Resumo: O Bar Palácio, fundado na Curitiba da década de 1930, permanece até a contemporaneidade sendo conhecido por características tradicionais. O presente artigo explora fontes impressas que defendem a tradicionalidade do Palácio diante das intensas transformações ocorridas em seu entorno (somadas a algumas mudanças internas). Desta forma, a relativa imutabilidade do Palácio em relação às transformações urbanas de Curitiba ao longo do século XX, valoriza-o enquanto espaço de rememoração. A nostalgia desponta, nesse contexto, como conseqüência das sensações despertadas por elementos peculiares do Palácio, como o cardápio e o ambiente.
Palavras-chave:Restaurante tradicionalRestaurante tradicional, Dinâmica urbana Dinâmica urbana, Patrimônio sensitivo Patrimônio sensitivo.
Abstract: Palacio Bar, established in Curitiba in the 1930s, remains known by its traditional features. This article explores press sources that advocate the traditional character of Palacio Bar before the sweeping changes that occurred around them (in addition to some internal changes). Thus, the relative immutability of Palacio in relation to the urban transformation of Curitiba during the twentieth century, emphasizes the place as a space of remembrance. The nostalgia emerges in this context, as a consequence of feelings aroused by some unique elements of the Palacio, as the menu and the environment.
Dossiê
De espaço de inovação a lugar de tradição: Bar Palácio como espectador e ator da dinâmica urbana de Curitiba (1930-2006)
Recepção: 14 Fevereiro 2011
Aprovação: 19 Maio 2011
Os lugares têm muito a dizer quando se trata da relação entre inovação e permanência resultante do decorrer dos anos numa paisagem, sobretudo na paisagem de um centro urbano marcado pela dinâmica. Os lugares podem servir como testemunhas de um tempo passado através do discurso transmitido pela edificação, bem como pelo contraste entre inovações e permanências visíveis em seu entorno. Fazendo uma análise das edificações, mas ainda privilegiando a abordagem do lugar enquanto um espaço de vida, este artigo apresenta uma perspectiva da paisagem urbana de Curitiba cujo foco irradiador é o Restaurante e Café Palácio.
Conhecido como Bar Palácio, o lugar tem destaque na cultura noturna curitibana desde a sua fundação na década de 1930. Acompanhando a história da cidade desde este período, seu espaço e seu uso incorporaram as mudanças urbanas ocorridas na região do entorno desde então.
O Palácio inaugura a vida noturna na ainda bastante ruralizada Curitiba de 1930, apresentando um espaço de comensalidade noturna para famílias e também de boemia masculina madrugada adentro. As características iniciais acompanham o lugar por muitas décadas, características como o ambiente rústico, no qual se destaca a churrasqueira à vista do freguês, um cardápio variado no qual se enfatizam os pratos mais pedidos: o Churrasco Paranaense, o Mignon à Griset, o Frango à Crapudine e a sobremesa Mineiro com Botas, além do horário noturno (na época da inauguração abria às dezoito horas e fechava às seis da manhã). Até a década de 1980, quando se intensificou o crescimento da concorrência, o Bar Palácio era o principal destino após festas, sendo tido, além disso, como o cartão postal da cidade. Com a degradação do centro da cidade e o aumento de ofertas gastronômicas no período noturno, o lugar adquiriu um novo significado, tornou-se um “espaço de rememorar”. Diante disso, houve um encurtamento do horário de atendimento: passou a abrir às dezenove horas e fechar à uma e meia nos dias de semana e às três nos fins de semana. Desta forma, o Bar Palácio se insere marcadamente como lugar de tradição, que se estende aos laços familiares daqueles que têm naquele espaço momentos significativos de sua própria história, um lugar cuja ambiência tem a dizer sobre a história da cidade a partir da vivência das pessoas.
Há muitos discursos sobre o Palácio, o discurso dos funcionários, que acompanham a tradicionalidade do lugar com seus anos de casa, o discurso de antigos e novos freqüentadores, e, ainda, o discurso da mídia impressa. A localização do Palácio é próxima à dos principais jornais da cidade, o que fez com que os jornalistas estivessem entre a clientela mais freqüente. Isso se refletiu em inúmeras notícias, publicadas principalmente entre as décadas de 1970 e 1990, que se referiam, sobretudo, às características peculiares do Palácio, à sua relação com a cidade e com os freqüentadores. Nesse mesmo sentido, Valério Hoerner Júnior, tradicional freqüentador do Palácio, publicou um livro, em 1984, intitulado O Folclórico Palácio, no qual destaca a tradição do lugar e seu significado para Curitiba. Diante desse leque de opções de fontes previamente trabalhadas na dissertação de mestrado da autora, o presente artigo se detém no tratamento de fontes jornalísticas e da crônica de Valério Hoerner Júnior que se voltam para a relação do Bar Palácio enquanto ator e espectador da dinâmica urbana de Curitiba.
No começo do século XX, Curitiba ainda era uma cidade onde se mesclavam paisagens urbanas e rurais, em que se contrastavam chácaras e pastagens entre casarões, fábricas, estrada de ferro e ares de caça, teatro e universidade (OLIVEIRA, 2000, p.124). Nesse contexto, no centro de Curitiba entrelaçavam-se tecidos espaciais e sociais, através das práticas econômicas que eram interdependentes, sobretudo através do comércio. A respeito do significado do centro da cidade nesse período, expõe Roseli Boschilia (1996, p.1)
Desde o final do século XIX, a presença de clubes, livrarias, jornais, teatros, cafés e confeitarias fez daquele local o centro catalisador dos eventos culturais da cidade. Mais tarde vieram os cinemas, os bancos, os automóveis, as vitrines impecáveis, os luminosos e a prática do footing. Neste cenário, o comércio teve um papel de destaque.
Fundado na década de 1930 e localizado no centro da cidade, o Bar Palácio se integrava às esferas comercial e social. Desde o início do século XX, vinha ocorrendo um crescimento do número de estabelecimentos que vendem comida pronta, como restaurantes e confeitarias. Segundo Deborah Carvalho (2005), que se debruçou nos estudos de Alvarás Comerciais de 1885 a 1937, assim como nos Livros de Impostos, nas Indústrias e Profissões de 1872 a 1943 e em publicações periódicas de Curitiba entre 1887 e 1943 com o fim de esboçar os sabores de restaurantes da Curitiba de então, o comer fora nesse período se dá eminentemente por opção (e não tanto por necessidade como ocorre na entrada do século XXI), estando relacionado aos ideais de modernização.
A pesquisa de Deborah Carvalho apresenta alguns exemplos de preocupações governamentais com o asseio e limpeza dos estabelecimentos comerciais desde o final do século XIX. As medidas da Diretoria de Higiene Municipal, nesse contexto, se relacionavam com os preceitos modernos de ordem e limpeza em defesa da higiene nos espaços de comércio alimentício (2005, p.35). Na década de 1930, o Jornal Diário da Tarde realizou visitas em diferentes estabelecimentos comerciais, cafés, restaurantes, casas de pastos e hotéis e, numa matéria intitulada “O Estomâgo Curitibano”, avaliou a higiene dos locais visitados:
Nesses espaços foram constatados diversos tipos de problemas como instalações sanitárias inadequadas, louças sujas e mal conservadas, fios de cabelo nas xícaras e descaso por parte dos funcionários perante essas decorrências nos cafés, completa falha de higiene e atenção no preparo das refeições nos restaurantes como era de costume se deparar com insetos nas sopas; falta de limpeza das mesas cujas toalhas se encontravam sujas e manchadas de vinho e gordura, bem como no salão de refeições das casas de pasto e seu respectivo assoalho, onde os fregueses costumavam jogar as cinzas dos cigarros e escarrar no chão; quanto aos hotéis tinham um péssimo aspecto (CARVALHO, 2005, p.36)
Em meio à efervescência entre a intenção de modernidade e os hábitos rotineiros dos curitibanos surge o Café e Restaurante Palácio, que ficou conhecido como o “mais tradicional antro (isto dito com afeto e cumplicidade) gastronômico de Curitiba” (LOPES, 1991). Evitando a necessidade de asseio de toalhas— as mesas não tinham nenhuma— o banheiro masculino ficou conhecido pela alarmante simplicidade e o ambiente era impregnado pelo cheiro da fumaça que escoava da churrasqueira que ficava bem à vista do freguês. Quem ia ao Palácio saía com o cheiro característico do lugar. A fumaça era tão significativa que ficou marcada na crônica de Adherbal Fortes de Sá Júnior:
A fumaça da churrasqueira do Palácio deveria ser vendida engarrafada para limpar a cara dos infiéis do leito conjugal... Muitos maridos usaram a fumaça do Palácio como álibi para noitadas de infidelidade: após motel, uma passada pelo Palácio, para chegar em casa e ter a desculpa de ‘fiquei com a turma jantando no Palácio’ (Millarch, 1991)
Contrastando com a rusticidade do ambiente, o Palácio, no contexto de sua fundação, era freqüentado pela elite curitibana. O nome Palácio se deve à sua localização privilegiada em frente ao Palácio do Governo Estadual da época, situado na Rua Barão do Rio Branco. Tal rua, a primeira projetada de Curitiba, foi construída com o intuito de ligar a Prefeitura Municipal da cidade à Estação Ferroviária. Inaugurada em 1880, foi chamada de Rua da Liberdade até 1914 como um elogio à República. Até a construção do Centro Cívico de Curitiba na década de 1960, esse trecho prevaleceu como o eixo dinamizador e disciplinador da expansão urbana de Curitiba. A proposta do governo, no contexto de abertura da rua, era marcar a região cartão postal da cidade (devido à presença da estação ferroviária) pela ordem e pelo progresso. Desta forma a rua – caracterizada pela pavimentação, iluminação elétrica, bonde, arborização – passava ao visitante a impressão de estar chegando a uma cidade moderna (OBA, 1991, p.208-211).
O início da Rua Barão do Rio Branco coincidia com a sede da Prefeitura Municipal de Curitiba (atual Paço Municipal, edificação conservada cujo uso atualmente se dá como espaço cultural). Descendo a rua, a uma quadra da então prefeitura, cruza-se a Rua XV de Novembro, a principal rua de comércio e sociabilidade da cidade no início do século XX (na qual se localizava a Universidade). Na esquina destas duas ruas se situava a sede do Clube Curitibano, importante espaço de sociabilidade dessa mesma época. Algumas quadras além se encontrava o Palácio do Governo do Estado, sedes de rádios (PRB-2, Guairacá e Cultura) e jornais (O Estado do Paraná e a Tribuna do Paraná), além de hotéis, restaurantes e variados estabelecimentos comerciais. Cinco quadras após seu início, a Rua Barão do Rio Branco confluía para a Estação Ferroviária da cidade (atual Shopping Estação).
O Café e Restaurante Palácio foi fundado nesse contexto urbano por Adolfo Bianchi, um argentino descendente de italianos. Rolim (1997) e Carvalho (2005) defendem em suas pesquisas a contribuição da imigração no desenvolvimento da cozinha profissional de Curitiba na primeira metade do século XX, uma vez que o hábito de comer fora entre a população curitibana desse período era pouco frequente. A placa exposta na fachada do Palácio de então anunciava o verdadeiro churrasco na grelha e o frango, o cabrito e o leitão assado no espeto giratório, os quais constituíam as principais ofertas do Bar:
Ao Churrasco Palácio
Só aqui é que se saboreia o verdadeiro churrasco na grelha e o frango
Cabrito e leitão assado no espeto giratório
Segundo a crônica de Rui Miranda presente no livro O Folclórico Palácio, um freqüentador do Palácio, na época de sua inauguração o Palácio era um dos “raros restaurantes da cidade” (HOERNER, 1984, p.81). Se contrastada com a pesquisa de Débora Carvalho, segundo a qual na década de 1910 havia três restaurantes na Rua Barão do Rio Branco e na década de 1930, cinco sem considerar o Palácio (2005, p.125 e 130), é possível afirmar que o Palácio era mesmo, nesse contexto, um dos poucos restaurantes da cidade. O primeiro, e por muito tempo, o único a ofertar churrasco ao longo da noite.
Manoel Ribas, que havia sido nomeado Interventor do Estado por Getúlio Vargas, costumava jantar lá (HOERNER, 1984, p.31), durante a época de inauguração do restaurante. A localização e a proposta de ambiente familiar sobrepuseram-se à rusticidade, viabilizando uma clientela seleta da sociedade curitibana desde os tempos de inauguração.
Este é um esboço do cenário no qual se inseriu o Palácio, referido inicialmente nos Livros de Impostos de Indústrias e Profissões como “comércio de líquidos” (1935), “comércio de conservas” (1936), “restaurante, barbearia, engraxate, café em xícaras e líquidos espirituosos” (1937) e, a partir de 1938, “restaurante”. O marco diferencial do Palácio é a mescla entre boemia e ambiente familiar, fator que contribuiu para a fidelidade da clientela ao longo das noites de sua história. Valério Hoerner Júnior ressalta qual seria a indicação dada nas portarias de hotel de Curitiba aos turistas ainda na década de 1980: “Jantar mesmo, a esta hora da noite, só no Palácio” (1984, p.33).
A capital paranaense não abandonou o discurso de modernidade, a cidade universitária passou a ter ares de ‘cidade grande’ por volta da década de 1950. Desde a década de 1940, Curitiba já apontava um significativo crescimento populacional que ocasionou a expansão urbana. Até 1930, o centro da cidade e seu entorno comportavam tanto o comércio como as residências; entretanto em 1943, o Plano Agache determinou a existência de centros funcionais ou especializados como eixo irradiador das outras malhas urbanas, atendendo às demandas da expansão da cidade. Nesse contexto, os freqüentadores, que também eram vizinhos do Palácio, passaram a ter residências mais distantes do centro.
A onda de desenvolvimentismo que tomava conta do país ao longo da década de 1950 também atingiu a cidade de Curitiba, bem como os hábitos comensais de seus moradores. Segundo a pesquisa de Maria do Carmo Rolim a respeito dos Bares e Restaurantes curitibanos nas décadas de 1950-60, “o mito desenvolvimentista” influenciou a sociabilidade das refeições, manifestando-se pelo aumento no número de bares e restaurantes, instaurando mais significativamente o hábito de comer fora dos curitibanos (1997, p.45).
Em tempos de desenvolvimentismo, o Bar Palácio muda de sede em 1956, indo para o número 383, ainda na Rua Barão do Rio Branco, e passa a ser administrado pelo novo proprietário, o espanhol José Fraguas Lopez, conhecido como Pepe, que se compromete em manter as características originais do lugar.
Apesar do esforço de Pepe, o crescimento urbano de Curitiba intensificado a partir da década de 1950, fez com que o Palácio sofresse algumas mudanças inexoráveis. Segundo o ainda proprietário, pratos como miolos ensopados e à dore, testículos e Chicholin (tripa grossa) não são servidos desde a década de 1960 devido ao distanciamento dos frigoríficos do centro curitibano, uma vez que tais pratos não podem contar com ingredientes congelados. Há também o exemplo do frango com molho pardo que até a década de 1950 ainda era vendido devido ao acesso ao frango vivo no comércio urbano de Curitiba, que era mantido no galinheiro do Bar. Com o surgimento das granjas, o frango passou a ser vendido limpo e, como conseqüência, não se teve mais o sangue disponível para fazer o molho pardo (HOERNER, 1984, p.90). Tanto o afastamento dos frigoríficos como o surgimento das granjas constituem ações governamentais de projetos urbanos da cidade, cujo fim era a modernização de Curitiba.
Em 1965, o Plano Premilinar da Serete/Wilheim, atendendo às necessidades do crescimento populacional acelerado e da expansão da cidade, estabelece como diretrizes o crescimento linear de um centro servido por vias tangenciais de circulação rápida e também o policentrismo. Ao atender às necessidades da capital em crescimento, o plano privilegiou o centro da cidade como lugar de ligação entre outros centros. Este pode ser considerado um primeiro passo para a crescente desvalorização da região central de Curitiba. Paralelamente a esse plano, o transporte ferroviário foi crescentemente substituído pelo rodoviário. Segundo Leonardo Oba: “as antigas estações ferroviárias entraram em decadência juntamente com os seus entornos que as acompanhavam na ascensão” (1999, p.213). Desta forma, a região da Rua Barão do Rio Branco começa a entrar em decadência a partir da década de 1950, processo que se acentua na medida em que cresce a urbanização de Curitiba. No fim da década, em 1969, é inaugurado o Centro Cívico, transladando as sedes do poder municipal e estadual da rua Barão do Rio Branco. Em tais circunstâncias, o Bar Palácio deixa de estar na rua que irradia o futuro crescimento da cidade para se localizar no rememorável ponto do qual tudo se difundiu. A fama do Bar Palácio, desta forma, cresce em associação a seu caráter tradicional, que faz menção ao tempo dos primórdios da modernização da cidade.
Entre as décadas de 1970 e 1990 o Bar Palácio passou a ser cartão postal da tradição noturna curitibana, ponto de encontro de grande parte da sociedade curitibana nos pós-eventos, ou lugar de levar a família para conhecer um pouco de como foi Curitiba na geração anterior.
Valério Hoerner Júnior menciona que a Viação Aérea de São Paulo, a Vasp, em seu caderno de bordo para divulgação turística, citou o Bar Palácio como lugar onde se come bem (1984, p.33). A companhia área Varig também usou a imagem do Bar Palácio como representação de Curitiba, conforme se observa numa imagem transformada em quadro, em exposição no Palácio.
Os pratos mais pedidos então – Churrasco Paranaense, Mignon à Griset e Mineiro com Botas – eram pontos de convergência de diversos grupos da noite curitibana: de trabalhadores que deixavam o serviço à noite, assim como de artistas, músicos e jornalistas, de torcedores que deixavam os estádios de futebol, público de eventos culturais e festas e ainda políticos de diversos partidos. Ao longo desse período era comum enfrentar fila na entrada do Palácio ao chegar lá de madrugada.
Na década de 1980, o Palácio ficou famoso pelo cumprimento fiel à tradicional regra de não servir mulheres desacompanhadas (para Pepe, a norma era o sustentáculo do ambiente familiar ao qual se propunha o Palácio). Em janeiro de 1984, quatro estudantes universitárias que não foram servidas ao chegar de madrugada no Palácio processaram o tradicional restaurante (GAZETA DO POVO, 1984, p.28). Foi uma ação audaz, uma vez que colocava em cheque uma das mais tradicionais características do Palácio. A decisão judicial resultante tirou a legitimidade da tradição e mulher desacompanhada passou a ser servida, assistida pelo olhar de estranhamento da tradicional clientela.
Também na década de 1980, o Café, Bar e Restaurante Palácio se converteu em folclore curitibano com a publicação do livro de Valério Hoerner Júnior: O Folclórico Palácio, o qual contém histórias e estórias que apresentam o Palácio ora como fundo de cena, ora como protagonista, sendo todo o conteúdo em defesa de sua tradicionalidade. Nesse livro, Hoerner retrata episódios marcantes no Bar Palácio, como o episódio de março de 1964:
Boca-livre uma noite no Palácio e promovida pela assessoria de Imprensa do Ministério do Trabalho.
Sim senhor, o Ministro do Trabalho [Amaury Silva] que era paranaense estava em Curitiba. Era na primeira quinzena de março de 1964.
[...] Por volta da meia noite estava todo mundo dos jornais no Palácio. O país vivia um clima que Deus me livre: greves por todas as partes, confusões e mais confusões.
Falou-se muito sobre o problema das greves, muito mesmo.
Um deles, o Jairo Regis que era o chefe dos jornalistas pregava que nós não tínhamos visto nada, que no dia em que o ministério quisesse o Brasil todo pararia.
Seria a greve total. Um dos jornalistas daqui (eu) justamente contradisse o Jairo. Lembrando-lhe que tinha os três ministérios que estavam de olho. Foi a pior viagem; o jornalista nos gozou: exército não existe: é uma macacada que só sabe fazer continência; Aeronáutica, nem se fala: tem meia dúzia de aviões que mal servem no país, caindo um volta e meia; marinha então nem se fala, só aquele casco velho de Minas Gerais.
O que existe no Brasil é trabalho e esse está conosco.
O Brasil pára a hora que o nosso Ministério quiser.
Foi aplaudidíssimo.
O que aconteceu 15 dias depois?
[...] Naquela madrugada estávamos com Chico Buarque de Hollanda em casa: viera com Aramys Millarch. Não quis cantar; ele viera para o churrasco e para a cerveja (1984, p.73-75)
O fragmento se associa à fama do Palácio como espaço de reunião de intelectuais e pessoas famosas, como Chico Buarque. A esse respeito reforça Rafael Greca com a frase de um artigo de sua autoria: “há políticos que confundem, aliás, a fumaça do Bar Palácio, já disse, com a unção popular” (1980).
As ações da Prefeitura para preservar as fachadas das edificações na Rua Barão do Rio Branco resultaram em problemas para o Bar Palácio. Enquanto se agia em favor da preservação da paisagem arquitetônica do lugar, a tradicionalidade do Palácio se via ameaçada, conforme expressa Rafael Greca em artigo intitulado “O Último Mineiro de Botas”:
[...] O Bar Palácio estaria sendo despejado, com 30 dias para deixar o ponto. E estaríamos vivendo despercebidamente, nesta temporada de noites vazias e maridos cigarras, as últimas noites de convivência com os fillets grisées, os ‘mineiros de botas’, as ‘farofas de ovo’, ‘os frangos a alho e óleo’, que, por mais de 40 anos, fizeram a delícia de gerações de notívagos, saciaram a fome nas madrugadas frias, aplacaram paixões encubadas, deram calorias para que outras seguissem em frente
[...] Tânia Galvão, amiga da coluna “Tempos Modernos”, ligou apavorada para a Casa Romário Martins, procurou o Coordenador do Patrimônio Cultural da Secretaria dirigida por Luís Roberto Soares - Fernando Velozzo -, moveu céus e terras ao seu alcance pedindo o tombamento do Bar e Café Palácio (1980).
Pode-se dizer que, em certa medida, o pedido de Tânia Galvão foi atendido. O imóvel em que se localizava o Palácio na Rua Barão do Rio Branco se encontra atualmente em área de interesse de preservação do município. O valor atribuído ao edifício, contudo, não se refere à locação do Bar Palácio por três décadas, mas ao seu valor arquitetônico – de arquitetura européia construída em 1894 (Fundação Cultural de Curitiba, 1981).
Diante da problemática do tombamento do edifício, Pepe decidiu construir uma sede própria para o Bar Palácio na Rua André de Barros, número 500, permanecendo nas proximidades da antiga sede. A mudança se deu em 1991. A nova sede inaugurou um novo tempo para o Bar Palácio, um tempo que sua tradição deixa de estar associada ao início da modernidade e passa a se referir a uma Curitiba quase que esquecida.
A reportagem “Caçadores da boemia perdida” anuncia que “bares, confeitarias e casas noturnas também abrigam memória da cidade”:
“Patrimônio Cultural constitui-se dos bens de natureza material e imaterial, tombados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. É o que dita a Constituição Federal, em seu artigo 216, que lista entre esses bens “as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver;(...); as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico (...), artístico (...)”. Na seqüência, a Carta Magna confere ao poder público a responsabilidade de “promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro”.
Sendo assim, não é equivocado concluir que bares, restaurantes e cafés podem ser, também, patrimônios culturais: afinal é impossível negar o papel dos bares e cafés, ambientes para as artes do século 19 e 20.(PERIN, 2004)
A partir da determinação da Constituição Federal a respeito da conceituação de patrimônio cultural brasileiro, a jornalista Adriane Perin expõe opiniões sobre o tema, as quais revelam haver consenso sobre a “importância desses lugares para o desenvolvimento comportamental das cidades”.
A jornalista se pauta pelas então recentes reconsiderações do conceito de patrimônio no Brasil dadas com o decreto federal número 3551 do ano 2000, através do qual o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- IPHAN agrega em suas práticas a preservação dos chamados patrimônios imateriais que contemplam práticas culturais que preservam a tradição de um grupo. A dinâmica da globalização e o consequente intercâmbio cultural chamaram a atenção de órgãos internacionais voltados para a preservação da cultura—como a UNESCO—, para a necessidade de se privilegiar e valorizar múltiplos aspectos da sociedade plural, mesmo que abarcada pelo discurso nacional. Desta forma, o registro de patrimônios imateriais busca a preservação: dos saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, os rituais e as festas que marcam a vivência coletiva, das manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas e dos lugares onde se concentram e reproduzem práticas de um grupo como mercados, feiras, santuários e praças (BRASIL, 2003).
A polêmica entre patrimônio edificado e patrimônio imaterial se faz no artigo acima através do questionamento da jornalista ao poder público municipal, já que, segundo o depoimento, apresentado na reportagem, de Marcelo Sutil, funcionário do setor de Patrimônio da Fundação Cultural de Curitiba, a legislação municipal se atém exclusivamente ao patrimônio arquitetônico. Nesse sentido, a jornalista expõe a opinião do professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, Carlos Roberto Antunes dos Santos:
Tem que rever as regras destinadas apenas à Arquitetura. Os conceitos têm que se adequar. O Lino’s e o Bar Palácio criaram uma identidade que tem que ser preservada. Ir a esses lugares significa estar no centro da gastronomia, da boemia e da cultura. [...] É preciso uma carga de humanidade para entender realmente o significado desse tipo de patrimônio. Eles são conquistas culturais fundamentais, pois formam a identidade de uma cidade. (PERIN, 2004)
Ainda nenhum pedido de registro do Bar Palácio como patrimônio imaterial de Curitiba foi feito. É interessante, contudo, acompanhar a discussão presente no artigo ressaltando a conceituação de patrimônio que é defendida. Desde o título “Caçadores da Boemia Perdida” nota-se a conotação de uma busca de espaços que já se perderam na dinâmica contemporânea, como é o caso do Bar Palácio. Nesse contexto, o significado desses espaços se alia diretamente à identidade peculiar de cada um, as quais se relacionam a elementos perdidos ao longo do tempo e também ao sentimento de nostalgia que é despertado pelas sensações da ambiência, tais como o aspecto e o cheiro do lugar, o sabor da comida e a recepção dos garçons. Desta forma, o Bar Palácio é apresentado como uma espécie de patrimônio sensorial através do qual é possível experimentar o passado; é entendido como um lugar de memória e de rememorar. Segundo Mona Ozouf, tratar um objeto histórico como lugar de memória é dar fala ao presente, mas não como herança, e sim como usuário do passado (apud CHANET, 1993, p.23). Em certa medida, pode-se dizer que os freqüentadores atuais fazem uso do Palácio para reviver sensações e relembrar experiências vividas naquele espaço. Já perguntava o jornalista do Correio de Notícias: “Quem é o dono do bar, o dono ou nós?” (CORREIO DE NOTÍCIA, 1986), em reportagem que fazia referencia ao Bar Palácio, expressando a que ponto a identificação dos clientes com o espaço poderia se dar.
Depois de anos resistindo a mudanças, a construção de uma nova sede para o Palácio gerou o rebuliço da imprensa e dos defensores da tradicionalidade do Bar.
O tablóide de Aramis Millarch publicou, no domingo de 25 de agosto de 1991: “O sexagenário palácio vai mudar. Mas só de endereço!”. O autor defende a permanência dos aspectos tradicionais do Palácio, enfatizando na reportagem que a mudança é, efetivamente, apenas de endereço (1991).
A jornalista Adélia Maria Lopes, do jornal O Estado do Paraná, publicou, em artigo de 5 de setembro de 1991, diversas imagens retratando características da sede antiga do Palácio. Em destaque, fotos da entrada da antiga e da nova sede são contrastadas. Em seguida, expõem-se fotos marcantes da tradicionalidade do lugar: foto dos funcionários de anos de casa, fotos dos cabides (onde se penduravam os paletós e chapéus na década de 1930), a mesa de madeira do reservado (lugar disputado entre os clientes), o famoso banheiro masculino conhecido pela simplicidade e, por fim, a tão citada fumaça da churrasqueira que impregnava todo o ambiente da antiga sede.
“Bar Palácio em três por quatro”, artigo de Adélia Maria Lopes (1991), revela aspectos do ambiente da antiga sede que, juntamente com o cardápio e forma de serviço, serviam como estruturantes da identidade do Palácio. Nesse contexto, a mudança de sede é apresentada como fator que abala a identidade tradicional, elemento estruturante do Palácio. Em entrevistas, os clientes tradicionais afirmam que “nada mudou”, fazendo referência, sobretudo, ao cardápio e ao serviço. Estes últimos são tidos pelos freqüentadores como pilastras da tradicionalidade do Palácio, tudo isso ancorado na decoração da nova sede do Bar Palácio que é composta por artigos, quadros, placas e imagens nas paredes, todos indicadores das décadas de história do estabelecimento.
Em 6 de setembro de 1991, o tablóide de Aramis Millarch anuncia: “61 anos depois, o Palácio inaugurou”. O autor faz alusão à incerteza da primeira data de inauguração do Palácio, história que é contada por Valério Hoerner em seu livro O Folclórico Palácio. Desta forma, a inauguração da nova sede passa a ser contemplada como a inauguração do Bar Palácio.
Antiga sede do Bar Palácio na rua Barão do Rio Branco
(In: Millarch, 1991)
Nova sede do Bar Palácio na rua André de Barros.
(In: PERIN, 2004)As imagens das fachadas da antiga e da nova sede são contrastantes em diversos sentidos. A imagem da antiga sede retrata a simplicidade do Palácio em meio a uma rua em que se havia possibilidade de ser pedestre ao longo da madrugada. A nova sede não se aliou tanto à proposta de rusticidade do ambiente, apesar das mesas continuarem sem toalhas. As características do edifício são mais sofisticadas (até mesmo nos banheiros, e a churrasqueira deixou de exalar a famosa fumaça que impregnava todo o ambiente). Além disso, o Bar Palácio deixou de estar numa rua eixo da cidade que viabilizava a sociabilidade, para estar em frente a uma rua de intenso fluxo de automóveis, não mais tão acolhedora. A mudança de endereço dificultou o acesso ao lugar.
Os contrastes entre as sedes serviram para reforçar a nostalgia dos frequentadores. Elementos marcantes da vivência no Bar Palácio foram para as margens da rememoração, das lembranças, do contar e recontar, até instituírem-se “lendas”. A mudança de sede revigorou a demanda de tradicionalidade, instituindo o Bar Palácio como espaço de rememorar um “tempo perdido”, um tempo vivido que restou no passado. É possível, então, elencar determinados elementos que marcam o contraste a partir da comparação entre a ambiência da antiga sede e da nova sede.
Ambiência da antiga sede do Bar Palácio
(In: Hoerner,1984, p.38)
Ambiência da nova sede do Bar Palácio
(CORÇÃO, 2006)A imagem da antiga sede retrata o Bar Palácio como um espaço familiar, em que conviviam pessoas de todas as idades. Nessa época, um espaço de sociabilização bastante procurado e freqüentado. Nas paredes da antiga sede se observam apenas alguns cabides e tabelas de preço. A nova sede, por sua vez, representada pela imagem 4, apresenta um espaço que privilegia o passado. As paredes resguardam, em diversos quadros expostos, os tempos experimentados por diferentes pessoas no Bar Palácio. A casa já não é tão freqüentada, sendo procurada, sobretudo, por antigos freqüentadores e seus familiares.
O principal chamariz do Bar Palácio, enquanto restaurante tradicional localizado nas proximidades da Barão do Rio Branco, é, desde a década de 1990, o passado. A tradicionalidade referente à modernidade que garantiu seu sucesso até a década de 1980 foi, de certa forma, superada pela expansão da cidade. A dispersão urbana e o consequente crescimento da concorrência esvaziou o Bar Palácio, mas contribuiu para reforçar sua identidade. Esta última se fundamenta nas características peculiares do lugar que viabilizam a revivência de sensações e atiçam a nostalgia de uma Curitiba antiga, cujas marcas persistem não somente em patrimônios edificados, mas também em patrimônios sensoriais, como é o caso do cardápio do Bar Palácio.
A dinâmica da inovação e da permanência atua não somente na aparência urbana como em lugares que constituem espaços de vida das cidades. O crescimento urbano, nesse sentido, instiga o romantismo nostálgico de preservar elementos que tem significância enquanto espaços de rememoração de tempos já idos. O Bar Palácio se identifica entre esses espaços. Conhecido como um dos primeiros restaurantes noturnos da cidade, o Bar permanece com intuito de preservar suas características originais.
O Bar Palácio, como lugar de memória, remete a diferentes tempos da sua história. Nesse sentido, percebe-se um Palácio nas décadas de 1930-50 que recebia os viajantes e turistas que chegavam na cidade de trem, o único lugar em que se podia comer de madrugada e o refúgio da boemia curitibana. Entre as décadas de 1950-80, tem-se um Palácio que, mesmo não estando mais no eixo de poder da cidade, continua tendo uma freqüentação significativa – atraía pela qualidade, pelo marco tradicional, pela representatividade que tinha na cultura curitibana. A partir da década de 1990, o lugar deixa de ser um dos poucos em que se podia comer de madrugada. O mercado gastronômico curitibano, que se estendia desde a década de 1990, passa a ser mais amplo e variado com a intensa urbanização sofrida na década de 1980. O Bar Palácio muda-se da Rua Barão do Rio Branco. A partir de então, sua tradicionalidade se converte em rememoração, uma vez que seu reconhecimento passa a se limitar ao universo daqueles que se identificam por sua experiência de vida ao lugar.
É possível entender o Bar Palácio enquanto patrimônio sensitivo que desperta lembranças através de seus pratos tradicionais, de seu ambiente que privilegia a rememoração e do padrão de serviço preservado por décadas. Um lugar que faz referência a uma Curitiba vivida e experimentada que se fragmenta na dinâmica da expansão do grande centro urbano que se tornou ao longo do século XX.
Antiga sede do Bar Palácio na rua Barão do Rio Branco
(In: Millarch, 1991)Nova sede do Bar Palácio na rua André de Barros.
(In: PERIN, 2004)Ambiência da antiga sede do Bar Palácio
(In: Hoerner,1984, p.38)Ambiência da nova sede do Bar Palácio
(CORÇÃO, 2006)