Resumo: O artigo intenciona, a partir de processos criminais relacionados à violência sexual, verificar as concepções de inocência e infância presentes nos autos que envolviam violência com crianças entre as décadas de 1930 e 1970. Busca, também, analisar a influência das concepções morais locais junto ao Poder Judiciário na época de formação e consolidação da cidade de Londrina.
Palavras-chave: Londrina Londrina,InfânciaInfância,ViolênciaViolência,JustiçaJustiça.
Abstract: Based on criminal processes regarding child sexual abuse from the early 1940s to the late 1970s, this article intents to analyze both the conception of innocence and childhood held at that time, and the influence of such on the local judiciary.
Keywords: Londrina, Childwood, Violence, Justice.
Artigos
Violência na infância: Londrina (1930 - 1970)
Violence in childhood: Londrina (1930 - 1970)
A infância é vista com diferentes olhares, segundo a sociedade e segundo o contexto histórico. Em algumas regiões, crianças são consideradas mini-adultos e, portanto, podem trabalhar e realizar trabalhos de adulto, desde que se equilibrem sobre suas pernas. Em outros lugares, a infância é entendida como o período da inocência, e a criança é poupada das atividades de adulto. Para as sociedades que acreditam no período de inocência, a violência contra a criança é vista como um tipo de violação da inocência e da vulnerabilidade infantis. Para algumas sociedades, as crianças deveriam ser felizes.
Os estudos sobre a infância surgiram nos anos 1960 com Philippe Ariès e sua obra História Social da Criança e da Família. Nela, o autor mostra como o conceito de infância foi historicamente construído. A partir de seu trabalho, outros estudos apontaram, inclusive, que existiam análises sobre a criança desde a Idade Média[1].
No Brasil, o livro ganhou a primeira edição em 1978 e tornou-se logo uma referência, sem que causasse a mesma polêmica que aconteceu na Europa, lembrada por Miriam Warde (2007). O uso do termo “criança” passou indiferente aos leitores brasileiros de Ariès, diferentemente da polêmica que provocou na Europa e nos Estados Unidos, onde as discussões sobre a desconstrução do mito da infância questionavam, em Ariès, a referência de uma infância natural. No Brasil, em 1991, Mary Del Priore publicou História da Criança no Brasil, buscando compreender as representações e práticas infantis ao longo de nossa história (DEL PRIORE, 1991, p.12). O uso de fontes tais como documentos históricos produzidos por médicos, professores, padres, educadores e legisladores trouxe a possibilidade de recuperar dados sobre a infância, suas críticas, estereótipos e idealizações (DEL PRIORE , 1991, p.15).
Essa última fala, a dos legisladores, interessa-nos particularmente no tocante às interpretações sobre crimes contra a criança em uma sociedade em formação, como a cidade de Londrina. Para que a cidade se diferenciasse de uma cidade desregrada, os crimes contra a mulher e a criança eram tidos como crimes covardes, que mereciam punição exemplar para que não se repetissem. Nesse sentido, pensar a infância serve para se pensar na sociedade como um todo e, em especial, em seus valores.
Ao desenvolver pesquisa sobre crimes do cotidiano da cidade de Londrina em seu processo de formação (1934-1960), observamos um expressivo número de crimes de conotação sexual contra a criança. No Brasil, estudos sobre a criança acometida da violência sexual desenvolvem-se discretamente e são uma área de conhecimento considerada difícil, seja pela natureza, seja pelo pequeno número de estudos conclusivos. Além da falta de documentação e estatísticas oficiais, o estudo da temática traz, em si, um paradoxo, uma vez que a infância sempre é associada, como sinônimo, à inocência, e seu oposto seria a ausência da inocência, a violência - em especial, a violência sexual. A ocorrência dessa situação traz um constrangimento social dos envolvidos e mesmo barreiras morais que impedem a continuidade de ações judiciais que analisem a violência a fundo. Nesse sentido, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, foi um passo importante para a formação de políticas públicas de combate à violência contra a criança e o adolescente no país.
Nossa preocupação com os “enfants” faz com que nossos olhos se voltem para uma esfera maior de possibilidades. Essas se dão com as reais influências que as crianças sofrem nas suas relações interpessoais do cotidiano, seja com sua mãe, seu pai, familiares ou amigos adultos. São influências que giram em torno de gestos e atitudes que terão a conseqüência de gerar um indivíduo adulto. Da responsabilidade ao abuso, da autoridade à exploração e do bem-estar ao abandono. Um aparente maniqueísmo que, na verdade, apresenta-se num complexo jogo de poder.
Nos autos, a infância invariavelmente é representada pela “voz” do adulto, definindo seu presente e agindo positiva ou negativamente para a realização de seu futuro. Nos crimes, o meio se torna responsável pela fabricação de novos indivíduos, uma espécie de perpetuação cultural. O poder do adulto sobre a criança é, também, resultado da imagem que a sociedade faz dessa criança, um espelho que mostra a realidade das aparências.
Mas que criança é essa? Ora, numa primeira interpretação, a resposta parecerá simples: um ser ingênuo, frágil, que brinca sem responsabilidade; perfeito em seu modo de ser; evidentemente, “um anjo caído”. Essa aparência se mostra favorável a qualquer sociedade harmoniosa e pacífica. No entanto, é contraditória em suas entrelinhas, já que revela nitidamente a idealização de uma infância inexistente, ocultando as outras crianças, aquelas desfavorecidas, excluídas e abusadas. Uma imagem que esconde as vítimas produzidas em nome da realização de desejos artificiais[2] ao homem.
A imagem de “anjo caído” sempre coexistiu com as diversas formas de violência contra a criança, fossem elas psicológicas, físicas ou um misto das duas (sexual), qualificativas do meio em que se encontram. No entanto, percebemos que, em favor da ocultação da violência infantil, a diferença de tratamento dado a meninos e meninas abusados acaba por favorecer o ocultamento da violência infligida aos meninos. Aliás, o que “os olhos não vêem, o coração não sente”, e os dados são raros e pouco confiáveis. A criança de cachos e olhos de anjo prevalece estabelecida no espelho moral da sociedade.
A autoimagem social precisa da moral para representar o poder, ou, pelo menos, o desejo de poder do homem. Uma força reguladora das camadas sociais, mas que nem sempre demonstra equidade no tratamento entre elas. A moral passa de norma instituída para naturalizada no homem através da formação cultural, ou melhor, dos costumes. Seu enraizamento no indivíduo permite legitimar ou condenar suas ações.
A moral poderá atuar de duas formas: através de seu lado externo, quando o indivíduo se submete ao julgamento dos outros, seja como réu ou vítima; e pelo seu lado interior, ao ser acionada pelo próprio indivíduo para uma justificativa de seus atos. Em um momento, sua ação é partilhada pela comunidade e, em outro, somente a consciência procura julgar a si mesma. Desse último aspecto não realizaremos uma análise, já que nosso intuito principal aqui será a compreensão da moral em seu formato externalizado.
Neste momento, na busca de uma compreensão para essa moral social, entenderemos que a legislação e os legisladores se tornaram figuras de extrema influência em uma sociedade. A legislação, por fornecer a aparência da igualdade entre todos, e os legisladores, por representarem o corpo de respostas da sociedade às liberdades adquiridas em demasia, ferindo a moral e os bons costumes. O controle moral se dará, então, pelo crédito que é dado aos códigos de leis, e esses são o resultado da barreira instituída pelo bem-estar. A sociedade dará poder àqueles que fazem ou conhecem as leis.
É certo que as relações de poder assimétricas podem levar à desigualdade nas condições de defesa perante a Justiça. Por isso, os códigos de leis buscam ser equiparadores sociais. Os tribunais são a forma pela qual os desfavorecidos acreditam se igualar a seus contrários, seja como denunciado ou denunciante. A ação punitiva ficará evidente na jurisprudência, ou seja, quando, em resposta a um ato de considerada imoralidade pública, o Poder Judiciário julgar através do que convenciona a ética e a moralidade na lei. Uma atitude que sofre “dilatação” ou “contração”, dependendo das condições que a sociedade entende como positivas para si mesma.
Se entendermos que uma sociedade é a superação de seu próprio imaginário, sendo ela própria imaginário, o tempo auxiliará na ordenação dos instintos, seguindo-se, assim, uma definição dada por Herbert Marcuse, que considera que:
O Fluxo do tempo é o melhor aliado natural da sociedade na manutenção da lei e da ordem, da conformidade das instituições que relegam a liberdade para os domínios de uma perpetua utopia; o fluxo do tempo ajuda os homens esquecerem o que foi e o que pode ser: fá-los esquecer o melhor passado e o melhor futuro.[3]
Tal fluxo corresponde às idealizações daqueles que controlam as demais camadas da sociedade. O tempo funciona como um adestrador, já que faz esquecer o que ocorreu e esconde o que ocorrerá, dando àqueles que se submetem a ele somente a efemeridade do presente. Fica clara a relação que a sociedade irá estabelecer com a justiça, pois necessita das decisões jurídicas para manter a ordem e provocar a sensação de felicidade.
Nosso intuito, neste texto, será relatar os problemas de uma infância de nosso passado, para demonstrar que algumas permanências do passado estão presentes ainda nos dias de hoje. Falar sobre crianças que sofriam nas mãos dos adultos e eram submetidas a violências, se não físicas, pelo menos psicológicas, que alteraram sua dignidade e transformaram sua realidade.
A criança, resultado de uma idealização aparentemente positiva — já que representa a “pureza” do homem —, transforma-se em alvo da autoridade, unida à violência, dos homens adultos. Esses, quando precisam escoar a “explosão” psíquica (a mulher também é um alvo em potencial), a forma que “escolhem” para demonstrar sua “superioridade” em face da moral é o abuso sexual.
A relação entre infância, sociedade e justiça foi constituída aqui por dois meios, simultaneamente. Como referência histórica e “pano de fundo”, o processo de formação e estabelecimento da população no município de Londrina, no Estado do Paraná, mais especificamente a camada social e economicamente desfavorecida da comarca.
Consolidaremos essa relação em estudos em que concentraremos nosso foco, pois evidenciam com maior clareza as relações propostas, a análise de inquéritos e os processos criminais de violência sexual perpetrados contra jovens desse município, tanto meninas quanto meninos menores de 13 anos. Foi consultada a documentação de 38 casos junto às 1a e 2a varas criminais. O período de ocorrência escolhido foi entre as décadas de 1930 e 1970, ou seja, 40 anos representativos da formação do “pano de fundo” em questão.
Os casos são os mais diversos, sendo enquadrados na seção do Código Penal de 1940 referentes aos “Costumes e Liberdades Sexuais”. Nos casos da década de 1930, o código vigente é mais antigo, datando do início do século XX, período do estabelecimento da República, assim, representativo do microcosmo de toda a nação em estado embrionário de novos ideais.
As práticas criminais estudadas foram estupro e atentado violento ao pudor, referentes aos artigos 213 e 214 do Código Penal de 1940 e aos artigos 268 e 266, nos casos anteriores a 1939. Os 38 casos foram separados de um total de 250 relativos a crimes sexuais na Londrina desse período, representando, assim, aproximadamente 15% do total. No quadro abaixo, podemos ver a porcentagem dos casos de violência contra menores em relação à quantidade apurada em cada década.
Vemos na tabela um aumento considerável de casos nas décadsa de 1950 e 1960 e um retorno à quase nulidade de processos em 1970. Ao analisar cada período separadamente, poderemos perceber que as diferenças no tratamento dos processos e nos resultados das sentenças vão servir de base para construir uma análise da sociedade londrinense e de sua moralidade. Separamos desse montante alguns casos, que irão representar as sentenças mais comuns das décadas em questão.
Em 1939, um lavrador de 25 anos de idade foi acusado de estuprar uma garotinha de 3 anos de idade.[4] Ele foi enquadrado no artigo 268, que presume: “Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta. Pena — de prisão celular por um a seis anos [...]”.[5] Vicente Piragibe, em seu Dicionário de Jurisprudência, comenta o estupro da seguinte maneira:
“Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher seja virgem ou não. Por violência entende-se não só o emprego de força física, como o de meios de privarem a mulher de suas faculdades físicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se.”[6] Cadê a referência?
Foi feito o exame de conjunção carnal, atestando a relação anal com a criança, mas o defloramento não foi verificado. Além de os médicos entenderem que houve emprego de força física, a possibilidade de a vítima vir a falecer foi cogitada. O processo sofreu demora pelo acúmulo de serviços da Justiça. Embora a prisão do réu tenha sido efetuada, ele fugiu, e seu paradeiro foi considerado desconhecido.
O processo teve continuidade e, mesmo o réu sendo fugitivo da justiça, ele obteve sentença condenatória. Decretou-se a prisão por três anos, porém, após 12 anos da conclusão do caso, foi declarada a extinção da punibilidade. Esse foi um processo em que, pela demora da Justiça, houve a oportunidade de o réu evadir-se.[7]
Para uma cidade em início de colonização, como Londrina então, a condenação do réu era de extrema importância. Precisava-se demonstrar que, apesar das características de “Boca do Sertão”, o município era cumpridor da moral e dos bons costumes. Seria negativo para a imagem da CTNP[8] que um estuprador fosse inocentado. Apesar da sua fuga, a sentença condenatória era necessária.
Nesse momento da cidade, havia uma crescente migração de todas as partes do Brasil, inclusive de alguns estrangeiros. Os colonos traziam suas famílias e se estabeleciam. Outros tinham uma passagem rápida pela cidade e logo se mudavam. Em pouco tempo, a região se tornou a mais populosa do Estado. A previsão dos colonizadores ingleses, de 30 mil habitantes, foi logo superada. As contradições evidenciavam-se cada vez mais. Era preciso impor a lei e a ordem na nascente cidade, para não criar a sensação de descontrole.
Para aqueles que vinham com seus familiares, uma cidade que não tivesse certo grau de organização representava um perigo para a integridade das famílias. Assim, um crime de natureza sexual e contra uma criança exigia a iniciativa de condenar o denunciado para demonstrar a moralidade reinante no município. A prescrição da condenação foi um fato, apesar da incapacidade da Justiça de prender o sujeito e de fazê-lo pagar a pena. Aos olhos da sociedade, ele havia sido juridicamente condenado, e isso bastava.
Entre 1940 e 1960, houve um aumento relativo dos casos de estupro infantil, mas, proporcionalmente inverso, o número de condenações decaiu. Dos sete casos da década de 1940, 57% tiveram sentenças condenatórias, e os 43% restantes foram arquivados. A maioria dos réus tinha idade acima dos 20 anos, e as vítimas, de 7 até 12 anos.
Nos anos da década de 1950, observamos, em 12 casos, duas condenações, equivalentes a 16,6% do total da época, junto a 16,6% de arquivamentos e 50% de absolvições; os restantes processos não tiveram continuidade. A idade das vítimas girava em torno dos 11 e 12 anos, na maioria dos casos, porém os denunciados tinham a idade aumentada significativamente para até 53 anos.
Em 1960, tivemos 13,3% de condenações, 6,6% de extinções de punibilidade, 53,3% de casos arquivados e 26,6% de réus absolvidos, em meio a 15 casos de alguma forma de violência infantil. A idade das vítimas diminuiu até os 3 anos, em alguns casos, e, para os réus, 70 anos foi a idade limite. Apareceu nessa época a presença de cúmplices, que, na sua maioria, eram casadas com os denunciados. Nos anos 1970, constatamos somente um caso de abuso sexual, mas que não passou de um inquérito policial; por isso, não houve sentença para o denunciado.
Um fato a ser notado é que, na maior parte dos processos, havia a presença de algum familiar da vítima como réu. Percebemos que a violência sexual contra menores ocorria na própria casa das vítimas, sendo que, na década de 1960 muitas mães foram arroladas nos processos como cúmplices. O lar era o principal ambiente onde ocorria o abuso. Em 1941, houve um processo em que um homem estuprou sua cunhada de 12 anos por diversas vezes. A menina ia lavar roupas em um riacho próximo de sua casa, e seu cunhado a imobilizava e a obrigava a ter as relações. Por medo, a vítima não contava o fato para ninguém, e o réu só foi descoberto quando invadiu a casa da menina e tentou raptá-la por duas vezes, sendo frustrado pelo irmão da menor.[9]
O silêncio das vítimas é fruto do poder que o adulto exerce sobre a criança. A humilhação do fato ocasiona a violência psíquica contra a vítima. O estupro atinge fundo o lado psicológico do indivíduo abusado. Vigarello faz a seguinte afirmação sobre o fato:
O estupro provoca uma lesão ao mesmo tempo semelhante e diferente de outras. Semelhante porque é o efeito da brutalidade. Diferente porque é muitas vezes pouco consciente no agressor, apagada pela efemeridade do desejo, ao passo que intensifica a vergonha na vítima, a idéia de uma contaminação pelo contato: a indignidade atravessando a pessoa atingida para transformá-la aos olhos dos outros.[10]
A questão da violência, seja sexual ou não, provoca um duplo problema para a sociedade: primeiro, por demonstrar a falta de segurança ou mesmo o fato de habitarem nela indivíduos incapazes do convívio social; em segundo lugar, por evidenciar a impunidade para muitos criminosos, pois o silêncio dos envolvidos proporciona condições de nova violência, como foi mostrado no caso de 1941, quando a vítima foi estuprada várias vezes pelo cunhado.
Esse ciclo “violência-insegurança-impunidade” alimenta-se a si mesmo, mas leva-nos a pensar em como a comunidade age para quebrar essa seqüência ou torná-la menos transparente para seus membros, e, assim, garantir a continuidade de suas ideologias e instituições. Lembre-se de que dotar a realidade de harmonia é fundamental para que as contestações não criem bases sólidas. Quem seria contra a felicidade?
Em 1950, as absolvições foram constantes. No final da década, uma criança de 8 anos foi estuprada pelo padrasto. O crime foi enquadrado no artigo 213 do Código Penal de 1940, que afirma o seguinte: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça — Pena: reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.” [11] A denúncia foi feita pela mãe da menor, o laudo de conjunção carnal atestou que houve o defloramento sem violência. Um segundo exame foi efetuado. Neste, o defloramento também foi constatado, porém o objeto violador foi determinado como um dedo ou algo da mesma espessura.
O advogado do réu usou esse indício para descaracterizar o estupro, afirmando que poderia ter sido a própria menina a defloradora. Em sua defesa, ele utilizou o seguinte argumento para enfatizar a inocência do réu:
Para quem conhece certos aspectos da vida mais interiorana do país, em que as crianças se criam assistindo animais em seus atos sexuais, o que as leva a tentarem sua repetição, entre elas, meninos e meninas. De qualquer forma é fato uma explicação de defloramento da vítima, que, evidentemente, não pode ter sido praticada pelo réu, por uma impossibilidade material sem dano físico de maior gravidade[12].
Porém, um detalhe foi “esquecido” pelo advogado: o próprio réu afirmou que “brincou” com a vagina da criança, mas sem a introdução de seu membro sexual, somente com os dedos. Se tal depoimento fosse deixado de lado somente pela defesa, seria um acontecimento compreensível. No entanto, o promotor e o juiz responsável pelo processo absolveram o denunciado.
A família, como base organizacional do Estado, dificulta a condenação de réus com algum grau de parentesco com as vítimas. O patriarcalismo das leis ajuda a manter a autoridade do homem, uma falocracia que se mantém com a perpetuação cultural. Azevedo e Guerra entendem esse processo como predominante na maioria dos casos: “a vitimização é um processo que tem sua raiz no padrão falocrático de relações sociais de gênero. Nessa mesma raiz está o fato de tratar-se de um fenômeno onde o agressor é um homem”.[13]
Absolvições, arquivamentos e até casamentos foram meios encontrados pela jurisprudência para resolver casos de “desvios de comportamento”, seja dos parentes ou de terceiros. Aceitar a inocência dos réus tornou-se uma prática jurídica muito difundida entre 1940 e 1970.
Devemos entender, então, um pouco do que se passava em Londrina nesses períodos. A CTNP foi vendida a grupos paulistas na década de 1940; problemas financeiros ocasionaram o negócio. O controle da região, que antes já era praticamente de São Paulo, passou às mãos dos empresários paulistas oficialmente. O nome da empresa passou a ser Companhia de Melhoramentos Norte do Paraná. Os rumos do desenvolvimento econômico da região foram profundamente alterados; surgiram novas cidades e as culturas agrárias foram mais bem exploradas, entre elas, o café.
No fim da década de 1950, a cidade se estabilizou como a maior produtora de café do país. Nesse período, a venda de lotes se concentrava em compradores nacionais; os estrangeiros não passavam de 12%.[14] Os pioneiros já haviam mais do que se estabilizado, seus filhos começavam a ter filhos. A cidade ganhou destaque nacional, atraindo investidores do Brasil inteiro por causa do café.
A jurisprudência teria que servir para manter o status quo, isso é, fazer o possível para manter o ideal de felicidade para a população da cidade. O casamento em caso de estupro era aceito pelo Código Penal; assim, o indivíduo que cometeu tal ato tinha a chance de reparar o mal, contraindo núpcias com sua vítima; mesmo se um terceiro casasse com ela, o processo seria arquivado.
Em agosto de 1957, foi dada entrada, em uma delegacia da cidade, de uma queixa contra um rapaz de 29 anos que teria violentado uma criança de 12 anos, cuja família trabalhava na mesma fazenda que o réu. Alguns meses depois, o réu assumiu o fato na delegacia e prometeu casar-se com a menor, cumprindo sua promessa algum tempo depois.[15] Vicente Piragibe define desta forma o casamento como fim do processo:
Tendo-se casado a menor ofendida, e produzindo esse fato uma completa transformação jurídica da situação em que se encontrava a referida menor antes de seu casamento, e afetando profundamente todas as relações da sua vida em seus múltiplos aspectos, passando agora a ser representada legalmente não mais pelo seu tutor, e sim pelo seu marido e chefe do casal, não se concebe, nem se pode admitir que subsista ou continue o processo instaurado contra o seu raptor ou ofensor da sua honra.[16]
Como podemos observar na citação, o denunciado podia passar de criminoso a responsável pela sua vítima, como um subterfúgio para fugir de uma pena grave. Mas será que a moral foi satisfeita nesse tipo de caso? Num primeiro momento, podemos até compreender que a responsabilidade da honra perdida pela menor foi reparada. No entanto, levar uma criança de 12 anos a viver ao lado de seu “malfeitor” seria uma violência; não seria uma violência menor. A pergunta deve ser: por que casar os envolvidos, absolver o réu ou arquivar um caso de estupro tornaram-se soluções constantes nos tribunais de Londrina, exatamente quando o número de casos aumentava?
A resposta não é fácil de ser assinalada. Diversos fatores contribuíram para que a jurisprudência desse esse tipo de resultado em processos de tamanha gravidade. Como afirmamos anteriormente, a violência, a impunidade e a insegurança formam um ciclo que se alimenta sozinho. Podemos entender que a moral predominante das épocas selecionadas tentava empreender a melhor forma de esconder esses crimes da sociedade.
Uma dupla moral poderá apresentar-se como meio de resolver esses crimes: uma diferenciação entre meninos e meninas nos casos apurados. É interessante notar como a Justiça assimilou tais diferenças, que se deram no próprio corpo de normas da sociedade. No ano de 1964, dias antes do golpe militar, uma mãe encontrou seu filho de 4 anos em uma construção ao lado de sua casa, com um homem de 27 anos tentando introduzir seu pênis no ânus do garoto.[17] Vizinhos levaram o indivíduo para a delegacia, onde ficou preso por quatro meses, sendo solto posteriormente por falta de uma queixa formal dos pais do menor, ainda que o delegado tenha feito diligências à procura deles.
O caso foi enquadrado como atentado violento ao pudor (art. 214)[18]. Portanto, tratando-se de direito privado, necessitava da representação dos responsáveis pela vítima, ou mesmo de um atestado de pobreza para a ação se tornar pública. A qualificação como atentado ao pudor era a única alternativa que se poderia ter, pois o estupro era somente aceito pela lei em casos que envolvessem mulheres. Os pais do garoto não se dispuseram a continuar o processo. Entrou em jogo a necessidade de resguardar o futuro adulto de um caso que poderia colocar em dúvida sua virilidade. A moral, nesse exemplo, foi a de ocultar os fatos da opinião pública em geral.
Quanto às meninas, as coisas funcionavam de forma inversa. Independentemente do resultado, havia necessidade de expor o caso ao público, para que a honra da criança fosse reparada. A Justiça funcionava como uma vitrine para que a população soubesse que, apesar de a menina ter sido abusada, de alguma forma seus responsáveis procuraram que a justiça fosse feita.
Uma criança de 4 anos, moradora de um orfanato, foi vista sendo levada para um matagal por um rapaz de 18 anos, no ano de 1962[19]. O rapaz foi preso em flagrante e, como no caso anteriormente citado, ficou preso por quatro meses. Porém, esse caso passou às mãos da Justiça pública, já que, apesar de a criança morar num lar de órfãos, a mãe da menina foi encontrada para que o atestado de miserabilidade fosse feito.[20] Enquadrou-se o caso nos artigos 214, 213 e 224 do Código Penal. O último artigo se refere à presunção de violência, que, em semelhança ao estupro, só podia ser aplicado a vítimas do sexo feminino.
A imprescindibilidade de se recuperar a honra da menor levou a Justiça a encontrar a mãe da garota. Apesar de tudo, o caso teve um resultado, no mínimo, curioso: o denunciado foi condenado a dois anos de detenção, mas ficou preso por somente quatro meses, pois o juiz entendeu que o ato que cometeu era referente aos impulsos sexuais de sua idade, sendo, assim, compreensível. Anexo ao processo consta que o réu já havia sido investigado anteriormente, duas vezes, pelo mesmo crime, contra um menino e contra uma menina de 3 anos, assim como consta um processo posterior a esse, em que o réu foi condenado novamente, em Cornélio Procópio, por abusar de uma criança de 5 anos.
Vemos que a mulher é passível de proteção pela lei, um “objeto” que precisa do aparato da lei para defender sua honra; isso é, a mulher é vista como propriedade. Os casos retratados demonstram claramente esses indícios: a menina, como “propriedade”, necessitava desse amparo da lei; quanto aos pais do garoto, a moral falou mais alto do que a ideia de se fazer justiça, e o caso foi “esquecido”.
A noção de violência também é ambígua. No processo da menina, a possibilidade de violência foi logo invocada (artigo 224); para o menino sito, essa possibilidade não foi cogitada em nenhum momento do processo, um possível reflexo de uma sociedade nitidamente machista, pois, como afirma Saffioti: “ser violento constitui uma característica do macho, pois ele está sempre na posição de caçador, nunca na de caça”.[21] Ora, o menino não poderia ter sido violentado. Sofreu um ato libidinoso, mas sua virilidade não poderia ser questionada.
Ao longo do texto, tentamos caracterizar como a moral social influenciou as determinações da jurisprudência dos tribunais londrinenses. A ação reguladora dos “desvios” comportamentais tornou-se representativa das barreiras que a sociedade impunha para si mesma, de modo a manter a aparente realidade que essa população queria refletir para si e para os outros, aqueles que poderiam ir para a cidade e construir seu lar.
A cidade pode ser vista como uma mercadoria, já que foi edificada para a venda e a consequente lucratividade de seus proprietários, estruturando-se sobre uma base capitalista de economia agrária, ou seja: serviria como produtora para a exportação - exemplo claro disso foi a ênfase dada ao café no pós-guerra. Ora, a “propaganda é alma do negócio”, diz o ditado. Uma imagem negativa não atrairia investidores e, muito menos, aqueles que faziam toda a economia funcionar: os trabalhadores. A repressão dos atos imorais era fundamental para a manutenção da harmonia desejada.
No entanto, como observamos, proporcionalmente ao crescente número de casos de violência sexual infantil, houve uma decrescente quantidade de condenações dos réus nas décadas de 1950 a 1970. Compreende-se que não houve um “relaxamento” da moral jurídica, mas uma tentativa de servir aos propósitos da manutenção da imagem da cidade, através da prática de sentenças que demonstrariam que esse tipo de crime era improcedente em Londrina. O tiro claramente saiu pela culatra.
As absolvições, os arquivamentos e até os casamentos contribuíram para alimentar o ciclo da violência; ou será que somos inocentes o suficiente para acreditar que soltar um rapaz, por entender que ele agiu por conta de seus instintos e que tais são comuns a qualquer jovem de sua idade, ajudaria a redimir sua culpa por ter abusado de uma criança? Aparentemente, não, mas parece que em Londrina, sim; é só nos lembrarmos do caso citado anteriormente.[22]
As crianças sofriam duas vezes: primeiro, no ato de violência em si, e, segundo, diante da impotência, ao se verem manipuladas por adultos que não se preocupavam com a essência do abuso que sofreram. Podemos ver o desejo de poder também nos legisladores e na justiça, quando aplicava as leis, pois, ao demonstrarem imparcialidade, cometiam o erro de condenarem a vítima em lugar do verdadeiro réu. Não estamos aqui dizendo que em todos os processos o denunciado realmente cometeu o crime que lhe atribuíram, mas afirmamos que ocorria, invariavelmente, uma inversão de papéis, na qual a vítima tinha que ser enquadrada na proteção da lei, antes de se julgar o réu.
Vemos o poder desses homens quando entendemos que a justiça é um princípio equilibrador das desigualdades sociais. Mas as desigualdades surgem exatamente pela existência da experiência das classes sociais quanto a sua situação na hierarquia social, pois as classes são nitidamente divergentes entre si. Thompson afirma que: “A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”.[23]
Thompson, com maestria, ajuda-nos a derrubar a Justiça em seu alicerce mais sólido: o da equidade entre todos. Quando entendemos que os membros de uma classe identificam-se ao se diferirem de outros, percebemos que a Justiça não poderá mediar nenhum conflito, já que seus representantes se encaixam também em uma classe, assim como os legisladores que formulam as leis. Nos casos de abuso sexual, vemos esse problema, pois quase a totalidade das vítimas apresenta atestado de miserabilidade durante o processo.
Será que, entre os abastados, tal forma de violência não ocorria? Maria Amélia e Viviane Guerra nos dão uma resposta suficientemente esclarecedora, ao entenderem que a violência sexual infantil trata “de um fenômeno que não é caudatário do sistema de estratificação social e do regime político vigente numa dada sociedade [...] não pode ser dito um fenômeno característico da pobreza”.[24] Mas se é passível de ocorrer, porque então não consta em processos da época e localidade estudadas? Não buscar a Justiça demonstra o quanto ela não pode, realmente, equilibrar a desarmonia social. Podemos inferir que a elite resolvia seus casos de outras formas. Submeter esses casos à opinião pública externaria a fragilidade da segurança, e, para uma cidade em momento de afirmação, isso seria um desastre.
De modo geral, consideramos que, em busca de um arranjo social que fosse satisfatório para todas as camadas, ou que, pelo menos, deixasse menos evidentes as contradições existentes, a moralidade foi protagonista de desarranjos cuja gravidade foi muito maior do que o fim desejado. A sociedade, apesar de ser autocriadora, não se sabia nessa condição, ou melhor, não conseguia perceber que, ao mesmo tempo em que era formada, ela também formava seus membros. Ao “permitir” que desviados da conduta civilizada saíssem impunes de seus julgamentos, mostrava, mais uma vez, que a “corda arrebenta sempre do lado mais fraco”, e esse é o lado das crianças, que, na impossibilidade de se defenderem, transformam-se em cópias dos adultos a que estão submetidas, continuando a alimentar o ciclo da violência, perpetuamente.
No entanto, o Brasil é um país dito pacífico, e essa “violência não pode existir no território nacional”. A ideologia dominante esconde os fatos, não permitindo o seu conhecimento e a discussão pela comunidade. “No Brasil haveria uma índole pacífica” (HOLLANDA, 1978) supostamente herdada pelo português, que teria sabido tão gostosamente promover uma suave mistura de raças, criando aqui uma sociedade harmônica. Em meio a essa vertente da História da Infância, Cunnigham inclui os defensores dos direitos da criança, que alertam para o problema da supressão da “voz da criança” no presente, tanto quanto no passado. Tais acadêmicos, diz ele, estão associados a uma operação de salvação da infância e a uma tentativa de reforma da visão de mundo a partir da criança. Entre eles, por certo, estariam incluídos os que advogam a necessidade de os pesquisadores tomarem a criança como sujeito.
É preciso que a infância deixe de ser circunscrita e sujeita aos discursos institucionais e às práticas, com destaque às familiares, escolares, asilares e correcionais, e passe a ser olhada como um tema que não afeta apenas os aspectos emocionais; que possa ser um campo em que se trabalhe a recuperação da história de sujeitos até bem pouco tempo sem nome, memória ou qualquer identidade social, além da de uma imitação de adulto.