Resumo: O Relíquias de Casa Velha foi o último livro organizado por Machado de Assis. Nele, o autor quis arejar sua casa ao expor as relíquias de um tempo passado, vivido e testemunhado por ele. Na leitura dos contos e dos outros textos não-ficcionais, é possível perceber uma relação entre o passado imperial e o presente republicano, época da organização do livro. Logo, esse artigo pretende discutir essa relação através de uma leitura mais atenta dos contos e problematizar os valores destacados pelo autor para seu tempo, por exemplo, patriotismo, modernidade, progresso e trabalho, e que seriam as relíquias do Império para a República.
Palavras-chave:ImpérioImpério, República República, Escravidão Escravidão, Progresso Progresso.
Abstract: Relíquias de Casa Velha was the last book organized by Machado de Assis, in which the writer wanted to air his rooms by exposing the heirlooms from a past he lived and witnessed. Through the short stories and other non-fictional writings, a relation between the imperial past and the republican present is noticeble. This paper intends to discuss this very relation through a careful reading of the short stories, problematizing the values highlighted by Machado de Assis for his time, such as patriotism, modernity, progress and work, which would be the empire relics for the republic.
Keywords: Brasilian Empire, Brasilian Republic, Slavery, Progress.
Artigos
As relíquias literárias de machado de assis
Recepção: 01 Março 2010
Aprovação: 01 Agosto 2010
Em vida, Machado de Assis publicou sete coletâneas de contos organizadas por ele. Grande parte desses contos já havia saído em jornais ou em almanaques da época. A exceção é o livro Relíquias de Casa Velha, de 1906, sua última organização de contos. Dos nove contos publicados, cinco eram inéditos, além da poesia “A Carolina” e a peça de teatro “Lições de botânica”. Um segundo volume do Relíquias de Casa Velha foi publicado postumamente pela editora W M Jackson, com uma reunião aleatória de outros contos de Machado de Assis (SOUSA, 1955).
A produção contista desse literato não se restringe aos publicados nas coletâneas. Pelo contrário. Em 1864, ele passou a se dedicar à escrita de contos quando começou a publicá-los no Jornal das Famílias, o que durou mais de dez anos (MACHADO, 2003, p. 13). Nesse período, segundo Ubiratan Machado, o conto ainda era um gênero secundário em relação à poesia e ao romance, o que justificaria a repercussão média de seus livros de contos. Eles receberam pouca ressonância no meio intelectual, mesmo nos duas últimas coletâneas, Páginas recolhidas, de 1899, e Relíquias de Casa Velha, quando já era um autor consagrado. Um exemplo disso foi a pequena repercussão do livro nos jornais na época da sua publicação[1].
Mesmo atualmente, são poucos os textos dedicados a uma análise mais cuidadosa dos contos dessa coletânea. A especificidade de ter um livro de contos em grande parte inédito ainda não animou muito os pesquisadores das obras de Machado de Assis, que esgotam as análises de romances e deixam grande parte da sua produção contista ainda no aguardo de um estudo mais apurado. Apesar do centenário de sua morte ter sido um momento de revisão da sua obra, o livro Relíquias de Casa velha recebeu pouca atenção dos historiadores e especialistas em literatura. As poucas interpretações desse livro dão conta de uma análise superficial e incompleta. Um exemplo são as considerações de John Gledson (1998, p. 18). Segundo este autor, o Relíquias de Casa Velha é um livro de exceção, por possuir contos em sua maioria inéditos e impressões do autor sobre outros assuntos não-ficcionais, entre eles a escravidão, tema até então pouco explorado em suas obras[2]. Marta de Senna, na introdução à nova edição do livro, destacou que Machado de Assis, ao reunir os contos para a publicação, estava velho, viúvo e triste e não havia uma unidade temática entre os textos reunidos, aspecto comum, segundo ela, em suas outras coletâneas de contos. Elas seriam feitas de forma aleatória, com temas variados e títulos que indicariam atemporalidade (SENNA, 2008, p. 12).
Com o presente estudo, pretendemos oferecer ao leitor uma nova interpretação para uma parte dos contos de Machado de Assis, na maioria das vezes ignorados como matéria-prima de análise de sua obra, e que serão pensados como forma de testemunho de um tempo vivido pelos personagens de cada história. O ponto de ligação desses textos é a interpretação de uma realidade ou de um contexto social conhecido pelo autor. A sua literatura não é o espelho ou a transparência[3], mas uma produção que se alimenta da experiência do autor e do seu leitor ao tratar da sociedade vivida por ambos. Portanto, para a análise dessa coletânea pensada por Machado de Assis, o ponto de partida será perceber a seleção que ele fez dos textos e a unidade que formam e que dão um sentido à publicação do livro no início do século 20.
A advertência, escrita pelo autor, oferece pistas sobre a lógica que o moveu na seleção dos textos.
Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora.
Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, ideias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha. (MACHADO DE ASSIS, 1990, Pg. 13)[4].
Apesar de confirmar, aparentemente, uma visão descompromissada da coletânea, ele demonstra cuidado em arejar as relíquias que seriam lidas, repensadas e expostas a uma análise do leitor. Em um cuidadoso processo de seleção, escolhe as lembranças do passado que ainda mereciam ser expostas. Esta advertência diz mais sobre a coletânea do que supõe uma primeira leitura: ela indica que não se tratava de seleção casual – pois, além de os textos ali expostos fazerem parte de uma mesma “casa”, eles teriam ainda valor para o literato. Constituíam, neste sentido, verdadeiras “relíquias”, pedaços do passado com grande valor no presente. É para entender o sentido de tais escolhas que precisamos voltar aos textos ali reunidos, de modo a tirar-lhes a poeira do tempo para compreender sua importância no momento em que Machado de Assis lançava a coletânea.
Em Relíquias da Casa Velha, Machado de Assis abordou sentimentos humanos como o amor perdido através da morte, o amor não correspondido, o desejo de praticar uma traição, a amizade entre dois homens e uma anedota[5]. Tais contos, à primeira vista, oferecem ao leitor reflexões pretensamente atemporais, ligadas à própria condição humana. O modo pelo qual os sentimentos aparecem nos contos se liga, porém, a uma situação histórica bem delimitada pelo autor: a passagem do Brasil de Império a República, em meio às tensões, crises, batalhas e projetos que marcaram tal mudança. As relíquias abordadas são os sentimentos humanos, misturados à experiência histórica do autor. É nessa mistura que o livro ganha força, densidade e sentido.
O livro é aberto com uma poesia feita em homenagem à esposa, falecida anos antes. Ela é a sua primeira relíquia. Com o título “A Carolina”, a poesia tem na morte a causa da separação de duas pessoas que se amam.
Querida, ao pé do leito derradeiro
em que descansas dessa longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores - restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamento de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
(MACHADO DE ASSIS, 1990, pg. 15)
Remetida diretamente à sua experiência pessoal, essa poesia marca o tempo do passado e do presente do casal. Carolina, sua companheira por 35 anos, havia morrido em 1904. Desde então, os biógrafos de Machado de Assis associaram essa perda a sentimentos de tristeza e desencanto que, segundo eles, teriam reflexos nas suas obras seguintes. Após a morte de Carolina, Machado de Assis publicara, além deste livro de contos, o romance Memorial de Aires. Para Josué Montello (1975, p. 12), a abertura do Relíquias de Casa Velha com esse poema era sinal de que o autor voltara a ser o homem das letras e que nelas encontraria o consolo de sua solidão. Graça Aranha (2003, p. 29) reconheceu nos versos de “A Carolina” a influência de Luís de Camões sobre a obra de Machado de Assis. A morte de Carolina também foi tema de algumas cartas trocadas com Joaquim Nabuco. Nelas, Machado de Assis enfatizou o peso da solidão após a morte da esposa e a companhia apenas dos amigos. No entanto, se o ano de 1904 foi, para a pessoa do literato, de tristeza pela morte da mulher, o reflexo disso nas suas obras não aparece tão diretamente. Nas cartas para Joaquim Nabuco, outra questão que também o incomoda nesse período é a respeito do futuro da Academia de Letras, e sua legitimidade diante da sociedade brasileira (GRAÇA ARANHA, 2003, P. 29). Entretanto, sem querer desmerecer o peso da morte de Carolina na vida de Machado de Assis, as obras seguintes não devem ser atreladas apenas a essa questão, mas imbuídas de um caráter maduro sobre a vida, a política e o futuro da literatura no Brasil, refletidos nos contos, no romance e na sua atuação na Academia Brasileira de Letras.
Nessa poesia de abertura do livro, o autor ligou dois tempos: o passado e o presente. Ao visitar o túmulo de Carolina, o autor lhe oferece flores – “restos arrancados da terra que nos viu passar unidos” – mas, ao lhe dedicar o livro, com essa poesia, o que ele oferece são “pensamentos idos e vividos”, através dos textos expostos nas páginas seguintes, relíquias arrancadas da terra de um passado também vivido por ela. A poesia é de saudades em relação à mulher amada, mas também apresenta com mais ênfase o que ele tinha citado anteriormente na advertência: as relíquias de uma vida, ou de uma casa, ou de uma sociedade. Ao escolher abrir o livro com uma poesia que remetia ao seu amor perdido, ele reforça a ideia de que a seleção das relíquias está ligada a um passado ainda vivo no seu presente, da mesma forma que sua esposa, Carolina.
A proximidade entre passado e presente é reforçada diretamente já no primeiro conto da coletânea, intitulado “Pai contra mãe”. A escravidão, tema do conto, também seria uma lembrança do passado no momento da escrita. A história se passa no Império, no período da escravidão, mas a escrita é posterior. Isto é observado na forma como a história se inicia e na explicação que dá sobre os instrumentos e os ofícios eliminados com a escravidão.
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas (MACHADO DE ASSIS, 1990, pg. 17).
Este primeiro parágrafo demonstra que o tempo do leitor é de um presente sem escravidão. Ela já fazia parte do passado, mas manteve-se com o uso de instrumentos e ofícios específicos descritos de forma bárbara e desumana. Um dos ofícios que acabam junto com a escravidão é o de capturar escravos. Apesar de não ser nobre, era necessário à manutenção da lei e da propriedade. Candido das Neves, um dos protagonistas desse conto, exerceu essa atividade. A partir dele é que Machado de Assis reforçou ainda mais os barbarismos da escravidão e da sociedade para seus leitores contemporâneos.
O casal Candido das Neves e Clara, brancos, assim como seus nomes, tinham uma vida instável e viviam de favor na casa da tia de Clara, Mônica. Cândido trocava de ofício constantemente e por isso Mônica alertara o casal sobre uma gravidez e as dificuldades que teriam se viessem a ter um filho. Mesmo após estes alertas, Clara engravida e tia Mônica condena sua gravidez e o futuro da criança. Segundo ela, todas as crianças encontram pais com ofício e ocupações certas, diferentes do filho deles que teria um pai cuja ocupação era vaga e não garantia vinténs toda semana. Por isso, propõe que eles deixem o filho na roda dos enjeitados. Isso garantiria a sobrevivência de toda a família, já que evitaria novos gastos.
O drama de Cândido, que precisa abandonar o seu filho recém-nascido, tem semelhanças com o vivido pela escrava que ele captura no dia em que iria levar o filho à roda. Arminda estava grávida e fugira do cativeiro provavelmente para proteger o filho. O anúncio da sua fuga e a recompensa prometida encheu de esperanças Cândido, que, com o dinheiro, não precisaria abandonar o filho. Ele consegue capturar a escrava e arrastá-la pelas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro até a casa do seu senhor. Durante o caminho, Arminda pede para não ser entregue, porque temia por sua sorte e a do filho que esperava. Sem se sensibilizar, Cândido entrega a escrava ao seu senhor e recebe a quantia prometida. A escrava aborta o filho nesse momento e Cândido volta para a casa com o seu. Ao chegar, ele não lamenta a morte do filho da escrava; pelo contrário, diz: “Nem todas as crianças vingam.”
Nesse final, Cândido reafirma a diferença entre escravos e pobres livres. Estes teriam o direito de criar os filhos, mesmo em péssimas condições, enquanto que Arminda, escrava, não deveria, em sua opinião, “fazer filhos e fugir depois”. Ou seja, ele poderia usar a máscara da liberdade e assim criar o seu filho, apesar de preso a uma situação gerada pela crueldade do privilégio dado ao trabalho escravo na sociedade imperial. Nesse período, o mercado de trabalho era insuficiente para abrigar aqueles que não pertencessem às categorias de proprietários ou de escravos (SCHWARZ, 1998, p. 52). Então, Cândido se alia aos proprietários que precisam explorar a miséria alheia para manter a ordem escravocrata num ambiente urbano em que o futuro da escravidão é constantemente discutido.
No conto, o autor trata de dois momentos políticos que a princípio parecem distintos, mas que se complementam. Ao escrever o conto na República, dando uma espécie de testemunho às gerações futuras de um passado escravista do Império, ele oferece argumentos para verificar a existência de relíquias, de vestígios de um passado escravista na contemporaneidade. Este passado se manifesta na República pela permanência da miséria e da pobreza entre os trabalhadores, que no Império sofreram com o privilégio à escravidão. Ou seja, o barbarismo citado pelo autor no primeiro parágrafo do conto não terminaria com a Abolição, mas permaneceria através de outras situações herdadas da sociedade escravista, e que continuariam na República.
Ao mesmo tempo, ao expor as relíquias de um lugar ou de um tempo, o autor mostra como era um passado quase que na forma de ensinamento a gerações que não viveram o tempo da escravidão. Igualmente em “Pai contra mãe”, Machado de Assis, no último conto do livro, “Anedota de cabriolet”, narra o tempo em que o veículo e um hábito do passado existiam. Nesse conto, as relíquias aparecem através de um veículo de passeio que as gerações do tempo da escrita do conto não conheceram.
A geração de hoje não viu a entrada e a saída do cabriolet no Rio de Janeiro. Também não saberá do tempo em que o cab e o tilbury vieram para o rol dos nossos veículos de praça ou particulares. O cab durou pouco. O tilbury, anterior aos dous, promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos, esperando o freguês do costume. A paciência será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a própria atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo dirá cousas raras sobre os três esqueletos. O cabriolet não teve história; deixou apenas a anedota que vou dizer (MACHADO DE ASSIS, 1990, pg. 98).
O cabriolet, o tilbury e, de alguma forma, a escravidão e seus instrumentos, como máscaras, ferros, cordas e ofícios, seriam relíquias e testemunhas de um tempo para serem encontradas por arqueólogos à procura de vestígios da cidade. Estes restos falariam por si sobre um passado distante. E Machado de Assis, através dos contos, deixou para as gerações futuras – enquanto a cidade não fosse destruída, nem encontrada por arqueólogos – hábitos, costumes, heranças e permanências de uma época. Portanto, não foi por acaso que esses dois contos foram escolhidos para abrir e fechar a seção dedicada aos contos do Relíquias de Casa Velha. Neles, as relíquias da escravidão e as do veículo, que circulou pela cidade e que não veria o seu futuro, aparecem no presente a fim de testemunhar um tempo vivido que deixou a miséria criada pelos anos de trabalho escravo, os veículos e seus trabalhadores sob escombros que poderiam ser facilmente desenterrados por arqueólogos do tempo ou pelos leitores dos contos machadianos. Certamente, ao desenterrá-los, os leitores iriam encontrar mais que objetos, mas práticas e costumes sociais que, ao contrário de mortos junto com o Império, permaneceriam mais presentes que nunca na República.
Por outro lado, a recente República já oferecia elementos do seu passado que poderiam ser apresentados por Machado de Assis nessas suas relíquias. Ele faz isso no conto “Maria Cora”, que vem em seguida a “Pai contra mãe”. Do tempo da escravidão e seu barbarismo, o autor vai para a República para explorar o barbarismo da guerra e as diferenças políticas expostas na Revolta Federalista, ocorrida no sul do País em 1893.
Diferente do primeiro conto, “Maria Cora” ganhara uma primeira versão sob o título “Relógio parado”, em 1898[6]. Além da mudança do título, a versão publicada no livro modificava também o nome da protagonista, que era Maria Rita, e no livro passou a se chamar Maria Cora. O conto é narrado por Correia, que em 1893 vivia no Catete e se apaixona por ela. A princípio parece ser uma história comum, exceto pela condição de Maria Cora e suas outras paixões: a política, principalmente a causa republicana, e o marido, que a abandonará por uma mulher também apaixonada por política.
A história se passa durante a Revolta Federalista, que começou em fevereiro de 1893 e se estendeu por mais dois anos e meio. A revolta refletia o embate político entre dois grupos surgidos a partir da Proclamação da República: os republicanos históricos, também chamados de legalistas, adeptos do positivismo, que defendiam um governo forte, centralizado; e os liberais, ou revoltosos, que defendiam o federalismo, ou seja, uma maior autonomia dos estados em relação ao governo central e que tinham raízes na elite política tradicional dos tempos do Império (FAUSTO, 2002, p. 144).
É neste cenário político que a história do conto se desenrola. Maria Cora havia se casado com João da Fonseca no Rio Grande do Sul e era partidária dos legalistas, enquanto que João era favorável à revolução. Apesar disso, eles viveram bem entre as traições passageiras de João. Mas, ao aparecer uma mulher chamada Prazeres, ligada ao partido da revolução, o casal se separa definitivamente e Maria Cora vai para o Rio de Janeiro viver na casa de uma tia. Neste contexto, conhece Correia, narrador da história. O ponto alto da narrativa acontece quando o conflito no Sul se intensifica e Prazeres desafia João da Fonseca a se alistar.
A paixão é o tempero da história, principalmente no alistamento para a guerra. Ela também levou Correia a participar da revolta, apesar de já ter declarado a Maria Cora que não professava opiniões republicanas, mas se declarava “vagamente pelo futuro do país.” Ele só vai a combate para provar seu amor a ela.
Os meses de 1893 e de 1894 foram tensos na região dos combates entre legalistas e revoltosos, enquanto que na cidade do Rio de Janeiro a Revolta da Armada se intensificara nas águas da Baía de Guanabara. Ambos os conflitos foram provocados pela instabilidade do poder executivo da época da presidência de Marechal Deodoro e intensificada com a sua renúncia, quando assumiu o seu vice, Marechal Floriano Peixoto. No Sul, a tensão aumenta quando Júlio de Castilhos, mais tarde líder das tropas legalistas, renuncia ao governo central do Rio Grande do Sul (FLORES, 2006). Correia vai para a região da campanha, no Sul, após se alistar para combater diretamente João da Fonseca, que morre em conflito testemunhado por ele. Em seguida, Correia volta ao Rio de Janeiro e Maria Cora o recusa em casamento mais uma vez, mesmo após ele provar que João da Fonseca estava morto. O conto termina com as duas mulheres sobrevivendo à batalha de forma diferente. Prazeres continuou a acreditar na causa, mesmo após a morte do amante, enquanto que Maria Cora não reconhece a causa pela qual lutaram João e Correia. De qualquer forma, as duas souberam manipular o sentimento de seus parceiros para também beneficiar seus interesses políticos.
A representação da República como uma mulher fez parte do imaginário republicano francês. No caso brasileiro, essa associação foi feita antes mesmo da proclamação. Mais tarde, alguns caricaturistas deram à figura feminina um aspecto belicoso (CARVALHO, 1990, p. 80). As duas personagens femininas da trama representam dois tipos de República. Maria Cora, que na primeira publicação se chamava Maria Rita, tem uma aparência moderada e compassiva diante do desgaste dos primeiros anos republicanos. Ela quer a manutenção de uma estabilidade, tanto no casamento quanto na República, apesar das traições, como ocorreu no seu casamento. O nome da protagonista mudou para o de Maria Cora talvez para fazer uma oposição mais forte ao nome da outra personagem. Cora significa “moça donzela”, ou seja, reflexo de uma calmaria em oposição ao nome da outra mulher da trama, Prazeres, que tem no nome o espelho de uma paixão e da ousadia. A permanência da viuvez de Cora, a recusa ao pedido de casamento e a uma nova paixão são exemplos da sua calmaria.
Machado de Assis, ao publicar esse conto, aproximadamente quatro anos depois da data marcada na trama, mostra as tensões ainda existentes dentro do próprio regime republicano, sua falta de unidade e a pouca convicção, ou patriotismo, dos homens da nação para uma batalha armada. Os dois homens da trama, João da Fonseca e Correia participam dos enfrentamentos armados por causa de uma paixão que não era a política. As mulheres que exacerbam paixões republicanas também o fazem para demonstrar um poder sobre o outro. Assim, o sentimento patriótico e o republicano são o menos importante. O que vale é a vitória, seja qual for. A República, mesmo com interesses diferentes, conseguiu, através dos encantos femininos, arrastar os homens para a batalha.
Além da Revolta Federalista, a Revolta da Armada, ocorrida no mesmo período, mas no Rio de Janeiro, apareceu rapidamente em outro conto dessa coletânea. Esta revolta foi um conflito gerado pela oposição a Floriano Peixoto dentro da armada, tradicional reduto monarquista (FLORES, 2006, p. 66). Em setembro de 1893 ocorreu o primeiro bombardeio da cidade do Rio de Janeiro. A Baía de Guanabara, nos dias seguintes, foi ocupada por navios de guerra e estrangeiros. O conflito terminou em 1894 e os revoltosos abandonaram a capital para integrarem as forças oposicionistas no sul do País e apoiar a Revolução Federalista (FLORES, 2006, p.71).
Da mesma forma que “Maria Cora”, o conto “Pílades e Orestes” ganhou uma segunda publicação em Relíquias de Casa Velha e o seu final, com a morte de um dos personagens por conta de uma bala “revoltosa” originária dos conflitos na Baía de Guanabara, mostra o pouco envolvimento dos habitantes da cidade com as questões políticas, apesar de atingidos por elas.[7]
A publicação desses contos no livro atende aos propósitos do autor de recolher e arejar as relíquias. E ao fazer isso ele encaminha o enredo das suas histórias às revoltas ocorridas na República, mas que mantinham vestígios do Império. Se os conflitos do Sul foram reforçados pelo domínio da antiga elite imperial local, no do Rio de Janeiro, a Revolta da Armada teve, dentre outras causas, a simpatia dos revoltosos pela política do Império. Por isso, essas histórias, apesar de republicanas, evocam um passado imperial e suas heranças deixadas na organização da República. Machado de Assis, ao trazer esses temas para as suas relíquias, reafirma esse passado e a permanência de hábitos, costumes sociais e políticos que não acabariam apenas com a proclamação. Por outro lado, o patriotismo republicano entrava na ordem do dia mais como discurso do que como prática. O que não parecer ter sido tão diferente no Império. Para isso, o autor utiliza outro conto para tratar da maior revolta do Império: a guerra do Paraguai.
Grande parte da história de “Um capitão de voluntários” se passa no período dessa guerra, mas o início da narrativa evoca a República.
Indo a embarcar para a Europa, logo depois a proclamação da República, Simão de Castro fez inventário das cartas e apontamentos; rasgou tudo. Só lhe ficou a narração que ides ler; entregou a um amigo para imprimi-la quando ele estivesse barra fora. O amigo não cumpriu a recomendação por achar na história alguma cousa que podia ser penosa, e assim lho disse em carta. Simão respondeu que estava por tudo o que quisesse; não tendo vaidades literárias, pouco se lhe dava de vir ou não a público. Agora que os dois faleceram, e não há igual escrúpulo, dá-se o manuscrito ao prelo (MACHADO DE ASSIS, 1990, pg. 56).
Simão de Castro faz o mesmo movimento que Machado de Assis. Ele tenta arejar sua casa no momento da partida e escolhe uma carta para narrar um tempo passado que deveria ser lido no presente. Ele era um monarquista e o fato de sua carta ter vindo à tona tempos depois talvez tenha tido o propósito de pensar não só o Império, ambiente da história, como também a República, que nos primeiros anos necessitou de voluntários para sanar suas divergências internas.
A história da carta se refere a um tempo em que conviveram Simão de Castro, Maria e X (que só tem o nome revelado ao fim da trama) durante a guerra do Paraguai. Numa conversa, X confessa o seu pouco entusiasmo pela guerra, enquanto que Simão pensa em se alistar por ser simpático às suas causas. Segundo X, alistar-se não valeria a pena nem se fosse para virar coronel. Maria, que vivia com X maritalmente, começou a flertar com Simão. Segundo o relato da carta, X desconfiara do flerte e, desapontado com ambos, resolvera se alistar como voluntário para lutar na guerra no posto de capitão. Pelo fato de a história ter sido narrada pelo próprio Simão, as causas desse alistamento permaneceram obscuras. O narrador acreditou que o motivo tivesse sido “alguma cousa mais particular que o patriotismo”. X morreu em combate na guerra do Paraguai e Simão não ficou com Maria.
Mais um conto que, com o mesmo cenário de guerra, mostra personagens que não são levados a se alistar de forma espontânea ou patriótica. Esta observação revela um ponto em comum entre os contos “Maria Cora” e “Capitão de voluntários”. As causas da República e do Império não eram suficientes para mobilizar todos os homens a seu favor. No Império, nem as causas da guerra do Paraguai pareciam claras para o seu voluntário:
(...) E depois, a guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando o López tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos (MACHADO DE ASSIS, 1990, p. 60)[8].
A carta de Simão, monarquista que sai do Brasil após a República, é um registro de seu flerte com Maria, apesar de comprometida, o que não pretendia ter com a República. O testemunho que deixa a um amigo, o mesmo que finaliza o texto e revela o nome de X, Emílio, mostra também que, apesar de monarquista confesso e favorável às causas da guerra, manteve-se fisicamente afastado dos conflitos.
Ora, se Simão preferiu fugir a enfrentar a guerra ou a República, Emílio, somando valentia e outros atributos, enfrentou as dissidências políticas a favor de uma causa que não era sua. Logo, esse conto, inédito até a publicação do livro, vem completar uma espécie de tríade em torno das heranças do Império para a República. Esta não representaria grandes novidades políticas capazes de gerar um sentimento patriótico verdadeiro. Desde a guerra do Paraguai e passando pela revolta Federalista e da Armada, as causas das batalhas não levantaram sentimentos patrióticos verdadeiros mesmo entre aqueles que professavam algum sentimento político mais forte, como, por exemplo, João da Fonseca, em “Maria Cora”, republicano convicto, mas que vai para a guerra para atender a um capricho de Prazeres, ou em Simão de Castro, em “Um capitão de voluntário”, monarquista convicto, mas que não se arriscara ao posto de voluntário de guerra. Logo, os discursos patrióticos exaltados no Império e na República mostram-se vazios à medida que seus homens são chamados à guerra para defenderem o regime ou as causas patrióticas. O Império deixara essas relíquias para a República.
Nos contos do livro Relíquias de Casa Velha também existira espaço para tratar de modernidade e progresso, características da República e também do Império.
O conto “Evolução” tem a história narrada por Ignácio, que conhece Benedito, um aspirante a cargos políticos, numa viagem de trem entre o Rio de Janeiro e Vassouras, interior do estado, em meados do século 19. O progresso é o tema do conto e ele é representado pelo avanço das construções das ferrovias. Para Ignácio, o Brasil era uma criança que engatinhava, e afirmava: “só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.” O grande problema da história acontece quando Benedito, já eleito deputado, se apropria desse pensamento de Ignácio[9].
Este conto possui dois contextos. Primeiramente, foi publicado em 1884, num jornal de grande circulação, e, mais tarde, já na República, no livro Relíquias de Casa Velha. Ambos devem ser vistos para se pensar a retomada do assunto na República. O ano de 1884 foi marcado pelo avanço das construções das estradas de ferro no País em regiões que estavam fora do eixo da região cafeeira. Um pouco mais da metade dessas estradas pertencia, naquele ano, a esse eixo (ARIAS, 2006, p. 208). Ignácio teve a ideia do Brasil engatinhando em Vassouras, região da economia cafeeira, onde as estradas de ferro passavam pela periferia da cidade, sem chegar ao centro (VAINFAS, 2002, P. 276), conforme também é destacado no conto: “conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à cidade”.
Se “as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país”, conforme afirmavam no Império os personagens do conto, na República o progresso entrava na ordem do dia, logo após a Proclamação, através do estabelecimento de um dos seus principais símbolos: a bandeira nacional. A inscrição “Ordem e progresso”, que cruzava a bandeira, representava a aspiração nacional[10]. Em 1906, segundo contexto do conto da publicação do livro, o País avançara nas ferrovias e a República alternava períodos de instabilidade política e financeira com progresso e desenvolvimento (ARIAS NETO, 2006, p. 210)[11].
O autor, ao reeditar um texto que tinha no discurso sobre o progresso o assunto principal entre os personagens, retoma uma discussão que não apareceu somente com a República, pelo contrário, recebe como herança do Império, que tinha no desenvolvimento da concepção de modernidade e progresso seus principais ingredientes.
Se no Império o progresso era pensado pelos personagens do conto a partir do avanço das construções das ferrovias pelo País, Machado de Assis, ao colocá-la em meio a uma disputa dos dois personagens do conto, por sua vez critica essa concepção. Não importa quem tenha sido o responsável por essa constatação, Ignácio ou Benedito. O que vale é pensar que as ferrovias não seriam suficientes para deslanchar o País. Retomar esse conto no livro é reforçar que as ideias de progresso existentes no Império de algum modo continuaram na República, apesar de o País ter mudado politicamente. Assim, a forma como Benedito se apropria das concepções de Ignácio não é muito diferente da forma como a República se apropria das do Império.
Outra história passada no Império é o conto inédito “Suje-se gordo!”, que tem como alvo o poder judiciário. A conversa entre dois amigos, inspirada numa peça de teatro, é sobre a arte de julgar. Um amigo conta ao outro o incômodo que sentia em ser jurado. Ele não era contra a instituição, que era liberal, mas temia um preceito do Evangelho: “não queirais julgar para que não sejais julgados”. Ele havia participado de um júri sobre o caso de uma falsificação de um papel que rendera pequena quantia ao réu. Um dos participantes do júri, Lopes, após a contagem dos votos que condenaram o réu, declarou que se fosse para se sujar, que fosse por muito, “suje-se gordo!”.
Anos depois, o narrador da história participa de um novo júri e dessa vez o réu é o próprio Lopes. Sujo ou não, ele foi absolvido do crime, apesar de o narrador acreditar na sua culpa. Do primeiro réu, condenado, foi destacada a forma humilde de confessar a responsabilidade no crime. O segundo, inocentado, tinha uma origem mais nobre. O fato de o narrador do conto não ser contrário ao judiciário por ser uma instituição liberal, ou seja, por possuir uma ideia de igualdade de todos perante a lei, mostra que o temor estava exatamente nisso. Essa igualdade pela qual todos podem virar réus ou jurados um dia é o fio condutor da história. Porém, ela não aparece de fato estabelecida quando a diferença social interfere no julgamento. Esta é a chave de leitura do conto. A diferença social, como condição de julgamento, já aparecera no conto “Pai contra mãe”, em que ser escravo ou não era determinante nos destinos que homens e mulheres poderiam dar aos seus filhos. Em “suje-se gordo!”, o autor apenas iguala as condições dos dois réus. Ambos eram livres, mas diferentes nas oportunidades oferecidas a eles na sociedade imperial.
Logo, ao tratar nos seus contos sobre duas situações ocorridas no Império - o progresso e o liberalismo das instituições -, o autor discute as relíquias deixadas pelo Império à República. Tanto o progresso discutido pelos personagens no primeiro conto como a lógica liberal pretensamente imparcial que move a instituição do júri do segundo aparecem de forma vazia e instáveis diante de interesses variados. Assim, o autor ressalta que a República não trouxe novidades para esses discursos: se eles assumiam formas pretensamente modernas no regime republicano, suas contradições estavam inscritas no passado imperial, do qual este seria mera continuidade.
As heranças do Império à República continuariam a ser o tema dos demais textos desse livro, mesmo os não-ficcionais. Em “Páginas críticas e comemorativas”, Machado de Assis reuniu as homenagens e críticas literárias escritas por ele. Entre elas, a que fez em homenagem a Gonçalves Dias na inauguração do busto do poeta, em 1901, na região do Passeio Público, no centro da cidade do Rio de Janeiro (SOUSA, 1955, p. 681). No discurso, Machado de Assis fez referência à “Canção do Exílio” e ligou a presença do busto à beleza do local em que ele estava sendo instalado. No discurso, uniu o passado e o presente literários e o futuro político. Para o passado, lembrou as obras do poeta e, no presente, destacou a colocação do busto num local que futuramente poderia ser cobiçado para a construção de alguma avenida. O progresso, antes citado no conto “Evolução”, não deveria comportar a destruição da cidade. O jardim era a relíquia que ficaria para as gerações futuras, tendo sido preservado por todos os regimes políticos. Logo, o Passeio Público era a relíquia concreta do Império à República, enfeitada com o busto de Gonçalves Dias, poeta da época do Império que marcou o início da literatura nacional.
Outra relíquia destacada nesse livro foi Eduardo Prado, reprodução da homenagem póstuma que fez a este intelectual monarquista[12]. Eduardo Prado morreu em 1901 e sofreu os ataques da República dos seus primeiros anos (CARVALHO, 2003, p.15). Segundo Brito Broca (1957, p. 141), Eduardo Prado era um monarquista convicto e a República não lhe pareceu um fato consumado. Para ele, o Império era o responsável pela unidade do País, enquanto que a República era vista como a divisão e o perigo da concretização de um caudilhismo que ele conhecera em suas viagens pela América do Sul (BROCA, 1957, p. 144).
A escolha desse texto para compor as relíquias de Machado não pode ter sido casual. O autor, ao homenagear um monarquista convicto, mesmo sem citar as preferências políticas do homenageado, de algum modo está rememorando essas preferências, fazendo um contraponto com a situação em que ele vivia, de turbulências políticas na República, e que não teria mais como crítico o monarquista Eduardo Prado. Porém, a República não se mostrava tão perigosa para a conservação da unidade do País da época do Império.
Após essas páginas comemorativas, o texto ficcional ainda teria espaço no livro em duas peças que destacaram a comédia de um drama amoroso. A primeira é “Não Consultes médico”, encenada em 1896. É um texto que trata das angústias do amor e suas curas. O nome dado à peça é um provérbio grego, de acordo com Magalhães, um dos personagens da peça. Segundo ele, “não consultes médico; consulta alguém que tenha estado doente” e os caminhos da cura viriam de outra forma, e não através da ciência. Assim, a ciência é colocada em xeque no conto.
A peça seguinte, “Lições de botânica”, segundo Galante de Sousa, permaneceu inédita até a publicação do livro. Da mesma forma que a anterior, a ciência é a personagem principal; enfatiza que para o seu estudo era necessária uma dedicação quase celibatária. Ao conhecer o amor, porém, o personagem celibatário da ciência abre mão desse sacerdócio. As duas peças foram provavelmente escritas por Machado de Assis já na República e ambas possuem ligações com a ideia de progresso citada no conto “Evolução”. Uma vez que para o progresso do País era necessário o desenvolvimento de ferrovias, que seriam sinais de evolução, o desenvolvimento da ciência parecia ser também uma das condições desse progresso, apesar de aparecer como vazia e desnecessária nos contos. Ou seja, a prática da ciência deveria se adaptar aos novos tempos republicanos e aos interesses variados dos seus praticantes.
As relíquias de Machado de Assis estavam encerradas com essas duas peças. Todos os textos indicam as relíquias de um passado que perduravam no presente. Esse passado é o Império, que deixa para a República valores vividos. Logo, a República não seria nada mais que uma continuidade da prática de costumes sociais, políticos, com ideias de progresso e modernidade, já antes praticados no Império. Ao reunir textos sobre esses temas entre esses dois regimes políticos, o autor quer chamar a atenção para as permanências e continuidades, mais que para as rupturas.
Por tudo isso, Relíquias de Casa Velha parece ser mais do que um livro de textos recolhidos ao acaso. Na trilha das pistas deixadas por seu autor, podemos perceber uma lógica de organização que perpassa todos os textos: ao resgatá-los das páginas dos jornais velhos e somá-los a outros, escritos especialmente para a coletânea, com os quais aborda o mesmo universo de questões e problemas, Machado de Assis reuniu elementos de um passado que se queria superado, mas cujas marcas alimentavam ainda as contradições e fissuras do presente republicano.