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De volta para casa: a reconstrução de identidades de emigrantes retornados
Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 2, pp. 80-99, 2009
Universidade do Estado de Santa Catarina

Dossiê



Resumo: Este artigo pretende discutir o ir e vir de emigrantes brasileiros neste início de século XXI. O projeto de retorno é parte constitutiva do projeto migratório. Muitos homens e mulheres, quando partiam para “fazer a América”, afirmavam que pretendiam voltar para o Brasil quando conseguissem realizar o projeto migratório, em geral traduzido como reunir os recursos suficientes para comprar uma casa e um carro e montar um negócio. O artigo pretende discutir como homens e mulheres vivenciam a experiência de retornar à terra natal, procurando analisar como reconstroem o caminho de volta para casa, quais os efeitos das viagens nas configurações identitárias, nas relações familiares e de gênero. “Voltar é mais difícil do que partir”, dizem os emigrantes. Assim, pretendemos demonstrar que o retorno é mais complexo e que, em muitos casos, os emigrantes passam a viver entre dois lugares, configurando uma identidade transnacional.

Palavras-chave: Transnacionalismo, Retorno, Memória.

Abstract: This article aims to discuss the movement of Brazilian emigrants in the beginning of the 21st Century. The return project is part of the migration project: when leaving to “make America”, many men and women stated that their intention was to return to Brazil as soon as they accomplished their migration project, generally translated as to have enough funding to buy a house, a car and to open a business. This paper discusses how men and women live the experience of coming back home, trying to analyze how they reconstruct their way back, and what the effects of the trips on the identitarian configurations in the family and gender relations are. “Homecoming is more difficult than leaving”, say the out goers. Thus we intend to demonstrate that returning is more complex and, in many cases, the emigrants start to live between two places, setting up a transnational identity.

Keywords: Transnationalism, Return, Memory.

Introdução

A cidade de Criciúma, localizada no Sul do Estado de Santa Catarina, assim como outras cidades do Brasil, a exemplo de Governador Valadares (MG) e Maringá (PR), vivenciou um novo movimento de sua população no final do século XX - a emigração de criciumenses rumo aos Estados Unidos e à Europa. Os primeiros emigrantes criciumenses partiram rumo aos Estados Unidos em meados da década de 1960, mas foi no início dos anos 1990 que esse fluxo tornou-se significativo, tanto para aqueles que partiram, quanto para aqueles que ficaram na cidade, criando-se, assim, um campo de relações transnacionais que começava a ser observado no cotidiano da cidade.

Quando partiram, os criciumenses levaram em sua bagagem os desejos de uma vida melhor e projetos migratórios. Muitos possuíam passaportes italianos, uma vez que eram descendentes de imigrantes italianos que foram para a região no final do século XIX. Outros foram “com a cara e com a coragem”, viajando com visto de turista ou arriscando-se pela fronteira do México, como veremos em vários relatos neste texto. Em ambos os casos, partilhavam de um projeto migratório: trabalhar e reunir uma poupança que possibilitasse comprar uma casa e um carro e montar um negócio no Brasil - esses bens significariam o sucesso do projeto. Assim, o projeto migratório era construído como temporário, e o retorno ao Brasil era parte desse projeto.

Os migrantes de todos os tempos, quando partem para tentar uma vida melhor no estrangeiro, têm como projeto retornar, em algum momento de sua vida, à terra natal. Esse desejo, revelado em suas cartas ou quando questionados sobre a situação, traduz-se na sua autodefinição como migrantes temporários. Assim, grande parte dos emigrantes, quando perguntados sobre sua situação, falou dos planos de retorno ao Brasil. Geralmente, a volta é programada para o final do ano, pois é o período das festas natalinas, um momento de reencontro com a família. Para muitos emigrantes, esta é a época mais difícil de permanecer nos Estados Unidos.

Entre o "desejo de ir embora para o Brasil" e o que efetivamente acontece existe um vácuo. Alguns tiram apenas férias, outros não conseguem - pois muitas pessoas não têm coragem de voltar sem conseguir alguma coisa. Enquanto isso, o tempo vai passando....

Este artigo busca seguir a trajetória dos emigrantes no caminho de volta para casa. Discutiremos, a partir de entrevistas semiestruturadas e de relatos orais, as experiências de retorno. A pesquisa é de natureza etnográfica e foi realizada com migrantes retornados na cidade de Criciúma e com aqueles que pretendiam retornar ou haviam reemigrado na região de Boston.[1] Procuramos, ainda, apresentar os dados disponíveis sobre a emigração em Criciúma, que permitem traçar um perfil da população dos migrantes ausentes, dos retornados e dos transmigrantes. Realizamos 15 entrevistas, todas transcritas, com migrantes retornados[2], homens e mulheres na faixa etária entre 23 e 53 anos, de variados segmentos sociais, todos com experiência mínima de dois anos nos Estados Unidos, sem documentação legalizada e com retorno à Criciúma havia pelo menos um ano, na data de realização da entrevista. Para que os resultados obtidos fossem amplos e consistentes, pareceu-nos adequada a articulação ao trabalho de campo nos Estados Unidos, viabilizada por esta pesquisa. Dessa forma, entre 19 de junho e 8 de julho de 2008, estivemos nos Estados Unidos, nos estados de Massachussets e New York, onde foram realizadas 22 entrevistas com brasileiros que vivem naquele país, em situação regular ou não.

“Retornar é mais difícil do que partir” é uma frase recorrente entre os emigrantes. Com isso, pretendemos demonstrar que o retorno é complexo e que as categorias “ausente”, “retornado”, “temporário” e “emigrante” muitas vezes não dão conta de uma experiência que conecta dois lugares, fazendo com que, em muitos casos, os emigrantes passem a viver entre esses dois lugares, configurando uma identidade transnacional.

Para compreendermos o projeto de retorno, é importante analisarmos o percurso migratório. Por isso, apresentaremos um breve histórico da configuração das redes migratórias, para analisarmos o movimento de retorno, que tem se intensificado desde 2007. É importante destacar ainda que, como se trata de um movimento recente, retornar, partir, ficar se misturam na vida desses migrantes, configurando uma circularidade de pessoas e projetos que tem modificado a dinâmica da cidade, com impactos não apenas na vida econômica, mas nas identidades dos sujeitos que vivem esse processo.

A Primeira Conexão Criciúma-Estados Unidos: os emigrantes da década de 1960

No período pós-II Guerra, um novo modelo produtivo agropecuário foi implantado no Brasil, sob o comando do capital, com forte influência norte-americana, visando a superar o “atraso” na agricultura. Para “educar” os agricultores a utilizarem novas técnicas produtivas e aumentar a produção, foi implantado aqui em Santa Catarina um projeto chamado Clubes 4-S. Esses clubes, que atingiram seu auge em 1970, eram voltados à educação de jovens agricultores e promoviam o intercâmbio desses com jovens agricultores americanos. Desse modo, os brasileiros podiam aprender novas técnicas nos Estados Unidos, e os jovens americanos que vinham morar no Brasil por podiam passar as técnicas conhecidas às pessoas que os estavam recebendo.

No Sul de Santa Catarina, o Clube 4-S trouxe os americanos e sua cultura ainda mais para perto dos criciumenses, criando vínculos entre essas pessoas, além de servir como um painel de divulgação da modernidade americana, como é possível observar no jornal Tribuna Criciumense, de 21 a 28 de agosto de 1965, que conta a história de Bob Harter, um americano que, antes de ir embora, disse que nunca esqueceria Criciúma e seu povo. No mesmo jornal, na edição de 11 a 18 de setembro de 1965, encontramos a história de Ilma Arna, uma criciumense que foi estudar técnicas agrícolas nos Estados Unidos. Além dessas viagens promovidas pelos 4-S, havia os intercâmbios estudantis promovidos pelo Rotary Club, que se tornaram comuns a partir de 1960 (SANTOS, 2007).

Na década de 1960 houve uma difusão da cultura norte-americana no Brasil, que foi cuidadosamente elaborada pelo governo estadunidense com o objetivo de aproximar e fazer a classe média brasileira consumir os produtos da cultura norte-americana (SANTOS, 2007). O american way of life passou a ser difundido para as massas logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, numa tentativa dos Estados Unidos de terem o Brasil como parceiro econômico e militar. Vimos, nessa época, uma série de produtos nascidos nos Estados Unidos serem transportados para o Brasil, como o programa Vila Sésamo (programa originalmente americano), a boneca Susi (cópia da boneca Barbie), os quadrinhos Disney e o cinema americano (o cinema foi inaugurado em Criciúma ainda em 1950).

No jornal Tribuna Criciumense, em 1965, semanalmente, uma coluna intitulada “Isto é fato” apresentava informações sobre os Estados Unidos, como informações sobre novas tintas de parede ou sobre como usar um chapéu de “cowboy” (SANTOS, 2007). Conforme consulta de Santos (2007), em 1965, cerca de 80% das notícias internacionais e propagandas presentes naquele jornal foram dedicadas aos Estados Unidos.

Percebe-se, então, também um incremento das viagens aos Estados Unidos, mas é claro que, apesar do fascínio pelo avião, nem todos tinham as condições financeiras para fazer tais viagens. No entanto, existia na cidade uma nova elite carvoeira e cerâmica, além de uma classe média urbana, que podia adquirir os bens da modernidade e viajar como turista aos Estados Unidos. Esse estilo de vida das classes mais abastadas era difundido pela mídia às demais classes. Para se ter uma idéia de como foi se formando um imaginário na cidade sobre os Estados Unidos, uma “proximidade”, uma falta de estranhamento em relação àquele país, num desfile de 7 de setembro, em 1976, um menino foi fantasiado de Mickey Mouse (CAMPOS, 2003).

Esse imaginário, muitas vezes, é o suficiente, por si só, para estimular o desejo de migrar. Numa entrevista, Aldir[3], um criciumense que nasceu em 1966 e migrou para os Estados Unidos em 1992, deixou claro como se construiu esse imaginário sobre a vida na “América”

Gláucia: Só aproveitando isso que você falou sobre ir para os Estados Unidos, quando você fala que não é só o dinheiro, essa história de você falou de colocar o homem na lua, do cinema...

Aldir: Lógico, é uma ilusão, mas não deixa de ser, o ser humano vive de um pouco de ilusão, não é verdade? De sonhar... Não é tão...

Gláucia: Tentando pensar no que você está falando, o que significa dizer que não era só o dinheiro? Qual era o sonho?

Aldir: Daquele sonho de menino lógico, daqueles filmes que eu via assim, puxa vida, é tudo tão maravilhoso lá, eu quero ver isso de perto, não posso ficar assim, de viver uma vida sem ver isso! Pra mim não fazia sentido, não fazia sentido. Então, é isso...

Gláucia: Você veio atrás do seu sonho?

Aldir: Eu vim atrás do meu sonho, pode-se dizer que sim. Quando eu era menino eu sempre falei, sempre tinha essa...

Gláucia: Sempre teve vontade.

Aldir: Sempre tive vontade.

Gláucia: Nunca quis ir pra Itália, Portugal?

Aldir: Não, eu sempre dizia: eu vou para os Estados Unidos, eu vou um dia parar no Canadá, porque é perto, do lado tal, na minha cabeça de moleque, era quase que a mesma cultura.

Aldir, no seu depoimento, falou da lembrança de quando os Carminati retornaram a Criciúma de sua primeira experiência migratória aos Estados Unidos, da imagem de emigrantes bem sucedidos que representavam e das informações que, através deles, começaram a circular, como sobre as boates do país.

Jaci Carminati é considerado por alguns como o pioneiro nessa emigração de criciumenses para os Estados Unidos. Jaci estudou em um seminário em Minas Gerais e lá ficou amigo de um rapaz que, posteriormente, migrou para os Estados Unidos. Jaci emigrou para os Estados Unidos em 1966, contando com a ajuda do amigo para encontrar trabalho. Já estabelecido naquele país, Jaci encontrou emprego para seu irmão, Dino Carminati, que foi para lá em 1969.

Dino relatou sua experiência migratória, numa entrevista concedida em junho de 2008. Segundo Dino, na época era muito fácil conseguir um green card e ficar em situação legal no país - bastava comprovar que tinha um emprego nos Estados Unidos para ganhar o visto. Dino contou que, na época em que ele chegou nos Estados Unidos, ele já tinha conhecimento de cinco brasileiros morando só na cidade de Manchester, na grande Boston, sendo que um deles havia sido levado por Jaci. Dino também deu detalhes de uma viagem que ele e seu irmão fizeram de carro dos Estados Unidos até Criciúma, em 1970, sendo que, durante essa viagem, ela ia sendo reportada pela rádio local, e contou que foram recebidos com uma grande festa assim que chegaram na cidade. Dino voltou aos Estados Unidos em 1971, levando o terceiro irmão com ele.

Dino Carminati: O meu irmão tinha [Um Mustang], o Jaci, disse: “Dino vamos pro Brasil de carro, vamos pro Brasil de carro. Eu dizia não, você tá doido, é muito longe! Mas ele começou a me encher, me encher, depois de trinta dias eu falei, ah tu quer ir, então tá, ok.

(...)

Dino Carminati: Daí nos fomos lá no escritório central, aí nós falamos escuta, nos queremos ir pro Brasil, você tem condições de nos ajudar? Vocês fizeram carteira, bater fotografia da carteira internacional pra nós viajar e deram um mapa com a rota e tudo e nós fizemos um seguro, um seguro se tivesse algum problema, correria a morte né. Aí nós fizemos o seguro e saímos no dia cinco de dezembro de 1970.

A viagem de Mustang da América para Criciúma foi narrada como aventura, com um misto de orgulho e saudade. Dino conta que foram de carro até o Panamá. De lá, como não havia mais estrada, o carro embarcou em um barco e eles foram de avião para Lima, no Peru. No Peru passaram uma semana, aguardando o carro e conhecendo a cidade e seus locais históricos:

Dino: Ah, o que tem em Lima visitamos tudo. Pegamos o ônibus de manhã, saíamos e voltava de noite. Viajamos por tudo, não tem aqueles negócios dos Incas? Aqueles troço, aquilo ali, aonde era. Chegava de manhã cedo, levantado cedo, perguntava aonde que tem um ponto turístico? Ah lá tem tal lugar. Pegava o ônibus aqui, e nós saía de manhã e voltava de noite.

Conhecer a América Latina, ou uma parte dela, fez parte da viagem, mesmo que de maneira não planejada. Dino relata os lugares por que passou, as dúvidas sobre qual caminho seguir. Eles passaram por Lima e conheceram aqueles “troços incas”, chegaram à Venezuela e não entraram, seguindo para o Chile. Na narrativa de sua viagem, o que foi ressaltado foi a viagem em si, atravessar fronteiras e chegar a Criciúma. Foram 16 dias e seis horas de viagem, conforme relatou Dino, acompanhados de notícias na rádio local.

Dino tinha regressado ao Brasil para ficar noivo e casar. No entanto, regressou sem a esposa, que aguardou a mulher do irmão para viajarem juntas. Seguindo a trajetória deles é que emigraram as primeiras mulheres de Criciúma, Neide e Mirces, que partiram para se encontrar com os maridos, após se casarem no Brasil. Elas viajaram juntas com 24 anos, no início da década de 1970. Mirces[4] conta como foi sua partida:

O Jaci foi antes de todo mundo mesmo. Então quando eu aprendi a falar espanhol com essas duas amigas e... até eles estranhavam por que, para os americanos, o Brasil era América Latina, então achavam que eu era morena, pele escura, e achavam até assim “ta, mas tu parece uma americana! Por que tem cabelo comprido, loiro...” E a Neide, mulher do Jaci, era loira de olho verde... e um monte que era daqui, que vieram dessa região aqui então eles até achavam estranho por que na verdade não tinha brasileiros, tinha pouquíssimos estrangeiros, a cidade que eu morava mesmo ninguém... só o Dino, o Arnaldo, o Valdir e o [...].

Mirces, ao longo de seu relato, marca sempre a distinção entre os brasileiros e os outros latinos e entre os próprios brasileiros, pois, sendo do Sul do país, tinha outra identidade étnica, que a fazia diferente também entre os brasileiros. O fato de parecer-se com norte-americanos, em alguns contextos, era uma vantagem para esses descendentes de imigrantes italianos que chegavam para “fazer a América”. É importante, ainda, destacar que, assim como outros imigrantes desse período, Mirces já trabalhava, era professora, tinha uma profissão, mas decidiu emigrar para acompanhar Dino. Assim relata sua motivação para ir e a reação da família a sua partida:

Gláucia: Quando você disse pros seus pais que estava indo como é que foi?

Mirces: A minha mãe ficou meio assim apreensiva, eu também fiquei. Por que eu não sabia... um mundo completamente novo, né?

Sueli: Mas por que você resolveu ir?

Mirces: Não sei. Por que o Dino tinha pensado em ir, os irmãos também já estavam lá, e a gente é novo, a gente também se aventura mesmo. Tava cansada de dar aula, aí fazia as continhas lá, gastava tanto aqui, tanto ali, sempre faltava dinheiro, tinha que... entende?

Mirces e Neide iniciaram sua experiência migratória acompanhando seus maridos, diferentemente de alguns relatos encontrados em Governador Valadares, Minas Gerais, onde encontramos, nas primeiras levas de emigrantes, algumas mulheres que migraram solteiras (Assis e Siqueira, 2008). No entanto, é interessante que Mirces destaca em seu relato o desejo de se aventurar - eram todos jovens e queriam se aventurar.

Neide e Mirces permaneceram nos Estados Unidos até o início da década de 1980, quando retornaram ao Brasil com seus maridos e filhos. Segundo relato de Dino Carminati, a esposa, Mirces, trabalhava numa fábrica, e tiveram dois filhos, mas ela não conseguiu ficar nos Estados Unidos por mais tempo porque sentia saudade da família no Brasil. Mirces naturalizou-se com o objetivo de facilitar a emigração de seus parentes, contudo, apenas um irmão emigrou. Dino relata que, naquela época, não havia muita gente com interesse de ir para os Estados Unidos.

No primeiro retorno ao Brasil, na década de 1980, os irmãos montaram três boates na cidade de Criciúma e na praia do Rincão. Foram, durante essa década, os “donos da noite” na cidade e também tinham outros negócios que faziam de suas trajetórias de retorno, trajetórias bem-sucedidas. Enquanto os irmãos montaram casas noturnas, Mirces montou uma escola de inglês em Criciúma e retornou apenas temporariamente aos Estados Unidos. A esposa de Jaci Carminati, Neide, montou uma loja de venda de roupas trazidas dos Estados Unidos, também em Criciúma.

Mirces, como migrante, retornou duas vezes ao Brasil e à cidade de Criciúma antes de retornar em definitivo, em 1983. Como veremos, o retorno nem sempre se configurou como o esperado, e a reemigração passou a fazer parte da trajetória da família de Mirces. Mirces descreve o motivo do primeiro retorno ao Brasil:

Mirces: Olha, ela [filha] tinha 3 anos e o meu filho, 8. Eu não queria que eles... a gente não pretendia ficar lá a vida inteira, não pretendia, eu sempre quis vir embora. Aí tava na hora de fazer isso, porque ele tinha 8 anos, ele tava no segundo ano lá, passou um trabalho aqui na escola, no São Bento, não tem professora né... Ai, foi um stresse. Eu dava aula em casa pra ele, ele ia pra aula a tarde, olha ele ficou até estressado. Até nas férias a irmã disse “ó, deixa esse menino brincar bastante por que foi bem difícil pra ele se adaptar aqui”. Então eu acho assim, se tu tens filhos e se tu queres voltar, se tu esperas até que eles fiquem adolescentes depois não tem mais jeito! Como é que tu vai fazer? E escola? E faculdade? Então a gente achou que era a época de vir e não me arrependo de ter vindo. Nem um pouquinho.

Em recente entrevista concedida a estes pesquisadores, Mirces Carminati diz ter cumprido sua etapa na corrente migratória. Tentou, junto com a filha (e o marido, Dino, que lá já estava), voltar para os Estados Unidos, há cerca de três anos. Ficou oito meses e decidiu, então, voltar em definitivo para o Brasil[5]. Ao comentar sobre sua reemigração para os Estados Unidos, assim sintetiza sua tentativa de voltar a morar lá:

Mirces: “Não, porque eu fui pra ficar um pouco lá com o Dino mesmo. Já que tava... E eu queria dar um tempo da escola [e inglês] também. Já tava na hora assim de... né? Daí “ah, então eu vou pra lá, fico um tempo lá”, daí ela [a filha] também queria estudar um pouco mais de inglês, daí eu disse “ah vamos. Não consegue mesmo. O que nós temos... [inaudível] O que a gente fez de aplicação [application, preencher formulários], meu Deus! Cansei! Daí não conseguimos emprego em lugar nenhum. Entende? Em lugar nenhum. Até lugar assim... até em Boston? Lugar que tinha um monte de brasileiros, que eram todas ilegais, que a gente sabia que era”.

Mirces, embora documentada e sabendo falar inglês, quando reemigrou, em 2004, já não conseguiu se inserir no mercado de trabalho norte-americano e retornou ao Brasil, onde mora com a filha. A família vive entre dois lugares, pois tem documentação - a filha tem cidadania norte-americana, pois nasceu nos EUA, e a mãe também é cidadã norte-americana. Assim, podem circular entre os Estados Unidos e o Brasil. No entanto, parece que a mulher e a filha não conseguiram se readaptar à vida de brasileira imigrante numa cidade pequena e cheia de trabalhadores estrangeiros, grande parte de brasileiros, e preferiram retornar para o Brasil.

A trajetória dos irmãos Carminati é sempre contada na cidade como sendo uma história de sucesso migratório, e muitos emigrantes entrevistados se referriram a eles como aqueles que passaram informações ou ajudaram de alguma forma os que emigraram depois.

Jaci Carminati manteve, ao longo da década de 1990, uma coluna no jornal da cidade e uma pequena empresa em Boston, especializada em orientar os emigrantes a tirarem a carteira de motorista, pagarem taxas ao governo norte-americano e fazerem remessas ao Brasil. Além disso, promoveu algumas festas na cidade de Sommerville. Algumas delas contribuíram para arrecadar dinheiro para o filme “A Fronteira” (2001), que trata da experiência de emigrantes brasileiros, produzido por Roberto Carminati, seu filho, nascido nos Estados Unidos.

A experiência da família Carminati demonstra como, partindo de uma cidade de porte médio, famílias de camadas médias urbanas procuraram mobilidade social ou oportunidades, como eles mesmo dizem, nos Estados Unidos, na virada da década de 1960-1970. Esses primeiros emigrantes, quando retornaram para suas cidades de origem com seus relatos e seus investimentos, tornaram-se referências da possibilidade do “sonho americano”, pois conseguiram, num certo sentido, o que se esperava com a migração: comprar uma casa e um carro e montar um negócio no Brasil. Podemos dizer que essa família vive entre os dois lugares desde meados dos anos 1980. Quando retornaram pela primeira vez a Criciúma, e essa experiência foi acompanhada por relatos de jornais e pela visibilidade das boates e dos negócios montados pelos Carminati, contribuíram para que a cidade de Criciúma fosse constituindo conexões com a região de Boston (EUA), pois fizeram circular o imaginário, no Brasil, da “América” como a terra de oportunidades.

Nesse sentido, os primeiros emigrantes, ao relatarem suas experiências de retorno e demonstrarem, na sua cidade de origem, o seu “sucesso migratório”, contribuíram para construir um imaginário acerca dos EUA e criaram as primeiras conexões com a região de Boston, já que forneceram informações, contatos e acolhida para os que migraram depois.

O Ir e Vir – O Impacto da Migração no Cotidiano da Cidade: os emigrantes dos anos 2000

Ao longo das duas últimas décadas do século XX, os brasileiros residentes no exterior foram construindo múltiplas relações econômicas, culturais e familiares, o que sugere que os emigrantes, mesmo ausentes no exterior, continuam em contato com as suas cidades de origem (ASSIS, 1995; SALES, 1999). Tal contato é traduzido em investimentos nas cidades de origem, que movimentam o comércio local - notadamente a construção civil, que movimenta o mercado imobiliário - e que também fazem surgir microempresas, financiadas pelos dólares que os familiares recebem. Tais investimentos têm movimentado a vida de cidades que se tornaram pontos de partida de emigração, como Governador Valadares[6] (MG), Criciúma (SC)[7] e Maringá (PR)[8], cidades que, ao longo das últimas décadas, construíram múltiplas relações entre a sociedade de origem e a de destino. Os investimentos demonstram que os migrantes têm planos de retornar ao país e que se mantêm em contato com ele. Somados às remessas enviadas para manter os familiares que permaneceram no país, os investimentos representaram, em 2002, a entrada de US$ 2,6 bilhões de dólares no país[9].

Numa pesquisa realizada em Criciúma, em 2001, por Assis (2004) e Fusco (2005), foi verificado que, em 4,3% dos domicílios da cidade, havia alguma experiência migratória, o que significa, para a época, um número de aproximadamente 6 mil pessoas (essa pesquisa foi realizada a partir de uma amostra representativa da população urbana de Criciúma).

Na pesquisa de Assis (2004), foram considerados migrantes internacionais aqueles indivíduos, homens e mulheres, que tiveram alguma experiência de residir no exterior por mais de três meses, seja para trabalhar, para acompanhar a família ou para estudar. O grupo foi dividido entre “ausentes no exterior” e “retornados”. Os ausentes, pessoas que no momento da pesquisa encontravam-se no exterior, somavam 25,2% dos integrantes dos domicílios com experiência migratória. Na condição de retornados foram considerados os indivíduos que tiveram alguma experiência de migração internacional por mais de três meses e que se encontravam no Brasil no momento da pesquisa, os quais constituíam 9% do grupo estudado. Esses dados evidenciam que 34,2% dos indivíduos, nesses 4,3% dos domicílios criciumenses, passaram ou estavam passando, no momento da pesquisa, pela experiência de migrar para o exterior. Os dados ainda demonstraram que havia mais migrantes ausentes no exterior do que migrantes retornados, o que indicava, na época da realização do estudo (2001), que o movimento estava em expansão. Esses dados foram coletados num contexto de expansão da migração, antes dos atentados de 11 de setembro de 2001 e da crise econômica que atingiu os Estados Unidos em meados de 2007 e tornou-se mais aguda em 2008. Após esses acontecimentos, temos observado nos relatos dos emigrantes um maior desejo de retorno e também, na cidade, um aumento significativo de retornados[10].

No Jornal da Manhã de 10 de julho de 2003, encontramos uma matéria contando a história de Renato Inácio, que morou e trabalhou nos Estados Unidos e que, ao voltar para Criciúma, resolveu montar seu próprio negócio. Hoje é dono de uma pizzaria e foi um dos primeiros a implantar, na cidade, o sistema de rodízio de pizzas, além de trabalhar com a massa grega, que, segundo ele, é mais macia do que a massa italiana. Ronaldo Inácio e Renato Inácio são migrantes que conseguiram o green card e, por isso, continuaram a ir e vir dos Estados Unidos, embora mantenham os negócios e a família no Brasil. Nesse ir e vir que vai configurando um campo de relações transnacionalizadas, em julho de 2008, quando realizávamos trabalho de campo em Boston, encontramos novamente Renato Inácio, que tinha retornado aos Estados Unidos para trabalhar. Ele conseguiu fazer isso porque é documentado, o que permite a ele cruzar as fronteiras sem os temores e os riscos dos migrantes indocumentados.

A história de Renato (e de seu irmão Ronaldo) é semelhante à de outros emigrantes que, após montarem seus negócios no Brasil, tiveram que retornar aos Estados Unidos, ou para buscar capital de giro, ou porque “quebraram” seus negócios. O retorno, nesse contexto, pode se revelar frustrante. São recorrentes os relatos de negócios que abriram e fecharam, montados com os dólares da migração, em muitos casos porque o capital acumulado para montar um negócio não se revela suficiente para mantê-lo. Isso tem provocado constantes reemigrações, fazendo com que a conexão entre Criciúma e a região de Boston se intensifique, o que, num contexto de agravamento da crise econômica nos Estados Unidos, tem gerado um impacto direto no comércio e na construção civil da cidade, como veremos nos relatos a seguir. Criciúma ainda não conta (como Governador Valadares) com associações de migrantes que procuram atuar no destino, e nem com o interesse da associação comercial local (ACIC) ou do SEBRAE em montar cursos para capacitarem migrantes retornados em como investir seus recursos, o que faz com que histórias como essas sejam recorrentes.[11] Na cidade, há a Casa do Migrante Catarinense, que não conta com apoio e recursos suficientes para ajudar efetivamente os emigrantes no exterior.

Outro impacto da migração na cidade é o investimento na construção civil. No jornal Gazeta Mercantil (2 de agosto de 2001, p.1), encontramos um pequeno artigo registrando que 20% de todo o faturamento da Construtora Fontana era proveniente de dinheiro ganho por emigrantes.

Algumas imobiliárias de Criciúma abriram filais na região de Boston, na cidade de Somerville, para vender casas e apartamentos no Brasil para os emigrantes. Bia Tramontim, proprietária de uma imobiliária em Somerville, relatou que os migrantes olham o projeto de apartamento ou casa pronto ou na planta, mas são os parentes que ficaram no Brasil, em geral os pais, que acompanham as obras e mandam os retratos ou filmagens mostrando o andamento da obra. Assim, muitos migrantes, quando retornam para o Brasil, já encontram a casa ou o apartamento pronto.

Em julho de 2008, em outro trabalho de campo integrado a este projeto, Alan Cardoso, de 37 anos, que chegou pelo México nos Estados Unidos ainda em 1994, relatou-nos que:

(...) hoje [2008] posso me dizer realizado financeiramente, e fui pioneiro na instalação de imobiliária brasileira aqui na região. Mesmo com a crise, o negócio continua movimentando um bom capital. Vocês podem verificar lançamentos da nossa imobiliária até em Florianópolis, onde o investimento do pessoal daqui é cada dia maior.[12]

Embora os dados sobre os investimentos em Criciúma sejam estimativos e possam estar superestimados, as informações ressaltam a importância das remessas para o local de origem e revelam a constituição de uma rede de agências de turismo e imobiliárias que se inserem nessa rede migratória. Nesse ponto, as redes de parentes cruzam-se com as redes de agências de turismo e imobiliárias na realização do projeto migratório, num negócio bastante lucrativo para as empresas. Como disse uma migrante retornada que trabalhou junto com o marido no negócio de faxina em Boston e que, ao retornar, construiu a casa que desejava, ao mostrar sua casa construída em Criciúma: “se nossos patrões vissem o que fazemos com cada 50 dólares...”

Na coluna de Jaci Carminati no Jornal da Manhã de 11 de julho de 2003 leem-se, na propaganda da Imobiliária Bem Morar, os seguintes dizeres: “Imobiliária Brasileira na Grande Boston”. A frase é seguida de um endereço na cidade de Somerville e de mais um recado: “Lembre-se: 'Investir em imóveis é pensar no futuro'”. Estimativas da Diocese de Criciúma revelam a entrada de US$ 533 milhões de dólares na região da Grande Criciúma, sendo que dois terços da renda gerada pelos emigrantes seria aplicada no local de origem” (ZAMBERLAM, 2007).

Alguns dados muito interessantes foram observados por Assis (2004) em relação às remessas, como é o caso dos homens emigrantes que mandam dinheiro dos Estados Unidos para Criciúma: 40% deles envia o dinheiro para as esposas administrarem e/ou aplicarem em algum bem na cidade. Os dados também revelam que os chefes de domicílios, seguidos dos cônjuges, são os que têm maiores obrigações com aqueles que permaneceram no Brasil, motivo pelo qual enviam mais remessas para aqueles que ficaram, principalmente seus parentes. Nesse sentido, as remessas são um importante indicativo da realização do projeto migratório. Segundo os depoimentos dos migrantes e de seus parentes que permaneceram em Criciúma, o envio das remessas representa não apenas um retorno material, a realização do projeto migratório, mas também a manutenção dos laços simbólicos daqueles que estão no exterior, que demonstram, através das remessas, que se preocupam com aqueles que permaneceram no Brasil. Com essa lógica atuam os chefes e os cônjuges e, quando não o fazem, é sinal de que estão “abandonando a família”, como dizem os migrantes (ASSIS, 2004).

Os migrantes criciumenses, assim como outros migrantes internacionais, partem com o projeto inicial de trabalhar e juntar dinheiro, a fim de melhorar o padrão de vida no Brasil. Por isso, o retorno faz parte do projeto migratório e está presente no relato dos emigrantes. Esse estado de provisoriedade, que tende a se perpetuar, conforme observa Abdalmalek Sayad, tem redefinido expectativas temporais dos emigrantes. No início dos anos 2000, muitos emigrantes não pensavam mais em retornar ao Brasil e tinham estruturado suas vidas nos Estados Unidos. No entanto, um conjunto de fatores (os atentados de 11 de setembro, que tiveram como conseqüências um maior controle nas fronteiras e na emissão de vistos, bem como uma maior perseguição aos trabalhadores ilegais; o aprofundamento da crise econômica que, desde 2007, veio contaminando o mercado imobiliário americano e, no ano de 2008, se estendeu para todo a economia mundial) tem feito os emigrantes repensarem a permanência nesse estado de provisoriedade, que tendia a se perpetuar. Muitos foram obrigados a retornar, pela dificuldade de continuar a trabalhar como imigrante indocumentado, por não conseguir emprego, por perder a casa financiada na crise imobiliária, que atingiu também os imigrantes, ou pelo aumento significativo de deportações de brasileiros. Quando retornaram, já não se reconheciam em sua própria casa, ou, na expressão de Homi Bhabha, sentiam-se estrangeiros em casa.

Alguns depoimentos são emblemáticos nesse sentido. Fernanda Consoni, que permaneceu nos Estados Unidos por dez anos, junto ao marido e mais dois filhos, estando de volta a Criciúma há um ano e meio, diz sentir muita diferença entre a cidade que deixou e aquela que encontrou em seu retorno. Embora siga afirmando que se sente, ainda, uma estrangeira em casa, e dizendo que foi muito importante para ela ter uma rede de apoio, tanto lá quanto no Brasil, Fernanda, que é integrante de uma igreja protestante, sentencia: “o consumo é uma benção” (CONSONI, 2007).[13]

Se, no começo dos anos 2000, o fluxo de criciumenses em direção aos Estados Unidos podia ser entendido como um movimento em expansão (SANTOS, 2007), verifica-se que, ao longo da primeira década do século XXI, o movimento decresceu, inclusive com muitas pessoas voltando. Na entrevista de Dino Carminati, já citada anteriormente, ele falou sobre uma agência de viagens próxima de Boston que, segundo ele, somente no ano de 2007, vendeu 27 mil passagens somente de ida para o Brasil. Entre os motivos apontados pelo entrevistado para esse retorno em massa, podemos identificar: a maior vigilância americana em relação aos imigrantes ilegais, a queda do dólar, o aumento do desemprego nos Estados Unidos e a crise da economia americana. O mesmo entrevistado, ao ser perguntado sobre que conselho daria a um brasileiro pensando em ir aos Estados Unidos, diz “que não recomenda a nenhum brasileiro ir para lá”.

Conforme visto, em Criciúma construíram-se diversos laços que conectam a cidade e a região de Boston, nos Estados Unidos. É a partir dessa perspectiva que podemos compreender como essa cidade da região Sul tornou-se um novo ponto de partida para os emigrantes brasileiros. É possível observar que algumas cidades brasileiras (a exemplo de Criciúma) constroem conexões transnacionais, criando um singular campo social que envolve os que partiram e os que ficaram numa complexa rede de relações que auxilia os migrantes tanto no momento da partida, quanto na chegada ao destino, bem como na administração dos investimentos na cidade de origem.

Os Ausentes, os Retornados e os Transmigrantes

Entre 1880 e 1985, pode-se dizer genericamente que a cidade de Criciúma recebeu muitos imigrantes, que nela chegavam em busca de trabalho e residência. Desde a colonização italiana, iniciada na cidade em 1880, até o vigoroso crescimento da indústria de extração de carvão, ao menos até a primeira metade da década de 1980, a cidade recebeu gente vinda das mais variadas regiões de Santa Catarina, bem como do Rio Grande do Sul, do Paraná e de outros estados. Contudo, a partir de 1989, com o corte do subsídio fornecido aos mineradores para a extração do carvão, a cidade sofreu um forte impacto na possibilidade de geração de empregos, teve sua economia enfraquecida e o processo migratório, que em larga medida a construiu, se inverteu. Criciúma, desde então, enfrenta um processo de evasão para os Estados Unidos e para Europa que em muito se aproxima de outros tantos processos migratórios, estudados por autores como HALL (2003) e BHABHA (1998), e de modo particular por MARTES (2003; 1999), SALES (1999), BOM MEIHY (2004), SANTOS (2007), ASSIS (2004), CAMPOS (2003), e SIQUEIRA (2006). Já temos mais de uma década de crescimento desse processo de emigração.

O fluxo de pessoas e mercadorias, que se avolumou nas últimas décadas, é um dos fenômenos mais intrigantes e complexos produzidos pela chamada modernidade ocidental. A travessia feita para os Estados Unidos, via México, por emigrantes brasileiros (em tal situação, em condição evidentemente ilegal) se conecta a uma rede muito bem articulada de agências de turismo (quase sempre de fachada), sociabilidades forjadas, coiotes e outros. Não menos significativo é o número de pessoas que, apesar do endurecimento das leis norte-americanas, obtêm visto de entrada (que também pode ser obtido através de falsificação) como turista nos Estados Unidos e, logo de imediato a sua chegada, se põem a trabalhar, quase sempre ocupando funções estranhas a eles no Brasil, como as de faxineiros, trabalhadores da construção civil, cozinheiros, lavadores de prato, camareiras, valet park e outras.

Conforme demonstrado por Assis (2004), os homens concentram-se nos restaurantes: 12,5% são ajudantes de cozinha, 3,5% são garçons, 2,9% são copeiros, 2,6% são balconistas atendentes; 1,5% são carregadores. Na construção civil, 8,1% são pedreiros, 7,8% são ajudantes de pedreiro, 4,7% são pintores. Uma ocupação pouco exercida pelos homens no Brasil, a faxina, é realizada por 9,6% dos homens, que são serventes de faxineiro, em geral, subordinados a uma mulher, sua esposa ou irmã. No caso da ocupação das mulheres migrantes, observa-se que elas se concentram no serviço doméstico (39,2%). Do total das mulheres, 23,8% trabalham na faxina doméstica[14], 10,4% trabalham como diaristas domésticas e 5% como babás. Além dos serviços domésticos, as mulheres trabalham nos restaurantes como: garçonetes (7,4%), ajudantes de cozinha (6,4%), balconistas atendentes (4,5%), copeiras (3,5%), cozinheiras (2,0%) e padeiras (1,5%). As demais 15,1% do total das mulheres exercem atividades em outros serviços. É com a remessa advinda dos dólares no trabalho de mercado secundário que os emigrantes têm movimentado a economia na cidade de Criciúma. Fato é que, de uma ou outra forma, via México ou entrando legalmente como turistas, esses brasileiros começam a construir suas vidas em função dos dólares que passam a perceber pelo trabalho clandestino prestado nos Estados Unidos. Em vista disso, fica clara a relação dos estudos migratórios com a realidade contemporânea de Criciúma.

Através do que foi investigado até o momento, é possível inferir que cerca de metade dos retornados acabam voltando para os Estados Unidos, ou, na impossibilidade disso, emigrando para algum país da Europa (Inglaterra, Portugal, Espanha, Itália e Alemanha são os mais procurados). As frustrações do retorno dos emigrantes criciumenses se assemelham às vivenciadas pelos emigrantes que retornam para Governador Valadares, conforme demonstrou Siqueira (2006). O impacto do retorno resulta num problema que começa a ganhar volume: o que fazer com a cidade caso todos voltem para ela - visto que hoje, seguramente, mais de 20% de sua capacidade financeira gira em torno do dinheiro aplicado em Criciúma pelos chamados estrangeiros? O crescimento do setor da construção civil e do setor imobiliário representa muito dos investimentos dos retornados na cidade. Por outro lado, um dos aspectos que merece ser investigado com mais atenção é que muitos emigrantes voltam doentes, com problemas de coluna, de depressão, de pele e outros que podem estar associados às condições precárias de trabalho e às longas jornadas às quais são submetidos nos Estados Unidos.

Em 13 de abril de 2008, José Eduardo Mondardo, proprietário da Imobiliária Duda Imóveis, afirmou que o trabalho dos estrangeiros é importante para a cidade, e disse também que os retornados têm investido suas economias em Criciúma, em pequenos negócios e/ou em imóveis. Isso no caso daqueles que conseguem uma adaptação mais segura, e não são muitos. Na maior parte dos casos, os retornados têm seu padrão de vida alterado, quase sempre inferiorizado em relação à vida que tinham nos Estados Unidos. Então, para atender ou manter um padrão de vida já alcançado, parte considerável dos retornados acaba voltando para os Estados Unidos, quase sempre em situação não documentada ou, ainda, os que podem, lançam-se a um movimento pendular, entre Criciúma e a região de Boston, configurando conexões transnacionais.

Considerações finais

Os migrantes criciumenses inseriram-se na migração internacional ao longo da década de 1990. Assim como os mineiros de Governador Valadares, os catarinenses partiram em direção à “América” com um projeto migratório comum: comprar uma casa e um carro, montar um negócio. Esse fato revela um aspecto interessante das redes sociais que atuam na migração, pois uma parcela dos novos migrantes criciumenses é descendente de italianos, o que, de certa, forma facilita a obtenção da cidadania italiana, abrindo mercado de trabalho na Europa. No entanto, em vez de fazerem o caminho inverso de seus antepassados, migrando para a Itália, a maioria segue o caminho aberto pelos mineiros, goianos, cariocas e outros brasileiros de diferentes origens regionais, partindo rumo à região da Grande Boston. Assim, um século depois, os criciumenses repetem a trajetória de seus nonos e nonas, continuando, num certo sentido, o projeto de “fazer a América”, partindo em direção aos Estados Unidos.

Essa experiência migratória coloca as pessoas num processo de tradução de culturas, de viver entre dois lugares, dois espaços, duas temporalidades, aqui e lá, e recoloca a questão dos arranjos familiares e afetivos, dos investimentos, da vida religiosa, da identidade étnica, da nacionalidade, evidenciando que a migração contemporânea significa, para as pessoas envolvidas no processo, experimentar um singular campo social – um campo de relações transnacionalizadas.

Conforme observa Campos (2008) acerca daquilo que Homi K. Bhabha chama de “disjunção repentina do presente”, que torna possível a expressão do alcance global da cultura, a cultura, colocada como estratégia de sobrevivência, é tanto transnacional como tradutória. Ainda segundo Bhabha: “transnacional porque os discursos pós-coloniais contemporâneos estão enraizados em histórias específicas de deslocamento cultural [...] tradutória porque estas histórias espaciais de deslocamentos tornam a questão de como a cultura significa, ou o que é significado por cultura, um assunto bastante complexo” (BHABHA, 1998-298). Essa cesura nos territórios parece ser a forma narrativa de se falar e viver o contemporâneo.

O projeto do retorno seria, num certo sentido, a conclusão/materialização do projeto migratório, o fim do estado de provisoriedade que atravessa a migração. Os migrantes desejam retornar quando atingem seus objetivos, em geral, comprar uma casa e um carro e conseguir recursos para montar um negócio. No entanto, conforme demonstram os relatos, retornar é mais difícil do que partir, não apenas pelo contexto da crise que tem provocado a intensificação dos retornos, bem como os inúmeros retornos forçados, mas porque, ao chegarem, muitos não conseguem mais se adaptar - sentem-se estranhos, desconfortáveis, sem lugar. “Lá é bom para trabalhar e aqui é bom para viver [...] mas quando chego aqui, quero voltar para lá, não consigo me adaptar”.

Os retornados não reconhecem mais a cidade da qual partiram, estranham o lugar e as relações sociais. A experiência de viver no estrangeiro faz com que, contraditoriamente, sintam-se estrangeiros em casa. Muitos acham a cidade suja e lenta, reclamam da falta de respeito às leis, sentem falta da modernidade norte-americana, de mais equidade de gênero, no caso das mulheres, principalmente, que se surpreendem, no retorno, a voltarem à “mesma” posição de gênero que tinham antes de emigrar, e então sentem-se deslocados, têm que reconstruir suas relações sociais, seu lugar. Muitos não conseguem e reemigram, outros entram em depressão e outros, ainda, particularmente aqueles que têm o green card ou a cidadania norte-americana, passam a estruturar a vida entre dois lugares – construindo práticas transnacionais, como é o caso da família Carminati, dos irmãos Inácio, que vivem entre aqui e lá. Essa seria a identidade multifacetada do emigrante dos novos tempos.

Referências

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Notas

[1] Os dados para este artigo são provenientes do projeto de pesquisa “Fluxos do Local para o Global: as redes sociais construídas entre os catarinenses e a região de Boston (Estados Unidos) no início do século XXI”, financiado pela FAPESC, e do projeto “Estrangeiros em casa: (re)sentimentos, impressões e identificações produzidas pelos emigrantes brasileiros clandestinos nos Estados Unidos, quando de volta para Santa Catarina (1995-2005)”.
[2] Todas as entrevistas se encontram devidamente transcritas e armazenadas digitalmente.
[3] Como se trata de uma migração em grande parte indocumentada, os nomes que aparecem neste relatório são nomes fictícios. A exceção são as pessoas publicamente identificadas na cidade e nos meios de comunicação locais como emigrantes na cidade. Entrevista concedida por Aldir Losso, em junho de 2008, na cidade de Lowell, Massachussets.
[4] Mirces Jucelia Moreira, entrevista concedida em dezembro de 2008, em Criciúma, a Emerson César de Campos, Gláucia de Oliveira Assis e Sueli Siqueira.
[5] Mirces também declarou, na ocasião, que fora buscar recuperar direitos sociais nos Estados Unidos, tais como o equivalente à aposentadoria no Brasil. Seu marido Dino, continua morando e trabalhando em Lowell (MA), aguardando a aposentadoria, que deve ser concedida em 2009.
[6] Sobre a dinâmica imobiliária em Governador Valadares, ver Soares (1999).
[7] Segundo Manoel Alves, presidente do Sindicato de Compra, Venda e Administração de Imóveis de Criciúma, os negócios com imóveis crescem cerca de 30% nos meses de dezembro e janeiro, que é quando os migrantes vão visitar os familiares ou retornam para o Brasil (Vitali, Marli. Moradores da região sul tentam a sorte nos Estados Unidos. Jornal A Noticia. Caderno AN Economia, p. B2, 16/01/2000). Numa outra reportagem, Gilson Marcos presidente do Criciúma United Soccer Club, diz que chegariam à cidade cerca de US$ 800 mil, através das agências de turismo, dos bancos e de doleiros (Mendes, Maneca. Criciumenses em Boston – Chegam US$ 800 mil por mês dos Estados Unidos. Jornal da Manhã, 15 e 16 de abril de 2000).
[8] Sobre as remessas dos dekassegui, ver SASAKI (1999).
[9] Folha de São Paulo, 18/08/2002.
[10] Num segundo momento dessa pesquisa, pretendemos realizar novamente um estudo na cidade para identificar o impacto do movimento de retorno dos emigrantes criciumenses.
[11] Para uma análise dos migrantes retornados em Governador Valadares e suas trajetórias, ver o trabalho de Sueli Siqueira (2006).
[12] Entrevista concedida aos pesquisadores por Alan Cardoso (nome fictício) na cidade de Everett (MA/Estados Unidos), em 2 de julho de 2008.
[13] Entrevista concedida aos pesquisadores por Fernanda Consoni (nome fictício) em 23 agosto de 2007, na cidade de Criciúma.
[14] Portanto, assim como outras imigrantes brasileiras e latino-americanas (Hondagneu-Sotelo, 1994, Menjívar 2000, Sassen 1995) as mulheres inserem-se no serviço doméstico.


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