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Entrevista[1] com o professor doutor Daniel Aarão Reis Filho
Mariana Joffily; Sergio Luis Schlatter
Mariana Joffily; Sergio Luis Schlatter
Entrevista[1] com o professor doutor Daniel Aarão Reis Filho
Revista Tempo e Argumento, vol. 3, núm. 1, pp. 239-255, 2011
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Entrevista

Entrevista[1] com o professor doutor Daniel Aarão Reis Filho

Mariana Joffily
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
Sergio Luis Schlatter
UFSC, Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 3, núm. 1, pp. 239-255, 2011
Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepção: 25 Janeiro 2011

Aprovação: 27 Abril 2011

Tempo e Argumento:

A primeira pergunta que nós queríamos fazer é: qual que é seu principal foco de preocupações como historiador?

Daniel Aarão Reis:

Olha, na verdade desde que eu entrei na universidade aqui no Brasil, em 1981, eu tenho tido dois focos de atenção. O primeiro reportado à história das esquerdas no Brasil. Fiz minha tese de doutorado sobre as organizações comunistas nos anos 1960 e depois daí tenho publicado muito nessa área. O outro foco é o das revoluções socialistas, e particularmente o da Revolução Russa. Inclusive minha bolsa de pesquisa do CNPq, que eu tenho já há mais de quatro anos, é dedicada ao estudo dos intelectuais russos. Depois de estudar muito a Revolução Russa e o socialismo soviético – tenho publicado muito a respeito disso – compreendi que para melhor dominar esse século XX soviético, russo, eu tinha que ir ao século XIX. E aí comecei a fazer um estudo sobre as tradições intelectuais russas do século XIX.

Tempo e Argumento:

As de esquerdas ou...

Daniel Aarão Reis:

Eu tenho estudado aquilo que eu chamo os “intelectocratas”, que são os intelectuais do poder, os homens que têm a perspectiva de reformar a Rússia pelo alto. Você tem uma galeria de reformistas estatais na tradição do século XIX russo, e mesmo antes. Bom, o grande fundador dessa tradição é o Pedro, o Grande, o tsar reformador, do fim do XVII, início do XVIII. Há uma galeria de homens do Estado que vão por essa linha: reformar a sociedade, modernizar a Rússia pelo alto. São o que eu chamo de “intelectocratas”. E na margem, perseguidos, reprimidos, você tem dois tipos de intelectuais, os que eu chamo “intelligentis” uma tradição muito conhecida, se usa um termo de origem latina, mas foi aplicado a essa intelectualidade russa, intelligentsia, que são aqueles que procuram alternativas de modernização na Rússia, mas em luta contra o Estado. Então eu vejo duas vertentes: a que eu chamo os reformistas revolucionários, cujo arquétipo é o Aleksandr Herzen, e os que eu chamo de revolucionários catastróficos.

Porque o Herzen era um revolucionário, mas tinha muito receio do apocalipse. Achava que o apocalipse iria arrasar a sociedade, então ele queria revolucionar através das reformas. Já o Tchernichevski, no meu registro, é um ancestral dessa tradição catastrófica revolucionária. Nicolai Tchernichevski, era uma cara que o Lênin adorava, é o criador do “homem novo”, ele escreveu a famosa novela Que fazer?, na qual o Lênin se inspirou para fazer o livrinho dele. Então, esses intelectuais, os “intelectocratas” e os “intelligentis”, bifurcados nessas duas vertentes, são o que eu chamo, parodiando o Gramsci, intelectuais orientais.

O Gramsci falou em sociedades ocidentais e orientais, quando ele desenvolveu sua reflexão sobre a revolução. Ele concebeu essas duas maneiras. A “sociedade ocidental” seria uma sociedade capitalista avançada, onde, segundo ele, seria mais difícil fazer a revolução, mas depois a construção do socialismo seria, segundo ele pensava, mais tranqüila. Enquanto que nas “sociedades orientais” seria, talvez, mais factível fazer revolução, mas muito mais difícil construir o socialismo. Então ele tinha essa metáfora geográfica, “sociedade ocidentais” e “orientais”. Eu peguei emprestada essa metáfora pra pensar os intelectuais. Porque os meus intelectuais, os que eu estudo, os russos, seriam os intelectuais orientais, e aí já aparece uma dificuldade, porque a maior parte da produção a respeito dos intelectuais é sobre os intelectuais ocidentais. Franceses, ingleses...

Tempo e Argumento:

Principalmente aqui no Brasil.

Daniel Aarão Reis:

E nós aqui quando pensamos os intelectuais, nos inspiramos muito na produção da academia francesa, estadunidense, inglesa, enquanto os intelectuais orientais, tanto os intelectocratas, como os intelligentis, vivem circunstâncias muito diversas. É preciso muito cuidado ao assimilar, ao apreender essa produção a respeito dos intelectuais ocidentais, cuidado para não transpor para os intelectuais orientais, muitas vezes, referências e conceitos. Então estou me dedicando a essa pesquisa sobre os intelectuais russos, inclusive de uns anos pra cá, tenho anexado a literatura como dimensão para pensar esses intelectuais. Tenho feito muito vai-e-vem entre o século XIX e o XX e, de uns tempos pra cá, inclusive, introduzido muito a questão da literatura, da literatura e da história.

Agora, é como eu digo: embora esse campo seja o que tenha mais me fascinado eu não consigo me libertar, pelas condições acumuladas, da história das esquerdas. Então, em 2007 eu comecei uma grande antologia História das esquerdas no Brasil em três volumes com o Jorge Ferreira, e agora estou com um desafio maior. Tenho me afastado dos meus russos, para o meu desespero, para me dedicar ao desafio de escrever a biografia do Luis Carlos Prestes. A Companhia das Letras me convidou para escrever, naquela coleção Perfis Biográficos, a biografia do Luis Carlos Prestes. Então já estou eu mergulhado de novo na história das esquerdas brasileiras. Esses são meus dois focos, portanto, a história das esquerdas e as revoluções socialistas e a Rússia. E na questão da Rússia, os intelectuais russos. E aí eles aparecem como paradigmas da formulação das modernidades alternativas.

Tempo e Argumento:

E o que são as modernidades alternativas?

Daniel Aarão Reis:

Pois é. Isso é um desdobramento da minha pesquisa sobre os intelectuais russos. Porque desde que eu comecei a estudá-los, eu os vejo como formuladores paradigmáticos de modernidades alternativas às modernidades liberais. Essa é minha hipótese central. Porque as grandes revoluções atlânticas, a Revolução Americana, a Revolução Francesa e antes da Revolução Americana a Revolução Inglesa, porque a Revolução Americana se baseou muito na Revolução Inglesa, essas três grandes revoluções construíram três paradigmas de propostas liberais. Elas são diferentes, mas têm muitos pontos em comum. E elas conformam a via liberal da modernidade. E o que particulariza a via liberal da modernidade nas suas três facetas é que elas se acham as únicas capazes de encarnar a modernidade. Elas têm uma visão, uma perspectiva de universalizar sua experiência. E acham isso convictamente: pra ser moderno, tem que incorporar seus grandes valores. E desde o século XIX tem havido muitas reações a essa perspectiva imperialista liberal. Imperialista no sentido tradicional da palavra, de querer dominar tudo, de querer se colocar como única alternativa. Então, desde o século XIX, o romantismo foi um primeiro movimento, também multifacetado, a partir da Alemanha, que tenta inventar formas alternativas aos modelos liberais, que eles consideravam abomináveis. E os russos vão nessa esteira e tentam também. O que une os intelectocratas e os intelligentis? É interessante inclusive, porque quando fui estudar essa coisa toda, surpreendi-me, porque, de modo geral, ou você encontra uma literatura abundante sobre os intelectocratas (eles não os chamam assim, foi um conceito que eu inventei) ou você tem uma produção imensa sobre os intelligentis. Agora você não tem uma produção que relacione os dois, que os conceba como caminhos procurando o mesmo fim. Porque tanto os intelectocratas como os intelligentis tinham um grande ponto em comum, que é isso de procurar uma alternativa aos modelos liberais. Daí então eu estudo os intelectuais russos como formuladores de paradigmas de modernidades alternativas aos modelos liberais de modernidade. Então com base nessa temática e estou produzindo uma grande antologia de textos e programas de modernidades alternativas de todo o mundo. Vai sair um primeiro volume sobre os Estados Unidos e a América Latina, um segundo sobre o mundo muçulmano e a África Subsaariana, um terceiro sobre a Europa e a Rússia e um quarto sobre a Índia e a China. Sempre resgatando programas, projetos, reflexões, canções, poesias, alternativas aos modelos liberais.

Os russos fundam uma grande tradição nessa perspectiva de construir uma modernidade alternativa. E isso é um embate, porque os liberais tendem a negar qualquer possibilidade de modernidade se não for nos seus padrões. Por exemplo, a gente está trazendo agora lá para o Rio o Marshall Berman, que tem aquele famoso livro dele Tudo que é sólido se desmancha no ar, e ele vê a modernidade alternativa como uma modernidade distorcida, uma modernidade deformada, ou retardada, ou atrasada. Utilizam muito a metáfora do desvio, como uma estação ferroviária, como se a História tivesse um trilho ideal. Bom, a gente sabe que isso é uma problemática vivida com muita intensidade pela intelectualidade do antigamente chamado “terceiro mundo”, que se via sempre com as suas idéias fora do lugar, aquela coisa toda. Pensando em termos de distorções, em vez de perceber que os processos históricos são diferentes, não têm um padrão.

Tempo e Argumento:

Deixe-me afastá-lo novamente dos “seus russos” e puxar você mais uma vez para essa temática da história recente do Brasil. O que você considera que são as armadilhas de trabalhar com esse período da história recente, aquilo que hoje se chamaria de História do Tempo Presente?

Daniel Aarão Reis:

Olha, em relação à História do Tempo Presente no Brasil – entendendo como História do Tempo Presente aquela que se desenvolve a partir da Segunda Guerra Mundial – eu diria que o meu foco nessa história, embora eu me interesse por ela toda, meu foco são os tempos da ditadura. E eu tenho insistido muito nos debates dos quais eu participo sobre essa história, que a grande armadilha, a principal em relação à reconstituição sobre a ditadura no Brasil, é que de modo geral, ainda, embora essa questão seja cada vez mais combatida, prevalece muito a perspectiva de que a ditadura é algo um tanto quanto externo à sociedade. Não se reflete sobre como a sociedade, ou segmentos importantíssimos dela, construíram essa ditadura. A ditadura como se fosse algo externo, uma a chapa que desceu sobre a sociedade. Agora mesmo o Arquivo Nacional abriu o “Memórias Reveladas”, 1964 a 1985, até me convidaram para participar, mas eu não aceitei, não por outro motivo a não ser a falta absoluta de tempo. Mas se eu aceitasse, teria que travar uma luta ali dentro, porque eu penso que se você vai fazer uma grande discussão 1964-1985 sobre o Brasil, tem que envolver a luta contra a ditadura e a luta pela ditadura. Porque se não, você está fazendo uma história oficial às avessas. Nós, historiadores de esquerda, críticos, que sempre criticamos a história oficial, aquela história que absolutiza determinados ângulos, determinadas temáticas, estamos agora no poder reproduzindo essa coisa. Porque não se tem brechas, nessa linha de pesquisa do Arquivo, para uma direção essencial que foi a participação da sociedade na construção da ditadura. Uma evidência muito clara nesse sentido, por exemplo, você pode ver na imensa produção literária acadêmica a respeito das organizações de esquerda. Qualquer organização de esquerda tem sobre si pelo menos um artigo, quando não uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado, e eu vou ser o último a difamar essa tendência, porque na verdade...

Tempo e Argumento:

Você foi um dos pioneiros nisso.

Daniel Aarão Reis:

Porém, já há anos advirto sobre isso, a necessidade de estudar o outro lado. Agora vai ser finalmente publicada a tese da Lucia Grinberg lá no Rio de Janeiro. É uma tese sobre a ARENA, a Aliança Renovadora Nacional, que é realmente um grande partido da ditadura, e até hoje – a tese foi escrita há mais de cinco anos – não encontra editor porque realmente há um bloqueio. E também vai ser publicado, graças ao nosso programa de excelência, uma dissertação premiada de uma doutoranda que nós temos, cujo mestrado na UFRJ foi sobre a CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. Ela fez um inventário das Marchas da Família com Deus pela Liberdade que demorou muito para ser publicada.

Penso que essa é uma grande armadilha, você estudar esse período importantíssimo da nossa história sem considerar as direitas envolvidas. Acho que esse é um problema seríssimo, a gente bloqueia a reflexão sobre essa disputa. E a outra armadilha, essa referida à história das esquerdas, é que eu penso que há uma tendência à vitimização das esquerdas. Fui ao Memorial da Resistência em São Paulo e fiquei muito impressionado, inclusive pude observar os visitantes, e realmente está completamente ausente ali uma referência aos nossos projetos revolucionários. Nós tínhamos um projeto revolucionário bifurcado, tinha diversas matizes, mas a nossa perspectiva era destruir a ditadura e, de cambulhada, o capitalismo. E nós somos apresentados como pessoas que queriam lutar pela democracia e pela justiça. Outro dia mesmo eu vi uma velha camarada, não vamos citar nomes aqui, porque não cabe, que estava recebendo a indenização dela pela Anistia, e aí um repórter perguntou: “Como é que você vê essa indenização?”. Ela disse: “Muito justa. ” . “E como é que você vê a sua luta do passado?” Ela disse: “Nós queríamos melhorar esse país.” Ora, melhorar esse país a minha mãe também queria. Os militares também queriam.

Nós queríamos revolucionar esse país, nós queríamos construir o socialismo revolucionário nesse país. Como a pessoa pode ser capaz de reformular de tal maneira sua memória? Eu acho muito impressionante isso, é a segunda armadilha. As esquerdas revolucionárias foram reconstruídas como a esquerda da luta democrática no Brasil. Que são as falsificações da História. Só para completar: em 2008, quando completava-se 40 anos de 1968, houve uma grande exposição na UFRJ com vários professores, vários ex-companheiros meus dos anos 1960, numa grande, belíssima exposição. Um lugar inteiro de fotos, pôsteres e tal sobre 1968, chamada “Rebeldes Utópicos”. A palavra “revolução” não aparecia uma única vez! Nós éramos rebeldes, então nós éramos revolucionários! Disputávamos esse termo com a ditadura. O termo tinha tanto prestígio na época que a ditadura se autodenominou como revolucionária. O termo tinha prestígio, e depois desapareceu! As pessoas têm vergonha, ficam constrangidas e preferem se apresentar como a ala extrema-esquerda da luta democrática: “pegamos em armas porque não havia outro recurso”. Então, é essa a segunda armadilha, essa reconstrução da História que está na fronteira da falsificação.

Tempo e Argumento:

Mas aí quando você fala desse deslocamento da memória da direita – inclusive nesse seu artigo no livro O Golpe e a ditadura militar: 40 anos depois – no sentido de se desvincular da ditadura militar e, por outro lado, de um movimento da esquerda, no sentido de que havia uma resistência democrática e não um projeto revolucionário, quando você faz a crítica afirmando que esses deslocamentos acabam de certa maneira confluindo para uma espécie de acordo conciliatório, você está querendo politizar o debate?

Outra pergunta que eu queria fazer associada a essa é a seguinte: recentemente eu [Mariana Joffily] encontrei com um aluno da UFF e perguntei como que eram os professores, entre os quais citei o seu nome. Ele respondeu “Ah, lá na UFF as pessoas acham que o Daniel é revisionista”. E aí me chama a atenção porque sua fala aqui me parece muito mais no sentido, ao contrário, de reforçar, digamos, o que era esse projeto revolucionário, de relançar essa plataforma. É ou não é?

Tempo e Argumento:

Lá na ANPUH eu [Sérgio Luis Schlatter] também encontrei um aluno da UFF e perguntei a respeito de alguns professores. Quando falei do Daniel, ele disse: “O Daniel se diz o último democrata da academia.”.

Daniel Aarão Reis:

Isso eu falo de brincadeira. O revisionismo histórico aí é um termo adequado, porque a história oficial, entre aspas, que tem predominado no âmbito das esquerdas é exatamente essa de figurar a nossa esquerda revolucionária, que se auto-denominava esquerda revolucionária, como uma ala democrática. Isso predomina largamente. Sou frequentemente censurado por levantar essa lebre do caráter revolucionário das esquerdas, ou de uma parte das esquerdas, porque nem todas as esquerdas eram revolucionárias. Havia esquerdas moderadas, havia esquerdas que queriam realmente restabelecer a democracia brasileira.

Tempo e Argumento:

O próprio PCB que era a matriz das esquerdas revolucionárias...

Daniel Aarão Reis:

O Partidão em larga medida queria isso. As alas moderadas da Igreja, da Igreja progressista, porque a Igreja progressista também gerou no seu interior alas revolucionárias, mas havia alas moderadas. No MDB você tinha gente inclusive, às vezes, que veio da direita, como o Ulysses Guimarães, que foi um golpista. Mas ele mais tarde abandonou a perspectiva da ditadura. Houve gente também que veio do liberalismo de direita. Ou seja, a resistência democrática existiu no Brasil. A perspectiva de derrotar a ditadura para restabelecer a democracia existiu. Só que as esquerdas revolucionárias não tinham essa perspectiva, tinham a perspectiva de destruir a ditadura pela luta armada e de destruir o capitalismo também. E aí esse termo revisionista, no sentido pejorativo, digamos assim, é empregado porque se baseia no fato, verdadeiro, de que essa linha interpretativa tem sido instrumentalizada pela direita. Isso apareceu muito nos debates de 2004. Os militares vieram, os velhinhos reacionários. Porque há um grupo de velhos militares que estão desaparecendo gradativamente, pela morte, mas que fizeram uma grande coleção pela Biblioteca do Exército, de vários volumes, na qual procuram creditar a tese, e eles tem em parte razão, a meu ver, de que eles não podem ser os bodes expiatórios da ditadura.

Tempo e Argumento:

Nas próprias entrevistas com o pessoal do CPDOC isso aparece muito claramente.

Daniel Aarão Reis:

Eu já há alguns anos, inclusive, venho chamando a ditadura de ditadura civil-militar. Aliás, essa é uma terceira armadilha na reflexão sobre a ditadura, de chamá-la de ditadura militar. Porque na verdade essa ditadura teve sempre uma presença muita clara dos civis. Sempre. Desde o início até o fim. Mas isso é uma outra discussão. Enfim, retomando, a direita mais decidida, quando houve esse debate, defendeu o golpe: “nós tínhamos razão porque havia uma ameaça revolucionária, havia uma esquerda revolucionária nesse país”. E aí eu fui censurado por vários autores, dizendo “olha, você esta dando armas aos inimigos”.

Tempo e Argumento:

A questão é: como fazer a crítica da esquerda sem dar munição pro inimigo?

Daniel Aarão Reis:

Mas é impossível. Sempre contra-argumento com a memória do partidão sobre a insurreição de 1935. Parece-me muito digno. Embora tenham mudado sua proposta política, nunca deixaram de reivindicar a luta revolucionária de 1935. Foi um projeto revolucionário fracassado. Por várias vezes também, tentaram passar a idéia de que aquilo era uma resistência. Mas, apesar disso, no fundamental mantiveram a reivindicação. Nós tivemos ali um projeto revolucionário que perdeu. Então, evidentemente que as direitas ao construírem as suas memórias, sempre, em toda parte, procuram justificar as suas políticas extremas, como foi o caso da ditadura, sempre em função das ameaças revolucionárias. Isso é comum nas direitas. Agora, as esquerdas, quando diante de episódios ou experiências ou projetos revolucionários realmente existentes, não podem, a meu ver, fazer desaparecer esses projetos da memória, para não dar armas ao inimigo. Então há toda uma construção sobre 64: “Vieram os gorilas, veio a ditadura e, no entanto, não havia risco nenhum para o capitalismo, não havia risco nenhum revolucionário no país, não havia projeto revolucionário nenhum. Antes de 1964 havia ali uma retórica, depois de 1964 era um bando de jovens inteiramente inofensivos. Tudo isso foi um pretexto armado pela direita para... ” Quer dizer, os movimentos sociais de esquerda e os projetos revolucionários de esquerda são transformados em epifenômenos, em coisas irrelevantes, para não dar argumentos para a direita. É um propósito, a meu ver, absolutamente destituído de fundamento, acobertado pelo fato de que estão falsificando a história! Porque antes de 1964 o Brasil viveu uma ameaça revolucionária, uma ameaça que eu chamo de reformista-revolucionária. Foi um processo que mobilização de massas aqui no Brasil até então inédito na República brasileira que ameaçava os fundamentos da ordem. Queria-se reformar as estruturas, com as chamadas Reformas de Base. A base da sociedade estava sendo criticada. Como as elites e as classes dominantes que repousavam sobre aquelas bases podiam ver aquilo com serenidade, com tranqüilidade? Então a idéia é apagar todo esse movimento e o Golpe aparece como um golpe anti-democrático, como foi realmente, e um golpe que inventou uma ameaça revolucionária para se justificar. Para condenar a ditadura, você apaga completamente a ameaça revolucionária que o país vivia.

E depois da ditadura instaurada, os projetos revolucionários alternativos também são apagados, porque se você os recupera, você vai estar dando armas ao inimigo. Porque evidentemente você sabe que o inimigo, as direitas, legitimam sua ação com base nesse argumento: “Havia uma ameaça revolucionária, se a gente não intervier, essa revolução vai dominar”. Essa é a linha argumentativa da direita e ela realmente me cita. Quando eu apareci com esse debate, reagiram: “Até que enfim um autor de esquerda reconhecendo que o Brasil vivia uma ameaça revolucionária”. E vivia mesmo! Cabe à história das esquerdas resgatar esse projeto, apontar os seus limites. Isso, de modo nenhum, a meu ver, legitima a ditadura. De modo nenhum! Embora alguns partidários da ditadura possam fazer disso um argumento de legitimação. Mas daí a gente vai pro debate, vai para a discussão. O Caio Navarro de Toledo ele chegou a me dizer: “Olha Daniel, você podia dizer isso em um seminário da pós-graduação, mas não em público assim”. Essa é uma idéia stalinista tradicional, de selecionar a verdade só para aqueles que possam compreendê-la e estejam à altura de entendê-la. Agora, isso predomina largamente na memória, predomina na memória dessa história oficial das esquerdas que está sendo construída nesse país. Lá no Rio a gente está construindo um grupo que tem muitas pesquisas já que põem isso em questão.

Mas eu acho que uma coisa também que me fez muito alvo dessas esquerdas radicais, que negam seu passado revolucionário. Foi uma questão política, pelo fato de, a partir de um certo momento, eu ter me oposto, eu e um grupo de colegas importantes na UFF, ao grevismo nas universidades federais. Todo ano a UFF era objeto de uma greve que durava dois, três, quatro meses, e a gente acabou achando que isso estava excessivo. Nós nos opusemos a isso, enfrentamos as direções sindicais radicais de esquerda. Isso também foi um importante ingrediente nessas discórdias, porque uma coisa contamina a outra.

Tempo e Argumento:

Isso é outra armadilha ainda, que é a questão da associação do político e o acadêmico.

Daniel Aarão Reis:

Sem dúvida isso também. Como eu liderei o movimento lá contra o grevismo, a gente conseguiu quebrar essa história. E realmente isso suscitou muito ressentimento da parte de alguns historiadores lá do departamento, o Marcelo Badaró, Osvaldo Coggiola, na USP, e outros que são líderes sindicais importantes da ANDES, a nível nacional. Isso também foi um ingrediente importante, que não pode se esquecido. Nós montamos uma turma acadêmica exclusivamente academicista. Esse também é um ingrediente importante que precisa ser inserido e explica em parte a virulência. Depois isso amainou, com o próprio refluxo do movimento de greve.

Tempo e Argumento:

Que tem a ver com o governo Lula também.

Daniel Aarão Reis:

Também, melhorou muito a universidade federal, e esse processo, que foi muito circunscrito. Mas foi um ingrediente importante.

Tempo e Argumento:

Quando você põe esse acento no fato de que a sociedade brasileira contribuiu para a ditadura militar e a sustentou, porque se não, não teria durado todo esse tempo, você, está se inspirando numa historiografia francesa, que a partir de um dado momento começou a enfrentar a questão de Vichy e do colaboracionismo? E que, no que diz respeito à esquerda, passou a enfrentar a temática da Resistência e da mistificação que se criou em torno dela?

Daniel Aarão Reis:

Há uma tripla historiografia que me ajudou a pensar essa história do Brasil, começando pela historiografia russa sobre o stalinismo, na qual o stalinismo é revisto como uma construção social. A melhor historiografia sobre a União Soviética sempre se recusou ao simplismo do Nikita Khrushchev, de apresentar o Estado soviético como obra de um homem só, de um tirano só: o Stálin. Um tirano abominável, mas é impossível vê-lo como o único artífice de todo esse processo histórico. Então compreender socialmente os anos 1930 soviéticos, além do Stálin e do stalinismo em particular. Sou muito familiar a essa historiografia, porque estudo a Rússia e a União Soviética há muitos anos. Um viés contrário do adotado pela historiografia liberal. Porque havia uma historiografia liberal, que é a historiografia no bojo da qual se constrói o conceito de totalitarismo, que imaginava a União Soviética vítima do Estado todo poderoso e do partido comunista diabólico, Shapiro, Pipes, Hannah Arendt, tem toda uma tradição liberal anglo-saxônica que vê a sociedade soviética vítima.

Tempo e Argumento:

Com o objetivo também de equiparar os dois “totalitarismos”, que seriam o nazismo e o comunismo.

Daniel Aarão Reis:

E que construiu uma perspectiva de que a União Soviética deveria ser destruída de fora para dentro.

Tempo e Argumento:

Vamos salvar os russos!

Daniel Aarão Reis:

Os robôs. Alguns autores chegam a dizer que a sociedade soviética foi lobotomizada. Isso nos anos 1970, 1980, acreditava-se que não se podia esperar nada da sociedade soviética. Então, minha inspiração para pensar o Brasil de uma maneira mais completa vem, em primeiro lugar, dessa historiografia. E também, evidentemente, a historiografia sobre o nazismo alemão, dos anos 1970, 198, toda uma revisão que começou a ser elaborada, evidenciando a cumplicidade de segmentos importantíssimos da sociedade alemã com o nazismo. E finalmente, da historiografia francesa, destaco o Pierre Laborie, que é um autor que também tem contribuído muito, desde os anos 1970, 1980, pra repensar o colaboracionismo da sociedade francesa com o Governo de Vichy. Portanto é uma tripla historiografia que me permite, e a todos aqueles que trabalham com essas referências, repensar a ditadura brasileira como uma construção social. O que não quer dizer que é a sociedade brasileira inteira que está envolvida. Às vezes eu até emprego o termo “sociedade brasileira” na polêmica, mas isso tem que ser bem qualificado. A sociedade brasileira é uma sociedade plural.

Tempo e Argumento:

É, mas é apresentada às vezes como uma categoria monolítica, como se não houvesse disputas.

Daniel Aarão Reis:

Há sempre segmentos diferenciados, dentro disso há disputa, evidentemente. Mas segmentos importantes da sociedade desde o início estiveram com a ditadura e aí houve ziguezagues. Houve muita gente que foi favorável à instauração da ditadura e depois pulou fora, e depois voltou, e depois pulou fora. Houve gente que foi contra, mas depois se aproximou...

Tempo e Argumento:

Por exemplo?

Daniel Aarão Reis:

Por exemplo, a intelectualidade de esquerda que escreveu para a TV Globo durante os anos da ditadura, Dias Gomes, Vianinha. Não fizeram novela pra TV Globo? Houve uma aliança entre eles e a TV Globo. Eles não se venderam. Não trabalho com a perspectiva de que eles se venderam, de modo nenhum. Mas a TV Globo era uma grande jóia da coroa da ditadura. Uma instituição, uma empresa que foi bafejada enormemente pela ditadura e muito cúmplice dela. E é muito interessante observar que dentro dessa empresa, desse império empresarial tiveram participação importantíssima intelectuais de esquerda.

Tempo e Argumento:

Mas não faz parte de uma perspectiva de minar por dentro, de ser a contra-mola que resiste, o contraponto?

Daniel Aarão Reis:

É evidente, mas o fato é que eles estiveram ali. Eles contribuíram a seu modo para aquele império. A Folha de S. Paulo emprestava carros para a OBAN e dava importantes cargos a intelectuais de esquerda, que contribuíam para renovar o seu visual gráfico, a linha editorial. O Laborie, inclusive, é um autor importante, porque sustenta que na França, na verdade, os partidários decididos do governo de Vichy e os inimigos decididos do governo de Vichy conformam minorias. No meio, entre eles, está uma massa de gente, muito importante, que ou é indiferente ou transita de posições favoráveis pra posições contrárias, ou é, ao mesmo tempo uma coisa e outra. É a noção de ambivalência, não de ambigüidade. É o cara que é ao mesmo tempo a favor e contra, que aqui no Brasil é partidário da ditadura e, num momento de emergência, hospeda na sua casa um revolucionário.

Tempo e Argumento:

São as zonas de cinza de que fala o Primo Levi, a maioria está situada ali.

Daniel Aarão Reis:

Sim. É claro que quando comecei essa polêmica, talvez não tenha ficado muito esclarecido, porque na polêmica você entra muito chamando a atenção para eu sou contra ou a favor. Mas foi publicado um artigo interessantíssimo da Denise Rollemberg, que trabalha nessa linha, sobre a OAB. Ela publicou também um sobre a ABI em que ela mostra bem essas ambivalências, essas reconstruções. A OAB hoje é conhecida como uma organização de grande coragem na luta contra a ditadura. E pouca gente lembra é que em 1964 ela aplaudiu entusiasticamente a instalação da ditadura. A CNBB também.

Tempo e Argumento:

É engraçado porque essas instituições todas aparecem na historiografia, de repente, a partir de 1974, como fazendo parte dessa grande frente ampla em favor da democracia, como uma resistência democrática. Mas antes disso não se fala nelas. Elas surgem no meio do período. A CNBB é um caso à parte, porque a CNBB, dentro dela já tinha essas disputas, alas que apoiavam, alas que eram contra.

Daniel Aarão Reis:

Mas a CNBB como instituição oficial em 1964 apoiou o golpe. Havia alas na Igreja desde então, mesmo na época, contra a ditadura. Os dominicanos, sobretudo, outras alas que eram contra. Mas o trânsito foi lento, até que institucionalmente a CNBB passou a ter posições favoráveis à democracia.

Tempo e Argumento:

Pensando nesse ziguezague, por exemplo, hoje a Rede Globo ela está do outro lado, coloca as esquerdas vitimizadas, os torturadores como vilões.

Daniel Aarão Reis:

A Rede Globo ela teve ziguezagues, porque ela era uma tropa de choque a favor da ditadura durante muitos anos, como a Folha de S. Paulo. E houve nos anos 1980 momentos em que a Folha e O Globo pareciam jornais de esquerda, porque eles abrigaram e contrataram tanta gente de esquerda, que parecia que era um jornal de esquerda. Porém, de uns tempos pra cá, sobretudo a partir da ascensão do Lula, tanto a Folha como O Globo voltaram a ter posições de direita. Inclusive estão recrutando agora intelectuais de direita. Se você abre O Globo, vê ali o [Demétrio] Magnoli, o [Denis] Rosenfeld. De um modo geral hoje, o normal é um equilíbrio num claro viés de direita. O Globo e a Folha estão recuperando o viés de direita que foi o deles, e que chega inclusive às vezes a realmente pôr em questão a ordem democrática. Embora eles não tenham chegado ao ponto de explicitamente defender a revogação da ordem democrática, o discurso deles, esse denuncismo anticorrupção alimenta um certo anti-democratismo. Fica parecendo que essa corrupção é produto da democracia. Eles não qualificam bem o discurso. São tão virulentos que parece que a corrupção é filha da democracia. Então pra acabar com ela... Aliás, isso é uma bandeira dos golpistas de 1964, eles vieram para acabar com essa corrupção e com o comunismo.

Tempo e Argumento:

Nessa questão da trajetória intelectual e da questão da militância política, como é que o Daniel Aarão Reis militante político veria o Daniel Aarão Reis historiador de hoje?

Daniel Aarão Reis:

Realmente nos anos 1960 eu era um jovem, na conceituação que hoje adoto, partidário de uma perspectiva catastrófica revolucionária. Tinha essa visão, de uma revolução catastrófica. Era da galeria do Tchernychevski, do Lênin, do Che Guevara. Era um herdeiro dessa perspectiva apocalíptica revolucionária. Nós todos que fazíamos parte das organizações revolucionárias de esquerda tínhamos essa perspectiva. E eu fui revendo essa proposta. Essa revisão não veio apenas por causa da derrota do nosso projeto. Veio também pela reflexão sobre a vitória de projetos equivalentes aos nossos. Porque a revolução catastrófica venceu na União Soviética, na China, em Cuba, se fortaleceu em outros lugares. Então a revisão que eu empreendi com relação à perspectiva catastrófica revolucionária veio menos em função da nossa derrota e mais em função da reflexão sobre as vitórias. As vitórias me pareceram extremamente problemáticas.

Quando volto do exílio, essa revisão estava a meio caminho, mas não se pode dizer de modo nenhum, estivesse completada. Eu me exilei em vários lugares, mas o meu exílio mais prolongado e mais fecundo foi em Moçambique. Fui trabalhar lá como professor de História, de 1976 a 1979. Quando eu volto do exílio eu entro no PT, milito no PT, faço parte do Diretório Regional do PT. Fui um dos fundadores do PT lá no Rio. Mas eu já era partidário de uma tendência, que aliás era muito forte dentro do PT, que via e que cultivava expectativas revolucionárias catastróficas, embora já mediadas por uma série de senões, porque muitos de nós participamos das discussões dos anos 1970 lá na Europa. Tínhamos recebido um fluxo de todos aqueles autores que procuravam refletir a questão do poder, tem o [Michel] Foucault, tem o [Nicos] Poulantzas, que procuravam mostrar que a coisa não se reduzia a tomar o poder pra fazer a revolução. Isso estava sendo muito criticado na Europa. O trotskismo também tinha interlocução com as tendências anarquistas, com as tendências situacionistas que tinham toda uma visão crítica dessa história do poder. Então, embora ainda partidários do catastrofismo revolucionário, havíamos incorporado muito os valores democráticos como uma questão fundamental e não como era próprio da tradição comunista de usar a democracia como uma plataforma para chegar ao poder, como o intervalo democrático, um expediente tático, porque a verdadeira democracia só viria depois da ditadura revolucionária. Isso aí já estava muito em questão. De sorte que os anos 1980 vão sendo anos de muito aprendizado pra aprofundar os conhecimentos sobre as esquerdas brasileiras, os estudos sobre o socialismo também, e isso tudo vai me ajudando a ver melhor, eu acredito, outros dirão que é pior, depende do observador. Eu, a meu ver, vou vendo melhor as coisas e vou mudando. Há um provérbio que diz “só não muda de idéias quem não tem idéias”. Vou mudando minhas idéias a respeito do processo revolucionário. Mas ainda permaneço vinculado à perspectiva de referências de mudança radical.

Tempo e Argumento:

Hoje você é socialista?

Daniel Aarão Reis:

Eu me considero, me considero socialista. Hoje eu gosto muito da tradição instaurada pelo Herzen, do reformismo revolucionário. Hoje eu me situo nesse campo, que eu chamo de reformista revolucionário. A idéia de acabar com a muralha da China, entre a reforma e a revolução, de lutar por reformas profundas na sociedade, reformas que tenham um caráter revolucionário, mas que preservem os valores democráticos, não se façam às custas da democracia. Perdi completamente as expectativas nos partidos de vanguarda, que me parecem laboratórios de construção ditatorial, autoritários. Admiro a luta deles, tenho amigos no PSTU e no PSOL, mas acho que são partidos marcados por um autoritarismo visceral, o que me parece uma via equivocada. Por isso quando me desliguei do PT, no início de 2005, antes dos escândalos, por achar que o PT no poder já está empreendendo uma política demasiadamente moderada, demasiadamente conciliatória, escrevi uma carta para o [José] Genoíno. Na minha perspectiva, o Lula, quando assumiu o poder, tinha uma possibilidade de ação transformadora que ele não utilizou, recuou, porque tem outras orientações. O Lula é realmente um político que eu considero do campo reformista moderado. Acho que ele tinha referências, queria mudar as condições de vida do povo, ele queria dar melhores condições de vida do povo, mas escolheu caminhos de conciliação com as classes dominantes, que me parecem extremos. Foi por isso que eu me desliguei do PT. Não me desliguei por causa dos escândalos morais. Porque aí eu acho que é uma outra discussão que me parece um pouco excessiva, ou melhor, bastante excessiva, e uma discussão muito instrumentalizada pela direita. Aliás os esquerdistas que falam que falam que eu não posso dizer que houve projetos revolucionários no Brasil que assustavam as direitas estão constantemente indo à reboque dessas campanhas denuncistas moralistas, que essas sim só dão argumentos às direitas.

Acho, portanto que mudei muito em termos do passado, mas não abandonei certas referências básicas. Continuo me colocando no campo do socialismo, mas do socialismo democrático. É por isso que digo brincando que sou o último democrata da academia. Essa é uma brincadeira que faço pra provocar os colegas, porque me parece hoje, realmente, que os valores democráticos são absolutamente essenciais. E aí a gente vai para uma discussão de o que é democracia?

Tempo e Argumento:

Que democracia? Que conteúdo de democracia?

Daniel Aarão Reis:

Tenho uma discussão sobre isso e acho que realmente foi uma lástima o veio comunista soviético catastrófico revolucionário, a partir da Revolução Russa, ter abandonado completamente esse patrimônio que era dos socialistas, o patrimônio da democracia. Os valores democráticos do século XIX são valores defendidos e divulgados principalmente pelos socialistas. Os liberais eram anti-democráticos. Os liberais conseguiram essa grande metamorfose, anexar ao ideário deles a palavra democracia, porque os liberais clássicos da primeira metade do XIX e até da segunda metade são virulentamente anti-democráticos. O programa democrático era uma bandeira dos socialistas. Desgraçadamente, a partir da Revolução Russa, de um lado os social democratas vão se manter apegados à democracia, mas vão abandonar o socialismo, e os russos vão fazer do socialismo um programa a ser conseguido através da ditadura, que vai se fortalecendo cada vez mais. Na perspectiva socialista do XIX a ditadura era um recurso do qual você poderia lançar mão, mas seria um recurso provisório, uma coisa muito rápida. Enquanto que no socialismo do século XX, quanto mais o socialismo se fortalece, mais a ditadura se conserva. Então foi um abandono dos valores democráticos que acabou desgastando muito o socialismo.

Por isso socialismo a ser reinventado no século XXI, é um socialismo que precisa recuperar, resgatar essa tradição democrática. Para isso tem que abandonar o catastrofismo revolucionário. Porque na perspectiva catastrófica revolucionária a ditadura é um valor, embora muitas vezes as pessoas tenham certa vergonha de assumir isso. Procuram dizer que a ditadura ocorreu em função das circunstâncias. Em parte foi realmente, aliás, eu sustento nesse artigo que em grande parte foi obra das circunstâncias, mas em grande parte foi também o resultado de uma opção que eles fizeram. E essa opção tinha tradições muito consideráveis.

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[1] Transcrita por Lilian Back
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