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Embarques e desembarques na estação da memória de Joinville
Ilanil Coelho
Ilanil Coelho
Embarques e desembarques na estação da memória de Joinville
Revista Tempo e Argumento, vol. 3, núm. 1, pp. 74-95, 2011
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Resumo: O objetivo deste artigo é interpretar historiograficamente os embates travados no processo de patrimonialização de uma antiga estação ferroviária na cidade de Joinville, Santa Catarina. Para tanto, a investigação vale-se de obras escritas por historiadores, documentos de imprensa e da municipalidade, bem como de fontes orais. São discutidos os diferentes sentidos dos termos história, memória e patrimônio cultural indiciados em discursos sobre a Estação Ferroviária de Joinville. Procuro demonstrar que as múltiplas abordagens sobre este bem cultural dizem respeito às experiências sociais com o presente, o passado e o futuro. Concluo que, na contemporaneidade, as políticas públicas de proteção e gestão do patrimônio cultural urbano devem voltar-se muito mais aos processos de apropriação social dos bens e menos às edificações de que são referência.

O objetivo deste artigo é interpretar historiograficamente os embates travados no processo de patrimonialização de uma antiga estação ferroviária na cidade de Joinville, Santa Catarina. Para tanto, a investigação vale-se de obras escritas por historiadores, documentos de imprensa e da municipalidade, bem como de fontes orais. São discutidos os diferentes sentidos dos termos história, memória e patrimônio cultural indiciados em discursos sobre a Estação Ferroviária de Joinville. Procuro demonstrar que as múltiplas abordagens sobre este bem cultural dizem respeito às experiências sociais com o presente, o passado e o futuro. Concluo que, na contemporaneidade, as políticas públicas de proteção e gestão do patrimônio cultural urbano devem voltar-se muito mais aos processos de apropriação social dos bens e menos às edificações de que são referência.

Palavras-chave:HistóriaHistória, Memória Memória, Patrimônio Cultural Patrimônio Cultural.

Abstract: This paper aims to historiographically interpret conflicts permeating the heritage-listing process of an old railway station in the city of Joinville, Santa Catarina. The research has been based on historians writings, newspapers and municipality official documents as well as oral history sources. Different meanings of the terms of history, memory and cultural heritage present in speeches about the Railway Station of Joinville are discussed. I seek to demonstrate that the multiple approaches to this cultural heritage refer to social experiences with the present, the past and the future. Finally, in contemporary times, I think that the public protection and management policies of urban cultural heritage must focus more on social appropriation processes than on the referenced buildings.

Keywords: History, Memory, Cultural Heritage.

Carátula del artículo

Dossiê

Embarques e desembarques na estação da memória de Joinville

Ilanil Coelho
Universidade da Região de Joinville, UNIVILLE, Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 3, núm. 1, pp. 74-95, 2011
Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepção: 25 Fevereiro 2011

Aprovação: 13 Maio 2011

Como a interpretação histórica pode contribuir para a discussão sobre a produção de patrimônio numa cidade contemporânea, tomando-se como referência os usos e as representações de uma antiga estação ferroviária? Esta é a indagação que inicialmente me motivou a retomar a pesquisa que desenvolvi no meu doutorado[2]. Lá procurei investigar as transformações urbanas de Joinville[3] a partir dos anos de 1980 sob impulso da migração, ou melhor, das vivências de migrantes provenientes de várias regiões do Brasil.

Das muitas possibilidades abertas pela documentação que recolhi, e especialmente pelas contribuições que recebi para explorar novas questões e relações temáticas, procuro neste artigo lidar com pelo menos uma delas, qual seja: os vínculos que se podem vislumbrar entre memórias (narradas e escritas), processos de identificação cultural e os múltiplos significados que instituem e constituem o patrimônio cultural urbano.

Tomo como objeto de análise uma edificação recentemente instituída como um espaço de memória de Joinville[4], procurando investigar as relações que os joinvilenses estão estabelecendo com o passado e, nesta perspectiva, os significados que fundamentam o jogo entre as iniciativas governamentais (locais) da área cultural e as exigências sociais emergentes sobre os usos e funções deste espaço.


1
Figura 1:

Estação da Memória de Joinville.

Fonte: Acervo da Secretaria de Comunicação da Prefeitura Municipal de Joinville. Disponível:

Discuto inicialmente as narrativas de historiadores que abordaram a sua inauguração: Carlos Ficker, Adolfo Bernardo Schneider e Apolinário Ternes. Num segundo momento, procuro retomar as discussões provenientes de diferentes lugares, sujeitos e grupos e, nestes termos, refletir sobre as tensões culturais que atravessam, no tempo presente urbano, as representações e práticas ligadas aos plurais desejos de memória, de identidade e de patrimônio.

O crítico literário alemão Andreas Huyssen (2000) constata que, desde fins do século XX, tem havido um deslocamento na experiência e na sensibilidade humanas em relação às temporalidades e espacialidades. Isto porque, de um lado, as pessoas já não vislumbram o futuro pautando-se pela noção moderna de progresso linear e ascendente e, por outro lado, tomadas por uma obsessão memorialística, buscam combater intolerâncias e esquecimentos, afirmar diferenças e ancorar-se “em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido” (HUYSSEN, 2000, p. 20). Assim, uma cultura de memória ascende vigorosamente quer como plataforma política para movimentos sociais quer para o planejamento de ações e iniciativas governamentais ou das indústrias culturais. O desafio nesta configuração seria, então, conhecer como, no presente, a memória funciona, quais os seus propósitos e em que medida se relaciona com os direitos e com as complexas interseções dos fluxos globais.

No que diz respeito aos movimentos envolvendo memória e monumentos (patrimônio), Huyssen afirma ser necessário problematizar menos a morfologia das construções e mais as discussões públicas em torno delas (o processo), pois aí estariam em jogo as possibilidades que os sujeitos vislumbram para lhes “garantir alguma continuidade dentro do tempo” e “alguma extensão do espaço vivido” (HUYSSEN, 2000, p.30). Contudo, a ideia de que o afã pela memória e pelo patrimônio seria uma forma de compensação é demasiadamente simplista. O problema seria buscar compreender o que há de específico na organização da memória e dos monumentos em relação às épocas passadas, bem como duvidar se é possível conformar consensualmente memórias cada vez mais fragmentadas e, se não, como um monumento ou mesmo um espaço de memória poderia suportar as diferenças.

Para o historiador francês François Hartog (2006), a onda patrimonial, em sintonia com a da memória, é trabalhada também por sensações de aceleração do tempo. Contudo, em primeiro lugar, seria preciso não perder de vista que o próprio percurso da noção patrimônio demonstra ser, antes de tudo, uma maneira de viver, reconhecer e reduzir as rupturas experimentadas, referindo-se a elas. Diz que, na contemporaneidade, produz-se “lugares de patrimônio” para edificar “a identidade escolhendo uma história, que se torna a história, a da cidade ou do bairro: história inventada, reinventada ou exumada, depois mostrada” (HARTOG, 2006, p. 268). Neste movimento, manifesta-se uma tendência de naturalização sobre o que, de fato, institui e fundamenta o patrimônio praticado e representado. Por isso, seria imprescindível ao historiador investigar “as tensões existentes entre ‘campo de exercício’ (‘experiência’ – NT) e ‘horizonte de espera’” e atentar “aos modos de articulação do presente, do passado e do futuro” (HARTOG, 2006, p. 263).

Nesta direção e para os propósitos deste artigo, acredito que a antiga estação ferroviária de Joinville pode ser investigada como fragmento de temporalidades/espacialidades experimentadas pelos joinvilenses na contemporaneidade. Como tal, estão - em jogo e imbricadas - as reivindicações e preocupações com o que ameaça o futuro da estação, o esquecimento de sua importância para a memória pública da diversidade cultural urbana e os embates políticos travados para inscrevê-la e conformá-la como patrimônio cultural.

O olhar dos historiadores

Em obra publicada em 1965, a Estação Ferroviária como edificação pouco chama atenção do historiador Carlos Ficker (2008). O que lhe parece ser mais importante é o processo de construção da via férrea. As mazelas que envolveram a definição do traçado e a colocação dos trilhos fazem parte de um acontecimento, dentre outros, do leque de iniciativas que a ele simbolizam a chegada da modernidade a Joinville: luz elétrica, telefone, cinema, automóvel e empreendimentos como o mercado municipal e o hospital.

Diz Ficker (2008, p. 321) que, em 1900, “os sacrifícios, renúncias e tristezas que caracterizaram a vida dos primeiros colonos só ficaram guardados na memória dos moradores mais velhos de Joinville”. Cabia então relatar “os fatos mais importantes” deste passado que possibilitaram “novos horizontes” ao desenvolvimento da cidade. Do seu lugar social[5], o presente parecia ser o próprio futuro já em experimentação e o passado uma espécie de nota de rodapé.

O autor narra, com leveza surpreendente, a derrubada de antigas casas para a melhoria do trânsito pelas vias públicas e para a construção da Estação Ferroviária. O que estava em jogo era um “brilhante porvir”, o qual também se manifestava em outras obras arquitetônicas no centro, como o majestoso edifício do Club Joinville. Contudo, para esta construção, teria sido preciso que “a ação da picareta” colocasse abaixo um velho edifício onde funcionara um hotel e antes dele o Telégrafo Nacional. Ainda que lamentasse que as memórias sobre as sociabilidades dos velhos tempos perdessem referências sólidas, as demolições respondiam à “evolução natural das cousas” (FICKER, 2008, p. 384).

A importância da Estação (e de outras edificações) residia, pois, nos termos de sua funcionalidade e de expectativa futura para o urbano. Em 1906, crê o autor (em 1965), o futuro silvava pela locomotiva que interrompia brevemente o seu percurso, pela primeira vez, para embarque e desembarque de pessoas e mercadorias numa plataforma anexa a uma edificação ainda em construção.

O livro Memórias I publicado, em 1983, pelo historiador Adolfo Bernardo Schneider (1983), ao contrário, suscita novas interpretações sobre a inauguração da Estação Ferroviária. A ocasião revelaria certo provincianismo dos comportamentos urbanos. Conta que, no início de 1906, houve a maior enchente de Joinville. Casas e edifícios do centro ficaram alagados à altura de 1 metro de água, provocando prejuízos de toda ordem aos joinvilenses. Contudo, o fato sequer teria sido lembrado pela população quando, em agosto, o presidente Afonso Penna chega à cidade para inaugurar o prédio inacabado. De fraque e de cartola num ensolarado e acalorado dia, diz ele que o presidente encontrou “o que havia de mais distinto no mundo político, social e econômico da Cidade dos Príncipes” (SCHNEIDER, 1983, p. 40) e continua, neste “quase sertão brasileiro, porque muito mais do que isto Joinville daquela época não era”, constatava-se que “já antigamente havia em Joinville essa tendência de querer parecer mais que os outros” (SCHNEIDER, 1983, p. 45). Ainda mais quando serviram no banquete ao presidente vinho e champanhe, importados da Alemanha e da França, em temperatura ambiente[6].

Parece-me que a narrativa histórica de Schneider flui ao sabor de suas próprias memórias e sensibilidades. Diferentemente de Ficker, as temporalidades se misturam num vai e vem impressionante. Contrapondo-se à linearidade do tempo, esvaindo-se da objetividade e estabelecendo um jogo intersubjetivo com personagens e fatos, Schneider transforma em história a memória dos eventos que marcaram a inauguração da Estação Ferroviária. Nesta operação está, também, o que pensa ser o patrimônio cultural em relação ao passado e futuro da cidade.

Antes de escrever o livro, Schneider foi um personagem bastante atuante na área cultural. Sob sua influência, foi elaborada a lei de criação do Arquivo Histórico de Joinville (1972), tendo sido nomeado o primeiro diretor. Participou ativamente da fundação do Museu Casa Fritz Alt. (1985), do Museu Arqueológico de Sambaqui (1963) e do Museu Nacional de Imigração e Colonização (1957). Pouco antes de morrer explicou as razões do seu envolvimento ativo nesta área: Joinville teria estagnado após a implantação da “legislação getuliana” [7] do final dos anos 1930, bem como após a industrialização “galopante” que fez afluir à cidade “os operários do interior”. Imperioso foi o “reavivamento cultural” (FUNDAÇÃO, 1996, p. 8) urbano por meio do recolhimento e guarda de documentos e a fundação de museus que expusessem a história e a identidade dos joinvilenses.

Portanto, Schneider produz sentidos para o patrimônio urbano baseando-se não apenas na operação de equivalência entre memória e história, mas também na importância do patrimônio cultural como marcação para uma identidade concebida como a identidade da cidade. Neste ponto de vista, em relação à obra de Ficker escrita em 1965, novas dissonâncias podem ser auscultadas e me parece que elas se referem às sensibilidades e às experiências de ordem do tempo e do espaço para cada um dos historiadores.

A partir da década de 1940, com novos meios de transportes, o fluxo de passageiros na Estação e pela via férrea diminui vertiginosamente. Em 1996, a Rede Ferroviária Federal S/A - RFFSA é privatizada, o que resulta no fechamento da Estação. No mesmo ano, a edificação é tombada como patrimônio histórico estadual pela Fundação Catarinense de Cultura.

É neste contexto que o historiador/jornalista Apolinário Ternes (1997) escreveu sobre a Estação, manifestando o seu desencantamento diante da paisagem urbana joinvilense. Sob o título “Resgatar a identidade e reconstruir a esperança”, Ternes constata que a cidade ao se deixar “barbarizar pela modernidade”, havia perdido “o sentido da história” e estava “perdendo a memória de sua geografia, colonizada pelos despossuídos da modernidade” (TERNES, 1997). A célebre frase do Presidente Affonso Penna quando de sua vinda em 1906, aclamando Joinville como o "Jardim do Brasil", já não mais condizia com a realidade. Advertia que a qualidade de vida dos joinvilenses dependeria não apenas do reconhecimento do valor do patrimônio material, mas, sobretudo, a partir dele, do “espírito coletivo” que lhe deu forma. Esclarece aos seus leitores:

Não somos uma coleção de prédios ou um aglomerado de casas. Somos uma cidade, habitada por uma energia positiva, realizadora e capaz. O espírito de Joinville detém um sentido de futuro. Precisamos apreendê-lo e reinventá-lo segundo as exigências do nosso tempo. O tempo nosso, de hoje, nos impõe o resgate de nossa identidade. Joinville precisa pensar num projeto de auto-apropriação. [...] Precisamos conhecer o que já fomos e fizemos, justamente para construir o presente com a competência que o futuro nos exige (TERNES, 1997).

Parece-me, pois, que, para Ternes, o remédio para a corporalidade urbana adoecida em fins do século XX seria o reavivamento de uma essência que, embora em estado de inconsciência coletiva, moveu e inspirou a cidade e os cidadãos. Mais ainda, a memória é por ele operada para essencializar não apenas o passado e o futuro de Joinville, mas, sobretudo, o presente, a identidade e o patrimônio cultural.

Ainda que provenham de épocas e lugares sociais diversos, os discursos de Ficker, Schneider e Ternes sobre a inauguração, a importância e a trajetória da Estação Ferroviária de Joinville, carregam diferenças marcantes que nos remetem novamente às reflexões de Hartog (2006). Para este autor, os discursos históricos são submetidos a regimes de historicidade, isto é, a formas como, numa dada temporalidade, as sociedades lidam e articulam as três dimensões do tempo, produzindo sentidos sobre elas. Nesta perspectiva, cabe indagar se as maneiras como Ficker, Schneider e Ternes descreveram e analisaram o passado da Estação não exprimiriam diferentes experiências com o tempo no momento da escritura. Penso que sim. Se para Ficker (2008), a “ação da picareta” é meio e instrumento para a conquista de um futuro urbano que se lhe apresenta como certo e inquestionável, para Schneider (1983) e, mais intensamente, para Ternes (1997), o futuro apresenta-se como impreciso e indefinível. A Estação – fragmento tomado do passado pelos dois historiadores – transfigura-se em seus significados para referenciar aos joinvilenses o que de essencial seria preciso memorizar, revitalizar e dispor como consciência histórica e identitária para o futuro. E ainda, ao suspeitar que não se esteja lidando com sensibilidades de tempo dissociadas da experiência social, necessário se faz analisar como tais questões, a partir dos anos de 1990, atravessam e são articuladas na rede de discursos (e sentidos) sobre memória, história e patrimônio.

Olhares cruzados sobre a Estação

Em 2001, a “decadência de um prédio considerado como essencial para a história do desenvolvimento do município de Joinville” foi também abordada pela jornalista Marlise Groth (2001). Abandonada à própria sorte, vítima de “atos de vandalismo”, servindo como moradia de mendigos, traficantes, pombos e cupins, dizia: “a Estação se mantém em pé. Tenta aparentar dignidade enquanto suas janelas quebradas e torres com falta de telhas dão o tom de desalento”. Contudo, informava: “um projeto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Joinville (IPPUJ), promete reverter o processo, transformando a Estação de Passageiros num centro de turismo e lazer para a cidade”. O primeiro passo teria sido dado com a aquisição, pelo município, do complexo edificado (GROTH, 2001).

A partir de então, no debate sobre o papel e os usos do novo espaço é possível vislumbrar um campo tenso de disputas sobre os elementos que deveriam prevalecer para as definições políticas e ações da municipalidade em prol do patrimônio cultural urbano.

Com o objetivo de "fazer com que empresas e turistas passem [passassem] a valorizar o patrimônio industrial brasileiro, preocupando-se com a sua preservação", a Fundação de Promoção e Planejamento Turístico de Joinville – Promotur dá início em 2002 ao Projeto Turismo Industrial em parceria com uma faculdade de turismo local. A coordenadora do projeto, Yoná da Silva Dalonso, descreve uma de suas ações: "apresentamos para o visitante não só o patrimônio edificado da fábrica, mas também o processo produtivo e a própria história da companhia” (MAWAKDIYE, 2010). O percurso, com duração de 1h30m, além de fomentar o turismo, seria uma oportunidade para apresentar a história e a memória da “cultura industrial” da cidade. Nesta visagem, história e cultura seriam resultantes da vinda e trajetória de imigrantes alemães portadores de uma forte ideologia capitalista e de conhecimentos técnicos. As fábricas integradas ao circuito tornavam-se, assim, referências sólidas para o deleite sensorial e cognitivo dos turistas.

A difusão dos resultados alcançados pelo projeto motivou, dois anos mais tarde, a sua transformação em Programa de âmbito estadual. Breno Storino Holderbaum (2008), profissional de turismo e hotelaria, analisou a experiência e propôs, em artigo publicado no início de 2008, a inclusão da Estação Ferroviária como centro de referência para o desenvolvimento do turismo industrial de Joinville. A ideia seria torná-la ponto de partida para os turistas estabelecerem seus percursos de consumo na (e da) própria cidade, orientados e estimulados por profissionais do ramo de hospitalidade. Para tanto, o espaço deveria abrigar restaurantes, lojas, pontos de venda de cartões postais e quinquilharias, agência de turismo e um complexo de museus: um, quase obrigatório, exibindo um acervo sobre a cidade em geral – história, cultura e sociedade – e outros como, por exemplo, o da bicicleta e o da ferrovia.

Conforme Holderbaum (2008), a sua proposta não apenas valorizaria os aspectos arquitetônicos e históricos da edificação, mas, sobretudo, a importância do patrimônio imaterial e intangível para a própria cidade. Fundamenta seus propósitos aludindo à legislação federal que em 2000 instituiu o Inventário Nacional de Referência Cultural. Para ele, os novos critérios de patrimonialização estavam sendo rigorosamente contemplados, pois a sua proposta corroboraria para a exposição do “saber fazer” próprio, essencial e predominante dos joinvilenses, bem como da “cultura industrial” presente na história e na tradição local[8].

A esse respeito, Huyssen (2000) adverte que não nos é possível problematizar a memória pública – e, penso eu, também o patrimônio cultural – sem considerar os seus vínculos com os impulsos de mercadização e espetacularização. Diz ele que na contemporaneidade “não há nenhum espaço puro fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal espaço” (HUYSSEN, 2000, p. 21). Assim, a crítica à mercadização da memória não pode se valer de oposições binárias e excludentes, tais como “memória séria” versus “memória mercadoria” ou mesmo memória histórica versus memória turistificada, mas na problematização que, caso a caso, sinaliza as interconexões que instituem tais práticas e representações da memória. A proposta de Holderbaum (2008), a meu ver, emerge nessa fronteira, possibilitando-lhe operar com simbioses entre práticas e significados, apropriados do seu tempo e lugar, sobre memória, história, patrimônio e turismo.

Entretanto, num outro setor da administração pública, o debate sobre o papel e os usos da Estação Ferroviária tomou outros caminhos. Refiro-me a instâncias e sujeitos engajados na proposição de políticas culturais para o município.

É preciso dizer, antes de tudo, que a interpretação que passo a fazer das discussões que ocorreram junto aos órgãos culturais, leva em conta não apenas as fontes documentais, mas meus próprios registros de quando participei – como historiadora indicada representante da sociedade civil – na Comissão do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Natural do Município de Joinville – COMPHAAN, entre os anos de 2004 e 2008.

Ocorre que, desde 2004, como órgão gestor de políticas culturais, a Fundação Cultural de Joinville respaldou sistematicamente suas ações na área patrimonial, em pareceres emitidos pela COMPHAAN. Composta paritariamente por membros do poder público e por representantes da sociedade civil, o tom dos debates empreendidos, a meu ver, realçava predominantemente as subjetividades dos que a compunham, dentre os quais, historiadores, arquitetos e biólogos, movidos pelo desejo de minimizar “perdas patrimoniais”. Perdas essas concebidas como resultantes do impulso imobiliário e do desapego de pessoas em relação ao passado urbano e à diversidade cultural do presente. Nas reuniões, comumente, em jogo era colocado o tema da identidade e de como a memória e a história poderiam conformá-la no presente vivenciado. É neste clima que as discussões sobre a quem caberia a gestão do complexo restaurado da Estação, bem como sobre o que dele seria feito, se desenrolavam. Pelas atas pesquisadas, o Sr. Miraci Dereti[9], apoiado por outros membros, reiteradamente defendeu que, como um novo espaço público de memória, seria impossível cedê-lo para terceiros ou entidades privadas (FUNDAÇÃO, 2004). Além das especulações sobre a gestão da Estação ficar a cargo da Promotur, outro problema era vislumbrado pelos membros da COMPHAAN: o espaço estava sendo reivindicado para abrigar definitiva e formalmente uma coleção de bicicletas de propriedade particular.

À medida que as obras de restauro avançavam, a COMPHAAN colocava em causa os termos que deveriam prevalecer para traçar o destino e uso da edificação. Várias possibilidades foram aventadas, dentre elas a de que o espaço poderia abrigar uma estação da música, pois a cidade não poderia se deixar ver como portadora de uma unívoca cultura industrial. Por outro lado, seria preciso neutralizar as críticas que imputavam à COMPHAAN o papel de agente que inviabilizava o avanço econômico local. Para tanto, o destino e uso da Estação Ferroviária precisariam alinhar-se minimamente às metas da então denominada indústria sem chaminés, ou seja, à economia do turismo.

Em 2008, as disputas até então travadas pareciam chegar ao final. Por um lado, uma lei ordinária do executivo municipal determinava que a Estação ficasse sob a administração da Fundação Cultural de Joinville. Por outro lado, na reinauguração da desde então denominada Estação da Memória, prevaleceu a ideia de que "a estação é um equipamento importante que registra a história e o crescimento da cidade” [10]. Sendo assim, além de abrigar áreas de lazer iria contar com exposições e projetos que valorizassem a diversidade social urbana.

Em entrevista realizada em 2010, o Sr. Charles Narloch[11] relembrou as razões e os pressupostos levados em conta pelo poder público para inserir a Estação da Memória no conjunto patrimonial de Joinville. Disse ele: “o Museu do Sambaqui tem uma importância gigantesca, porém ele trata de um período específico que é a presença do homem do sambaqui nesta região”; o Museu Nacional de Imigração e Colonização conta a história “colocando a imigração europeia como a única responsável pelo que Joinville é hoje”. Por isso, a Estação da Memória deveria ser “um lugar da memória coletiva, em que todos e todas se sentissem contemplados”: “lusos”, “negros” e “migrantes brasileiros dos anos 70, 80 e 90” (NARLOCH, 2010).

Cabe aqui refletir sobre algumas questões que me parecem importantes para interpretar como, na cidade contemporânea, a “onda patrimonial” no âmbito do governo local diz respeito às diferentes experiências de e com o tempo que cruzam as vivências cotidianas e aos novos vínculos que vão se estabelecendo entre memória, história e identidade.

A iniciativa do poder público, com respaldo da COMPHAAN, de transformar a Estação Ferroviária em Estação da Memória carrega, em primeiro lugar, a noção de que a identidade dos sujeitos pode ser talhada por outrem, já que, como uma nova referência patrimonial, seria capaz de promover novas aquisições identitárias. Em segundo lugar, a iniciativa suscita a crença de que é possível, aos profissionais do campo patrimonial, conhecer e organizar os critérios, as categorias e os meios pelos quais os sujeitos significam e se apropriam de uma memória coletiva e de uma história da cidade, ainda que renovada e pluralizada. Em terceiro lugar, a Estação da Memória[12] concebida como signo que permitiria aos joinvilenses usufruírem o direito à memória, à história e ao patrimônio na perspectiva da “diversidade cultural”, seria capaz de exalar sentimentos de pertença ancorados em temporalidades e espaços fincados localmente; mais ainda, como signo reparador para supostas sensações de incertezas e de invisibilidade de grande parte da população; como se, na complexidade dos fluxos contemporâneos, a migração do passado e do presente sintetizasse todas as diferenças culturais vivenciadas e representadas pelos joinvilenses.

Por outro lado, parece-me que o destino e usos da Estação da Memória manifestam a intenção e o esforço da Fundação Cultural em lidar com a questão patrimonial para “além da pedra e cal” (FONSECA, 2003, p. 64). Como bem patrimonializado, a sua importância se relaciona menos “às ideias de conservação e de imutabilidade” e mais às ideias de transformação urbana e aos sentidos que lhes são atribuídos ao longo do tempo. Isto, por sua vez, explicita os atuais desafios que atravessam a formulação e implementação de políticas públicas voltadas à democratização e apropriação social do patrimônio cultural de Joinville.

Supor a produção de patrimônios culturais sob a proteção do Estado, como “uma ‘formação discursiva’ que permite ‘mapear’ conteúdos simbólicos”, visando construir identidades, pode ser, na avaliação de Fonseca (2003, p. 65), “tão problemático quanto reduzir a função de patrimônio à proteção física do bem”, pois a justificativa para o exercício de proteção deve se fundamentar em “ações de ‘identificar’ e ‘documentar’ [..] seguidas pelas ações de ‘promover’ e ‘difundir’, que viabilizam a reapropriação simbólica e, em alguns casos, econômica e funcional dos bens preservados” (FONSECA, 2003, p.65). Tal fundamentação, ainda para a autora, possibilita uma combinação entre critérios técnicos e políticos, bem como a abertura para a participação da sociedade na construção e apropriação de seu patrimônio cultural.

Ora, as tensões que se podem vislumbrar entre o recente decreto que regulamenta a criação da Estação da Memória e as diferentes reivindicações sociais de uso deste espaço, desafiam não apenas as ações que visam proteger este patrimônio, mas as próprias diretrizes políticas (em discussão na Câmara dos Vereadores) para democratização e gestão patrimonial na cidade.

Em 2008, o Setor de Educação Patrimonial da Estação deu início ao Projeto Encontros com a Memória. Salientando que “A história é feita pelas pessoas. Não pelos grandes nomes. O Afonso Pena inaugurou a Estação, mas o batismo foi feito pelos trabalhadores que conduziram o primeiro comboio”, a coordenadora do projeto explica:

Na cidade do trabalho, as memórias do trabalho ferroviário estão na plataforma da Estação. As histórias emergem como pluma. A leveza da conversa, a sinceridade do sorriso e da lágrima são resultados dos bate-papos travados nesses encontros. A história da cidade se faz e se refaz todos os dias. Porque não há nada mais cruel do que salvaguardar somente o patrimônio edificado e coisificado, objetivado e fetichizado. (OS NOVOS TRILHOS, 2010)

Ainda para a coordenadora, o projeto preenchia uma lacuna na “história oficial” de Joinville, já que procurava responder “perguntas que todos os trabalhadores devem fazer sobre os grandes feitos históricos”. Por meio de suas ações, seriam abertas possibilidades aos trabalhadores de se identificarem como tais, pois traziam à tona as diferentes memórias daqueles que “realmente” construíram, restauraram e vivenciaram a cidade e a Estação, bem como iriam promover novas sociabilidades e encontros entre os trabalhadores do passado e do presente. Assim, pedagogicamente, os joinvilenses deveriam aprender e atribuir ao patrimônio um novo sentido e função: “o entendimento de que atrás do acervo existem pessoas, existem trabalhadores [grifo meu] que foram e são cruciais para o desenvolvimento da história social, econômica e cultural de Joinville” (OS NOVOS TRILHOS, 2010).

No meu ponto de vista, a educação e a gestão patrimonial, neste projeto específico, se mostram atreladas a uma política de memória que não apenas busca reparar o direito da classe trabalhadora sobre o patrimônio cultural urbano, como também invocar o desejo de difundir e legitimar uma verdade histórica, escolhida e representada como a verdade histórica do passado e do presente social, econômico e cultural de Joinville. Desta forma, demarca e fixa um princípio ordenador das ações para identificar, documentar, promover e difundir, qual seja: a classe operária e suas memórias. Em que pese o fato de o projeto imprimir à Estação esta qualidade (tão essencialista quanto generalizante) de formação discursiva que permite mapear conteúdos simbólicos como uma espécie de contraponto ao discurso enviado por outros museus e projetos, não haveria maiores problemas se outros fatos e ações não fossem contestados por diferentes sujeitos e grupos pelo critério de coerência e de direito à “história-patrimônio” (HARTOG, 2006, p. 266).

Dentre vários epítetos, Joinville é conhecida como “cidade dos museus” e “cidade das bicicletas”. Em 2000, para organizar e coordenar a comemoração da passagem dos 150 anos da cidade foi criado e instalado na Estação Ferroviária o Instituto Joinville 150 Anos[13]. Para os membros, o passado tornava-se referência e mote dos eventos a serem realizados. Por isso, além das festividades, foram criados vários projetos museais voltados à exposição de objetos antigos e preservados. A ideia era a de oportunizar às novas gerações, o conhecimento do passado da cidade para entenderem o seu presente (MACHADO, 2009). Foi nesta ocasião que, com o apoio do Instituto, a antiga estação de cargas, mesmo em condições precárias, passou a abrigar um acervo de mais de 16 mil peças de propriedade do colecionador Valter Busto. Um novo lugar de memória seria inaugurado caso fosse estabelecida uma “exitosa parceria entre o Poder Público Municipal e a iniciativa privada” (APRESENTAÇÃO, 2010). Desta parceria, a cidade poderia contar com mais um museu, agora destinado a “consagrar” Joinville por “sua vocação como a Cidade das Bicicletas” (APRESENTAÇÃO, 2010). Como observa Machado (2009), o projeto do museu da bicicleta era movido pela noção de que um museu é um ajuntamento de objetos e desempenha prioritariamente um papel de decoração visual de uma história da cidade. Por isso, na esteira da crítica de Machado, penso que, mesmo antes de qualquer tratamento técnico de acervo ou mesmo antes de qualquer processo político jurídico de análise sobre a sua viabilidade e relevância social, a decisão dos eminentes membros do Instituto 150 Anos, com o apoio de alguns dos gestores municipais que ocupavam cargos de primeiro escalão, prevaleceu e instituiu de fora e de longe das formalidades, o Museu da Bicicleta – MuBi.

Já em 2001, inúmeros problemas foram levantados e enfrentados pela Fundação Cultural e pela COMPHAAN em relação ao MuBi. O poder municipal não poderia criar um museu público com acervo privado, ainda que nele houvesse “bicicletas doadas pela comunidade” (FUNDAÇÃO, 2005) e que este fosse considerado “de interesse público”. Tampouco poderia responsabilizar-se pelo constatado sumiço de algumas peças e dotado em orçamento, verba mensal de locação do acervo, conforme exigência do Sr. Valter Busto.

A criação e a regularização do MuBi se arrastaram até março de 2010 quando, devido a fortes chuvas e vendavais, o teto do prédio onde estava o acervo desabou. A Fundação Cultural imediatamente interditou o local, anunciando, meses mais tarde, que o museu não mais seria reaberto. A razão, conforme noticiado, não se justificava unicamente pelo incidente natural, mas também porque, “com as novas políticas públicas voltadas para os espaços de memória, o acervo precisaria estar de acordo com algumas exigências previstas”, dentre as quais um inventário. Além disto, sem registro como museu “o Mubi não pode [ria] contar com verbas e financiamento federal para melhorias e manutenção” (FUNDAÇÃO, 2010).


2
Figura 2:

História Joinvilense Destelhada.

Fonte: LOSEKANN, Silvana. História Joinvilense Destelhada. Joinville, março de 2010. Disponível em: . Acesso em: jan. 2011.

O anúncio sobre o fechamento do Mubi tornou-se, a partir de então, objeto de debate público acirrado, de vozes provenientes de diferentes grupos e pessoas, segundo conveniências políticas e desejos de cidade. Para alguns, a história de Joinville ficara destelhada (HISTÓRIA JOINVILENSE, 2010). Para outros, seria “uma mostra que a cultura europeia que tanto propalamos e dizemos nos orgulhar, é pura balela. Infelizmente, continuamos a colocar no poder público, pessoas descomprometidas com nossa herança cultural” (SILVA, 2010).

Um grupo, em especial, ganhou visibilidade pública como agente de reivindicação à reabertura do MuBi, encaminhando uma carta ao prefeito municipal e divulgando amplamente suas exigências em programas de rádio, jornais e internet. Trata-se do Movimento Pedala Joinville – MPJ, “entidade civil de direito privado, sem fins econômicos” (PEDALA JOINVILLE, 2010) criado em 2007. Composto por uma maioria de profissionais liberais, executivos e empresários[14], inclusive do setor de bicicletas, promove uma série de ações voltadas à difusão do que denominam “cultura da bicicleta”. Politicamente, levantam a bandeira de que a bicicleta é um poderoso meio de transporte e lazer que garante a qualidade de vida nos centros urbanos, fortalecendo o “conceito de sociedade sustentável” [15].

Utilizando a frase, “A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia”, o grupo exige não apenas a reabertura do MuBi como também a intensificação de “campanhas de conscientização para o trânsito” (MOVIMENTO, 2010). Em reunião com os representantes da Fundação Cultural, o grupo lembrou que, se nos anos de 1970 e 1980 o vai e vem dos operários ciclistas foi responsável pelo epíteto de Joinville como “cidade das bicicletas”, cumpria agora ao poder público proteger este passado como herança para o futuro.

A meu ver, argumentos um tanto difusos e contrastantes atravessam as reivindicações do MPJ. Por um lado, o grupo concebe a produção de identidades como processo cotidiano, cujas relações com o passado emergem e são estabelecidas a partir das necessidades e dilemas do presente. Por consequência, o MuBi seria um espaço de memória voltado a nutrir os desejos de cidade por parte daqueles que prospectam o futuro urbano, aliando-o à “questão ecológica” (MOVIMENTO, 2010). Porém, a noção de identidade como processo e a ideia de que a história é narrativa produzida no e para o presente, se esvaem quando o grupo entende que o ajuntamento de peças resultante do trabalho de um colecionador é capaz de espelhar e representar, por si só, a história dos trabalhadores joinvilenses dos anos de 1970 e 1980, bem como uma verdade urbana independente e externa às interpretações dos outros. Por outro lado, a crítica de que a Fundação Cultural teria agido arbitrariamente ao fechar o MuBi não carrega consigo o questionamento sobre como e a quem caberia (e teria) a legitimidade de decisão sobre o destino do Museu, como também sobre a Estação Ferroviária. Isto porque o grupo se coloca como agente de pressão junto ao que considera esfera política decisória e exclusiva, cuja resolução chegaria a bom termo caso a Fundação Cultural cedesse aos seus argumentos. Com isso, deixa ou não consegue ampliar o debate sobre o direito não apenas de os joinvilenses contarem com esse museu, mas também de participarem desta e de outras tomadas de decisão sobre a instituição, gestão e reconhecimento do conjunto do patrimônio cultural urbano.

Embora o MPJ tenha conseguido adesão de ciclistas e ambientalistas locais e nacionais à sua causa, na polifonia urbana outras vozes entoam argumentos difusos e destoantes daqueles apresentados pelo grupo. Refiro-me aos estudantes joinvilenses, integrantes do Movimento do Passe Livre[16], que incluíram o fechamento do MuBi como item de pauta relacionado à discussão sobre mobilidade e sistema de transportes urbanos; aos colunistas do Ciclo Orgânico do Portal Nossa Joinville que encaram a iniciativa como desrespeito cotidiano aos cidadãos ciclistas que trafegam pelas vias públicas (VIDA, 2010); e aos competidores de ciclismo de alta performance, Tour do Rio (RJ) que, virtualmente, engajaram-se na luta pela manutenção “de um dos 8 museus de bicicleta do mundo e único da América do Sul” (SILVA, 2010). Como se vê, encenações múltiplas e fragmentadas deixam-se ler não apenas como recusa ou aceite à atual política patrimonial da Fundação Cultural, mas, sobretudo como maneiras de experimentar e significar tempos e espaços na contemporaneidade e de invocar identidades.

Esta rede de significados – tão fascinantes quão intrigantes – vem se deslocando e se movendo também por força das iniciativas governamentais[17] para qualificar continuamente a Estação da Memória como “centro de referência de memória das identidades que estabelecem a diversidade cultural de Joinville e região” [18].

Em que pese a importância destas iniciativas políticos culturais para viabilizar a reapropriação simbólica, econômica e funcional deste patrimônio, penso que o desafio a ser encarado é o de problematizar como e porque no presente as nossas experiências e expectativas de futuro sustentam os nossos anseios e desejos de produzir memórias que demarquem e essencializem identidades e patrimônios culturais. Obviamente, esta não é tarefa dada ou relegada isoladamente aos historiadores, estudiosos do patrimônio, gestores públicos, profissionais de turismo ou grupos sociais específicos, pois as possíveis respostas que adviriam desses lugares próprios talvez retesassem os nós górdios da questão. Trata-se, ao contrário, de buscar problematizar as diferenças para nos cevar de suas interfaces continuamente. Por isso mesmo, não me é possível apresentar ao leitor conclusões originais, tampouco definir os termos de uma problemática que apenas aparentemente emerge como singular de uma cidade na contemporaneidade. Eis meu argumento para finalizar, neste artigo, a reflexão historiográfica que me propus.

Considerações Finais

À medida que a investigação se desenrolou, a Estação Ferroviária de Joinville em suas inúmeras apropriações foi se transformando numa espécie de móvel talhado por movimentos errantes e por formas cambiantes de detalhes e de múltiplas dimensões. Entretanto, procurei refletir sobre como este móvel ganhou e ainda ganha corpo pelas experiências e sensibilidades dos seus artífices.

Desta perspectiva, em primeiro lugar, ao interpretar os escritos dos historiadores sobre a estação ferroviária, as diferentes explicações sobre sua importância e valor para a história de Joinville dizem respeito às maneiras com que os próprios autores e suas sociedades lidaram e articularam o presente, o passado e o futuro. Por sua vez, são essas maneiras que sustentaram os sentidos atribuídos aos termos memória, identidade e patrimônio, bem como as conexões e as desconexões estabelecidas entre eles.

Em segundo lugar, as inúmeras apropriações físicas e simbólicas da Estação, a partir dos anos de 1990, remeteram a discussão para os tensos dilemas que atravessam os processos de identificação cultural e as reivindicações sociais em prol da democratização e profissionalização da gestão do patrimônio. Neste ponto, ganharam relevância as reflexões de Huyssen e Hartog sobre como, na contemporaneidade, vimos atribuindo realçado valor à produção de memórias, bem como à maneira como buscamos e desejamos conformá-las em espaços que suportem e exibam a diferença que cotidianamente nutre nossas tensas vivências e nossas aspirações frente a um futuro que colocamos sob suspeição.

Por fim, na investigação, deparei-me com uma espécie de jogo retórico que pôs em disputa as razões pelas quais o Estado deve proteger o patrimônio cultural. As contendas discursivas sobre os usos da Estação - especialmente quando o MuBi esteve em questão – explicitaram os atuais limites e desafios para levar a cabo uma política de patrimonialização “para além da pedra e cal”. Isto porque, para perscrutar a relevância de um bem é preciso que se conte com recursos e profissionais voltados à identificação, documentação, promoção e difusão deste bem. Ora, na falta deles, não caberia à Fundação Cultural de Joinville reconhecer e abrigar o MuBi na Estação por força e persuasão de um proprietário de uma coleção de bicicletas, tampouco de um grupo engajado numa genérica “questão ecológica” que, de maneira imperativa, coloca a pedalagem como direito à história e identidade aos joinvilenses. Por outro lado, não caberia à Fundação Cultural de Joinville valer-se desses argumentos, pois para que ela combine critérios técnicos e políticos numa política patrimonial é necessário lidar e problematizar a rede de sentidos que sustentam, ou não, as justificativas para proteger um patrimônio e, mais ainda, o que vem animando a própria onda de patrimonialização na cidade.

Quero dizer que, para uma política de patrimonialização que se imbui de uma prerrogativa democratizante, é necessário que haja abertura ao diálogo com os diferentes e com as diferenças, nele lançando mão da função de mediar (e não conformar arbitrariamente) os múltiplos, plurais e difusos sentidos sociais que anunciam, em qualquer estação de uma cidade contemporânea, os embarques e desembarques de memórias, identidades e patrimônios culturais.

Material suplementar
Referências
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______. Pelas tramas de uma cidade migrante (Joinville, 1980 – 2010). 2010. 376 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Doutorado em História Cultural. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2010.
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Notas
Notas
[1] Sob o título “Pelas Tramas de uma Cidade Migrante (Joinville, 1980-2010)”, busquei tecer uma intriga histórica problematizando os processos de identificação urbana no tempo presente, abordando, dentre outras questões, as reivindicações que fizeram e fazem uso da memória para fortalecer e ecoar a representação da diversidade cultural associada ao passado e à história de Joinville. (COELHO, 2010)
[3] Joinville, situada no nordeste de Santa Catarina, foi fundada em 1851. Projetada para ser uma próspera colônia agrícola, tornou-se o destino de imigrantes europeus que se dedicaram à produção rural policultura em pequenas propriedades com base no trabalho familiar. A proximidade com o Porto de São Francisco, bem como o desenvolvimento das atividades fabris e comerciais, ainda no decorrer da segunda metade do século XIX propiciou não somente a contínua entrada de imigrantes, como também de pessoas provenientes de várias regiões brasileiras. A partir da década de 1980, Joinville torna-se a cidade mais populosa de Santa Catarina.
[4] Decreto 17.008/30-08-2010 que regulamenta a criação da Unidade Estação da Memória, antiga Estação Ferroviária de Joinville. Pelo decreto, ficam listados como objetivos da unidade, subordinada à Fundação Cultural (FCJ): atuar como centro de referência da memória das identidades que estabelecem a diversidade cultural de Joinville e região, levando em conta os diferentes momentos e aspectos de sua história; estimular o conhecimento e o reconhecimento da pluralidade cultural de Joinville e região, representada por unidades museológicas, espaços de memória, atrativos turísticos e demais bens culturais materiais e imateriais; salvaguardar e expor acervos materiais e imateriais relacionados à sua própria história, à memória da estrada de ferro e aspectos ligados a ela, bem como à memória do trabalho de Joinville e região; atuar em políticas públicas de educação para a valorização do patrimônio cultural como estratégia de construção da noção de pertencimentos e identidades, voltados ao reconhecimento do passado e projeção do futuro. Secretaria de Comunicação (Prefeitura Municipal de Joinville). Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2010.
[5] Lugar é aqui compreendido a partir da definição de Michel de Certeau (1982). Diz ele que toda a produção historiográfica se articula com um lugar e “é em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam”. O que a história diz de uma sociedade é tão importante quanto saber como ela funciona na sociedade: “Levar a sério o seu lugar não é ainda explicar a história. Mas é a condição para que alguma coisa possa ser dita sem ser nem legendária (ou ‘edificante’), nem a-tópica (sem pertinência)”. (CERTEAU, 1982, p. 77)
[6] Schneider (1983, p. 44) conta que as impressões positivas sobre a cidade e a insistência de várias senhoritas fizeram com que o presidente adiasse o término de sua visita para participar do banquete e do baile que ocorreria à noite. Insinua que mesmo inexistindo à época gelo e geladeira, os joinvilenses empenharam recursos para oferecer as bebidas importadas.
[7] O autor refere-se ao impacto de um conjunto de leis criadas e implantadas no período de 1938 a 1945, conhecido nacionalmente como “a grande nacionalização” e, regionalmente, como “campanha de nacionalização”. Na perspectiva do Estado Novo o objetivo era o de promover uma “assimilação à força” capaz de garantir, principalmente no Sul do país, uma ruptura no processo de “germanização” promovido pelos chamados teuto-brasileiros. A esse respeito ver: Coelho (2000) e Silva (2008).
[8] Trata-se de uma interpretação um tanto pragmática sobre o exposto no Decreto 3.551/00 que instituiu o Inventário Nacional de Referência Cultural, novo instrumento de reconhecimento e valorização do patrimônio imaterial. Para Fonseca, o decreto exprimiu um novo conceito e marco para a identificação, promoção, difusão e proteção do patrimônio cultural, ampliando a concepção de patrimônio “para além da pedra e cal”. Para Sant’Anna, a legislação reconheceu que as ações de patrimonialização são atravessadas por “processos culturais dinâmicos” e, por isso, não poderiam mais ser ancoradas em categorias gerais e descontextualizadas, como são os critérios de permanência e autenticidade que fundamentam a lógica do tombamento. A esse respeito ver: Fonseca (2003) e Sant’Anna (2003).
[9] Miraci Dereti era advogado e compunha a COMPHAAN. Na gestão de 1977-1982, do prefeito Luiz Henrique da Silveira, foi Secretário de Cultura e Esportes, tornando-se, no mesmo período, o primeiro diretor-presidente da Fundação Cultura de Joinville.
[10] Conforme as palavras do então presidente da Fundação Cultural, Rodrigo Bornholdt, pronunciadas por ocasião da reabertura da Estação, em 23 de abril de 2008. Disponível em: . Acesso em: 02 fev. 2010.
[11] Então diretor executivo da Fundação Cultural de Joinville que à época participava das reuniões da COMPHAAN como substituto do representante do poder público designado, o Sr. Rodrigo Bornholdt vice-prefeito de Joinville e presidente da Fundação Cultural da Cidade.
[12] Como contraponto ao Museu Nacional de Imigração e Colonização e à consequente importância da imigração alemã para a história da cidade.
[13] Presidido pelo empresário e cônsul honorário da Alemanha Udo Döhler e tendo como diretor executivo o economista Norberto Rost, era formado por mais 15 representantes de entidades públicas e privadas. A esse respeito ver: Machado (2009).
[14] No artigo 53 do estatuto consta o nome, estado civil e profissão dos sócios fundadores.
[15] Conforme consta no site do Movimento Pedala Joinville.
[16] De acordo com a Carta de Princípios, “O Movimento Passe Livre (MPL) é um movimento social brasileiro que luta por um transporte público de verdade, fora da iniciativa privada. Uma das principais bandeiras do movimento é a migração do sistema de transporte privado para um sistema público, garantindo o acesso universal através do passe livre para todas as camadas da população. Hoje, o MPL quer aprofundar o debate sobre o direito de ir e vir, sobre a mobilidade urbana nas grandes cidades e sobre um novo modelo de transporte para o Brasil”. Disponível em:. Acesso em: 03 set. 2010.
[17] Dentre as iniciativas governamentais para tornar a Estação referência de memória da diversidade urbana destacam-se uma exposição de longa duração sobre os processos migratórios para a cidade, em especial a partir dos anos de 1970, e uma série de atividades sazonais combinadas e articuladas com a programação de eventos da cidade, tais como: mostra iconográfica sobre o carnaval, exposição “Direitos Seus + Direitos Meus = Direitos Humanos” durante a primeira Semana da Diversidade de Joinville e apresentações musicais durante o Joinville Jazz Festival. Além disto, desde agosto de 2010, tem ocorrido periodicamente o “Sábado na Estação”. O evento conta com um “Mercado de Pulgas” e diferentes apresentações artísticas. Segundo a Fundação Cultural de Joinville, em cinco edições, passaram pelo “Sábado na Estação” cerca de 25 mil pessoas. Maiores detalhes em: ANTIGOS Carnavais de Joinville em exposição. Nossa Joinville eventos. Disponível em: . Acesso: 12 nov. 2010; DISCUSSÃO com diversão. Associação Arco-Íris Joinville. Disponível em: . Acesso: 12 nov. 2010; VEM aí mais um Sábado na Estação. Id. Ibid. QUINTA edição do Sábado na Estação movimentou a Estação da Memória. Disponível em: . Acesso: 10 jan. 2011.
[18] Citação retirada de um folder de divulgação da Estação da Memória. Tal citação foi replicada em algumas das programações e atividades divulgadas na imprensa.

1
Figura 1:

Estação da Memória de Joinville.

Fonte: Acervo da Secretaria de Comunicação da Prefeitura Municipal de Joinville. Disponível:

2
Figura 2:

História Joinvilense Destelhada.

Fonte: LOSEKANN, Silvana. História Joinvilense Destelhada. Joinville, março de 2010. Disponível em: . Acesso em: jan. 2011.
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