Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar aspectos metodológicos enfrentados pelo historiador na utilização da documentação produzida pela ditadura militar brasileira relativa aos agrupamentos de esquerda, que pretendiam promover a luta revolucionária. Por um lado, destaca-se a estratégia do regime repressivo na produção de uma “verdade” que legitimasse sua ação; por outro lado, procura-se esmiuçar as estratégias de resistência dos militantes políticos atingidos pelo aparato repressivo. São utilizados documentos referentes à organização política Ação Popular Marxista-Leninista.
Palavras-chave:Ação Popular Marxista-LeninistaAção Popular Marxista-Leninista, Ditadura militar brasileira Ditadura militar brasileira, Maoísmo no Brasil Maoísmo no Brasil, Esquerda brasileira Esquerda brasileira, Fontes históricas Fontes históricas.
Abstract: The methodological aspects which the historians face when using documents produced by the Brazilian military dictatorship on the leftist movements which intended to trigger the revolutionary struggle are analyzed. Whereas the strategy of the repressive regime in producing and establishing the ‘truth’ is enhanced, the resistance strategies of the political forces targeted by the repressive apparatus are investigated. The documents on the political organization called Marxist-Leninist Popular Movement have been employed.
Keywords: Marxist-Leninist Popular Movement, Brazilian military dictatorship, Maoism in Brazil, Brazilian Left, Historical sources.
Artigos
A máscara chinesa: Notas sobre uso das fontes produzidas pelo aparato repressivo da ditadura militar
Recepção: 01 Setembro 2009
Aprovação: 01 Fevereiro 2010
“Eu me orgulho muito de ter mentido (...). Porque mentir na tortura não é fácil. Na tortura, quem tem coragem e dignidade fala mentira" (Dilma Roussef)[1].
Este artigo analisa alguns aspectos metodológicos enfrentados pelo historiador na utilização da documentação que a ditadura militar brasileira produziu acerca dos agrupamentos de esquerda que pretendiam, especialmente na segunda metade da década de 1960 e nos primeiros anos da seguinte, promover a luta revolucionária pela conquista do poder.
A análise observa as implicações da documentação produzida pelos chamados órgãos de segurança, normalmente sob tortura física e psicológica. Por um lado, destaca-se a estratégia do regime repressivo na produção da “verdade” que legitimaria sua ação de ‘silenciamento’ da oposição legal ou revolucionária; por outro, procura-se esmiuçar as estratégias de resistência dos militantes políticos atingidos pelo aparato repressivo, utilizadas para preservarem sua integridade física e para protegerem as organizações a que pertenciam. São utilizados documentos e episódios referentes à experiência da organização conhecida como Ação Popular (AP).
Para balizar a condução da análise, cabe descrever, em linhas gerais, alguns dados da história da AP. Fundada em 1963, caracterizava-se, inicialmente, pela construção de um projeto socialista humanista, influenciado pelo cristianismo, pelo existencialismo e pelo marxismo. No contexto da ditadura militar, redefiniu progressivamente seus objetivos e converteu-se ao marxismo-leninismo. Em 1968, aderiu à linha chinesa, que preconizava a revolução por intermédio da guerra popular prolongada. Esta definição acarretou uma cisão e a expulsão de outra ala, próxima da influência da revolução cubana. Em 1971, sinal de sua transformação ideológica, passou a se denominar Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Na definição da estratégia revolucionária e da construção do partido de vanguarda, houve novas fases de luta interna. Em 1973, número expressivo de militantes se incorporou ao Partido Comunista do Brasil, saudado como o partido de vanguarda do proletariado brasileiro. Outra ala buscou reorganizar a Ação Popular e atualizar sua pauta. No final da década, a APML esteve entre os agentes políticos que participaram do processo de fundação do PT.
O foco na práxis da Ação Popular, uma das mais representativas organizações de esquerda de sua geração[2], é consequência da familiaridade do autor com seu universo documental, desenvolvida em duas pesquisas de pós-graduação (DIAS, 2003 e 2004). Entretanto, respeitadas as especificidades, acredita-se que as inferências possam subsidiar investigações a respeito das demais forças políticas revolucionárias que atuavam nas mesmas condições de clandestinidade.
Para desvelar essa complexa trama, os materiais produzidos pelos órgãos repressivos são cotejados com documentos elaborados pela AP e com testemunhos de seus militantes, coletados em livros de memórias, narrativas jornalísticas, contatos com ex-dirigentes e em uma entrevista. A presente reflexão foi adensada com a disponibilização de novos fundos documentais e com a ampliação das pesquisas e da bibliografia sobre aquele período.
A ditadura militar, vigente no Brasil de 1964 até meados da década de 1980, não obstante violar sistematicamente a legalidade por meio de atos institucionais e de medidas arbitrárias, procurou erigir um aparato legal - com métodos coercitivos, evidentemente-, a fim de conferir certa aura de legitimidade à sua política. No dizer de Irene Cardoso (1997, p. 475), “a violência foi disfarçada sob uma ‘capa jurídica’, uma ‘máscara’, um simulacro da lei. O arbítrio foi transfigurado em lei”.
Fazia parte da lógica das políticas da ditadura considerar qualquer atitude oposicionista - partidária, sindical, estudantil, jornalística, parlamentar - como crime contra a segurança nacional (ALVES, 1989). Os que colidissem com essa política eram presos e tinham, muitas vezes, de enfrentar a encenação de um processo jurídico formal. Os processos dirigidos contra os presos políticos, acusados de violação da Lei de Segurança Nacional, não raro seguiam certa formalidade ritual, como se o País estivesse sob a égide de um estado de direito.
Diversos aspectos denunciavam o caráter de simulacro desses julgamentos. Considere-se, inicialmente, a pena de morte sumária a que foram submetidos os chamados “desaparecidos políticos”, ativistas clandestinamente executados pelas forças repressivas[3]. Para entender os contornos dos julgamentos formais, não se pode abstrair da forma como todo o processo foi conduzido.
É, pois, ilustrativo apontar algumas características genéricas do andamento desses processos. No período conhecido como “anos de chumbo”, como sistematizou recente pesquisa, a primeira etapa consistia na captura e nos primeiros interrogatórios dos opositores do regime:
Nessa fase o prisioneiro era submetido a incessantes sessões de tortura, sendo, muitas vezes, obrigado a escrever suas declarações, que eram minuciosamente lidas pelos analistas de informações, que davam orientações aos torturadores para os próximos interrogatórios (MATTOS & SWENSSON JR., 2003, p. 46).
A este respeito, acrescentou Tamas:
Considerando a auto-incriminação uma das provas mais importantes para os processos, os agentes do aparato repressivo aplicavam muitos métodos de torturas, obrigando os presos a falar o que sabiam e a assinar depoimentos que, em grande parte, não correspondiam ao que eles haviam dito, forçando-os a assumir delações que não haviam feito. Esses depoimentos eram mostrados em interrogatórios a outros integrantes da mesma organização, para desestabilizar emocionalmente os interrogados, fazendo-os ter menos resistência às sessões de torturas a que, invariavelmente, eram submetidos (2004, p. 642).
Na segunda fase, instaurava-se o inquérito para apurar as atividades contra a Segurança Nacional: “Tratava-se de desencadear os procedimentos legais para que o preso fosse julgado pelos tribunais militares” (MATTOS & SWENSSON JR., 2003, p. 47). A autoridade realizava diligências, averiguações, perícias, oitivas, etc. No transcurso do inquérito:
[...] o indiciado era identificado e interrogado (normalmente sem a assistência de um advogado) acerca das acusações que lhe eram imputadas e suas declarações registradas num “auto de qualificação e interrogatório”. Nesse momento, geralmente, era coagido a confirmar o que havia dito, sob tortura, na fase anterior. Por conta disso, as declarações dos acusados nos inquéritos policiais eram quase sempre auto-incriminatórias (MATTOS & SWENSSON JR., 2003, p. 47).
Concluído o inquérito, o responsável por sua condução enviava o documento para a circunscrição militar onde os fatos teriam ocorrido. Chegando à auditoria, o inquérito era submetido à apreciação de um procurador, ao qual cabia oferecer a denúncia ao juiz-auditor[4]. Aceita a denúncia, iniciava-se a fase judicial do processo. Segundo o contundente depoimento de uma advogada que atuou como defensora de presos políticos, a violação às normas era característica de todas as fases do processo. Não havia respeito às normas jurídicas, aos prazos, às regras de detenção (CARVALHO, 1997).
Nas frestas dessa judicialização, sem transigir com o simulacro existente, o cientista político Anthony Pereira enfatiza que se forjou um espaço para resistência:
Quando os prisioneiros políticos eram formalmente acusados de crimes e eram registrados nas cortes militares, eles poderiam ser representados pelos poucos advogados dispostos a aceitar casos políticos naquela época. Esses advogados faziam o chamado "primeiro socorro jurídico", notificando grupos de direitos humanos sobre a detenção de seus clientes e fazendo com que as autoridades soubessem que o mundo tinha conhecimento sobre quem estava detido. Esse monitoramento foi eficiente em impedir o pior: a execução sumária dos detidos[5].
Todavia, salienta:
Mas apenas funcionava depois de o prisioneiro ter sido acusado formalmente de um crime. Antes disso, quando o preso era inicialmente detido pela Oban (Operação Bandeirante) ou, depois, pelo Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), sua vida estava em risco.
A atuação desses advogados, que na maioria dos casos não compartilhavam o horizonte ideológico de seus representados, traduzia uma forma de engajamento político contra aquele estado de coisas, esclareceu Modesto Silveira[6], um dos causídicos que abraçaram essas causas:
O objetivo desses profissionais do Direito não era apenas o de absolver ou minimizar sentenças ditadas por uma Justiça excepcional e uma legislação brutal. Era também o de evitar ou denunciar torturas e mortes de presos políticos. (...) Sua ação coerente, eficaz e denunciadora resultou na conscientização de amplos segmentos da sociedade (SOUZA & CHAVES, 1999, p. 135).
Uma consequência desse modus operandi é que a repressão produziu farta documentação a respeito de suas atividades. É verdade que nem tudo podia ser registrado, mas a documentação gestada oficialmente é representativa das práticas do estado de segurança nacional. Normalmente, com o fim dos chamados regimes de exceção, essa documentação corre o risco de ser destruída, tentativa de apagar os vestígios das arbitrariedades praticadas.
No caso em questão, no entanto, parte dos registros foi preservada e colocada à disposição para consulta de pesquisadores e interessados. Isto não ocorreu por vontade dos comandantes do regime militar e de seus aliados, mas por conta do trabalho vigilante e tenaz dos setores de oposição.
A lenta e gradual abertura política foi um período em que vicejaram essas práticas de resistência. Exemplo emblemático foi o projeto “Brasil: nunca mais” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1990), desenvolvido silenciosamente nas brechas do processo de abertura política. Quando o último general estava deixando a Presidência da República, o projeto “Brasil: nunca mais” divulgava os resultados da ampla investigação realizada sobre um período que, segundo as palavras de seus organizadores, não poderia ser esquecido[7].
Realizado em condições surpreendentes, tal projeto, como se sabe, organizou, interpretou, reproduziu e disponibilizou cópias dos processos do Superior Tribunal Militar e dos documentos anexos. Na avaliação de um de seus coordenadores, o reverendo Jaime Wright:
Os militares brasileiros eram tecnocratas. Faziam questão de fazer as coisas de acordo com as regras, mesmo que os resultados fossem cruéis e perversos. Por exemplo, eles tinham a obsessão de manter um registro completo de tudo o que faziam. Nunca pensaram que alguém fosse examinar esses registros - certamente não de modo sistemático (WESCHLER, 1990, p. 22).
A chegada da oposição aos governos estaduais também estimulou a abertura de algumas dessas “caixas pretas” produzidas no período da ditadura, os arquivos das Delegacias de Ordem Política e Social. A situação, de estado para estado, foi diferente. Houve casos de destruição de acervos, assim como de criação de inúmeros impedimentos para que a documentação fosse aberta à consulta pública. Em compensação, em alguns estados os arquivos foram disponibilizados aos pesquisadores[8]. O acesso a tais acervos é desdobramento das lutas políticas em torno da redemocratização do País.
Não se pode deixar de apontar, porém, a frustração dos pesquisadores e dos movimentos pelos direitos humanos com os limites da política adotada pelos últimos presidentes da República a respeito da ampliação do acesso aos arquivos daquele período, especialmente aos que se referem aos chamados “desaparecidos”[9]. Sabe-se que essa opacidade tem relação com a maneira como foi erigida a Lei da Anistia, de 1979, que “continha a ideia de apaziguamento, de harmonização de divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática” (MEZAROBA, 2009, p. 375).
Nesses trinta anos que separam a atual conjuntura do advento da Lei da Anistia, graças aos movimentos pelos direitos humanos e à mobilização dos familiares e ex-militantes, algumas medidas alargaram o espectro da legislação[10]. Entretanto, ressalvou Glenda Mezaroba (2009, p. 379), “o investimento principal foi feito em justiça administrativa, especialmente aquela forma restauradora, voltada à compensação financeira”. Na luta pela ressignificação da Lei da Anistia, um limite a ultrapassar é “o que tem impossibilitado que se avance na busca da verdade” (MEZAROBA, 2009, p. 380).
Daí a importância da transparência sobre os arquivos. Na apresentação do livro Desarquivando a ditadura, atualizada e vigorosa intervenção política e acadêmica no debate sobre a constituição da memória política e os diferentes aspectos relacionados com as violações de direitos humanos praticados durante a ditadura, os organizadores escrevem:
Todos os governos civis que sucederam a ditadura militar mantiveram o sigilo das principais informações sobre a repressão política. A lei em vigor que regulamenta o direito constitucional de acesso a documentos públicos (Lei 11.111/2005) estabelece a possibilidade de o Estado manter em sigilo, por tempo indeterminado, documentos classificados “no mais alto grau de sigilo”. Em consequência dessa herança autoritária, os arquivos da ditadura ainda não estão completamente disponíveis para consulta pública, o que implica limites para a construção da memória política, da justiça e da democracia (SANTOS, TELES & TELES, 2009, p. 14).
Em 31 de março de 2009, no quadragésimo quinto aniversário do golpe de Estado que iniciou o período da ditadura, a Ordem dos Advogados do Brasil posicionou-se de forma eloquente:
Os 45 anos do golpe militar de 1964, que se completam hoje, mantêm presente uma anomalia: a inacessibilidade aos arquivos da ditadura. Não se trata de reabrir feridas ou buscar revanches. Trata-se de resgatar a memória do país. (...) Ao ensejo desta data, a Ordem dos Advogados do Brasil reitera seu clamor, que é o da sociedade brasileira, para que sejam abertos os arquivos do período referente ao regime militar, para que deles possa emergir a verdade, em sua inteireza[11].
Entretanto, se há barreiras a transpor, não se pode menosprezar a potencialidade da utilização dos acervos disponíveis, como demonstram diversas pesquisas já realizadas. De acordo com Enrique Serra Padrós (1989, p. 5), “se é bem verdade que ainda falta muito por descobrir sobre as experiências repressivas recentes, as tendências gerais das mesmas, bem como seus aspectos essenciais, são conhecidos”. Ainda que com limitações de acesso, os documentos produzidos e preservados pelos órgãos repressivos converteram-se em fonte privilegiada de trabalhos acadêmicos críticos do período da ditadura militar e das políticas por ela desencadeadas.
A utilização desses processos produzidos pelos órgãos repressivos do período da ditadura militar tem exigido um cuidado metodológico específico, decorrente das condições de sua produção. Questões colocadas pelas investigações que utilizaram os processos penais são importantes para balizar o debate.
Boris Fausto (1984) chamou a atenção para o necessário rigor metodológico no trato de fontes criminais, pois esses documentos dizem respeito a dois acontecimentos: o primeiro é aquele que teria produzido a quebra da norma legal; o segundo foi elaborado a partir da intervenção do aparelho repressivo, com a finalidade de reconstituir o acontecimento original.
Considerada a presença de atores diversos, o réu e os representantes do aparato repressivo, "os autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver" (FAUSTO, 1984, p. 21). Portanto, em vez da informação bruta, encontram-se, ali, tanto as formas utilizadas pelo aparato policial para produzir a verdade, quanto as estratégias de resistência dos depoentes.
A conjuntura da ditadura militar apresenta dados singulares. Sob os códigos da ideologia da Segurança Nacional, que orientava o trabalho de vigilância, denúncia e punição, quaisquer atividades de oposição, até mesmo aquelas que estavam na órbita da reafirmação do estado de direito, poderiam ser consideradas subversivas. O superdimensionamento da transgressão estava implícito nas atividades dos órgãos de segurança (ALVES, 1989). Por seu turno, os militantes das organizações de esquerda desenvolviam várias formas de resistência diante da repressão.
Na trilha aberta pelas observações de Boris Fausto, pode-se dizer que os processos contra "crimes políticos", como os organizados no período da ditadura militar, são o ponto de encontro de diferentes estágios de luta. Há, de um lado, a luta política que procura ultrapassar os limites institucionais e é alvejada pela repressão, por seus inquéritos e processos. De outro, há a luta na arena jurídica, em que a constituição do fato é disputada pelas partes envolvidas. Como regra, as diferentes formas de resistência aos aparatos repressivos podem ser interpretadas como gestos políticos. No caso em questão, deve-se considerar que o caráter político estava inscrito em uma luta de horizonte revolucionário.
Os processos expressavam a face do regime. Aos órgãos de segurança interessava não apenas a incriminação de determinado réu, por meio da ritualização de um processo em que o resultado não raro era dado a priori, mas também rastrear todos os passos de seus camaradas e da organização a que pertenciam. Por isso mesmo, os depoimentos estão repletos de armadilhas. Se alguns militantes, suscetíveis às pressões e torturas, forneciam as informações esperadas, outros desenvolviam técnicas e ardis complexos.
Alguns militantes silenciavam diante das pressões e da tortura, pagando um preço muito alto por essa atitude: a integridade física ou a própria vida. Como a capacidade de suportar a tortura não podia ser presumida, desenvolveu-se uma prática, recorrente entre esses agentes revolucionários, de reter o máximo de tempo possível o que soubessem e somente abrir informações lentamente, revelando aos poucos o que, em razão de códigos desenvolvidos, julgavam ser de conhecimento dos inquisidores. Enquanto isso, seus camaradas de partido poderiam reorganizar os “aparelhos” e reorientar seus movimentos.
Não havia ingenuidade do outro lado, pois o aparelho de repressão preparou-se para seu “trabalho” e dispunha de métodos não-convencionais para procurar a ponta desses novelos. Conforme depoimento do general Adir Fiúza, colhido para pesquisa a respeito da constituição da comunidade de informações da ditadura militar, os interrogadores eram homens selecionados e bem treinados para sua função. Graças a treinamentos em que não se dispensava a consultoria de especialistas internacionais, eram conhecidas as técnicas mais eficientes (D’ARAUJO; SOARES & CASTRO, 1994).
Sabia-se, por exemplo, que o fator medo era intensificado quando o interrogatório era feito logo após a “queda” do militante. Além disso, como acrescenta o general Ivan de Souza Mendes, alguns códigos das organizações de esquerda eram conhecidos: “Eles tinham aquele esquema de que, se o contato não aparecesse em 24 horas, desmanchava-se tudo. Era parte de sua doutrina, e a gente conhecia, a gente sabia. Tínhamos que obter a informação o quanto antes” (D’ARAUJO; SOARES & CASTRO, 1994, p. 177). Sempre enfatizando a eficiência dos métodos utilizados, Fiúza faz uma ressalva: “Havia, porém, aqueles que eram seguros, muito senhores de si, e não falavam nada. Alguns até embromavam os interrogadores” (D’ARAUJO; SOARES & CASTRO, 1994, p. 63).
Na documentação produzida, a verdade pode estar naquilo que foi revelado, no que ficou implícito e no que foi propositalmente distorcido ou silenciado. De certo modo, os exageros e distorções perpetrados pelos órgãos de repressão e as “mentiras” ditas pelos réus são expressões da verdade da luta política daquele período.
Por conta da excepcionalidade institucional vigente no período, não é exagerado fazer uma analogia com a discussão que Ginzburg (1989) estabelece a respeito da relação do pesquisador com os processos da Inquisição. A distância histórica e a diferença de natureza dos processos não são irrelevantes, mas também é perfeitamente legítimo e útil estabelecer comparações. São processos que, sob os cânones de uma vontade unívoca, procuravam eliminar a diferença, utilizando mecanismos arbitrários para aferir ou produzir uma dada verdade que legitimasse a violência.
Nos dois casos, o "zelo" na busca pela verdade (ou a verdade que se queria produzir), forjada por métodos coercitivos, legou farta documentação a respeito daquelas experiências. Claro que, no caso da repressão promovida pela ditadura militar, outras fontes, incluídos os depoimentos de muitos ex-militantes, encontram-se acessíveis, mas as informações dispostas nos processos são fundamentais. Primeiro, para identificar a natureza do método de produção dos inquéritos e punições. Segundo, para recuperar informações e pistas que possam alimentar a investigação. As duas dimensões estão presentes nos processos e inquéritos investigados.
Como se trata de um terreno escorregadio, parece mais tranquilo, observa Ginzburg, debruçar-se sobre a questão da violência. O conteúdo dos depoimentos, porém, em sua avaliação, fornece pistas para o desenvolvimento das pesquisas. Documentos dessa natureza, acrescenta, devem ser lidos como resultado de uma relação desigual, em que há completo desequilíbrio entre as partes. A decifração da superfície do texto exige a percepção da interação sutil de ameaças e medos, de ataques e recuos.
Quando fala dos processos que investigou, Ginzburg sugere que o pesquisador é instado a espreitar por cima do ombro do inquisidor, a seguir seus passos, verificando como extraiu do réu as informações que buscava ou queria produzir. Em contraponto, pode-se dizer que, ao ler os processos e inquéritos promovidos durante a ditadura militar, o historiador também é convidado a espreitar sobre os ombros do inquirido e a verificar se o que ele disse não era uma verdade conveniente aos seus objetivos políticos.
Se essas delicadas situações ensejam analogias, o pesquisador do período da ditadura brasileira relaciona-se com a chamada história do tempo presente, produzida no calor da hora ou sob a irradiação de fatos e processos recentes. Em certo sentido, isso traz algumas vantagens, como a possibilidade de investir em fontes orais para cotejar, ampliar e interpretar informações, assim como analisar a produção da memória sobre os traumáticos acontecimentos. Em contrapartida, não se pode menosprezar a incidência de informações produzidas em circunstâncias tão excepcionais no presente em que se insere, sobretudo para aqueles que foram vitimados pelo aparato repressivo. Tal relação é sintetizada por Enrique Serra Padrós:
Pode trazer de volta imagens e sensações de dor, humilhação, constrangimento; talvez, a exposição da fragilidade, da claudicação. Pode revelar condutas ambíguas diante da provação, da ameaça de violência e da aplicação da violência concreta. Esse “material sensível” pode ser gerador de angústia, de temor da publicização de comportamentos provocados pela aplicação do terror na forma mais direta e brutal. No fundo, há o temor de que, descontextualizados, tais comportamentos possam ser incompreendidos e seja atingida a imagem que a vítima construiu ou teve construída como sobrevivente. Desde a perspectiva das vítimas, a exposição pública desse “material sensível” sobre aquele período das suas vidas pode gerar nova experiência traumática, e esta, por sua vez, atingir os mecanismos de defesa (inclusive frente ao seu entorno mais imediato), construídos para enfrentar a retomada da vida cotidiana após tal sofrimento. Portanto, há uma discussão ética que diz respeito à tênue fronteira entre o que é de foro privado e o que é de tratamento público (2009, p. 12).
A Ação Popular mantinha, para os seus militantes, um código de ética revolucionária a ser cumprido nas condições extremas de queda e prisão[12]. Em seu livro de memórias, Derlei Catarina de Lucca, que sofreu a experiência da tortura, faz uma descrição genérica dessas normas:
NORMAS DE COMPORTAMENTO EM INQUÉRITOS E PRISÕES:
1. Em caso de prisão de qualquer militante, o núcleo deve isolar tudo o que o militante preso saiba, como locais de reunião, depósito de material etc.
2. O militante deve fazer o maior alarde de sua prisão.
3. As relações mútuas preso-militante estão automaticamente suspensas. Só com autorização o militante pode visitar um companheiro preso.
4. Negar pertencer a qualquer organização ilegal.
5. Negar manter relações com qualquer militante e conhecer os menos visados.
6. Negar posição ideológica.
7. Negar qualquer participação em atividades consideradas subversivas.
8. Reconhecer as atividades legais.
9. Tomar cuidado com espiões, traidores, delatores, microfones. Não comentar com outros presos sobre as suas atividades.
10. É preferível ser pego numa mentira que fornecer dados para os inquisidores.
11. Cuidado com as ciladas: “fulano já confessou”. “Possuímos provas concretas”. “Se não falar vai ser torturado”.
12. Falar sob tortura não é desculpa. É delação. Falar não impede tortura. A experiência demonstra que quem fala é torturado para falar mais (2002, p. 72).
O historiador Franklin Oliveira Jr., ao comentar esse código, inserido no estatuto que a AP aprovou na fase de radicalização revolucionária, expande a explicação sobre um item muito representativo no debate. Comenta que era erigida “a ‘contra-informação’ (grifo do autor) como instrumento importantíssimo no sentido do despistamento da organização e dos seus militantes” (OLIVEIRA JR., 2000, p.320).
Seria exaustivo rastrear as nuanças que o código de conduta adquiriu na dinâmica da conjuntura daqueles anos. Saliente-se, entretanto, que a Ação Popular, sem alterar os fundamentos do compromisso ético exigido do militante ou do dirigente, procurou extrair da avaliação daqueles que haviam sido presos e submetidos a tortura aprendizado das situações concretas apresentadas pelo recrudescimento da repressão.
Em 1969, mediante o documento Defender o partido, a direção da AP consolidou as algumas diretrizes para avaliar o comportamento dos militantes na prisão. Para aplicação de sanções disciplinares ou reintegração, seria necessário:
1º.) Tratar os casos diferentes de forma diferente; 2º. Para isso, distinguir a natureza diferente dos erros; 3º. Levar em conta as circunstâncias e a atitude subjetiva dos camaradas; 4º. Distinguir expulsão de desligamento, de forma clara, definindo que neste último caso o camarada poderia voltar a ser militante.
Detalhamento dos procedimentos:
No primeiro caso estão os militantes que revelam, sob pesadas torturas, segredos do Partido ou da revolução; segredos que não sejam graves. Estes companheiros devem ser desligados do Partido, havendo possibilidade de, na medida que façam autocrítica, voltarem a ser militantes. No segundo caso estão os companheiros que revelaram sem tortura segredos do Partido ou da revolução; graves ou não. Estes militantes serão expulsos. No terceiro caso estão os militantes que revelaram segredos graves do Partido ou da revolução com ou sem tortura. Estes militantes deverão ser expulsos. Os militantes que revelarem segredos do Partido ou da revolução em troca de vantagens pessoais ou de qualquer outra ordem ou se colocarem a serviço do inimigo não só deverão ser expulsos como deverão ser estudadas pela CEP (Comissão Executiva Provisória) outras medidas. No segundo e no terceiro casos os militantes, se fizerem uma autocrítica em profundidade, poderão voltar ao campo da revolução, mas nunca voltar a militar no Partido. Antes que eles façam uma severa autocrítica deveremos considerá-los como renegados da classe operária (grifos do original)[13].
Em janeiro de 1972, o birô político avaliou o período e as normas precedentes e emitiu resolução atualizando a orientação interna. Por um lado, reafirmou:
Ao ser preso, o revolucionário não deve perder de vista que a reação, golpeando-o, tem por objetivo final a destruição das organizações revolucionárias (...). Não deve esquecer também que sua luta não se interrompe com a prisão, mas apenas assume uma forma nova e encarniçada, e que ele pode com sua resistência transformar a derrota inicial de sua prisão numa vitória para o povo. Por isso, deve portar-se com firmeza e dignidade, como autêntico lutador da causa do povo e da revolução acima de seus interesses pessoais. Não deve prestar nenhuma declaração política nem dar ao inimigo nenhuma informação que possa prejudicar a luta popular. Deve subordinar sua defesa pessoal à defesa da causa e, nos tribunais, deve subordinar a defesa jurídica à defesa política e, mais do que isso, transformar a defesa em ataque[14].
Por outro lado, procura corrigir o que define como sectarismo das políticas anteriores. A avaliação dos militantes, a reintegração ou aplicação de sanções deveriam ser orientadas pelos seguintes parâmetros:
1º. Caso: confirmar dados sem novas informações, ou dar informações secundárias, ou fazer declarações políticas que ocasionem prejuízos à Organização, sob tortura: para militantes, censura e reeducação; para dirigentes, destituição das funções e reeducação. 2º. Caso: confirmar dados sem novas informações, ou dar informações secundárias, ou fazer declarações políticas que ocasionem prejuízos à Organização, sem tortura: desligamento, com assistência para autocrítica e possível retorno. 3º. Caso: dar informações graves, ou fazer declarações políticas que ocasionem prejuízos importantes à Organização, seguindo-se autocrítica séria e atitude combativa: desligamento, com assistência para autocrítica e possível retorno. 4º. Caso: dar informações muito graves, ou fazer declarações políticas que ocasionem sérios prejuízos à Organização, ou dar informações graves e fazer declarações políticas menos sérias mas com atitude neutra, sem autocrítica: desligamento, corte da ligação com a Organização, comunicação restrita a amigos. 5º. Caso: colaborar com o inimigo, assumir atitude clara de traição: expulsão e denúncia ampla. Dependendo da gravidade, outras medidas[15].
As variações ocorridas nesse curto e intenso período não transigem com o princípio da disciplina revolucionária, considerada necessária para salvaguardar a organização e seu projeto. A prisão e a tortura não representavam um hiato nos compromissos. Estes eram submetidos a uma dura prova, em que estaria em primeiro plano o interesse do coletivo partidário e da classe que os revolucionários julgavam representar.
Entretanto, as modificações revelam esforço de interação com a experiência concreta das detenções, que se intensificaram no final da década de 1960 e início da seguinte[16]. Em 1972, a esquerda revolucionária enfrentava as sucessivas baixas impostas pela repressão. Nos termos colocados por seus autores, os documentos disciplinares procuram extrair aprendizado da experiência própria e coletiva, corrigindo erros, excessos e injustiças[17]. Por isso, a atualização das normas perseguia um duplo objetivo: “preservar a Organização e as forças anti-imperialistas e democráticas, o objetivo principal, e recuperar o maior número possível de militantes que tenham cometido erros na prisão e no tribunal”[18].
De qualquer forma, persistia o fato de que o militante detido convivia com a vigilância de rígidos critérios partidários de lealdade, aos quais aderira voluntariamente. Era no fogo dessas circunstâncias que forjava sua imagem e sua relação com o coletivo.
Interessante pesquisa da área de psicologia, desenvolvida por Maria Auxiliadora Arantes (1994), forneceu subsídios para a interpretação da estrutura psíquica dos agentes políticos que atuavam em condições de clandestinidade. Demonstrando escrúpulo profissional e político, adverte que não estava aplicando um modelo de explicação, mas utilizando recursos da psicanálise para entender a questão da clandestinidade.
Ressalta a autora que a clandestinidade era uma escolha contingenciada em condições excepcionais, nas quais o militante era impelido a usar disfarces, entre os quais o de assumir outro nome[19]. Utilizado para enganar a repressão, o disfarce de assumir uma “identidade fria” era limitado e tinha uma dimensão contraditória. Não era completamente seguro, especialmente porque o Estado dispunha de uma comunidade de informações e mecanismos arbitrários “para arrancar confissões”. Mesmo quando conhecia a identidade original, a ditadura valia-se dessa circunstância para reprimir e matar clandestinamente.
No entrelaçamento de situações de resistência e de luta, vivia-se uma situação de excesso de custos, que exigia, por conta do intenso desgaste provocado, investimento psíquico permanente. Para suportar tal carga, o militante devia proceder a uma relação em que produzia o “prazer necessário”. Na equação custo/benefício, ele se amparava no fato de estar engajado em organizações políticas, de representar interesses coletivos, de ser movido por projetos e ideais elevados (os interesses da nação, a emancipação dos trabalhadores, o socialismo) e na convicção de que a vitória era inelutável.
Se a ação revolucionária acarretava tamanhos custos, a situação de preso político os ampliava, na medida em que a tortura colocava em risco tanto o indivíduo aprisionado quanto o partido e seu projeto político. Se a confissão poderia ser vista como válvula de escape para permitir a preservação da integridade física, havia os danos psicológicos, pois o militante poderia ter sua relação com o coletivo abalada ou destruída.
Não são desconhecidos casos em que os réus se desestruturaram, mas as convicções revolucionárias e as lealdades organizativas e ideológicas também serviram de escudo e estímulo para a resistência e promoção de ardis.
Exemplos de alguns aspectos contidos no código de conduta interno podem ser vistos em uma cena do livro As moças de Minas, que relata a experiência de militância da AP[20].
A prisão de Sissi, confirmada na manhã de domingo por várias pessoas com as quais falara no dia anterior, obrigou Loreta a imediata flexão tática: já não se tratava mais de acionar medidas parciais de defesa da organização. Agora deveria comandar verdadeira operação de retirada, algo como um exército que recua em ordem para economizar baixas. Foi o que fez, a começar pelo cancelamento de todas as ações (...). Todo o material supérfluo deveria ser queimado e o indispensável transferido (...). Estavam suspensos todos os contatos horizontais, isto é, cada militante passava a relacionar-se apenas com sua direção superior imediata e deveria montar um álibi (MANFREDINI, 1989, p. 63).
Preventivamente, todo o modus operandi e o cotidiano eram orientados pelos códigos da clandestinidade. Outra cena do livro As moças de Minas é esclarecedora. Ciente da queda de um aparelho, uma personagem refletiu sobre o material que seria encontrado pela repressão:
Afora os textos clássicos do marxismo, os documentos da organização eram todos codificados. Revendo mentalmente o material, (...) não lembrava de um sequer que contivesse o nome Ação Popular. Os militantes eram identificados por letras, os locais de atuação por meio de números, muitas palavras grafadas por abreviaturas dificilmente decifráveis. Os militares apalpariam no escuro por algum tempo antes de encontrar pelo menos uma ponta do novelo capaz de desafiar o conjunto da organização até então incógnita (MANFREDINI, 1989, p. 81).
Na construção de ardis para despistar as investigações, um episódio muito representativo foi extraído da documentação relativa à militância da AP do Paraná. A história foi vivida por Nestor[21], fundador da organização local da AP. Estudante de medicina e militante da Juventude Universitária Católica, Nestor aderiu à organização em 1963, quando participava de um Congresso da UNE. Com o golpe de estado de 1964, a repressão que se abateu sobre os movimentos sociais e as organizações de esquerda contribuiu para que a AP paranaense sofresse uma fase de desarticulação.
Na conjuntura posterior a 1964, Nestor fez parte de um restrito núcleo que se manteve ligado à AP e participou de sua rearticulação no Paraná. Em 1966, compôs a primeira célula da organização clandestina em Curitiba, transição entre a fase anterior e o novo período que a AP viveria a partir de 1967, quando foi constituído o Comando Regional-2, do qual foi dirigente.
Na segunda metade de 1968, foi remanejado para desempenhar funções junto ao Comando Nacional, compondo a Comissão Política de Organização. Naquele período, quando Jair Ferreira de Sá, um dos principais dirigentes da AP, voltava da China através do Chile, Nestor foi ao seu encontro e trouxe, por um caminho diferente, os documentos políticos. O alto dirigente conseguiu chegar ileso ao seu destino[22], mas Nestor foi preso.
Em seu processo de definição pelo marxismo, a Ação Popular havia adotado o critério de conhecer diretamente as experiências revolucionárias de Cuba e da China, por intermédio de delegações constituídas com essa finalidade. A definição pela linha chinesa em 1968 foi liderada por Jair Ferreira de Sá, que chefiara uma delegação no período imediatamente anterior. Quando ocorreu o episódio citado por Nestor, Jair Ferreira de Sá voltava de outra viagem à China, considerada a principal referência revolucionária internacional. Nos documentos da AP, o maoísmo era citado como o marxismo-leninismo da atualidade[23].
Como Nestor tinha, por conta das atribuições que desempenhava, amplo conhecimento do funcionamento da AP nacional, resolveu interpretar o papel de que tinha passado longa temporada na China e não detinha informações atualizadas sobre as ramificações da organização no Brasil. Somente algum tempo depois, quando algumas pistas revelaram que ele não tinha saído do país, sua ficção foi descoberta.
A documentação a que se teve acesso na DOPS-PR e nos arquivos do projeto "Brasil: nunca mais" registra essa suposta viagem de Nestor à China. Os contornos mais amplos do episódio foram revelados por seu depoimento, coletado pelo autor deste artigo[24]. A entrevista orientou nova fase de levantamento documental. Vale a pena esquadrinhar sua versão, até porque foi construída sob o constrangimento de circunstâncias extremas.
No momento da entrevista, o autor deste artigo não estava suficientemente informado sobre os contornos do episódio. Orientada pelo contato preliminar com parte da documentação, a pergunta relacionava-se à suposta viagem à China. Foi então que Nestor fitou o entrevistador, esboçou um sorriso e disse: “eu nunca viajei para a China”. Como estava em seu apartamento, levantou-se, apanhou uma bebida, sentou-se e, mantendo o sorriso, prosseguiu: “Eu vou contar o que realmente aconteceu”. Narrou os fatos devagar, como se saboreasse a eficiência do ardil que tecera.
Quando estava preso e compôs aquela versão dos fatos, adotou um recurso para sobreviver à tortura sem comprometer seus vínculos políticos. Tal como a pergunta foi formulada, constatava que seu estratagema ecoava muito tempo depois. A estimulante revelação, que ampliou o espectro da arguição, reforçou a importância de a investigação aprofundar o diálogo com as diferentes fontes.
Nestor ressalta que conhecia toda a direção nacional, seu sistema de encontro, o mecanismo de chegada de pessoas de fora para entrar em contato com os principais dirigentes, com base em pontos e senhas. Acrescenta que estava informado sobre o mapeamento dos trabalhos políticos planejados para a preparação da guerra popular, a estratégia da AP para a luta armada. Por tudo isso, ao ser preso, ficou sob grande pressão. Ele se lembrava de um militante que trabalhara naquela atividade e, ao ser torturado, não resistiu e contou o que sabia.
Transportando a bagagem de Jair Ferreira de Sá, Nestor detinha, ao ser preso, uma gama enorme de papéis e documentos que o outro dirigente trouxera de seus contatos internacionais. Removido para o Brasil, transitou por várias unidades repressivas. Nas seguidas sessões de tortura a que foi submetido, tentou, segundo suas palavras, dar uma de “joão-sem-braço”, adotando vários ardis para não revelar informações que comprometessem a organização política.
Inicialmente, elaborou a versão “de que tinha ido tratar de uma bolsa para fazer saúde pública no Chile”, onde “tinha encontrado um cara que tinha pedido para trazer essa mala e eu tinha me disposto a trazer”. Pensava: “Se eles começarem a me bater muito, eu não sei se eu vou resistir. E se eu abrisse a boca, o risco era muito grande”. Foi então que surgiu a “máscara chinesa”[25].
Aí eu bolei esta história: se eu não aguentar, eu vou dizer que fui fazer um curso na China. (Que) fiquei seis meses na China. A hora em que começou a porrada, os caras começaram a me dar choque, me dar choque, me dar choque, me dar choque, falei: eu vou inventar a história, vou falar para os caras o que eu sei que eles sabem, e vou preservar o que só eu sei. Aí eu inventei a história da China.
Na hora, premido pelas circunstâncias, nem se lembrara de que tinha rastros documentais que poderiam comprometer sua situação. O primeiro resultava de um acidente de automóvel. Para requerer o seguro, teve de fazer uma ocorrência de trânsito. O segundo era sua inscrição para um concurso público. A organização tinha decidido que ele iria exercer sua profissão de médico e preparava sua saída da clandestinidade.
Nestor comenta a dificuldade para sustentar seu ardil:
O que eu recebi de questionários para contar como eu tinha ido para a China, quem eram os meus companheiros de cursos, se tinha mais gente do Brasil, de que outros países da América Latina. Eu falava que tinha gente da África, da América Latina, tinha que inventar nomes.
Para não entrar em contradição, adotou uma série de precauções. Conforme seu depoimento, ele misturava cinza com pasta de dente e escrevia no papel de cigarro os nomes dos contatos que dizia ter mantido em sua suposta viagem internacional e os fatos relevantes que pretendia sustentar.
Recorda que, por certo tempo, foi tratado como “peixe grande”: “os caras achavam que eu era uma boa presa. Depois eu fiquei sabendo que houve uma disputa grande para saber quem é que ia me interrogar”. A estória, no entanto, foi desvelada logo depois, quando foi removido para São Paulo:
Tô lá na cela e vejo um cara que tinha trabalhado comigo, de quem eu tinha sido dirigente. O cara tinha sido preso e tinha falado absolutamente tudo. Esse cara depois passou para o lado da repressão[26], passou a ser analista. Eu estava na cela e ele estava na mesinha escrevendo os relatórios dele. Eu falei para ele: ‘você não pode negar que eu viajei’. Ele respondeu: ‘Eu já falei que você não viajou. Como você podia ter viajado se você era o meu dirigente?’
Com certa satisfação retrospectiva, Nestor comenta: “Eu fiquei sabendo, quando ele contou que eu não podia ter viajado e que eu era dirigente dele, que os caras (...) davam pulos, porque tinha sido a maior enganação”. A consequência disso, salientada pelo depoente, é que foram abertos mais dois processos contra ele. Nos documentos acessados, constata-se que a procuradoria utilizou a versão de Nestor contra sua sorte, alegando que se tratava de impressionante confissão.
A acusação destaca que ele confessara ter trabalhado para a AP de meados de 1968 até o final de 1969, quando foi fazer um curso de formação e capacitação política na China, com duração de seis meses. No relatório que instruiu o Inquérito 12/71, lê-se: “Pouco tempo depois de retornar da China Comunista, onde concluíra um curso de capacitação política, é preso ao regressar de uma viagem ao Chile”[27]. Tem-se, assim, que Nestor fora preso em 1970, na cidade de Rivera, fronteira de Santana do Livramento, quando regressava da China Popular, via Chile, onde teria participado de uma reunião dos partidos marxistas-leninistas da América do Sul.
Aos olhos do aparato repressivo, os “fatos” configurariam forte elemento comprobatório de suas vinculações com atividades contra a segurança nacional. Atestariam, pois, a prática da subversão e suas ramificações internacionais. Note-se que, em sua versão, o réu não se retirou do contexto das ações revolucionárias.
Entretanto, a defesa procura demonstrar as contradições processuais para aliviar a condição de seu representado. Inicialmente, reproduz termos da denúncia: “Tanto o relatório do encarregado do inquérito como a denúncia referem que “Nestor” teria viajado à China, onde concluíra um curso de capacitação política”. Em seguida, desqualifica a instrução do inquérito:
A acusação procura justificar o pedido de condenação com base nas declarações colhidas durante a fase do inquérito policial. Mas a instrução revelou a deficiência de tal elemento de convicção, quer pelas coações a que foram submetidos os imputados, como também sob o aspecto formal, pela falta de testemunhas que tivessem assistido tais atos[28].
Esclarece e refuta:
Na verdade, em suas declarações policiais, para fugir de violências que lhe eram cometidas, esse acusado admitiu que em janeiro de 1970 deixou o Brasil, seguindo para o Chile, depois para a França de onde atingiu a China, isto já no mês de fevereiro; que retornou em agosto do mesmo ano, fazendo o mesmo percurso no sentido inverso (...). No entanto, os documentos de fls. 615 e 616 de natureza pública comprovam que nessa época o acusado se encontrava em São Paulo.
Por fim, demonstra que tal fato simplesmente não poderia ter ocorrido:
Realmente, a guia de recolhimento de taxa de fiscalização e serviços diversos para obtenção de registro de diploma de médico expedida pela Secretaria da Fazenda de São Paulo em 23 de julho de 1970, bem como o relatório de um acidente de trânsito ocorrido em 12 de março de 1970, com o automóvel dirigido por “Nestor”, conforme cópia autêntica do original da Guarda Civil de São Paulo, demonstram claramente que a suposta viagem à China nunca ocorreu, pois seria muito fácil comprová-la pelos meios comuns se o encarregado do inquérito, na verdade, acreditasse nisso.
As medidas judiciais não produziram todos os resultados esperados, mas serviram para ampliar o leque de resistência da luta política. Os documentos podem constituir um mapa dessas lutas, desde que a leitura cartográfica utilize os recursos de interpretação adequados. Por um lado, revelam a violência do Estado; por outro, a resistência encetada pelos militantes de esquerda quando caíam nas malhas da repressão.
No caso em tela, houve o acréscimo de um depoimento. Na condução da entrevista, foi possível ver as reações do personagem, seus temores e algum prazer retrospectivo. No balanço do depoente, sua ficção teve relativa eficiência, pois não comprometeu a organização. O principal teria sido preservado com a história que inventou. Naquelas circunstâncias, retardar a emissão de qualquer informação já era importante para não comprometer a segurança do coletivo.
Mesmo assim, ele não estava isento de autocobrança. Na ética do heroísmo revolucionário, ele pensa que talvez devesse ter silenciado, “aguentar o pau até a morte, se fosse necessário”. Essa dúvida concorre, porém, com a satisfação de ter, por um tempo, conseguido enganar seus inquisidores. Como reconheceu o general Fiúza, alguns militantes até embromavam os interrogadores, com seus ardis e máscaras.