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Domesticidade, medo e consumo: a Espanha franquista e o American Way of Life nas páginas de Seleções
Domesticidade, medo e consumo: a Espanha franquista e o American Way of Life nas páginas de Seleções
Revista Tempo e Argumento, vol. 2, núm. 1, pp. 221-246, 2010
Universidade do Estado de Santa Catarina
Recepção: 01 Maio 2010
Aprovação: 01 Junho 2010
Resumo: Durante as décadas de 1950 e 1960, a sociedade espanhola recebeu um variado conjunto de artefatos culturais provenientes dos Estados Unidos, país do qual começava a se aproximar. Séries de televisão, produções cinematográficas e publicações periódicas informavam aos espanhóis e espanholas sobre os usos, costumes e avanços tecnológicos daquele país, do qual pouco conheciam. O estilo de vida estadunidense, denominado American Way of Life, era muito diferente da experiência da sociedade espanhola, governada pelo duro regime de Francisco Franco. Este trabalho indaga, em perspectiva transcultural e em suportes diversos, o impacto dessa informação na publicidade, na produção e no consumo, articulando elementos políticos e econômicos com a emergência de um novo fenômeno, a domesticidade.
Palavras-chave: Estados Unidos, Domesticidade, Gênero, Transculturalismo, Franquismo.
Abstract: During the 1950s and 1960s, Spanish society received a varied set of cultural artifacts from the United States, from which Spain had begun to become closer. TV series, films and magazines informed the Spanish people about the uses, customs and technological advances of that country, of which they knew little. The American Way of Life was very different from the experience of Spanish society under the hard regime of Francisco Franco. This paper investigates, in a trans-cultural perspective and through several media, the impact of information in advertising, production and consumption, articulating political and economic elements with the emergence of a new phenomenon, the domesticity.
Keywords: United States, Domesticity, Gender, Transculturalism, Franquism.
Los yanquis han venido, olé salero, con mil regalos,
A las niñas bonitas van a obsequiarlas con aeroplanos,
Con aeroplanos de chorro libre, que corta el aire,
Y también rascacielos, bien conservados en frigidaire.
“Bienvenido Mister Marshall”, 1953
O Plano Marshall (European Recovery Program, 1947-1951), um importante programa de ajuda para a reconstrução dos países europeus após a Segunda Guerra Mundial, se transformou na principal estratégia de Estados Unidos para conter o comunismo nos países da Europa Aliada, principalmente naqueles onde o Partido Comunista tinha uma forte representatividade, trajetória e simpatias. Mas a Espanha franquista, que desde o final da Guerra Civil (1936-1939) estava fechada dentro da sua própria autarquia, foi o único grande país da Europa ocidental excluído das ajudas. Em parte, pela pretensa auto-suficiência do regime, em parte pela hesitação do governo norte-americano em colaborar com uma ditadura, e, paradoxalmente, porque o regime espanhol já se havia encarregado de controlar a ameaça comunista. Esse distanciamento marcará a política externa de Espanha até o Pacto de Madrid, firmado com os Estados Unidos em 1953.
“Bienvenido Mister Marshall”[1], um delicioso filme que data daqueles anos, narra um episódio fictício numa hipotética aldeia espanhola, cujo prefeito foi informado de que “Mister Marshall” faria uma visita ao local. A pequena cidade se prepara para receber a comitiva norte-americana, com toda a pompa. Arrecadam-se doações junto aos moradores. Adultos e crianças recebem aulas sobre os Estados Unidos. Todos estudam inglês. Mas a comitiva americana passa a toda velocidade pela antiga estrada, sem deixar mais do que a poeira levantada o automóvel em que viajam. A decepção dos pobres aldeãos, o desencanto pela repentina consciência de sua limitada realidade, a distância que os separa do mundo e da modernidade são o grande assunto deste filme, que não sofreu muitos cortes - talvez porque a habitual miopia dos censores lhes impediu enxergar o alvo da crítica. Os versos de boas-vindas que ensaiam os moradores da aldeia dizem muito sobre essa visão do “outro”:
Americanos, vienen a España, guapos y sanos,
Viva el tronío, de ese gran pueblo, con poderío.
Olé Virginia, y Michigan, y Texas, no está mal
Os recibimos, americanos con alegría
Olé mi madre, olé mi suegra y olé mi tía
Traerán divisas para quien toree mejor corrida,
Medias y camisas para las mocitas presumidas
Americanos, vienen a España, guapos y sanos[2]
Uma vez firmado o Pacto de Madrid, os Estados Unidos finalmente decidiram oferecer ajuda econômica à Espanha, embora nunca tenham alcançado as quantias que os seus vizinhos tinham obtido com o Plano Marshall. Apesar do seu caráter fascista, o governo de Francisco Franco era uma garantia de distanciamento do regime soviético; por isso, a ajuda norte-americana da década dos ’50 foi o ponto de partida para uma recuperação econômica necessária, depois de mais de dez duríssimos anos de pós-guerra (DELGADO GOMEZ, 2005).
Espanha e a ofensiva cultural norte-americana
Tal como vinha fazendo no Brasil desde 1941[3], o governo norte-americano utilizou diversos meios de propaganda na Espanha, que implantou somente na década de 50. Publicações, literatura popular, cinema, radio e atividades culturais faziam parte de uma ofensiva destinada a divulgar as vantagens e encantos do estilo de vida americano, o American Way of Life. Em outros países da Europa, tal campanha objetivava afastar a influência da esfera soviética em um mundo que se recuperava da guerra, mas, na Espanha franquista, o comunismo não constituía ameaça. O rigor da ditadura possuía caráter dissuasório próprio. Assim como o Plano Marshall, a propaganda cultural do governo estadunidense não prestou demasiada atenção à Espanha, um país com o qual se relacionava a custas de incômodas contradições. Segundo Lorenzo Delgado (2009, p. 132), o dilema de se entender com o regime, mas sem se identificar com ele, intermediou boa parte das atuações da política americana, já que, para Washington, a ditadura espanhola era um interlocutor de segunda ordem no velho continente. Como afirma Pablo León Aguinaga (2009, p. 133), os canais informativos e culturais ativados na Espanha pelos governos de Truman e Eisenhower, entre 1952 e 1960, tinham apenas caráter complementar aos convênios firmados em Madrid em 1953. Os meios de propaganda tomaram muito cuidado em não transpor os limites que poderiam comprometer a boa vontade do regime (DELGADO GOMEZ, 2009). Neste contexto é que se insere a revista norte-americana Selecciones do Reader’s Digest, que começou a ser editada na Espanha a partir de outubro de 1952, embora, desde 1941, já circulassem no país exemplares da edição hispano-americana[4].
Até onde é possível afirmar, a revista não formava parte do conjunto de ações culturais oficialmente arquitetadas pelo Departamento de Estado norte-americano. Pelo menos não consta entre os veículos do serviço de Publicações do Governo, o USI. Todavia, segundo a historiadora brasileira Mary Junqueira, que estudou a trajetória da revista no Brasil, alguns executivos de Seleções na Europa estavam ligados à CIA. Mesmo que os tradutores e redatores fossem locais, o diretor geral da revista era sempre um americano, o que facilitava a cooperação, tanto com o Departamento de Estado, como com a agência norte-americana (JUNQUEIRA, 2000, p. 40). Segundo o investigador John Heidenry (1993), importantes figuras do governo norte-americano e influentes políticos e empresários da época visitavam a casa dos Wallace, em Pleasantville.
Seleções, um fenômeno editorial
A revista Seleções do Reader’s Digest circulava desde 1922, com grande êxito, nos Estados Unidos. Fundada e dirigida pelo casal formado por Lila Bell Ancheson e William DeWitt Wallace, ambos filhos de pregadores presbiterianos, a revista refletia os valores conservadores norte-americanos. Eram páginas de cristianismo, de filantropia, da virtude republicana. A partir de 1940, a revista começou a circular na América hispânica. Editada inicialmente em Cuba, engajava-se no esforço de guerra para combater uma ameaça que os experts de Washington interpretavam como crescente: o avanço da ideologia nazi-fascista entre os numerosos imigrantes de origem italiana e alemã que residiam no Cone Sul. Em sintonia com este propósito, a edição em português chegou em 1942, alcançando regiões tão distantes como o Acre (JUNQUEIRA, 2000, p. 44). Era o contexto da segunda guerra, e a revista ganhava novos conteúdos[5]. Como fenômeno editorial, atravessou as Américas com sua carga de valores e representações dos diversos “inimigos” dos norte-americanos, que, em um primeiro momento, eram os nazistas, mas que nos anos da Guerra Fria passarão a ser os “comunistas”.
As páginas da revista, embora abordassem assuntos diversos, operavam em sintonia com as diretrizes do governo norte-americano, acompanhando pontualmente as mudanças de rumo da sua política exterior. Em um brevíssimo espaço de tempo, as páginas de Seleções conseguiram trocar de lugar todos os atores da eterna dialética “amigo-inimigo” à qual eram tão afetos determinados setores da política daquele país, deslizando, quase que imperceptivelmente, da simpatia para a inimizade com atores tão diversos como os chineses, os japoneses, os russos e até o próprio Fidel Castro, a quem, nos primeiros tempos da revolução cubana, a revista atribuía o rol de herói, como relata Lenira Raad (2005).
O exame cruzado das edições latino-americanas e espanhola deve necessariamente considerar que o teor dos conteúdos guarda relação direta com o imaginário presente em cada comunidade de leitores. Como afirma Roger Chartier (1999, p. 49), o mundo do leitor é sempre o da comunidade de interpretação à qual pertence, “definida pelo mesmo conjunto de competências, normas, usos e interesses”. Embora os artigos da revista fossem condensados dos materiais do Reader’s Digest norte-americano, sua seleção sempre era objeto de cuidadosos critérios. Afinal, tratava-se de divulgar valores, modos e costumes muito diferentes daqueles aos quais espanhóis e espanholas estavam habituados, em um âmbito fortemente controlado pela censura. É interessante ressaltar que a revista era lida tanto por homens como por mulheres.
Seleções estabelece um peculiar vínculo de aproximação entre o leitor local e o cotidiano da sociedade norte-americana, a moderna potência, alienígena, distante. Ainda que se tratasse de artigos de autoria diversa, condensados de outras publicações, havia uma espinha dorsal que amarrava todos os materiais, outorgando unidade e consistência editorial ao conjunto. Os tópicos da liberdade, paz e bem-estar repetiam-se incansavelmente. Desta maneira, era possível justificar ações de nítida intervenção em territórios soberanos, como se fossem obras do mais elevado altruísmo: “Ao plantar no seu solo espécies de outros países, os Estados Unidos prestam um serviço para toda América”[6].
Durante a Segunda Guerra, em consonância com as diretrizes do governo dos Estados Unidos, a edição hispano-americana da revista estabeleceu uma trégua com os soviéticos, que combatiam junto aos Aliados. Repentinamente, suas páginas começaram a exaltar as virtudes dos soldados russos, da vida na Rússia, das esplêndidas cidades russas, das maravilhosas estepes siberianas. Depois da vitória aliada, o novo mundo que daí resultava tinha pendências ideológicas a resolver que haviam sido temporariamente deixadas de lado[7]. Chegava a hora de dividir os troféus de guerra, e era necessário reinventar o inimigo, diferenciar-se dele. Havia que se retomar a caracterização do comunismo, cujo espectro voltava a assombrar o mundo “livre”. As páginas de Seleções anunciavam já o início da Guerra Fria[8]. Durante os anos posteriores a 1945, alemães e japoneses irão desaparecer paulatinamente das páginas da revista[9], deixando espaço para outros fantasmas.
O American way of life
O modelo editorial do pós-guerra reforçará com vigor as diferenças de gênero. Insistir-se-á na divisão de papéis, dando-se ênfase a tipos positivos: “a nova mulher”, “a perfeita casada”. Uma das características mais notórias de Seleções é a sintonia entre os conteúdos e os anúncios publicitários, ao ponto de resultar difícil saber onde acabam uns e começam os outros.
As vantagens do estilo de vida norte-americano, o American Way of Life, se traduziam, para as mulheres, sempre em facilidades para o trabalho doméstico. Ao mesmo tempo, estimulava-se o desejo por tudo aquilo que não fora possível fabricar durante a guerra, devido à escassez e concentração de materiais e de mão-de-obra no esforço “pela liberdade”. Com a paz, chegam os tempos de facilidades e prazeres, de mulheres com mais tempo. Mas, tempo para quê? Este é um dos paradoxos da sociedade norte-americana do pós-guerra, que Betty Friedan (2009) analisa no início dos anos 60. A partir de entrevistas com centenas de mulheres, médicos, psicólogos, publicitários e fabricantes de eletrodomésticos, a autora constatou que aquelas mulheres – a maioria das quais tinha cursado o nível superior, ou ocupado postos de trabalho durante a guerra -, ao mesmo tempo em que eram herdeiras e beneficiárias dos direitos conquistados durante as primeiras décadas do século XX, tinham voluntariamente sucumbido a uma certa “mística da feminilidade”, buscando a introspecção e o recolhimento. Abandonaram as suas carreiras acadêmicas ou profissionais para se refugiar, voluntariamente, em algo que ela define como “um confortável campo de concentração”. Ainda segundo Friedan, as mulheres norte-americanas passaram, de praticamente metade da força profissional da nação em 1930, a não mais que 35% em 1960, em que pese tenha triplicado o número de graduadas (FRIEDAN, 2009, 298). Deixavam os postos de trabalho ocupados durante a guerra para os homens que voltavam das frentes de batalha.
Mas não foram somente as mulheres que se fecharam dentro de casa. Quando os soldados norte-americanos regressaram da guerra européia, registrou-se uma precipitada avalanche de casamentos. A depressão de 1929 foi seguida por uma guerra mundial que terminou com a explosão de uma bomba atômica. As potências tinham mostrado todo o poderio de que eram capazes. A descoberta dos campos de concentração nazistas pelos soldados aliados, a divulgação daquelas imagens, a constatação do horror do mundo, tinham provocado uma aguda incerteza. “Todos nos sentíamos vulneráveis, nostálgicos, solitários e assustados. Contra a fria imensidade do mundo cambiante, tanto homens como mulheres buscaram a reconfortante realidade do lar e das crianças” (FRIEDAN, 2009, 235).
Os publicitários, os fabricantes de eletrodomésticos e os profissionais de uma incipiente profissão denominada marketing registraram esse momento e as possibilidades que oferecia. Em pleno auge do sistema de produção fordista, o medo em relação ao mundo exterior tinha ganhado novas formas, reforçado pelo discurso macartista sobre a ameaça comunista. Por sua vez, o “mundo livre” representava a liberdade de consumir.
A domesticidade
A mulher estadunidense fez a eleição errada. Correu de volta para o lar, para viver unicamente em função do sexo, entregando a sua individualidade em troca de segurança. O seu marido entrou no lar atrás dela, e a porta se fechou, deixando o mundo exterior do lado de fora (FRIEDAN, 2009, p. 259).
Mas, o que aconteceu com as mulheres européias? A historiadora italiana Marina d’Amelia indagou a consolidação do estereotipo da “Grande Mãe Mediterrânea” no pós-guerra italiano: “Um fantasma poderoso e ao mesmo tempo perigoso que se vem alimentando, no curso da história unitária, da representação ideal, também de caráter propagandístico-político, que com o tempo se estenderia a toda uma geração” (D’AMELIA, 2005). A domesticidade é a marca de uma época, um fenômeno de contágio que, embora adotando características diversas nas diferentes regiões do mundo aliado, foi motivado por causas comuns. Tanto na América como na Europa, as feridas da guerra demoraram em cicatrizar. “Durante quinze anos e mais, tem-se desenvolvido uma campanha de propaganda, tão unânime nesta nação democrática como na mais eficiente das ditaduras, para reconhecer o prestígio das mulheres como amas de casa” (FRIEDAN, 2009, p. 218).
O cinema, mais principalmente as séries de televisão norte-americanas, exportavam com freqüência para o “mundo livre” os mesmos temas: a guerra, a ameaça nuclear, o divórcio, o comunismo. Esta última se plasmava brilhantemente na metáfora da ameaça alienígena[10]. Entre as décadas de 50 e 60 são freqüentes as grandes e bem-sucedidas comedias que giram em torno de protagonistas femininos, como “Eu amo a Lucy” (I Love Lucy,1951-1957), ou “Feiticeira” (Bewitched, 1964-1972). As cenas transcorriam invariavelmente dentro do espaço doméstico. Os espectadores sabiam onde ficava a cozinha, a sala, qual era a porta do quarto, para onde conduzia a escada. A sociabilidade das personagens se reduzia à vizinhança. Estas séries da televisão norte-americanas, amplamente difundidas na América continental e na Europa aliada, não impunham padrões de comportamento, apenas dialogavam com eles. De modo algum, pode-se afirmar que os roteiros obedeciam algum tipo de diretriz oficial. Apenas sintonizavam com o imaginário doméstico da época. A criadora e protagonista do personagem “Lucy”, a atriz Lucille Ball, foi, inclusive, investigada em 1953 pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, já que em 1936 tinha votado no Partido Comunista[11]. Mas a heroína do American Way viria a ser Dorys Day, e o herói, seu parceiro nas películas, Rock Hudson, o modelo masculino desejado[12].
Mas esse “novo” feminino, naturalizado a partir da reinvenção da domesticidade, se plasma também em charges que consolidam estereótipos[13]. Essa “nova” mulher ganha com o American Way outros atributos, sempre vinculados à maternidade, à casa, ao cuidado dos “seus” que se multiplicará na forma de outros sujeitos, recuperados da literatura e da mitologia popular, como a mãe, a sogra, a esposa. Reinventados, alimentados com novos conteúdos que agora se vinculam ao consumo, serão ao mesmo tempo consolidados na caricaturização, através de charges, refrães e anedotas. Pelo menos uma página em cada número carregará essas imagens textuais: “nada emagrece mais rapidamente um homem do que uma mulher que está guardando a linha”; ou “Uma mulher prudente coloca uma colherinha de açúcar em toda palavra que dirige a um homem, e aceita com um grão de sal o que ele diz a ela”[14]
A domesticidade tem um registro diferente na Espanha franquista, onde também se assistia a estas séries de televisão. Os espanhóis estavam vivendo o seu próprio pós-guerra bem antes do que os norte-americanos[15]. Depois do fim da Guerra Civil, que arrasou o país entre 1936 e 1939, o franquismo vitorioso cuidou especialmente das mulheres: daquelas que tinham algum tipo de vínculo com os republicanos militantes - esposas, mães, irmãs, namoradas, amigas de republicanos - que sobreviveram nas frentes de batalha. Todas foram igualmente castigadas pelo novo governo. Muitas tinham combatido na resistência antifascista, empunhando as armas lado a lado com os homens. Mas conforme a guerra avançava, os seus próprios companheiros lhes impunham tarefas “femininas”, como cozinhar ou lavar para os soldados. Continuavam nas trincheiras, mas não mais lhes permitiam pegar nas armas.
Sob a insígnia do “nacional-catolicismo”, o regime franquista estabeleceu novas normas de conduta dentro e fora das prisões. Foi normatizada a imposição de mudança de identidade. As que portavam algum nome “pagão” deviam agora se chamar “Maria”. A Igreja retomava com todo vigor o papel que tinha desempenhado antes da República. Na aldeia, no bairro, os padres se encarregariam de vigiar cada alma Segundo a historiadora catalã Carme Molinero (1997), a política “anti-feminina” desenvolvida pelo regime franquista não se diferenciou, nos seus traços básicos, da que desenvolveram outros regimes fascistas, já que todos eles se nutriram das correntes reacionárias de fins do século XIX e inícios do XX. O franquismo foi influenciado por certas práticas dos regimes fascistas, como a exaltação do papel da mulher-mãe-esposa, que alimentava o imaginário italiano no regime de Mussolini.
Se as norte-americanas buscaram no lar um refúgio contra os males e incertezas de um mundo em mudança, negociando a volta ao lar em troca de segurança; as espanholas o fizeram porque não tinham outro remédio. Muitas delas tinham lutado ao lado dos homens nos frentes da resistência republicana; muitas outras estavam ensinando ou aprendendo nas escolas; outras trabalhavam no campo e cuidavam das tarefas rurais enquanto a Guerra Civil recrudescia. Com a vitória do franquismo, porém, a todas as espanholas foi imposto um sistema fechado de normas morais. Norte-americanas e espanholas vivenciavam, pois, domesticidades de signos diferentes. É interessante recordar que, enquanto as feministas norte-americanas obtinham a liberdade de abortar antes dos três meses de gravidez, a Seção Feminina do movimento franquista condenava a mesma prática na Espanha por ser “imoral e atentatória contra a vida humana” (DIAZ, 2009, p. 325).
Para uma e outra sociedade, o retorno ao lar e a valorização do âmbito doméstico implicaria a naturalização do sujeito “mulher”. Uma avalanche de artigos e discursos médicos de pós-guerra condenava as mulheres estadunidenses por ter perdido a sua feminilidade buscando uma carreira, e as instavam para que voltassem correndo para os seus lares e dedicassem suas vidas aos seus filhos. Em novembro de 1956, a edição espanhola de Seleções publicava uma resenha do livro da esposa de um conhecido aviador norte-americano. Anunciado como um grande exemplo de “reflexões femininas sobre a vida moderna”, a autora alertava sobre os perigos da “multiplicidade contra a que nos previnem os sábios, e que destrói a alma”. Um problema “essencialmente feminino”:
As mulheres sempre estiveram na vanguarda, quando se tratou de buscar forças dentro do manancial interior (...) a própria limitação da sua vida a induz a olhar para dentro. Mas, em nosso recente esforço por nos emancipar e provar que éramos iguais aos homens, nos vimos arrastadas a competir com eles nas suas atividades exteriores, com danos a nossas próprias engrenagens íntimas. Por que decidimos trocar a nossa eterna fortaleza interior, das mulheres, pela fortaleza externa e temporal dos homens?[16]
As jovens mulheres, mesmo as recém-formadas no ensino superior, “estavam perfeitamente dispostas a preencher os seus dias com a trivialidade das tarefas domésticas” (FRIEDAM, 2009, p. 247). Mudavam-se para as novas urbanizações, bairros residenciais distantes dos desafios e complexidades das grandes cidades, para escolher o retraimento, a introspecção. Um êxodo provocado pelo medo em relação aos perigos do mundo e à experiência da guerra. O American Way significava o retorno ao lar e, com ele, a uma era de otimismo caracterizada pelo crescimento econômico e demográfico. As indústrias estadunidenses, inclusive as mais antigas, incrementaram a sua produção – e, obviamente os seus lucros - após a Segunda Guerra Mundial. Segundo Carmen de la Guardia (2009), as indústrias que mais cresceram foram as relacionadas com o pequeno consumo: a indústria química, a de plásticos, a de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos - como rádios, toca-discos e televisores. A estratégia publicitária tinha como alvo, “naturalmente”, o público feminino (figuras 1; 2 e 3). Os objetos domésticos aparecem invariavelmente associados ás mulheres: “Em qualquer conversação feminina, a frase mais escutada é: ‘a máquina de lavar que eu mais gosto é a Pingüino” (figura 4). Em muitos casos, o produto é anunciado mediante atributos “masculinos” que o transformam em objeto de desejo para mulheres (figura 1-A).
Nos Estados Unidos, o crescimento da produção foi acompanhado pelo incremento da população (GUARDIA, 2009, p. 343). O pacto fordista entre as forças produtivas e o Estado incrementou a produção, estabilizou e regulamentou o emprego e estimulou o consumo. Com o fim da guerra, o crescimento do país traduzia-se numa “ideologia do otimismo”, rapidamente difundida em todos os países industrializados. Vivia-se e reproduzia-se um otimismo inquestionável no avanço industrial e no progresso contínuo baseado na confiança na máquina como instrumento de criação e de bem-estar.
Consumo e glamour
Neste período de grande crescimento econômico, intensificaram-se a produção e o consumo de pequenas jóias, e também de relógios. Ambos eram símbolos de status, algo muito importante em tempos em que a produção se tinha massificado. Ao mesmo tempo em que se pregavam a moda e a estandardização do consumo, estimulavam-se a competição e a necessidade de se diferenciar dos demais. Num informe citado por Betty Friedan, um famoso executivo de uma empresa de marketing aconselhava ao seu cliente sobre a melhor maneira
de vender jóias para as mulheres: “convença-a de que somente poderá se sentir plenamente segura no seu novo papel se possuir coisas de prata, que simbolizam seu êxito como mulher moderna”. A publicidade desses pequenos objetos ocupava várias páginas da revista Seleções. (figuras 6 e 7). Por sua vez, os relógios, que desde o século XVIII constituíam uma peça fundamental na relação tempo-trabalho-disciplina (THOMPSON, 2000), ganhavam agora um atributo adicional, o status do executivo, do homem de agenda cheia (figuras 8 e 9). Era também o presente obrigatório nos acontecimentos que marcavam as etapas da vida, as quais, no âmbito católico, eram definidas pelos sacramentos (figura 10).
A “mulher” do pós-guerra teria à sua disposição um arsenal de produtos para garantir beleza duradoura e sedução irresistível. Mas também os homens seriam alvo dos fabricantes de cosméticos e das campanhas publicitárias. Aquelas publicidades que durante a guerra representavam a virilidade dos soldados sujos e mal-barbeados, deixavam lugar agora para novas imagens, que insistiam nas vantagens de uma boa aparência. O “homem” devia andar bem limpo, perfumado, “moderno”, bem-cuidado (figuras 11 e 12). Nestas mutações de temas e de suportes do imaginário, inscrevem-se transformações profundas nos modos de interlocução entre o anunciante e o leitor. A imagem permite “perceber pontos frios na mudança social e detectar as linhas mais significativas dos sonhos coletivos” (ROJAS, 2006, p. 23).
Trabalho e médios de produção
Em consonância com a cruzada anticomunista e a aposta no fordismo, a edição espanhola de Seleções publicava diversos artigos sobre o trabalho e as vantagens de aumentar a produção. Conceitos contrapostos como “preguiça” e “progresso” passaram a compor parte de um vocabulário recorrente, orientando uma visão positiva das relações trabalhistas dentro
do capitalismo, que tornava invisível qualquer tipo de conflito. Novamente, a ciência e a tecnologia, territórios que os norte-americanos dominavam com vantagem, estariam a serviço da cruzada. Chegou-se ao ponto de realizar experimentos com ratos para ilustrar – e provar - a constituição das “classes”, naturalizando deste modo o conceito. Trabalho, classe e êxito se articulavam na propaganda do otimismo. Da mesma forma, as biografias dos bem-sucedidos fortaleciam o ideal norte-americano[17]
A vida nos bairros residenciais, afastados dos desafios dos grandes centros urbanos, tornava a vida das mulheres norte-americanas menos interessante (GUARDIA, 2009). Um dos redatores de Seleções não desperdiçou a oportunidade de caricaturizar o drama: “Você sabia que as donas de casa, com todo o tempo que lhes sobra, falam menos do próximo que as secretárias, pois têm menos sobre o que fofocar?” (grifo meu) O artigo, como quase todo o conteúdo da revista, assume, na seqüência, um pretensioso caráter científico, explicando as causas neurológicas e químicas do problema em questão. Mas não demorará mais do que três parágrafos para articular a denúncia com o seu clássico discurso macartista:
[...] a senhora Pérez comentou com uma vizinha - que era membro de uma associação contra atividades subversivas - que a senhora López tinha proposto celebrar um foro sobre os alcances da bomba de hidrogênio numas aulas para adultos que ela patrocinava, e chegaram juntas à conclusão de que aquilo não poderia ser outra coisa senão um complot para facilitar a propaganda comunista[18].
A dialética amigo-inimigo, que tão bons resultados tinha obtido durante o conflito mundial, operava nos anos de pós-guerra com sentidos renovados. O “nazista” era substituído agora pelo “comunista”. A demonização do inimigo, bárbaro, frio, capaz de crueldade extrema, ocuparia mais da metade dos conteúdos da revista entre 1955 e 1965, em artigos sobre a vida na Alemanha oriental, as limitações do consumo, a repressão de dissidentes, a situação das mulheres, dos trabalhadores, das crianças, dos artistas, etc. nos países da esfera soviética. Como afirma o filósofo argentino Miguel Rojas Mix (2006, p.100-101), denunciar o comunismo significa exaltar o “mundo livre”, “lutar contra as forças do mal”.
Os novos materiais
Um dos grandes triunfos da indústria da guerra foi a invenção de novos materiais, como o nylon, o látex sintético e a grande estrela, o plástico, com todos os seus derivados. Entre estes, a fórmica, de grandes aplicações na indústria de móveis, reinará nas cozinhas de
toda a América e da Europa Aliada e, contrariamente ao que hoje representa – o kitsch, o vulgar, o ultrapassado – seria símbolo de status em um mundo que valorizava o sintético (figuras 13 e 14). Segundo afirma Nara Widholzer (2005, p.18), era precisamente durante a Segunda Guerra que se delineavam os contornos da propaganda contemporânea. O glamour se completava com a atribuição de nomes em inglês para os materiais derivados - como “nylon-streech” (figura 15) e até a tecnologia que permitiu desenvolver a temível bomba atômica[19]. Os possíveis usos destes novos materiais já vinham sendo anunciados nas publicidades de Seleções desde os tempos da Segunda guerra, quando a certeza da vitória permitia garantir a promessa do American Way of Life para quem simpatizasse com a causa. Para os países amigos, a indústria norte-americana reservava gratas supressas (figura 16).
Outra grande descoberta da indústria da guerra foi a possibilidade de desidratar alimentos já preparados, possibilitando o seu transporte e conservação para consumo dos soldados. Cafés, sopas, purês, hortaliças, tudo podia ser conservado e compactado com a nova técnica. Os produtos elaborados a partir dessa invenção encontraram o seu lugar nos lares do pós-guerra (figuras 17 e 18). Todas as mulheres que agora eram donas de casa em jornada integral, ganhariam tempo para o preparo dos alimentos. Os eletrodomésticos também poupariam tempo nas tarefas, mas, tempo para quê? Em parte, para o cuidado dos filhos, tal como recomendavam os manuais de pedagogia (grandes protagonistas da literatura doméstica, junto com os manuais de auto-ajuda e de felicidade conjugal). Mas também serviriam para recriar o mundo doméstico. As batedeiras elétricas anunciavam infinitas possibilidades, novas receitas para surpreender os amigos e a família. As grandes estrelas deste novo universo de afazeres eram as máquinas de costura: “Se sentirá feliz o dia em que comprar para seu lar uma nova máquina de costura Alfa! São tão belas e econômicas! Com qualquer pedaço de pano, você confeccionará um lindo vestidinho para o seu bebê, ou um enfeite para o seu lar” (figura19).
Economizar, fazer tudo em casa, são os novos valores reconhecidos pelo American Way of Life. A boa dona-de-casa deve, ao mesmo tempo, ser moderna e econômica. É seu dever administrar com talento o dinheiro do marido. A personagem protagonizada por Lucille Ball, no seriado dos anos 50, fará todos os esforços possíveis por levar a cabo essa missão[20].
Resulta interessante lembrar que, apesar de ser a própria atriz autora dos roteiros, a trama acaba sempre por ridicularizar a infeliz “Lucy”, uma mulher infantil e desastrada que esconde sua incompetência por medo do marido, e quase sempre acaba levando umas palmadas por seus erros, como se o castigo equivalesse a um natural gesto de amor do simpático e amante esposo[21]. Por aqueles anos, o conceito de “Economia Doméstica” foi introduzido em alguns países de América Latina, como a Argentina, onde as donas-de-casa passaram a ser chamadas de “ecônomas”.
Aos publicitários, afirma Nara Widholzer (2005, p. 23), parece natural associar invariavelmente à mulher os utensílios domésticos, de modo que os consumidores “não vêem necessidade de questionar a convencional distribuição de atribuições para homens e mulheres, uma vez que se apóia no senso comum” (figura 20). No “mundo livre” de pós-guerra, o tempo ocioso é preenchido com tarefas intermináveis de bricolagem e jardim, preparando conservas, fazendo o próprio pão. Ao mesmo tempo, recomenda-se comprar tudo pronto, conservado, imperecível. As mulheres passam horas realizando tarefas e labores que já não são realmente necessários: “utilizando alimentos congelados, tenho mais tempo para realizar outras tarefas importantes como mãe e dona de casa”. Os anúncios publicitários utilizavam o argumento da “criatividade” para estimular a idéia de que esses novos objetos permitiam desenvolver as capacidades potenciais da mulher, vista naturalmente como dona-de-casa, o lugar social que lhe garantia a auto-estima. Segundo Miguel Rojas (2006, p. 165), “a publicidade fala em futuro indicativo, mas a concretização desse futuro adia-se indefinidamente, exclui o presente, de maneira tal que elimina qualquer mudança”.
Se forem manipuladas adequadamente (e se esta palavra não assusta você, ele disse) às donas de casa estadunidenses pode-se lhes dar um sentido de identidade de propósito, de criatividade, de auto-realização. Inclusive, da alegria sexual de que carecem (FRIEDAN, 2009, p. 263).
Contra o que afirma o publicitário entrevistado por Friedan, os historiadores da cultura defendem que a audiência, o leitor, o público ao qual se oferece um texto, tem capacidade de se apropriar dele, de desconstruí-lo e tomar dele o que melhor convém aos seus interesses. Assim, e segundo Michel de Certeau (1999), o exercício das resistências estabelece um limite ao exercício do poder. Qualquer pretensão hegemônica da mensagem será sempre ilusória, incompleta. O signo do cotidiano é a tensão, e não a passividade. São os “modos de fazer”, entendidos como ações cotidianas - tais como maneiras de circular, de cozinhar, de ler, de caminhar, etc. - que podem provocar resistência. Os consumidores, insiste, oscilam entre lealdade e fidelidade, enfrentam e negociam como agentes, não como meras “vítimas” de uma suposta hegemonia cultural (CERTEAU, 1999). É importante lembrar que qualquer campanha publicitária necessita conhecer o target, o público–alvo; é necessário saber quais são suas necessidades, seus gostos e anseios. Não por acaso a sofisticação da publicidade coincidiria com a emergência das pesquisas de mercado. Para alcançar os seus propósitos, as promessas
da propaganda devem corresponder às fantasias do leitor; o texto deve permitir uma leitura plural. Segundo Roger Chartier (1999, p. 48), o significado dos textos depende das capacidades, dos códigos e convenções próprios das diferentes comunidades que constituem os seus públicos.
Algumas considerações
Nos anos 60 do século XX, Betty Friedan denunciou o “monstruoso desperdício” que significava ocupar todo o tempo da vida de uma mulher nas tarefas domésticas e deu impulso ao que conhecemos como a segunda onda feminista. As mulheres que se dedicavam integralmente aos cuidados da casa representaram o arquétipo do American Way of Life, o modelo a seguir. A contribuição de Betty Friedan não é tão simples nem tão óbvia, não tanto como pode parecer hoje. Ao contrário, é a análise de um intrincado complexo de processos sociais, em que se imbricam cultura, política, economia, publicidade, mídia e gênero. Em 1961, Friedan escrevia: “No fundo, os Estados Unidos dependem em grande medida da dependência passiva das mulheres”. Por ser contemporâneo aos problemas aqui estudados, o livro da norte-americana Betty Friedan funciona, ao mesmo tempo, como referência histórica e como fonte.
O American Way of Life implicou o retorno de homens e mulheres norte-americanos para dentro dos seus lares, da vida doméstica, do individualismo. Para grande parte do público espanhol, porém, a introdução de valores e hábitos tão diferentes nas suas vidas, veiculados pelas revistas, pelo cinema e a televisão, pode ter representado um escape, uma maneira de se abrir para um mundo que se modernizava tão rapidamente, e tão longe da Espanha do franquismo. Uma visão da modernidade (expressão, por sua vez, muito freqüente nos textos de Seleções), uma janela para um mundo que continuava girando, a despeito do regime conservador que se lhes impunha. Com menos força que na Europa Aliada, a propaganda norte-americana chegou à Espanha apenas empenhada em transmitir as inovações científicas e o imenso desenvolvimento do país, mas sempre insistindo nas vantagens de um modo de vida muito diferente do que estavam acostumados os espanhóis (LEÓN AGUINAGA, 2009, p. 133).
É importante considerar a convivência de fenômenos contrapostos, contraditórios e muitas vezes paradoxais, a fim de evitar uma visão homogeneizante e unificada da cultura. Junto ao American Way of Life, co-existiram nos Estados Unidos vários movimentos de
resistência ao sistema, como a geração de escritores Beat e, mais tarde, a contracultura, o Black Power, a segunda onda do feminismo, a revolução sexual, as revoltas dos índios americanos, dos estudantes, dos latinos e a organização dos fazendeiros. Sabemos que houve sólidos movimentos de ação clandestina na Espanha dos anos 60, preservando o gigantesco abismo entre a democracia norte-americana e o regime franquista.
As imagens que aqui se apresentam não são meras ilustrações, mas fontes de pesquisa. As contribuições teóricas da História Cultural, da História da Arte, da Sociolingüística, da Antropologia e da Publicidade permitem um exame rico e complexo dos usos, costumes, desejos, anseios, gostos, valores e sentimentos que integravam os imaginários com os que tais figuras dialogavam.
As novas tecnologias possibilitam pesquisar em fontes antes inacessíveis. A denominada “crise das ciências sociais” propiciou, nos anos 80, uma ruptura que resultou na virada cultural e na virada lingüística. A revolução digital oportuniza agora a transgressão dos clássicos horizontes das histórias nacionais - e até das histórias comparadas, que respondem à mesma lógica - para indagar sobre os fluxos transnacionais, a circulação de pessoas e bens culturais, os veículos de comunicação, de mídia, de informação, etc. Contamos hoje com meios inesgotáveis para a pesquisa, tais como as páginas web, os recursos multimídia, os arquivos digitais, as bibliotecas em rede, e muito, muito mais.
É possível trabalhar, em perspectiva histórica, com eixos discursivos que atravessaram continentes, carregando mensagens e valores. A revista Seleções do Reader’s Digest é um consistente exemplo dessa possibilidade. Mas problemas tão complexos exigem o cruzamento com outras fontes, como o cinema e a televisão, examinados também em perspectiva transnacional. É importante ainda insistir em que tal perspectiva não implica abandonar as histórias locais, senão destacá-las e recolocá-las em contextos globais. Sob o prisma de uma História do Tempo Presente, cruzam-se fontes de períodos próximos com outros que os antecedem, indo e voltando no tempo para refletir acerca das possíveis conexões entre períodos e agentes.
Joan Scott (1986, p. 1.067), naquele importante texto dos anos 80, lançava o desafio de conceber os processos de tal modo interligados “que não poderiam estar separados”. A Guerra Fria, o fordismo, o consumismo, o American Way of Life, a domesticidade, a divisão sexista dos papéis sociais, o macartismo, o medo, a monotonia, o Plano Marshall, o êxito da televisão e a sofisticação da publicidade foram os mecanismos que moveram o mundo ocidental do pós-guerra. Da mesma forma, devemos pensar como se articulavam, na Espanha franquista, a Igreja, a repressão, a autarquia, a recuperação econômica, o consumo, o discurso moralista, a divisão sexista da sociedade, a domesticidade, a vigilância das mulheres, o medo, as relações com os Estados Unidos e a emergência da publicidade, no contexto do pós-guerra-civil. Todos estes processos estão de tal modo amalgamados “que não poderiam estar separados”.
A revista Seleções do Reader’s Digest existe hoje na forma de franquia autônoma, totalmente desvinculada de qualquer órgão de governo ou instituição. Não registra, obviamente, o sucesso dos tempos de ouro do American Way of Life, nem faz parte do acervo de nenhuma biblioteca nacional. Por este motivo, quero agradecer a Marlene de Fáveri (Florianópolis), a Leonardo Schiano (Buenos Aires) e a Nicolás Marrupe (Madrid), por me facilitarem os exemplares históricos do Brasil, da Argentina e da Espanha, respectivamente.
Referências
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Notas