Dossiê
Alguns lugares de memória de processos diaspóricos: narrativas de mulheres brasileiras e argentinas na Itália contemporânea
Alguns lugares de memória de processos diaspóricos: narrativas de mulheres brasileiras e argentinas na Itália contemporânea
Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 2, pp. 3-20, 2009
Universidade do Estado de Santa Catarina
Palavras chave: Memória, Identidade, Imigração Internacional, Representações, Diáspora
Keywords: Memory, Identity, International Immigration, Representation, Diaspora
A imigração é um fenômeno novo na Península Itálica, ao menos como chegada maciça de estrangeiros, tendo o seu incremento acontecido em meados da década de 80 do século XX. Uma nação habituada historicamente com a emigração – com indivíduos que partiam, em experiências temporárias ou definitivas, para os diferentes espaços do globo – começou, nas últimas décadas do século XX, a ter que fazer as contas, com a inversão nesse fluxo de pessoas. Essa nova realidade trouxe consigo uma série de alterações no quotidiano, sobretudo um cruzamento, no interior da nação, com novas dinâmicas culturais e com novas representações sociais.
O processo emigratório, envolvendo a saída de compatriotas, sempre foi uma experiência de exportação de uma determinada italianidade, muitas vezes marcada pelas diferentes culturas regionais. Mesmo havendo uma certa circulação de novas representações e imagens, a partir das cartas dos emigrantes e das narrativas e costumes daqueles que retornavam, a influência estrangeira, de maneira direta, era muito contida. Nos últimos anos, pelo contrário, houve um crescimento exponencial da presença de estrangeiros em solo italiano, mudando não somente a fisionomia do país, mas, também, acrescentando novas expressões culturais e problematizando conceitos como cidadania, identidade e pátria.
Essa sensação de invasão – a qual também foi multiplicada e aumentada pelas narrativas jornalísticas, que difundiam constantemente os desembarques de imigrantes no sul da península – começou a criar um forte medo do outro, ou melhor, de certas categorias humanas entendidas dentro de um processo de negativização do outro. O próprio governo Berlusconi, fortemente marcado pela ação da Lega Nord, contribuiu para o crescimento desse temor com relação aos que vêm de fora, a partir de um processo de criminalização do clandestino, em uma espécie de caça às bruxas. A legislação italiana com relação à imigração sofreu um grande recrudescimento, e – atualmente – tudo aquilo que legalmente pode ser entendido como facilitação da imigração ilegal (mesmo alugar um apartamento para um clandestino) não é mais punível com um procedimento administrativo, mas com uma ação penal[1]. Para se ter uma idéia, uma determinação pensada para aparecer no texto da nova lei, mas que não foi aprovada, determinava que os médicos fossem obrigados a denunciar à polícia os clandestinos que procurassem atendimento. Se o estrangeiro ilegal é, a priori, um criminoso, essa nova compreensão legal acaba reforçando e recriando antigas percepções negativas do outro.
De qualquer forma, como se disse logo acima, a experiência imigratória na Itália é muito recente e deu-se em um processo muito rápido de explosão da quantidade de ingressantes, o que acabou contribuindo para a configuração de uma imagem de invasão. Segundo Bonifazi (2007), um aumento exponencial da presença estrangeira na Itália aconteceu na primeira década do século XXI, levando quase a triplicar a sua quantidade, a qual hoje se aproxima dos três milhões de indivíduos. Isso fez com que o país, em pouco tempo, se transformasse em um dos principais países europeus a receber estrangeiros.
Essa situação de confronto com o outro acabou promovendo uma rápida degeneração na percepção que a população italiana tinha dos imigrantes. Um momento central nesse processo de mutação pôde ser observado nos grandes desembarques de albaneses, em 1991, com as imagens de barcas abarrotadas de imigrantes que acostavam nas praias italianas. Ao mesmo tempo em que aquelas imagens apareceram nas televisões do mundo inteiro, os italianos vivenciaram um forte processo de mudança em sua percepção do fenômeno imigratório, não o entendendo mais a partir de uma perspectiva positiva e caritativa, mas problematizando-o:
Aquele fato marcou também o fim de uma atitude coletiva de benevolência, mas também de pouca consciência, com relação à aceitação do fenômeno por parte da sociedade italiana, o que deixou lugar a dúvidas, temor e preocupações, que tiveram um grande peso para determinar aquela contínua oscilação entre emergência e normalidade, que foi um dos elementos fundantes da situação por boa parte dos anos noventa (BONIFAZI, 2007, p. 234).
Essa tensão observada na sociedade italiana de finais do século XX é importante para percebermos – dentro de um quadro de reelaboração identitária – como as experiências sensíveis na terra de chegada, somadas à própria vivência da expatriação, participam de um processo dialógico de alteridade e autorrepresentação, contribuindo para a construção dessas identidades diaspóricas. Levando em consideração a metáfora médica utilizada por Hall (2002), a qual qualifica a identidade como uma espécie de sutura do indivíduo à sociedade, as transformações imagéticas relativas ao imigrante – na terra de acolhida – influenciam fortemente a construção de novos vínculos, novas formas de sutura, promovendo profundas transformações na maneira como ele se percebe e como ele entende a sociedade na qual está tentando se inserir. Nesse sentido, e como parte de fenômenos identitários presentes na modernidade tardia, tem-se uma grande fluidez com relação à identidade, a qual vive um constante processo transformativo, em sua interação com os emblemas e símbolos que marcam o social:
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2002, p. 13).
Dessa forma, pode-se afirmar que a identidade não é uma instituição criada em uma não temporalidade, alguma coisa abstrata suspensa no ar – acima e para além do social –, mas, pelo contrário, ela está inserida em um processo social e é resultante dessas dinâmicas mutantes e complexas que interagem no mundo vivido. O grau de complexidade dos processos de interação dos diferentes grupos que compõem a sociedade – os quais, às vezes, podem se estruturar em uma relação binária, nacionais e imigrantes – interfere diretamente em uma complexificação das dinâmicas constitutivas da identidade:
Dessa forma, são parte de sua constituição as construções, as desconstruções, as re-elaborações, as retrações, tudo como estratégias para a manutenção dos grupos sociais: cada mudança social a faz reformular de maneira diferente (BENEDUZI, 2004, p. 19).
Pode-se acrescentar a essa discussão acerca da mobilidade das identidades (sua dinamicidade) e da sua pluralidade uma idéia de interatividade. Como afirma Hall (2002), está-se observando o emergir – em diferentes lugares – de identidades culturais que se apresentam como o resultado de complexas composições e cruzamentos culturais, os quais se tornam sempre mais comuns em uma realidade mundial de expansão dos processos de globalização. Assim sendo, novos sujeitos – híbridos – vão surgindo nessas dinâmicas de inter-relação, tanto no que se refere às experiências de contato entre o “homem imigrante” e a sociedade da terra de chegada, quanto no que tange às novas relações estabelecidas entre os diferentes grupos de estrangeiros. De fato, é a percepção de uma identidade cultural pluralizada – própria dos estudos contemporâneos – que permite compreender um percurso fundante de construção de um “nós” que vai além da esfera étnico-nacional e que se estrutura – a partir de experiências comunicantes – em um novo sujeito coletivo: o imigrante.
Esse novo sujeito coletivo, marcado por trajetórias que se interconectam, pode dialogar internamente a partir de elos mnemônicos que criam um sentimento de pertença e partilha, enfim, uma noção de grupo. Esses espaços de memória grupal – os lugares de memória do processo de imigração na Itália contemporânea – constituem-se naquilo que Nora (1999) define como “os grandes símbolos de reconhecimento coletivo”. As experiências comuns – marcadas por conceitos, espaços físicos, indivíduos – assumem uma perspectiva simbólica que integra e irmana os diferentes grupos de imigrantes; mesmo com a diferença de proveniência, eles integram um determinado individual coletivo.
A trajetória comum funciona como elemento de construção de uma nova identidade coletiva, fundada em uma memória que se articula, desde o individual, em um plano coletivo. Estabelece-se aquele processo dialético, descrito por Halbwachs (1997), que envolve a ação mnemônica e a comunidade, sendo que, enquanto o social é inscrito na memória individual, a memória se insere no profundo interior da sociedade. Segundo o autor, mesmo a memória mais individual traz consigo imagens e ideias que fornecem um significado social às sensações e às recordações, reconstruindo a experiência passada a partir das representações e dos interesses hodiernos do grupo:
Para M. Halbwachs, a memória, a mais individual, é social porque seu quadro é feito de noções metade imagens e metade idéias que concedem à sensação uma significação social, a visão de mundos de nosso grupo. A noção central que percorre o seu livro é de que a recordação é uma reconstrução do passado, a partir da representação que um grupo possuiu de seus interesses atuais (NAMER, 1999, p. 239).
Dessa forma, entende-se que as narrativas individuais das entrevistadas não deixam de ser uma representação de sentimentos e recordações que perpassam essa nova identidade coletiva, a qual se elabora a partir das diferentes vivências do percurso imigratório. No caso específico dos lugares de memória a que se dará ênfase, esses relatos estão centrados em rememorações que se colocam na quotidianidade da terra de chegada e no confronto com as normas e com a sociedade de acolhida. De certa forma, tendo em vista que são analisadas a posteriori, essas rememorações acabam se transformando – mesmo não deixando de ser o relato de uma experiência traumática – em um sinal de superação e vitória. A ação narrativa – também rememorativa – não deixa de ser aquilo que Ricoeur (2004) entende como um ato de alteridade, tendo em vista que a passagem do tempo (re)cria tanto os “eus” individuais quanto aqueles coletivos.
De fato, as entrevistas não podem ser consideradas – levando em conta o trabalho com processo de rememoração – como relatos miméticos da experiência vivida, pois, lidando com a recordação, adentramos no campo da arte de reconstrução da memória. Os acontecimentos narrados são fragmentos e indícios reelaborados pelo depoente no momento da narrativa, criando uma lógica interna e uma linearidade. Mesmo construindo saltos temporais e temáticos, no fundo, as lacunas vão sendo preenchidas por um trabalho de tessitura da trama vivida:
a memória não é a totalidade mimética do passado, mas uma síntese fragmentária, uma colagem de cacos do ocorrido, recolocados no seu lugar – no meio de lacunas, vazios, acréscimos – que exige uma arte, a arte da memória – [...] para colocar-se em seu tenso diálogo com o esquecimento (VECCHI, 2001, p. 86).
Isnenghi (1996) explica o processo complexo e fragmentário da produção mnemônica a partir de uma metáfora vinculada à experiência aeroportuária, ou melhor, à recepção da bagagem. Nos aeroportos, as malas entram em uma passagem, transitam por espaços desconhecidos e – algum tempo depois – reaparecem em uma outra abertura. Da mesma maneira, a memória percorre lugares desconhecidos do esquecimento e – em determinados momentos – reaflora. Assim, as experiências passadas transitam pela recordação individual e coletiva, aparecendo ou desaparecendo em sintonia com o presente daquele(s) que recorda(m).
As vivências coletivas experimentam – na terra de chegada – um processo de transformação nas representações relativas à própria dinâmica de expatriação, pois as imagens redentoras começam a ser dessacralizadas a partir das novas experiências traumáticas, que vão desarticulando processos identitários e elaborando novos lugares de memória. Aquela narrativa emblemática, recordada por Hall (2003), que (re)percorre a redenção do povo eleito, o qual deixa o tormento do cativeiro no Egito e é conduzido por Moisés, instrumento da libertação divina, à terra prometida, acaba sofrendo – mesmo inconscientemente – uma releitura, pois as adversidades do presente conduzem a um novo olhar com relação ao percurso imigratório.
É nesse contexto de transformação e releitura da experiência imigratória que se estruturam novos lugares de memória traumáticos da imigração, os quais permanecem como narrativa do vivido ou como memória delegada, tendo em vista que perpassam o conjunto do tecido social. Simultaneamente, nascem novas memórias do processo imigratório, vinculadas a um olhar mais indulgente com relação à terra de partida, a novas dinâmicas identitárias, atreladas às experiências coletivas na terra de chegada, e a novas estratégias de pacificação do “eu”, buscando resolver esses encontros e confrontos entre o passado e o presente invidual/coletivo.
Especialmente para este artigo, escolheu-se destacar e analisar dois lugares de memória – a questura e o extra-comunitário – que perpassam a totalidade das entrevistas, seja como experiência em primeira pessoa, seja como vivência secundária, a partir dos relatos de amigos. O primeiro espaço caracteriza-se por sua materialidade, pois é a chefatura de polícia, o local por excelência dos primeiros contatos burocráticos entre o imigrante e o Estado Nacional. O segundo, mesmo estando envolvido pela abstração conceitual, recobre a experiência sensível do preconceito, o qual rompe com o pragmatismo analítico que reconhece no termo a representação dos não membros da comunidade européia.
O primeiro lugar mnemônico que marcou a imigração, sobretudo nos anos 90 do século XX, constitui-se na questura (chefatura de polícia), local onde os imigrantes tinham que se apresentar para solicitar o permesso di soggiorno[2] e – posteriormente – retornar para buscá-lo e renová-lo. Essa função de acolhida dos pedidos de permissão para residir em território italiano foi pluralizada para outros setores da burocracia de Estado, sendo o correio, atualmente, uma entidade muito utilizada para a apresentação desse tipo de solicitação. De qualquer forma, a questura ainda permanece como espaço concreto de “integração burocrática” do imigrante e – acima de tudo – lugar de memória das primeiras interações/fricções com a sociedade de acolhida.
As narrativas que se estruturam nas entrevistas não destacam, em nenhum momento, os procedimentos necessários ou a documentação que deveria ser entregue para dar entrada no pedido do permesso. Elas estão vinculadas efetivamente a uma vivência que se poderia dizer subjetiva daquele espaço, aos sentimentos que aquela situação – sempre narrada como discriminatória – produzia em suas almas, instaurando-se em suas percepções sobre a terra de chegada e sobre esse imigrante dentro dessa sociedade que o está “acolhendo”.
Como relata AHE, imigrante brasileira que está na Itália desde 2000, tendo vivido por aproximadamente cinco anos como clandestina e hoje casada com um italiano, o tratamento do imigrante em seu contato com a questura é muito humilhante. Muito embora esteja fazendo uma solicitação de permesso porque está casada com um italiano, o tratamento dispensado não é visto como preferencial, visto que todos os imigrantes são tratados, indistintamente, mal:
Porque a coisa que eu mais sofri aqui, que foi mais assim, que é pra mim até hoje, pesa muito, é muito humilhante, ir na Questura, eu acho horrível, porque eles te tratam muito mal (AHE, 2004, p. 7).
Como se percebe, a experiência desse espaço irmana os imigrantes em um percurso comum de preconceito e sofrimento, nessa narrativa, psíquico. Efetivamente, sempre segundo a depoente, que era advogada no Brasil e pertencia a uma família de classe média alta, não existe uma diferenciação social que determine uma forma privilegiada de tratamento para alguns grupos sociais ou certos níveis de instrução; existe uma amalgamação que insere todos os estrangeiros em uma mesma classe de identificação – o imigrante:
E... não interessa que título de estudo você tem, que tipo de pessoa você é, não tem diferença, eles tratam todos mal, entendeu. Não é que tratam todos bem, tratam todos mal (AHE, 2004, p. 7).
A mesma sensação de ser mal tratada, talvez pintando essa vivência com tintas mais fortes, pois utiliza a palavra “agressão”, é narrada por PILM, imigrante argentina. A entrevistada era professora universitária na Argentina, da área de Belas Artes, na cidade de La Plata, província de Buenos Aires. Sua experiência de imigração foi antecedida por muitas viagens de idas e vinda
Sem antecipar o que se poderá observar mais adiante, quando se irá falar do extra-comunitário e de alguns tipos privilegiados de estrangeiros, no confronto com o sistema burocrático italiano, aqui se quer destacar essa observação vinculada a uma não distinção social presente na questura. Certamente tem-se em confronto elementos conflitantes das culturas da sociedade de partida e daquela de chegada e – acima de tudo – a construção dessa etiqueta uniformizadora que é o termo “imigrante”. Para a entrevistada, dever-se-ia levar em conta, para determinar a forma de tratamento, o nível intelectual do imigrante, estando seu raciocínio ancorado em uma realidade cultural que ela percebe sob o prisma da normalização, como a brasileira. A discriminação vinculada a um nível de instrução diferenciado, na sua narrativa, não se apresenta como um preconceito, mas como um elemento natural de classificação social; o problema se encontra no fato de essa distinção não ser feita. Obviamente, as diferenciações por nível de instrução existem na sociedade italiana, no entanto, considerando o espaço da questura e as diversificadas construções da alteridade, o eixo central para a identificação desse outro é o seu caráter de imigrante, o qual, de certa forma, anula o reconhecimento de outros elementos componentes de sua identidade.
A mesma sensação de ser mal tratada, talvez pintando essa vivência com tintas mais fortes, pois utiliza a palavra “agressão”, é narrada por PILM, imigrante argentina. A entrevistada era professora universitária na Argentina, da área de Belas Artes, na cidade de La Plata, província de Buenos Aires. Sua experiência de imigração foi antecedida por muitas viagens de idas e vindas, dentro de acordos de sua universidade com instituições italianas, como a Universidade de Reggio Calabria. A migração definitiva aconteceu em finais dos anos 1990, quando – depois de algumas experiências no Sul da Itália – PILM decidiu estabelecer-se na Toscana. Certamente a sua base de formação e o seu ambiente familiar (a família da entrevistada também pertencia a uma camada média-alta da sociedade argentina, embora tivesse sido atacada pela crise da década de 1990) contribuíram para a construção de suas percepções acerca deste lugar traumático de memória: a questura.
Retornando à narrativa de PILM, como se estava dizendo, a questura é um espaço de agressão e uma experiência extremamente desafiadora, tanto por causa da forma como o imigrante é tratado, quanto em decorrência da máquina burocrática que ele tem que enfrentar, complexificada ainda mais pela questão lingüística. Esse espaço é descrito pela entrevistada como um importante obstáculo a ser superado, uma situação de tão grande dificuldade que leva muitos a desistirem:
Se o problema era o imigrante, nós nos vimos muito mal, eh. Porque, mesmo colocando todo o empenho e conseguindo fazer tudo, toda vez que íamos à Questura, para fazer o bendito permesso di soggiorno, nós nos sentimos sempre muito, muito agredidas. Uma situação muito, muito difícil de resolver. E, certamente, tem gente que abandona tudo e volta, porque não consegue. Somente para seguir esse jogo é preciso ter uma grande coragem (PILM, 2004, p. 4).
Para além da questão psicológica e da sensação de repressão que se pode observar na chefatura de polícia, PILM constrói um quadro do desgaste e do trauma físico que os corpos dos imigrantes sofrem. Em um forte processo de desumanização, em condições que denotam o desprezo pela pessoa humana, aqueles indivíduos que buscam o seu permesso tinham que esperar a noite inteira para tentar obter um número para dar entrada na documentação. De fato, eles se deparavam com uma máquina perversa, tendo em vista que – mesmo chegando de madrugada – não era certo que conseguiriam a senha para poder entregar os documentos no guichê, o que os levava a retornar no próximo dia ainda mais cedo, sempre mais cedo, até chegar antes mesmo do pôr-do-sol, na tentativa de ter acesso ao famigerado número:
Eles te dão dez números. Então, tu voltas para casa porque não conseguiste obter o número e, no outro dia, não conseguiste por dois números. Daí diz, não, então eu tenho que vir à meia-noite, então eu tenho que vir às da noite e acaba ficando um dia inteiro ali, debaixo de chuva, debaixo de sol, por causa deste bendito número (PILM, 2004, p. 5).
No entanto, o retrato assume feições ainda mais duras e cruéis quando se adentra em determinadas especificidades da narrativa de PILM, no momento em que ela descreve um pouco quem transita por esse ambiente e a situação de abandono em que esse grupo se encontra. Ao ressaltar essa experiência de injustiça social, de descaso do Estado, ela explicita que aquela fila desesperadora era formada também por crianças, idosos e mulheres grávidas, em qualquer situação meteorológica e sem nenhum espaço para que as pessoas pudessem fazer suas necessidades fisiológicas:
Agredidas acima de tudo pelo tratamento, porque não é justo que uma pessoa deva estar em uma fila desde as três da madrugada, debaixo de chuva, e que te façam usar como banheiro uma árvore, porque eles não abrem o banheiro. Depois, passar toda a noite debaixo de chuva, ou debaixo de neve ou como for, com crianças, gente... mães grávidas, etc, etc, pessoas idosas (PILM, 2004, p. 5).
O percurso de agressões não se resume à fila ou às formas desrespeitosas de tratamento até a entrega dos números; elas continuam no atendimento, diante do guichê, onde se deve entregar a documentação. A questura não é um espaço de integração, mas de controle; o imigrante não é um convidado, mas alguém que tenta ter acesso a um país que não é seu. Tudo isso fica bem claro na forma como as relações se estabelecem no interior da questura, pois não existe nenhum esforço do Estado – representado pelos oficiais que recebem os documentos – para compreender o imigrante. É este que deve entender tanto os procedimentos burocráticos, quanto a língua italiana; nesse caso, também a linguagem jurídica. Essa recepção – que acontece também nos momentos de renovação do permesso di soggiorno – faz com que PILM (pequena empresária do setor da arte) se sinta desconsiderada e critique um sistema que não busca minimamente vir ao encontro de suas necessidades, usando a questão da língua como expressão importante dessa condição:
e depois te atende um senhor que diz: “A senhora quem é?” E te tratam também mal, porque não têm nem mesmo a inteligência de colocar uma pessoa que fale a tua língua e isso já daria trabalho para um imigrante, já seria por si só uma boa coisa (PILM, 2004, p. 5).
AHE aprofunda o sentimento de mal-estar e constrangimento que circunda a experiência da questura, vinculando a ela uma percepção de não cidadania e de não exercício dos direitos civis. O seu desejo de obter a cidadania italiana, por causa do matrimônio, processo que tinha já iniciado quando a entrevista foi realizada, está relacionado – segundo a sua fala – ao desejo de ser tratada como uma pessoa normal e de não ter que retornar nunca mais à questura; apenas para renovar o passaporte, mas – nessa situação – como cidadã italiana, com seus direitos. Como diz ela, nesse momento “eles têm que me tratar normal” (AHE, 2004, p. 8). Para a depoente, o sofrimento da chefatura de polícia teve um peso traumático tão grande e causou um desgosto tão profundo, que a busca da cidadania se transformou em uma questão de honra:
[...] é realmente traumatizante você lidar com Questura. [...] E isso é uma coisa que doeu muito em mim, sabe. E... então, pra mim é uma questão de honra ter a cidadania, porque eu não quero mais nada, ter nada que fazer com a Questura, entendeu (AHE, 2004, p. 7).
Para a advogada, a questura constitui um espaço de preconceito, onde, a priori, o imigrante é tratado como um inferior; condição atenuada nas vezes em que levava consigo o marido – italiano –, obtendo um tratamento um pouco melhor, mas enfatizando “um pouco”. Viver aquele espaço e aquele tipo de confronto fez com que AHE fizesse uma reflexão sobre a importância dos direitos e do exercício da cidadania, algo que ela começou a considerar a partir do momento em que eles não existiam mais em seu horizonte ou na percepção que ela tinha de sua realidade, pois quando se está em casa, não se percebe a si mesmo como o “outro”: “Você sente na pele o que é preconceito, você não tem idéia do que é isso, quando você mora no teu país, você não tem idéia” (AHE, 2004, p. 7).
VBK, outra entrevistada, natural do Rio Grande do Sul, reforça essa imagem da questura como lugar de trauma, sofrimento e terror, não a partir da experiência vivida, mas narrando casos de que teve ciência. Mesmo tendo tido um contato muito tranqüilo com a questura, a depoente afirma que conhece muitas pessoas que viveram de uma forma dura o processo do permesso di soggiorno:
Efetivamente, tive uma outra experiência com a questura. Mas conheci muitas pessoas que tiveram grandes problemas. Hospedei também, em minha casa, algumas pessoas que não conseguiam ter a documentação e, então, tinham que ir embora (VBK, 2004, p. 7).
A experiência diversa que VBK viveu com relação à questura, a qual ela percebe como uma exceção diante das narrativas de amigos e conhecidos, deveu-se ao momento de sua imigração. A entrevistada gaúcha, que exerceu a função de professora de Educação Artística, em Porto Alegre, até o momento de sua partida, chegou à Itália em finais dos anos 1980, período anterior ao aumento exponencial da chegada de imigrantes e à vivência de uma forte transformação da imagem do imigrante. Isso explica a sua memória pessoal diferenciada com relação ao ambiente onde era concedido o permesso di soggiorno e, ao mesmo tempo, denota a profundidade da transformação experimentada na Península Itálica e como a profusão de contatos com o “outro” e as imagens negativas produzidas pelos desembarques clandestinos alteraram a relação geral da população, mas também das instituições, com esse diferente.
Essa percepção da alteridade fica patente quando se procura analisar alguns elementos simbólicos que circundam a maneira de nomear o imigrante: o extracomunitário. O conceito classificatório desse grupo de indivíduos que chegam à Itália pelas mais diferentes vias, buscando estabelecer-se temporária ou permanentemente, acabou se transformando – ao longo do processo imigratório – em um outro lugar de memória da experiência de expatriação. Como exemplifica PILM, esse espaço mnemônico não é apenas uma categoria que se assemelha àquela de estrangeiro, mas – ainda mais do que a denominação de imigrante – carrega consigo o estigma da diferença e de uma diversidade vista de modo negativo. Ao fim e ao cabo, sentir-se extracomunitário é experimentar a incomunicabilidade de tradições político-culturais e o preconceito velado ou aberto que permeia a sociedade italiana e se faz presente nas mais variadas relações quotidianas:
E mesmo já tendo o meu Código de Pessoa Física, por exemplo, eu não tinha o permesso di soggiorno. Mas, tudo bem, estas são as leis, que uma pessoa pode ir contra, mas, de fato, fazem com que tu te sintas muito mais imigrante do que antes, não? Te fazem sentir extra-comunitário (PILM, 2004, p. 5).
Associada à memória da questura, pois o fragmento do diálogo acima é a conclusão de um longo relato que inicia com a experiência e a vivência desse outro lugar de memória, PILM ressalta a representação do “ser extracomunitário”, ou sentir-se como tal, como parte de um processo de sofrimento e incompreensão diante de uma nova realidade nacional, mas, também, sociocultural. Em sua argumentação está refletida a incapacidade de entender o fato de já possuir um CPF (Codice Fiscale), já pagar os tributos e as taxas, mas não ter tido acesso a uma permissão de permanência em território italiano. Perceber-se extracomunitário, também, é estar fora de uma lógica burocrático-administrativa; estar integrado ao mundo econômico, mas não àquele dos direitos de cidadania.
Dentre as situações vividas que criaram em PILM esse aumento de uma sensação de estranhamento com relação à sociedade de acolhida – esse sentir-se extracomunitário – pode ser destacada a confusa e conturbada maneira, muito usual entre os imigrantes, de permanecer “legalmente” no país sem enfrentar a experiência traumática da questura, viajando de tempos em tempos até a fronteira de um Estado externo à comunidade européia. Essa situação se enquadra nas estratégias de permanência em solo europeu e é muito utilizada por alguns grupos de imigrantes latino-americanos, como brasileiros e argentinos, os quais – de acordo com a política de reciprocidade – têm, automaticamente, o direito de permanecer como turistas, por três meses, na maioria dos países europeus. Assim, as viagens da professora argentina até a fronteira da Itália com a Suíça aconteciam regularmente, a cada três meses, constituindo estratégia para aproveitar as brechas que o sistema jurídico permitia. No entanto, a viagem não deixava de ser uma expressão do sentimento de preconceito e agressão, aumentando a sensação de ser um indivíduo não tutelado pelo Estado. Como relata a depoente, a viagem era ridícula, tendo em vista a sua mera formalidade, pois – ultrapassada a fronteira e timbrado o passaporte – retornava-se no mesmo trem, em companhia de várias prostitutas que, rotineiramente, utilizavam aquele subterfúgio:
E, nada, nos deparamos uma vez com o fato de ter que sair da fronteira, para renovar o permesso di soggiorno, de trem, uma coisa ridícula, fomos atpe a fronteira de Chiasso – no norte. Bom, no norte, entre a Itália e a Suíça, no mesmo trem com que chegamos, depois de terem carimbado o passaporte, voltamos, tendo gasto 400 mil liras, com o trem cheio de meninas que trabalhavam como prostitutas, que trabalham daquela maneira e que são obrigadas a carimbar o passaporte daquela maneira (PILM, 2004, p. 5).
Antes de prosseguir com a análise das experiências mnemônicas de estranhamento e preconceito que produzem esse “sentir-se extracomunitário”, é importante uma breve análise do termo em si. Em um primeiro momento, pensando em uma concepção semântica do vocábulo “extracomunitário”, pode vir à mente uma conceituação geográfica, tendo em vista a raiz latina do prefixo “extra”, que significa “fora de”, “externamente” ou “na parte de fora” e a compreensão de “comunitário” como elemento vinculado à Comunidade Européia[3]. Assim, o termo seria associável ao conjunto de indivíduos que não nasceram em um Estado pertencente à União Européia, portanto, provenientes de um espaço que se localiza fora das fronteiras comunitárias.
Nessa lógica, o termo seria – dentro de uma nova política que visa à construção de uma cidadania européia – um possível sinônimo de “estrangeiro” (indivíduo de nacionalidade diversa daquela do país onde se encontra ou vive), vocábulo que também tem sua raiz no prefixo latino “extra”. Todavia, a organização da questura para o recebimento das solicitações para permesso di soggiorno e o conteúdo simbólico do uso do termo conduzem para uma construção subjetiva da classificação de “estrangeiro” ou “extracomunitário”.
No caso específico do contato com a chefatura de polícia, para a legalização de documentos para a permanência em solo italiano, percebe-se essa diferenciação a partir da construção de dois espaços: um para os indivíduos provenientes do “terceiro mundo” (extracomunitários, a priori imigrantes e despossuídos) e outro para os indivíduos provenientes de outras nações do “primeiro mundo”, como os Estados Unidos, a Austrália, o Canadá ou o Japão (estrangeiros, turistas e homens de negócios). Enquanto o primeiro grupo deve digladiar-se em uma fila para obter o sonhado número e entregar a documentação, dormindo muitas vezes ao relento, o segundo – além de ter um lugar diferenciado para a entrega da documentação – muitas vezes é atendido com hora marcada ou, simplesmente, de um modo muito mais “civilizado” e cortês.
As representações negativas acerca do termo “extracomunitário” e sua diferenciação da imagem do “estrangeiro” não são um fenômeno que se percebe somente nos espaços de interação entre os imigrantes e a burocracia estatal. As relações sociais que se estabelecem no quotidiano das cidades italianas permitem um entendimento ainda mais profundo dessa dúplice representação da alteridade, pois a esse outro relaciona-se tudo aquilo que é qualificável como elemento destruidor da normalidade e da tranqüilidade social (por seus costumes, por suas ações, por seu modo de ser, por seus crimes). Certamente, a dimensão geográfica, e com ela as características fisionômicas, delimitam esse outro imageticamente indesejável, mesmo se, depois, ele ocupa os espaços de trabalho mais degradados da sociedade e carentes de mão-de-obra, circunscrevendo-o entre pessoas oriundas de países não industrializados. O seu oposto é o estrangeiro, parceiro comercial, consumidor – turista ou não – que contribui para o crescimento do país, sendo proveniente dos países industrializados.
Nesse sentido, enquanto o japonês ou o norte-americano são o estrangeiro (turista), o chinês ou o latino-americano são o extracomunitário (imigrante), sendo que em relação a ambos observa-se um processo de estereotipagem. O primeiro figura como símbolo positivo de relações que criam melhores condições de vida e trabalho na Península Itálica, elemento que produz contatos regeneradores e qualificadores da sociedade local. O segundo é assinalado como componente de uma dinâmica de degenerescência, raiz do aumento da criminalidade, da prostituição e das gangues; não sendo percebido como um recurso para a sociedade, é entendido como um problema e um ônus.
Duas experiências, as quais serão objeto de análise logo adiante, são muito esclarecedoras acerca das relações discriminatórias que se instauram no plano social, aumentando essa sensação de ser o outro indesejável, de estar irremediavelmente “fora do lugar”. A primeira relaciona-se com a obtenção de uma moradia, no caso que será comentado, para aluguel. Na segunda, é relatada uma situação de quotidiano, em um ônibus, sendo que se tem presente tanto a dimensão do público, quanto a do privado.
O caso de PILM – que chegou a San Giovanni Valdarno (província de Arezzo) com sua ex-aluna e, depois, colega de trabalho – traz à tona a dificuldade que o imigrante (extracomunitário) tem para ter acesso, de alguma forma, à moradia. O seu relato descreve uma busca de mais de dois meses por uma casa ou apartamento para alugar, tendo percorrido quase toda a região da Toscana em busca de um teto. Como está destacado em sua entrevista, as duas argentinas foram até Viareggio[4] no inverno e não conseguiram encontrar nada para alugar: “ninguém queria nos alugar nada, esta era a questão” (PILM, 2004, p. 5).
A desconfiança era o elemento central que dificultava a realização desse projeto de fixar residência, situação marcada por um conjunto de elementos que a entrevistada percebe como entendidos negativamente pela sociedade de chegada. A falta de regularização de sua existência legal na Itália, as questões vinculadas ao gênero, o fato de trabalharem com a arte e – sobretudo – a sua proveniência, que as colocava no mundo dos extracomunitários, eram condições que quase inviabilizavam o encontro de um apartamento para alugar:
Sendo duas mulheres, imigrantes, extracomunitárias e sem permesso di soggiorno regular, artistas; para seis meses não achavas nada mais do que um hotel, sim, e o hotel Sheraton, ali te davam um quarto, mas em um outro lugar, não (PILM, 2004, p. 5) [...] que se oferecia sempre mais dinheiro e ninguém nos oferecia nem mesmo um quarto (PILM, 2004, p. 2).
Em um grande hotel, com um alto custo de diária, elas conseguiriam encontrar uma casa, e essa percepção fez com que elas estruturassem uma estratégia nova, enfatizando um elemento importante que pudesse contrabalançar as facetas negativas de sua identidade de imigrante. Entrando em contato com uma importante agência imobiliária, PILM informou que era uma professora universitária argentina e que estava na Itália, com uma colega, em atividade de pesquisa; a partir desse momento, as propostas não faltaram:
Eu peguei o telefone, liguei para uma dessas grandes cadeias de imobiliárias e me apresentei dizendo que era a Doutora Lopez, da Argentina, da Universidade de Buenos Aires, que estava com uma colega, fazendo um trabalho de pesquisa sobre a arte italiana e que precisava de um certo conforto, um escritório, etc, etc, porque éramos duas artistas, por seis meses.. Bom, foi uma avalanche de telefonemas – doutora, doutora, doutora – me ofereceram até mesmo prédios inteiros na piazza della Signoria e prédios e mansões na região do Chianti, era uma coisa inacreditável (PILM, 2004, p. 2).
O segundo caso é narrado por VBK e constitui um exemplo do contraste que pode se criar em uma relação, quando um determinado indivíduo apresenta a configuração estética de um imigrante. De fato, eram duas extracomunitárias dentro do ônibus, a entrevistada e uma mulher sul-americana (ou seja, com características físicas que a identificavam fortemente como latino-americana); no entanto, apenas essa segunda pessoa sofreu o processo de discriminação. Segundo a depoente, o fato de ela ter características físicas que a aproximam de um tipo físico italiano (ela é descendente de italianos e poloneses) sempre foi importante para evitar situações públicas de discriminação.
As duas mulheres entraram no ônibus, na linha Prato-Florença, e – na mesma parada – entrou também um agente da empresa[5], que assegura que todos os passageiros estejam munidos de passagem. Com o movimento do ônibus e tendo em vista que a conhecida da entrevistada estava grávida, VBK pegou as duas passagens para obliterar; no entretanto, o “cobrador” foi imediatamente em direção à moça sul-americana, pedindo logo que ela mostrasse a passagem, sem nem mesmo notar a presença de VBK. Percebendo que a mulher não tinha o bilhete, tornou-se logo agressivo, dizendo que esses extracomunitários querem andar de ônibus de graça, nem dando tempo para que a entrevistada esclarecesse a situação. Depois do desabafo do “cobrador”, VBK apresentou-se como também sendo uma imigrante e informando que as duas passagens estavam com ela, no que o agente pegou de suas mãos os bilhetes e foi obliterá-los. A ela restou apenas o protesto: “Mas como o senhor se acha no direito de pegar os meus tickets, que foram pagos por mim, que foram comprados por mim e estou indo para a máquina para obliterar” (VBK, 2004, p. 8).
De qualquer forma, VBK percebe que o preconceito está vinculado ao diferente, ao outro, e que sua fisionomia “europeia” facilita o seu quotidiano, pois evita os riscos de uma manifestação a priori preconceituosa. Relatando que vivenciou muitas experiências semelhantes de preconceito, dentro dos meios de transporte públicos, afirma que os “cobradores” agem a partir de uma percepção negativa do imigrante, pois o controle é claramente direcionado a eles, tendo em vista que foram raras as vezes em que à entrevistada foi solicitada a passagem:
Era uma coisa que acontecia com muita frequência nos ônibus, o “cobrador” entrar e se dirigir àquele diverso, não se dirigir, assim, a mim, me aconteceu pouquíssimas vezes que viessem me pedir o ticket para controlar. Ele ia diretamente naquele de cor, naquele diferente (VBK, 2004, p. 8).
Como se pode perceber, o processo imigratório traz consigo uma importante dinâmica de transformação identitária, alterando os componentes que marcam as identidades pluralizadas do “homem imigrante”. Dentro da experiência diaspórica, esses indivíduos hibridizados vivenciam constantemente a complexificação de seus processos de identificação, provando uma profunda ressemantização de suas autorrepresentações. Nesse sentido, e no confronto com a realidade da terra de chegada, são edificados espaços e conceitos que se instauram como lugares de memória da experiência de expatriação, os quais participarão fortemente na elaboração de novas identidades. Muito embora sejam vivências traumáticas, esses espaços mnemônicos enraizar-se-ão densamente na construção de uma autoimagem do imigrante e serão parte importante da construção de suas relações com a sociedade da terra de chegada.
Referências
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BENEDUZI, Luís Fernando. Mal di paese: as reelaborações de um vêneto imaginário na ex-colônia de Conde d’Eu (1884-1925). Porto Alegre: PGHist./UFRGS, 2004 (Tese de Doutorado).
BONIFAZI, Corrado. L’immigrazione straniera in Italia. Bolonha: il Mulino, 2007.
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HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
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PILM. Entrevista realizada em 29 de novembro de 2004, em San Giovanni Valdarno. (Arezzo). Conservada no áudio-arquivo sobre as migrações entre a Europa e a América Latina, Gênova.
RICOEUR, Paul. La memoria, la storia, l’oblio. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2003.
VBK. Entrevista realizada no dia 16 de novembro de 2004, em Terranuova Bracciolini (Arezzo). Conservada no áudio-arquivo sobre as migrações entre a Europa e a América Latina, Gênova.
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Notas