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Reflexões e perspectivas sobre a História recente na Argentina
Marlene de Fáveri; Felipe Côrte Real de Camargo
Marlene de Fáveri; Felipe Côrte Real de Camargo
Reflexões e perspectivas sobre a História recente na Argentina
Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 2, pp. 197-211, 2009
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Entrevista

Reflexões e perspectivas sobre a História recente na Argentina

Marlene de Fáveri
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
Felipe Côrte Real de Camargo
Universidad Nacional de San Martín, España
Revista Tempo e Argumento, vol. 1, núm. 2, pp. 197-211, 2009
Universidade do Estado de Santa Catarina

Florencia Levin e Marina Franco são pesquisadoras da área de História do Tempo Presente e, juntas, organizaram o livro “Historia Reciente: perspectivas y desafíos para un campo em construcción” (Ed. Paidós), sendo esta a primeira obra a oferecer aportes teórico-metodológicos para esse campo na Argentina. Florencia Levin é pesquisadora e docente na área de História Recente na Universidade Nacional de General Sarmiento; graduada pela Universidade de Buenos Aires, no momento está terminando sua tese de doutorado sobre humor gráfico no jornal Clarín entre os anos de 1976 e 1983. Marina Franco é, também, graduada pela Universidade de Buenos Aires, com mestrado e doutorado pelas universidades de Buenos Aires e Paris VII (Diderot), onde defendeu tese de doutorado sobre os exilados políticos argentinos na França; atualmente é docente e codiretora do mestrado em estudos latino-americanos da Universidade de San Martin, além de pesquisar o autoritarismo no Conesul. Ambas dedicam-se ao desenvolvimento dos estudos em História Recente na Argentina, como também são fundadoras da RIEHR (Red Interdisciplinaria de Estudios sobre Historia Reciente, ), que funciona como ferramenta de divulgação e intercâmbio entre pesquisadores da área. Nesta entrevista, as duas historiadoras expuseram um pouco de suas trajetórias, além de tratarem das experiências e perspectivas da História Recente na Argentina.

Tempo e Argumento -

Como poderíamos definir a História Recente?

Florencia Levin –

Eu não sei se quero fazer uma definição a respeito, mas quero fazer um esclarecimento importante, que surgiu a propósito de discussões com respeito à definição que eu e Marina propusemos nos nossos trabalhos e no livro, que tem a ver com a delimitação complexa a partir de uma série de variáveis do campo, em função de questões vinculadas com a cronologia, com a temporalidade da História Recente, por um lado, mas também em função do que, naquele momento, chamamos de um caráter “traumático”. Pela polissemia e dificuldade de definição de “trauma” neste campo, nós buscamos uma forma de delimitar o campo a partir do cruzamento de distintas variáveis, basicamente produtos do que discutimos. Têm surgido cursos virtuais, cursos para docentes, mas com um certo incômodo no meio. Nós tentamos estabelecer e explicar de que modo, de fato, no campo historiográfico argentino, se delimita a História Recente, que tem a ver na realidade com um pacote de problemas que se delimitam temporalmente e problematicamente. Isso não quer dizer que a história recente deva dedicar-se a isso, que nós tenhamos que dizer a quê tem que se dedicar alguém que trabalha a História Recente, em absoluto. Simplesmente foi como uma análise sintomática, seguida por uma revisão do campo na Argentina, que, obviamente, tem a ver com a violência, com as guerrilhas, com os desaparecidos etc. E aí a noção de trauma e de passado que persiste, de passado que se atualiza permanentemente.

Marina Franco –

De passado que não passa.

Florencia Levin –

De passado presente, como vocês chamam. E onde, então, nós discutíamos a noção de contemporaneidade, que depende da idade da pessoa que está investigando. Não é isso que define, nesse caso, na Argentina, esse campo da História Recente, bem como outros campos historiográficos. A cronologia define mais ou menos, porque sempre há a discussão muito importante de quando começa ou quando termina. Nós não somos ninguém para dizer “começa em 1969”, ou “começa em 1975”, ou “começa em 1973”, mas está claro que, se a cronologia tem um papel, esse não é o de definir o que é História Recente e o que não é. Ou seja, é como no secundário: no caso da Espanha, alguém pode dizer que a Guerra Civil espanhola, cronologicamente, não está próxima do presente, e que, por isso, não é História Recente, se isso se pode definir. Mas a história da Guerra Civil, por sua presença na atmosfera social espanhola, nos espaços públicos, nos dilemas políticos e ideológicos atuais, tem peso. Então não se pode afirmar que, nesse sentido, não faz parte da História Recente da Espanha. Assim, a cronologia exerce um papel, mas não define. A contemporaneidade está ligada à relação do investigador com o fato que estuda - se o fato é contemporâneo ao investigador ou não. Obviamente, não é uma variável que a define, mas costuma exercer um papel, porque a História Recente está mais próxima no tempo. Muitas vezes, o historiador é contemporâneo daqueles fatos que estuda, mas pode não sê-lo, ou seja, um historiador de 50 anos que trabalha com a ditadura na Argentina efetivamente é contemporâneo aos fatos, mas um historiador de 20, que toma esse tema, não é contemporâneo. Certamente há toda uma herança geracional através da qual ele vai aproximar-se dessa história. Mas não necessariamente essa proximidade pessoal, emocional, ideológico-política do investigador define História Recente. O que tratamos de dizer é que há uma série de variáveis que costumam conjugar-se, mas nenhuma delas determina o que é História Recente ou não. Essas variáveis que se ligam à contemporaneidade, a cronologia, a presença desses temas nas sociedades atuais, elas sim, me parecem algumas das questões mais importantes. Vinculam-se à noção de trauma e de algo que não pode ser devidamente fechado, ou processado, ou suturado. Isso resulta em ver, de fato, o que é este campo através do que a História Recente investiga; ordenar, explicar e conceitualizar um campo que funciona, de fato, sem que ninguém venha dizer se isso é ou não História Recente.

Marina Franco –

Sim, de alguma maneira é organizar esse sintoma.

Florencia Levin –

E quais são os principais problemas em torno dos quais estão organizadas as discussões do campo? A partir daí é que tratamos de reunir e de sistematizar essas reflexões, que são reflexões epistemológicas, políticas, éticas, metodológicas e educativas que têm relação com o impacto desses temas já no âmbito acadêmico.

Tempo e argumento -

Vocês falaram da dificuldade de estabelecer uma cronologia, e sabemos da subjetividade desse tema. No livro, vocês escrevem que “a história recente é filha da dor” e que é uma História que privilegia as rupturas. Então qual seria a ruptura dolorosa que melhor fixaria o começo de uma cronologia para a História Recente da Argentina?

Marina Franco –

Seria o ano de 1974, o nascimento da triple A[1], um pouco antes da guerrilha. Mas essa seria a ruptura dolorosa que alguém estabelece como historiador. Se estou pensando na ruptura dolorosa como sociedade, aí se pode estabelecer 1976.[2] Alguém, sem dúvida, como historiador, vai querê-la muito mais atrás. Para a sociedade, o ano de 1974 não tem a relevância que tem 1976. Por aí, há outra distinção: qual a ruptura dolorosa que alguém vê como investigador e qual a ruptura dolorosa que tem impacto social e a partir da qual alguém terá preocupação por esses temas? Aí, 1976, me parece, segue sendo um fio condutor, uma espécie de consenso.

Florencia Levin -

Na verdade, a ruptura se transforma em dolorosa a posteriori, quando se descobre o que aconteceu, quando se descobre a dificuldade de tramitar isso, quando fica a impunidade impedindo um fechamento. É uma pergunta que depende de como você a está encarando. Eu vejo mais como algo retrospectivo, como uma avaliação, como uma memória; essa dor tem mais a ver com a memória e com um balanço desse passado, em um processo em que uma pessoa não consegue se localizar.

Marina Franco –

Mas esse balanço é sempre fixado em 1976 porque é uma data emblemática. Pode-se afirmar, se queres falar de ícones ou mitos políticos e sociais, que esse ano é igual a “desaparecidos”. É como se houvesse uma série de clichês, então 1976 é associado ao desaparecimento, ou à figura do desaparecido, que, na verdade, está desaparecido desde antes dessa data. E, se assim for, 1976 não se explica se você não remonta a 1955;[3] enfim, uma coisa tem a ver com o investigador e outra coisa é um fechamento social desses clichês educativos.

Florencia Levin –

De qualquer forma, eu creio que, se algum sentido tem a imagem da dor, insisto, para mim é como retrospectiva. Não importa quando se localiza essa cronologia, mas sim, tem a ver com um olhar doloroso para o passado. É esse olhar que volta a esse passado, mas que alguém pode localizar em um lugar concreto.

Marina Franco -

Pode dizer, então, que esse olhar só começou a ser construído em 1983[4]. Mais exatamente, em 1985, com o Nunca más[5] e com o juicio de las juntas[6]: 1984 e 1985. Não é que essa dor precise ser construída, mas sua construção social é um processo posterior.

Tempo e Argumento -

Tendo que dialogar com tantos atores, com múltiplas fontes, com outros campos disciplinares - considerando isso, quais são os novos desafios que a História Recente traz para o historiador?

Marina Franco –

Creio que o maior desafio agora é separar-se de certos clichês que supõem que História Recente, no caso argentino, é a História da ditadura militar, da militância política, a História dos anos 1970 e a História da violência política desses anos. Nesse sentido, o desafio é ampliar o campo cronológico até o presente; ampliar e modificar as perguntas que se fazem sobre esses mesmos feitos que já foram estudados. Parece que aí há um problema, que estamos estudando com certa circularidade. A circularidade é essa História meio dicotômica, entre vítimas e algozes. A História dos anos 1970 está, cada vez mais, se reduzindo a isso, e me parece que tem de se fazer isto: ampliar as perguntas sobre os mesmos temas e fazer perguntas novas sobre esse mesmo período, além de fazer outras perguntas e abordar outros temas que não têm a ver estritamente com esse período. Isso é compreensível, porque está ligado ao surgimento do tema, tem a ver com a dor que surge com ele. Parece-me um campo de investigações e de problemas que sugere certa ansiedade, ligada à dor, que está ligada à falta de memória, à falta de justiça, à falta de verdade. Então havia certa ansiedade por fazer, por mostrar, por entender, por pensar, e a verdade é que é um campo que cresceu enormemente e, além disso, tem ligação com todas as políticas ligadas a justiça, memória etc. Então há uma certa “ansiedade” queem certo ponto, está “acalmada”, e isso me parece que nos permitiria começar a fazer outras perguntas sobre os mesmos temas, a investigar temas contemporâneos às vítimas e aos algozes, por exemplo. Temas que não tenham sido abordados e até outras perguntas que tenham uma relação maior com o presente, até mesmo como um modo de tomar distância.

Florencia Levin –

Isso se poderia traduzir também em encarar a investigação, senão com um pouco mais de distância e ceticismo, com uma atitude um pouco mais, entre muitas aspas, “científica”. Por outro lado, concomitantemente, creio que essa impregnação do político e, de certas formas, de militância ética que existe no campo é, também, o que o faz interessante. É o que o faz um campo tão apaixonante e tão rico. Envolver-se com esse campo significa envolver-se com essas paixões que emergem do tema. Isso tudo pode ser muito apaixonante, mas é necessário deixar de buscar, como disse a Marina, vítimas e algozes, bons e maus, antes e depois, e buscar um pouco mais os matizes, as coisas mais incômodas da verdade, e, nesse caso, as mais polêmicas, e que também são mais difíceis de avaliar. Por exemplo, no humor gráfico, a grande discussão com respeito a certas produções culturais é: foi resistência ou foi conivência? Bem, mostrar piadas sobre a repressão em um jornal como o Clarín pode ter produzido um efeito, mas, ao mesmo tempo, construiu uma naturalização, deram-se as duas coisas ao mesmo tempo. O melhor não é, necessariamente, trocar o período, os objetos, senão também o olhar muito rígido. É uma dificuldade epistemológica também, pois se procura uma explicação para ver se é preto ou branco, mas não, percebe-se que é branco e preto ao mesmo tempo.

Marina Franco -

Por exemplo, de todas as investigações sobre os meios de imprensa desse período, a pergunta é: apoiaram ou não apoiaram o golpe? Geraram ou não geraram o golpe? Há outras perguntas possíveis: como funcionavam os meios de imprensa? Como funcionavam suas relações com o mercado? Não são perguntas necessariamente carregadas politicamente em relação ao tema da ditadura, mas são novas perguntas sobre o mesmo tema, sobre o mesmo problema.

Florencia Levin –

Sim. Como um meio como o jornal Clarín, que participou desse consenso, teve, todavia, a possibilidade de ter um espaço mais livre, mais aberto, mais “invisível”, onde circularam coisas que na linha de história, ou em outros espaços, não circularam? É como observar, também, as complexidades e os entrançados mais ambíguos dos atores, das produções culturais, mesmo das memórias.

Marina Franco -

E também observar que nem todas as variáveis de um objeto se relacionam com a questão política. Tem coisas que se podem assinalar por outras razões, e há outros problemas para abordar que podem ser sociológicos, econômicos etc. E não necessariamente terminam todos atados ao processo ditatorial, porque senão estaremos fazendo uma espécie de reducionismo, no qual todos os problemas e processos de investigação se explicam e se constroem com relação ao político. Eu entendo essa preocupação, eu mesma a tenho, é minha preocupação também pensar o político, mas não se pode deixar de ler outros aspectos.

Florencia Levin –

Até para poder pensar a política de maneira mais complexa. E isso, eu insisto, é uma questão mais epistemológica e mais universal, e, inclusive, não somente neste campo, volta como muito evidente e muito sintomático.

Marina Franco –

Tem a ver também com a “maturidade” do campo; as perguntas já começam a estar mais ou menos respondidas, se é que se pode responder algo em História ou em Ciências Sociais. Em todo caso, hoje há respostas que nos são satisfatórias. Então resulta que se pode começar a indagar sobre complexidades e matizes, porque antes era como “porque vais te meter com o cinza se não podes definir o que é preto ou branco?”. Parece-me que há algo disso. E eu acredito que outro desafio grande que está pendente é a questão que, no caso do Brasil, é diferente, porque há vários focos, mas, no caso argentino, a questão de sair da interpretação do portenho[7] como nacional, ou seja, nós temos muito a fazer no que toca à indagação de processos locais e regionais. No caso brasileiro, muito se circunscreve a São Paulo e Rio de Janeiro, não? As histórias locais são praticamente escondidas. Porque um dos efeitos disso é que, se você acessa uma das histórias locais, ela pode romper com a cronologia da suposta História nacional. Aí a História tem muito que entender, não para cair em um localismo que relativiza absolutamente tudo, senão não há nenhuma possibilidade de construir um relato de nenhum tipo, porque tudo é a somatória de particularidades; não se trata disso, mas sim, de romper com essa ideia de que há um relato, que em geral é o relato da capital, que se transforma em relato nacional. Nesse sentido, há muito a fazer, mas isso depende da emergência das historiografias locais.

Florencia Levin –

Creio que isso dialoga também com a maturação da metodologia da História Oral; isso ficou claro no livro e no que pensamos. A História Oral como ferramenta, o mau uso da História Oral faz com que a compilação de testemunhos se converta no leitmotiv, não como um insumo, mas como o objetivo de uma série de investigações em curso. Está bem, a História Oral é uma ferramenta para o exercício da crítica metodológica, como se exercita com qualquer tipo de documento para a costura intertextual, é problemática como qualquer fonte da História, mas o que se vê nos congressos e nos espaços de circulação acadêmica é que a compilação de testemunhos se transforma em “bem, o meu trabalho é: entrevistei a fulano de tal, perguntei tal coisa e fulano me disse isso. Então concluímos que tinha razão e ponto”. Estou simplificando muito, mas o testemunho não pode tomar o lugar da explicação, da argumentação e da construção argumentativa do historiador, senão não há História, somente memória. Nesse caso, nem sequer é História Oral, é mais bem uma “memória do testemunho”. Uma das tarefas hoje presentes no âmbito dos mestrados e dos segmentos que trabalham com esse eixo temático é entender de que maneira se utiliza a ferramenta da História Oral, com que objetivos, porque não é fácil trabalhar com testemunhos orais.

Marina Franco –

Isto é um risco: o entendimento de que o testemunho substitui a interpretação e, portanto, a História. Simplificando, que a memória substitui a História. As outras dificuldades mais intermediárias são aqueles casos em que ficam os testemunhos com que se trabalha interpretativamente, em que há um processo de investigação e interpretação por parte do historiador e, mesmo assim, supõe-se que a fonte oral substitui qualquer outra fonte, ou seja, que a História Recente é um trabalho com História Oral. E, na verdade, é uma técnica, um tipo de fonte, como há a escrita, a fotografia, o humor gráfico. Então, sempre, a História Oral, acreditamos, tem que estar articulada com outros tipos de fonte. Claro que, dadas as nossas fontes, porque é com elas que trabalhamos, a História Oral tem certa preponderância, pelo acesso aos testemunhos, porque os testemunhos dizem coisas que não dizem as fontes escritas etc. Mas não posso substituir a busca de outras fontes e o cruzamento com outras fontes.

Florencia Levin –

A dúvida metodológica a respeito da História Oral e sobre como ela influi na memória, nessas reconstruções, é algo que me parece que, em termos metodológicos, está discutido, mesmo em termos unilateralmente consensuais, mas, em termos práticos, não estáo. Não se vê isso em muitas das produções.

Tempo e Argumento -

O livro surgiu de uma emergência teórico-metodológica da História Recente na Argentina? Como surgiu e se desenvolveu a idéia da RIEHR[8]?

Florencia Levin –

Com respeito ao livro, teríamos que nos observar historicamente; nós não inventamos nada, somente tínhamos a vontade e um entendimento muito grande entre nós duas. Em função disso, o resultado foi um trabalho apaixonante, no qual começamos a discutir, a juntar pontas e no qual se armou um pacote de problemas a resolver. E, obviamente, como não podíamos resolver nós mesmas... A ideia do livro foi surgindo como algo orgânico, dado o que nós considerávamos que era História Recente, o que necessitaríamos para organizar algo a respeito disso. Mas surgiu no momento em que surgiu, porque não foi nada clarividente da nossa parte. Simplesmente algo funcionou nessa nossa troca intelectual e afetiva, e, assim, tudo isso se pôde motorizar.

Marina Franco –

Achávamo-nos em um panorama historiográfico em que já havia efetivamente muitas reflexões, que não necessariamente dialogavam. Trabalhavam com metodologia, mas não necessariamente esses distintos subcampos de reflexão estavam articulados; na realidade, constituíam algo orgânico que merecia ser vinculado para se poder pensar o que cada um desses subcampos estava fazendo e as investigações empíricas que estavam fazendo. Nós fomos uma espécie de portadoras, no sentido de que havia algo que qualquer um teria podido começar a perguntar-se.

Florencia Levin –

Podia ter sido feito por nós duas ou por qualquer um. Por isso é necessário pensar isso historicamente; era algo que, neste momento, se olharmos retrospectivamente e se virmos a evolução do campo nesses últimos cinco anos, sua evolução, seu crescimento, toda essa massa de gente pensando os mesmo problemas, nós formamos parte dessa onda também, obviamente. O livro saiu em 2007, mas começamos a imaginá-lo em 2004; na verdade, foi um processo longo, tudo isso estamos falando de 2004 para trás, para situar historicamente. Era algo que estava no ar. Nós estamos observando mais do que afirmando alguma coisa, algo como um distanciamento, não em respeito ao livro, obviamente, porque foi algo que fizemos e é fruto do nosso trabalho. Mas nós também formamos parte dessa onda e, na realidade, nesse sentido, o livro representa a nós tanto quanto aos outros.

Marina Franco –

Era, e creio que segue sendo, a única obra orgânica sobre o tema, isso é certo. A nós cabe o mérito de ter organizado as distintas discussões, não mais do que isso. E depois as distintas discussões seguiram crescendo para além de nós e diante de nós.

Florencia Levin –

Para contar um pouco da “cozinha”, quando os autores que integram o livro aceitaram participar, eles o fizeram de pronto. Claro, porque não éramos nós, era o tema que convocava a participar. O tema estava em um momento muito candente. O êxito do livro, se podemos colocar dessa forma, tem a ver com ele ter vindo ocupar um lugar que, nesse momento, havia se transformado em uma necessidade. Simplesmente isso.

Tempo e Argumento -

E seguiu crescendo até surgir a RIEHR?

Marina Franco –

Isso é o que eu ia comentar. Nós tentamos preencher duas necessidades. Uma era a reflexão orgânica e sistemática sobre os distintos problemas que compunham o campo, e aí saiu o livro. A outra necessidade que nós sentíamos – insisto, emanava estritamente da nossa prática cotidiana como investigadoras - era a vinculação entre as pessoas que estavam fazendo essas coisas, ou seja, todos trabalhávamos de uma maneira relativamente ilhada, nos encontrávamos em congressos que nunca eram congressos sobre História Recente, senão congressos gerais onde havia muita gente, mas uma enorme dispersão. Não havia nenhum espaço para reunir a circulação de informação acadêmica, nem a circulação de trabalhos, nem de contatos. Então, em função disso, apareceu o projeto da RIEHR. Estritamente, sua função é esta: difundir informação, conectar as pessoas e facilitar os intercâmbios profissionais estritamente nesta área. Isso é mais ou menos como se articularam livro e RIEHR. E depois a RIEHR deu um segundo salto, no fim de 2007, que foi um pouco o que dissemos antes, de estar ligada a coisa nacional, portenha, argentina; dar-lhe uma funcionalidade e um sentido que saísse do estritamente argentino, pensando que há um campo de problemas bastante similares pelo menos nos países do Conesul e em vários países da América Latina. Então, aí se deu a internacionalização da RIEHR, que se tornou trilíngue, e estamos em uma espécie de campanha denodada e desesperada para incorporar mais pessoas, materiais e informação. Aproveitamos e convidamos todas as pessoas para enviarem trabalhos e informação acadêmica de outros países da América Latina. Eu, como trabalho no mestrado, tenho alguns outros contatos no Conesul, e sigo convidando pessoas, mas não é fácil evitar que 75% da RIEHR seja sobre a Argentina. Custa-nos muito ter informações dos outros países, custa muito para que nos enviem, custa-nos encontrar trabalhos e colaboração de outros países.

Florencia Levin –

Grande parte da informação sobre eventos acadêmicos e tudo o mais que repercute no funcionamento acadêmico da Argentina vem de nós, que juntamos essas informações de outras redes e botamos lá. Mas são poucas as pessoas que nos mandam expressamente as informações. Nem estrangeira, tampouco da parte argentina.

Marina Franco –

Temos agora, por cima, cerca de 700 integrantes, mas nos falta que essas pessoas nos enviem informações de maneira regular.

Florencia Levin –

Digamos que haverá um congresso de História Recente no Brasil, em Santa Catarina. Se a informação chega, por alguma instituição como um núcleo de memória ou por outro circuito, nós colocamos, mas se a informação não chega, não podemos colocar.

Marina Franco –

E não somente ter informações acadêmicas, mas trabalhos que reflitam o que está sendo produzido em outros países. Mas isso tudo tem a ver com uma dupla preocupação, uma delas a de desnacionalizar no sentido de “desportenhizar” a investigação, mas, ao mesmo tempo, desnacionalizar no sentido de regionalizar a investigação - uma preocupação dupla, o que acontece em espaços mais reduzidos e o que acontece em espaços mais vastos. Na realidade, a minha preocupação tem a ver com como pensamos o nacional, se podemos pensar e comparar com outros casos nacionais - nesse caso, do Conesul. Porque creio que, epistemologicamente, vamos aprender muito, muitíssimo, e digo porque é a minha experiência cotidiana, de conhecer e pensar outros casos nacionais, para poder pensar os nossos. Então, nesse momento, a minha preocupação passa por esse duplo olhar, a relação entre o local e o regional, bem como o internacional, como queira chamar. Também para pensar os pressupostos de alguém, independente de estar estudando o regional, o nacional ou o internacional.

Tempo e Argumento -

E há muitos pontos de contato entre as histórias recentes do Conesul ou é algo que está ligado somente às ditaduras?

Marina Franco –

Eu diria que, no caso do Brasil e da Argentina, são historiografias que têm funcionado bastante juntas. Poderíamos incluir o Uruguai, no sentido de que, se tomarmos quatro casos - Uruguai, Brasil, Chile e Argentina -, são historiografias que, com relação à História Recente, têm as mesmas preocupações, que estão vinculadas ao autoritarismo militar, à violência política, ao funcionamento das guerrilhas, à repressão, aos atores da radicalização política, estudantes, artistas, luta armada etc. Originou-se uma série de tópicos de problemas bastante similares, e temos, na maioria dos casos, com exceção do Chile, historiografias que têm revolucionado, com respeito a esses temas, de maneira bastante similar. Por exemplo, do olhar a partir do estrutural e do socioeconômico, vinculado ao marxismo e ao estruturalismo, próprio dos anos 1960 e 1970, passou-se a um olhar centrado nos sistemas políticos, próprio dos anos 1980, para passar, depois, a um olhar para os atores, para as subjetividades, para as representações que, por sua vez, está relacionado à mudança epistemológica dentro da História. Então todas essas historiografias estão atravessadas por isso e são bastante similares, e, em todos os casos, há um atraso muito grande da historiografia com respeito às outras ciências sociais, ou seja, sempre se vê a economia, a política, a sociologia abordando esses problemas, e a historiografia sempre tem chegado muito atrás, em todos esses países, para ocupar-se desses temas. Separo ligeiramente o Chile, porque o Chile é um país onde a historiografia tem tratado muito pouco disso. O nível de politização e de complexidade dos fenômenos sobre os quais se discute está alto, a carga no presente é tão alta que há um campo das Ciências Sociais terrivelmente fraturado, terrivelmente politizado, e, todavia, muito ansioso, muito necessitado de separar águas, de estabelecer os campos dos bons e dos maus, distinguir responsabilidades muito políticas, e que, além disso, está completamente fraturado não pela ditadura, mas pela experiência da Unidade Popular de Salvador Allende. Ou seja, o divisor de águas no Chile é esse, e não a ditadura. Então há uma enorme fratura, uma enorme politização e, além disso, a meu ver, um enorme atraso em termos de produção. É incomparável o nível de produção historiográfica do Brasil ou da Argentina, com respeito ao caso do Chile. Por isso, no Chile há muita produção sobre memória, porque lá a grande fratura é na memória, não é o passado, senão a memória que está fraturada, então há muita produção sobre memória. E, fazendo um parêntese - evidentemente que isto tem a ver com a dimensão do campo historiográfico em cada um desses países -, o Brasil é enorme, academicamente é enorme, a Argentina é menor, o Chile é menor, e o Uruguai muito mais pequenininho. Mas o Uruguai é pequeno e, mesmo assim, tem uma boa produção. Para os uruguaios é pouco, mas é uma boa produção sobre esses temas. E em todos esses países, essa produção começou com uma preocupação com a memória - aí é diferente, no Uruguai, no Chile e na Argentina, a ponta de lança de aproximação e indagação sobre esses temas começou na preocupação com a memória, não só da História.

Tempo e Argumento -

Como vocês analisam o estudo de HistóriaRrecente? Quais são as dificuldades em relação a material e espaço institucional?

Florencia Levin –

Em nível curricular, começou a haver, ultimamente, um espaço, sobretudo a partir da comemoração do 24 de março,[9] a partir das efemérides, das festas escolares. O tema ingressou mais institucionalmente, mas ingressou dificultosamente, não necessariamente em nível curricular. Nos últimos anos da educação secundária, sim. Basicamente, há uma enorme falta de ferramentas políticas e pedagógicas para abordar o tema nas escolas. Tenho trabalhado, em diferentes oportunidades, com docentes nos quais gera ansiedade e angústia o fato de trabalhar um tema que, afinal, dependendo das escolas e de sua localização, pode trazer problemas com a direção, problemas com as famílias. Despertar uma história tão viva, tão polêmica, pode despertar reações, reticências, reclamações de diversos atores que compõem a vida da comunidade escolar, por um lado. Por outro lado, há várias coisas que atentam contra o ensino de História Recente. Uma dessas coisas é que não há, ainda, uma história oficial sobre esse passado, uma história que possa circular mais ou menos como um pacote argumentativo para contar o que ocorreu. Quando existir tal história, provavelmente a História Recente deixe de ser recente. Enquanto for recente, uma de suas características é que haverá múltiplos discursos, que são todos discursos muito polêmicos e que se inscrevem, a si mesmos, em termos polêmicos. A aula tem outras demandas, outros requerimentos, pelo público que atende, pelas próprias características do sistema escolar, que vai mais pelos problemas da aprendizagem e pela idade das crianças que estudam e que recebem essa informação. Elas necessitam e se nutrem, em geral, de discursos mais acabados, como: onde começou? O que ocorreu? Ainda que coloquemos de modo maniqueísta, de bons e maus, o Nunca Más, a memória vinculada ao Nunca Más constitui um modelo que permite gerar alguns discursos, mas não permite enfrentar o tema, necessariamente. O Nunca Más é uma ferramenta de trabalho muito difícil e muito impactante para as crianças, e muitas delas têm se vinculado através da morbidez com respeito ao que passou, porque o Nunca Más reflete os temas mórbidos em relação a tudo o que ocorreu. Então há muitas questões que estão ligadas à dificuldade de formação dos docentes, especificidades próprias do campo, como a possibilidade de algum discurso que possa consensuar, que possa circular como um discurso para dar aula.

Tempo e Argumento -

Como um roteiro...

Florencia Levin –

Um roteiro, isso. O que se mostra a eles desse passado e com que objetivos também, não? Então o que ingressa na escola, mais do que a História Recente, é a memória, e, geralmente, a memória do Nunca Más, a partir das efemérides, de passar filmes como “La noche de los lapices”[10], que tem sido um clássico nas escolas. No dia 24 de março, em todas as escolas, se vê “La noche de los lapices”. É complicado tratar o tema com fragmentos, com objetos culturais fragmentários que abordam um passado de uma complexidade enorme; fazer isso sem um roteiro, sem um programa e sem um objetivo claro que permita aos docentes orientarem-se. O professor deve saber por que leva o Nunca Más para a sala de aula; o que as crianças aprendem ou refletem sobre isso? A natureza tão inacabada dessa história também faz com que ela possa ser muito rica para se trabalhar nos últimos anos da escolarização, mas não nos primeiros. E, ao mesmo tempo, há uma grande expectativa e uma demanda, em alguns setores, de que as crianças aprendam algo disso, que se conectem de alguma maneira com isso, e há outras expectativas paralelas vinculadas à resistência, de que ss alfabetizem nessa questão, mas é um tema muito complexo. Onde se aborda? Na formação ética? Através da História? Através da memória? É muito complexo, e os docentes sentem-se muito desarmados, em termos gerais, na hora de trabalhar. O mais comum, então, é: já que temos que fazer, façamos a efeméride de 24 de março e ponto.

Marina Franco –

O que é certo, voltando a sua pergunta, é que há uma prática que é muito informal com respeito ao que fazem os docentes em aula; essa é uma dimensão. Há uma grande quantidade de políticas educativas do Estado dirigidas a abordar esses temas; se os temas são dados ou não, é outra questão. A preocupação da política estatal vinculada à questão existe. Produz-se uma grande quantidade de material didático sobre esses temas, segundo os programas, segundo os currículos em nível estatal. Depois, a dimensão do que acontece na aula, do que acontece na escola, de acordo com uma amiga que investiga essas questões, depende muito de cada instituição escolar, de cada escola, da direção de cada escola e, obviamente, dos docentes. Mas, em todo caso, a preocupação de políticas estatais existe.

Tempo e Argumento -

E qual o balanço que vocês fazem do campo da História Recente na Argentina e na América Latina?

Florencia Levin –

A sensação que eu tenho, e penso que é compartilhada por Marina, dado esse boom que houve, é que faz falta um período de desencantamento e de solidificação, sobretudo profissional, digamos. Muita gente, muito trabalho empírico, muitas entrevistas, e falta como um momento de reflexão e de transformar tudo isso. Um momento no qual se monte um processo de maturação intelectual, profissional. Por agora, é muita pressão e muitas coisas muito sólidas que iluminam aspectos bem pontuais, mas não se solidificou um olhar um pouco mais apurado e sustentado na investigação da interpretação sobre o passado. Falta que tudo isso se converta em novos sentidos sobre esse passado mais solidamente formulado.

Marina Franco –

Eu creio que sim, que há coisas que vão decantando, mas que, mesmo tendo já decantado, algumas delas estão em um movimento circular.

Florencia Levin –

Essa situação circular se dá com sentidos estabelecidos previamente. Determinados marcos que têm se convertido em sentido comum historiográfico, não sentido comum público, mas como sentido comum historiográfico e acadêmico para pensar as coisas. O ideal seria que, depois de todas essas investigações e trabalhos, tudo isso se decantasse e se convertesse em novos marcos.

Marina Franco –

Há uma série de marcos que foram emergindo através de uma série de trabalhos ensaísticos que são distintos; alguns são muito contrapostos. Distintos marcos que levam a distintas concepções ideológicas e historiográficas, mas que são marcos, que têm instituído cânones por onde circula a investigação empírica, mas que funciona dentro disso. O que nos falta é um “bem-aventurado” que renove esses conceitos historiográficos, pois estamos circulando dentro da mesma lógica. Precisamos de novas perguntas, novas respostas, novos sentidos. Isso com respeito à produção empírica. Com respeito à discussão mais teórica, metodológica, epistemológica, estamos em um ponto morto absoluto. Na semana passada, eu tinha que falar em uma jornada acadêmica em La Plata sobre História Recente e havia mais quatro colegas, todos se conheciam - eu disse: “o que eu tenho que dizer? Não há absolutamente nada novo.” A discussão era sobre História argentina geral, não empírica. Eu pensei: “não há nada suficientemente novo que eu tenha que dizer”, e depois pensei nos meus colegas, intercalamos métodos, o que íamos dizer? Em termos de discussão teórica, metodológica, epistemológica, não havia novas reflexões. Claro que sempre há uma mudançazinha de perspectiva, mas me pareceu que não havia nada novo no horizonte. A questão de História e memória já está bastante esgotada; mesmo assim, sempre há o balanço historiográfico que se pode fazer, pois sempre há nova produção. Mas a discussão teórica não me parecia que havia avançado muito.

Florencia Levin –

Eu tenho a mesma sensação. Até porque a produção epistemológica, metodológica, se nutre de outras historiografias, de outros problemas, como o holocausto, que ainda funcionam como ponto zero de todas essas discussões. Há poucas questões verdadeiramente “criollas” [11] nesses questionamentos. Está elaborado um problema nacional que, na verdade, forma parte de debates e questões universais que já estão suficientemente debatidas e trabalhadas. Não se pode dizer que não é possível fazer novos avanços, mas não tem havido. Creio que, efetivamente, neste momento, essas questões têm mais a ver com a vontade de contribuir com a criação de um campo historiográfico, que, hoje em dia, já está criado e trabalhando problemas específicos dessa historiografia. Assim, essa ansiedade está acalmada.

Material suplementar
Notas
Notas
[1] Sigla pela qual ficou conhecida a Alianza Anticomunista Argentina, grupo paramilitar de extrema direita que, nos anos 1970, atuou reprimindo e assassinando políticos, militantes e guerrilheiros de esquerda, bem como artistas e intelectuais. No ano de 2006, suas ações foram classificadas como crime de lesa humanidade.
[2] Refere-se ao golpe militar ocorrido na Argentina em 24 de março de 1976.
[3] Refere-se ao golpe militar que depôs Juan Domingo Perón em 16 de setembro 1955.
[4] Em 10 de dezembro de 1983, Raul Alfonsín assumiu a Presidência da nação após ter sido eleito democraticamente.
[5] Nome do informe produzido pela Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) em 1984 e transformado em livro no ano de 1985.
[6] Nome com o qual ficou conhecido o processo civil contra as três primeiras juntas militares da ditadura argentina. Esses julgamentos foram realizados no ano de 1985, durante o governo de Raul Alfonsín.
[7] Natural de Buenos Aires.
[8] Red Interdisciplinaria de Estudios sobre Historia Reciente (www.riehr.com.ar)
[9] Desde 2006 celebra-se, nessa data, a mesma do golpe militar de 1976, o Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça.
[10] Filme do diretor Héctor Olivera, que estreou em 1986 e conta a história do sequestro e posterior desaparecimento de dez estudantes do ensino secundário na cidade de La Plata. Trata-se de um dos casos mais expressivos da repressão durante a ditadura argentina, que ficou conhecido graças ao testemunho de quatro sobreviventes durante o juicio de las juntas.
[11] Expressão utilizada para referir-se a algo genuinamente argentino ou latino-americano.
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