto objetivável à condição de se tratar as práticas das populações, suas interações com as instituições e suas formalizações cognitivas como um todo indissociável. Deste fundamento teórico derivam princípios de recorte e de escolha dos objetos, assim como uma nova relação com as fontes[69], mas também um programa de pesquisa de fôlego que tem uma vocação comparativa e coletiva. Se o «tríptico» que acabamos de evocar é de fato infinitamente variável em suas dinâmicas internas, os seus componentes de fundo inscrevem-se com efeito em uma história de longa duração que diz respeito aos princípios constitutivos do funcionamento das sociedades.
Para compreendê-lo podemos partir do artigo de Steven King. Para a demografia histórica, a evolução das populações aldeãs se dá dentro de suas propriedades demográficas gerais: notadamente fecundidade, mortalidade e saldo migratório. Por sua parte, o autor a insere igualmente em seu ambiente social. Ser de uma vila britânica não significa somente estar aí domiciliado e recenseado, mas de aí obter os seus direitos: da «população» construída pelos demógrafos, passamos a uma «comunidade» definida por um sistema de proteção coletiva proveniente das Poor laws. Sua aplicação não é mecânica. O princípio e a forma da assistência – notadamente sua maior ou menor extensão médica – são negociados passo a passo entre as autoridades, os pobres e suas famílias[70]. Das opções retidas localmente pelos administradores das Poor laws e de sua maior ou menor eficácia resultam diferentes efeitos sobre a morbidez e a mortalidade.
Medimos assim a transformação historiográfica advinda ao longo de uma geração. Sob análise, o «número de homens» dependentes da qualidade da assitência dispensada não mais se reduz a um exercício de demografia, mas supõe também o estudo das transações entre administradores e administrados. Longe de ser conjectural, esta mutação historiográfica reintegra uma história de longa duração. Na era moderna é forjada sucessivamente a idéia de que a vitalidade da população possa ser fonte de poder e a idéia de que ela seja a manifestação de sua eficácia[71]. Foi, sobretudo, a primeira destas duas filiações que mais reteve a atenção dos historiadores: daí derivam com efeito as relações entre população, Estado e poder, as quais o século XX levará ao paroxismo[72]. Mas o enunciado formulado por Boisguilbert, em 1695, segundo o qual «a grandeza dos reis é medida pelo número de súditos», é igualmente recorrente na história política da população desde a era moderna: ele reaparece em acepções específicas, em contextos os mais radicalmente diferentes[73].
Ora, este princípio funda duas maneiras extremamente diferentes de se pensar a população, as quais coexistem há mais de dois séculos, mas não sem tensões. Elas estão na base da distinção contemporânea entre demografia histórica e história das populações. Em um caso, a população é definida como uma esfera bem delimitada sobre a qual agem diretamente as forças exteriores. Esta leitura, que a demografia enquanto ciência irá sistematizar ao longo do século XIX, é subjacente à idéia de uma «política demográfica» entendida como uma ação direcionada. Quer se trate do aumento dos nascimentos, do povoamento regional, do encorajamento ou da contensão à imigração ou à emigração, a repetição dos objetivos é a tal ponto persistente desde a era moderna, ou mesmo antes, que ela acaba por levantar a questão da sua historicidade. Da mesma maneira, esta leitura funda as abordagens econômicas que, de Malthus ao modelo homeostático dos anos 1960, relacionam mecanicamente a evolução das populações e a disponibilidade dos recursos ambientais[74].
Mas é igualmente possível de se pensar a população como um objeto continuamente construído e moldado pela organização social. Pensamos então menos em termos de ação exterior que em termos de interação; acentuamos menos o ambiente exógeno que as consequências da criação continuada das sociedades por elas mesmas[75]. Podemos associar a este modelo a figura de Condorcet, entendido não tanto como um criador ex nihilo do que como um ponto de convergência para as teorias da época das Luzes em matéria de funcionamento econômico; mas também, mais amplamente, dada a fé na capacidade das sociedades de dominar as forças incontroláveis às quais estão submetidas. A referência à Condorcet vai além da procura por um cômodo emblema. Ela ilustra primeiramente a dicotomia com Malthus o qual, ao curso das múltiplas reedições do seu Essai, não cessará de lhe responder da forma a mais vigorosa, recusando justamente esta idéia de auto-organização social[76]. À sua maneira, Condorcet sistematiza a idéia de uma ação indireta sobre a população, a qual se desenvolveu ao longo do século XVIII. À vontade de influenciar diretamente o comportamento dos indivíduos e das famílias, deve então substituir ou sobrepor a idéia de lhes fornecer um quadro sócio-econômico propício à realização do objetivo desejado: nesta ótica, uma ação em matéria alfandegária, por exemplo, pode tornar-se um elemento de política «demográfica».
É significativo que esta distinção entre ação direta e indireta seja o centro de um curso sobre população dado outrora por Michel Foucault, no Collège de France. Com efeito, ela o permite historicizar os modos de governo das populações ao articulá-los em torno da noção de segurança, entendida como o horizonte de previsibilidade e de estabilidade necessárias para a ação individual[77]. A ressonância com Condorcet é imediata. Nas tabelas de mortalidade produzidas desde há um século pela aritmética política, este último não vê aí apenas uma abstração estatística, mas a probabilidade para uma família dependente dos rendimentos da atividade do pai, de não ser reduzida à miséria por seu falecimento precoce. Em contraste com o entendimento «demográfico» que irá mais longe ainda quanto à autonomização deste tipo de grandezas, Condorcet coloca no centro de sua reflexão a viabilidade das populações ao religá-la tanto com a organização econômica (debates sobre a liberdade do preço dos grãos), quanto com a organização social (aplicação de seguros coletivos e de formas de «propriedade social»).
Esta visão não é circunscrita a um momento chave da reflexão sobre as populações. Meio século mais tarde, o botanista Achille Guillard, meditando sobre o fracasso da Segunda República, vem debruçar-se sobre a população e cria a palavra «demografia». Ao opor-se à economia política de sua época e à sua leitura liberal e malthusiana, este esquivo republicano transpõe as categorias de Condorcet: Guillard religa a viabilidade das populações não mais à regulação dos preços agrícolas, mas à organização voluntarista do trabalho e da assistência, domínio ao qual o regime falhou em assegurar-se quanto ao seu suporte. É neste contexto que ele forja o termo «demografia» ao qual seu genro, Louis-Adolphe Bertillon, será progressivamente levado a dar uma definição mais autonomisante[78]. Não é nosso propósito reconstituir todos os contornos de uma filiação que, dadas as suas sucessivas apropriações e releituras, prolonga-se até o século XX com a intervenção de Émile Durkheim e, depois, de Maurice Halbwachs. Cada vez, uma reflexão sobre as regularidades estatísticas faz da população um objeto sociológico «estratégico», à condição de ser pensado como um processo social mais do que como uma entidade biológica[79].
Se é fascinante observar como os historiadores espontâneos da disciplina ocultaram suas raízes republicanas, anti-clericais ou socializantes, não se trata com isso de substituir uma narrativa negra por uma narrativa rosa. A referência à Condorcet permite certamente situar em uma história de longa duração a imbricação recorrente entre políticas de população e políticas sociais. Mas, ao mesmo tempo, ela foi várias vezes mobilizada como princípio de legitimação de uma política eugenista de «melhoramento» da população[80]. Longe de uma incompatibilidade, vemos aí uma manifestação dos estreitos laços que unem há dois séculos «biopolítica» e reforma social, notadamente via abordagens higienistas. E é isto o que confere ao objeto população toda a sua carga histórica: amarram-se e desamarram-se permanentemente a seu propósito as combinações ideológicas as mais diversas, trazendo a cada vez um efeito sobre os processos de auto-fabricação das sociedades[81].
A geopolítica das migrações no período entre-guerras constitui aí uma outra ilustração. Ao projetar no passado as preocupações atuais sobre a cidadania, a (rica) historiografia contemporânea sobre a história das migrações internacionais relegou a um segundo plano os debates que eram centrais ao longo da primeira parte do século XX, notadamente a questão dos direitos sociais atribuídos aos trabalhadores migrantes, questão decisiva no momento em que os sistemas nacionais de proteção social estavam em vias de se formar. Mas esta, por sua vez, não pode ser compreendida sem ser articulada à questão das migrações coloniais, à pressão eugenista e higienista em favor de um controle sanitário, ou à obsessão de certos Estados em relação ao confronto de um afluxo de imigrantes comunistas. Sobretudo, todo o período entre-guerras é marcado pelo questionamento do princípio de soberania nacional proveniente de uma aliança contra a natureza entre Estados de emigração «imperialistas», que reinvindicam a anexão de terras sub-povoadas, e altos funcionários humanistas e pacifistas sonhando com uma regulamentação planetária – e supranacional – dos movimentos de população. Neste jogo de interações figuram as associações de proteção aos migrantes, que derivam notadamente dos meios feministas, universitários ou confessionais. Associações, igrejas, sindicatos assalariados ou patronais, coletividades locais ou regionais, organismos supranacionais: todas estas instituições concorrem a complicar um jogo de influências que não se reduz ao papel dos Estados nem à tirania do nacional. O artigo de Éric Guerassimoff, confere por sua vez uma aplicação «bilateral» a propósito da migração dos coolies em direção aos Estados Unidos, ao mesmo tempo, em que mostra a importância de se levar à sério os mecanismos diplomáticos para que se possa escrever a história das mobilidades.
Mais globalmente a população é um bom objeto a partir do qual levantar a questão das escalas de intervenção. Insistir sobre a sua fabricação institucional não significa negar o papel das «populações». Mencionamos acima a dialética sistemática entre a afirmação dos critérios de administração «universais» e a gestão individualizada, para não dizer negociada, das políticas demográficas e sociais. Da mesma maneira, a micro-análise contribuiu para nuançar as visões demasiado mecânicas dos ajustamentos entre populações e recursos: entre migrações temporárias, pluri-atividades, riscos mútuos entre parentes, os habitantes dos campos procuravam afrouxar a rede de pressões que pesava sobre eles e libertar-se das «armadilhas malthusianas». Que a evidência das estratégias colocadas em marcha a este efeito resulte de monografias detalhadas não significa que este tipo de processo não seja generalisável. Permanecendo no interior das ciências sociais formalizadas, a noção matemática de viabilidade mostra que é possível se pensar a população não como uma entidade demográfica fechada sobre si mesma ou como um produto mecânico de seu ambiente, mas como uma realidade complexa cuja dinâmica depende de sua organização econômica e social[82].
Ao inserir no coração da historiografia as problemáticas biologisantes provenientes do período entre-guerras, o nascimento da demografia histórica havia correspondido à expansão máxima da demografia dita «pura» articulada às tomadas substanciais de políticas de população. Meio século mais tarde, a configuração inverteu-se. A emergência de uma história social e política das populações deve ser entendida como um meio dado às ciências sociais de combater a naturalização e o reducionismo estatístico dos objetos da demografia e de dar lugar aos percursos sócio-biológicos que hoje esforçam-se para reinvestir nesta disciplina. Por suas características (a importância da objetivação estatística, a dialética entre tratamento de massa e gestão individual negociada, os entrelaços com os processos de auto-fabricação das sociedades), mais do que qualquer outro objeto a população requer a aplicação de um percurso construcionista: apostemos que as soluções que ela propõe a este efeito lhe possam permitir reencontrar o papel clarificador que ela desempenhou durante os gloriosos Trinta em favor de uma história social triunfante.