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Memória e ensino de história: as interfaces entre a formação e o saber de professoras
Memória e ensino de história: as interfaces entre a formação e o saber de professoras
Revista Tempo e Argumento, vol. 5, núm. 9, pp. 134-152, 2013
Universidade do Estado de Santa Catarina
Recepção: 23 Maio 2012
Aprovação: 26 Agosto 2012
Resumo: Este artigo pretende apontar reflexões sobre as experiências de professoras de História, e interpretar o processo de formação, suas implicações e tensões no fazer docente, desde os elementos simbólicos, as escolhas, as trajetórias no fazer de professoras.
Palavras-chave: Memória de professoras, Ensino de História, Formação de professores.
Abstract: This article points to reflections on the experiences of teachers of history, and interpret the formation process, its implications and tensions to teacher, from the symbolic elements, choices, do the trajectories of teachers.
Keywords: Memory teachers, Teaching of History, Teacher training.
Ao abrir a porta, reconheci, nos cabelos brancos, a mulher que durante muito tempo dedicou a vida a ensinar e inspirou em mim sentimentos, desejos de me tornar professora. Reconheci, naquele olhar profundo, a profundidade do que é ser mestra na arte de levar os educandos a imaginar, a sonhar, a se reconhecer nas narrativas, a encontrar nas tramas da História um lugar para si.
Assim, encontrei, após longos 16 anos, minha professora de História do Ensino Médio. Uma mulher que me fez amar a História, que me fez querer aprender mais sobre diferentes eventos, sujeitos, guerras, revoluções, amores e dores que estavam muitas vezes tão longe de mim. A partir do Ensino de História, que envolvia os personagens de ontem e hoje, fazendo com que os educandos vivenciassem situações, imaginassem os eventos históricos, a professora Marci Lemos nos encantava com suas aulas.
Éramos uma turma de 35 educandos/as. No primeiro dia de aula relatamos não gostar de História. Fomos, aos poucos, a partir das narrativas da professora, apreendendo conceitos, concepções sobre o mundo da História. Retomando Ana Monteiro, em sua análise ela pergunta: “Ensinar história refere-se a processo simples, contínuo, que tem por objetivo divulgar conhecimentos produzidos pela ciência na sociedade? Ou é processo complexo que se insere no âmbito da educação e da cultura escolar, em lugares e tempos específicos?”
Nesse complexo processo do fazer histórico, este artigo pretende analisar as narrativas de professoras dessa disciplina, com vistas a apontar, a partir de suas memórias, as concepções acerca do fazer docente, da representação do trabalho docente para as mulheres professoras e os significados atribuídos ao ensino de História.
Os relatos da vida cotidiana e as discussões que suscitam concorrem para o compartilhamento de ações educativas, mas também para a transformação das práticas cotidianas e a construção de novos conhecimentos.
Recuperar as memórias das professoras que ensinam História permite compartilhar experiências, criando espaços para que se possa refletir sobre as práticas, as concepções das professoras em suas ações cotidianas. Questionar particularmente este ensino e o fazer docente remete ao sentimento de pertencimento, de valorização do que se pretende nos caminhos da História ensinada. O que se ensinava? Como se ensinava? O que se queria na relação entre professor e educando? Que significado a História deveria ter para os educandos? O que é ser professora de História?
Estas e outras questões inquietam muitos/as docentes, e a partir delas podem-se vislumbrar os diferentes percursos da trajetória docente. O contato entre a professora de História de hoje e a professora de ontem possibilita refletir sobre os processos de formação dessas profissionais, sobre concepções em torno da identidade de classe, da inserção de novos paradigmas histórico-políticos, da demarcação do lugar, de onde se narra, do que seja significativo na disciplina.
Retomar ‘velhos’ problemas, neste campo de ensino, permite, a partir de ‘novos’ olhares, reconhecer nas narrativas de professoras importantes elementos de análise, nos quais as diferentes ‘vozes’ e ‘lembranças’ traduzem formas de ser e viver, reminiscências elaboradas e reelaboradas, histórias revisitadas, paisagens de um espaço-tempo de vida, de trabalho, de aprendizagem.
Walter Benjamim, ao recuperar a narrativa na modernidade, evidencia o caráter central da memória na recomposição da experiência humana, afirmando que onde “há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção a memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo” (1994).
Para o autor, perder a capacidade de narrar é uma consequência do esvaziamento da experiência do homem moderno. O autor aponta para a distinção entre experiência e vivência. Para ele, vivência seria a reação, uma ação que se esgota no momento de sua realização; experiência é a ação refletida, rememorada e compartilhada, que permanece para além do vivido.
Assim, a rememoração articula a dimensão sensível da memória com o ato de lembrar, o que torna importante os relatos da experiência. Na rememoração, as lembranças estão sujeitas a atualizações, a releituras e reelaborações, fruto de reflexões sobre o acontecimento lembrado.
Desta maneira, rememorar configura um ato político. Nos fragmentos da memória, encontramos atravessamentos históricos e culturais, fios e franjas que compõem o tecido social, o que nos permite ressignificar o trabalho da memória como uma prática de resistência.
O contexto de formação de professores/as é múltiplo, vasto, dinâmico, heterogêneo. São sujeitos com as mais variadas inquietações, expectativas, motivações que fazem parte de complexas redes culturais. Nascemos, crescemos, vivemos em determinados contextos que nos formam e nos quais formamos concepções acerca da vida, da educação, das relações sociais; fazemos nossas escolhas, tecemos nosso caminho em busca do que queremos ser.
Neste sentido, este texto visa a refletir sobre as memórias de professoras da rede pública do município de São José, focando nos elementos de formação inicial, nas dificuldades, no cotidiano do trabalho, na construção do sujeito reflexivo sobre suas práticas.
As escolhas, os caminhos, as redes culturais representam, na formação do professor, a possibilidade de análise de diferentes sujeitos que se movem em torno dos ideais semelhantes. No contexto de suas vivências, registram-se algumas questões como os cursos, a atualização dos currículos, experiências didáticas e também de formação. Neste sentido, privilegia-se a noção de que a experiência de saber dos professores, que se dá no cotidiano do espaço escolar, seja uma das referências mais marcantes no processo de formação.
É no dia-a-dia da sala de aula, nos cursos de formação, na seleção de conteúdos, nas metodologias, nas reuniões pedagógicas, na pesquisa, na convivência com a comunidade escolar, nos problemas com disciplina e na discordância em torno da avaliação que se aprende a ser professora. “A formação não se constrói somente por acumulação (de cursos, de conhecimentos, de técnicas), mas também por meio de um trabalho de reflexibilidade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal” (NÓVOA, 1995 p. 25).
Assim, nesta análise, o contexto da formação inicial de professoras com as experiências adquiridas ao longo da trajetória docente é o ponto em foco. Isso porque a prática pode ser vista como um processo de aprendizagem através do qual os/as professores/as traduzem os elementos relacionados à sua formação e a adaptam ao cotidiano de sua profissão. A experiência provoca, assim, um efeito de retomada crítica (retroalimentação) dos saberes adquiridos antes ou fora da prática profissional (TARDIFF, 2005, p. 53).
Por tais razões, disponho-me a analisar a experiência e trajetória de professores/as, visando a refletir sobre sua prática, a inserção do conhecimento produzido ao longo de sua formação, os caminhos percorridos na profissão, principalmente por mulheres. A intenção em problematizar a experiência de professoras permite entender as práticas educativas que se pretendem autônomas, buscando recuperar elementos do cotidiano escolar, da construção de saber, das formas de ser e estar na profissão. Rubem Alves argumenta que os educadores possuem uma face, um nome, uma “estória” a ser contada.
Evocar as narrativas das mulheres professoras, e de seu fazer histórico, é trazer para essa análise as experiências e vivências das que concebem a educação de forma diferenciada, que habitam um mundo da valorização das ações educativas com os alunos, que almejam a autonomia e a democratização do espaço escolar, ou seja, de professoras que fazem a diferença no processo de ensino de História. Isso porque suas experiências subjetivas se refletem na postura que adotam no espaço escolar. Muitas vezes, estudamos a questão profissional, mas esquecemos que a professora tem sua própria trajetória de vida, que influencia notavelmente sua atuação prática; em outros momentos, estuda-se o professor como pessoa, mas esquece-se de contextualizar sua profissão (FACCI, 2004, p. 22).
Nas narrativas, fica registrada a junção dos saberes oriundos da formação universitária e da prática da sala de aula; não que um seja mais importante que o outro, mas há uma cruzamento entre os saberes que, de certa forma, se apresentam como processos que visam a modificar os caminhos do ensino de História. A relação que as professoras estabelecem com os saberes da formação profissional e pessoal se manifestam na postura profissional. Os saberes que apontam são chamados por eles de práticas ou experimentos. É a partir dos saberes adquiridos que julgam sua formação (TARDIFF, 2005, p. 50).
A profissionalização dos saberes, as influências do tempo de trabalho, a professora enquanto produtora e formadora de conhecimento são elementos que foram se compondo historicamente e determinando a centralidade dessa profissional no que tange à sua formação. Não pretendo aprofundar estas questões, uma vez que há muitos estudos centrados na análise das dimensões técnicas da formação. Entretanto, é preciso avançar além dos modelos formativos que engessam a construção do saber docente, privilegiando a formação técnica, enfocando a professora de História como produtora de saber, capaz de assumir o ensino enquanto descoberta, investigação, reflexão e produção (FONSECA, 2001).
A partir de 1980, a discussão sobre a formação de professores(as) produz embates, contradições que apontam para a complexidade em relação a tal processo, pois, mesmo com toda a gama de conhecimento já produzido, ainda se admitem alguns problemas. Déa Fenelon (1983), no estudo sobre a formação dos professores, afirmou que:
é fácil constatar que o profissional do ensino de História, o recém-formado, [...] passou quatro anos estudando a sua disciplina e de repente se vê perplexo diante da realidade [...] E o circulo vicioso se completa, pois a única segurança que lhe foi transmitida é a do mito do saber, da cultura, dos dogmas que estão nos livros, na academia.
O estudo da autora citada, publicado em 1983, aponta elementos para o debate em outros períodos históricos. No período em que a pesquisa foi realizada, ou seja, entre 2010 e 2012, na análise realizada com professoras, relata as dificuldades que ainda enfrentam em equacionar a formação universitária e a formação diária no espaço escolar. No exercício da função, os saberes que se acumulam ao longo de sua formação se manifestam na prática educativa. De certa forma, isso condiz com o crescimento da produção teórica, e o pouco aprofundamento na prática, conforme Nóvoa (2001). Segundo o autor, há algumas deficiências que perpassam a formação dos professores em vários lugares e, em relação ao Brasil, se avançou muito na análise teórica, do ponto de vista da reflexão, mas se avançou relativamente pouco nas práticas de formação dos professores, da criação e consolidação de dispositivos novos e consistentes.
Pode-se dizer que sua formação está situada no nível dos discursos e que a extensão para a construção de práticas efetivas ainda está se processando de forma lenta. E o que o(a) professor(a) apresenta, em sua formação profissional e pessoal, são singularidades representadas por posturas políticas, sociais, teóricas, ideológicas e concepção de mundo que servem como mediação na relação que estabelece com outros indivíduos.
Neila Alves e Joanir Azevedo (2004) propõem uma concepção de formação que vem sendo defendida por vários estudiosos. Afirmam, em seu estudo a respeito da centralidade da prática na formação de professores, que:
poucos se dão conta de outro contexto de formação que, por isso, acaba sendo desconsiderado e, consequentemente, desqualificado: a prática docente que se gesta no cotidiano escolar. [...] nele se aprende a ser professor sendo professor[1].
Ressaltar o enfoque no sujeito professor permite ampliar os debates sobre a qualidade do ensino de História, exaltando o conjunto de valores, de conhecimentos, de atitudes que representam suas formações sociais no desempenho de sua função. Mas ainda se trabalha com o termo professor e não com o de professora. De certa forma, ao não se ampliar a nomenclatura, também não se expandem as análises sobre o fazer docente de professores e professoras.
Os saberes oriundos da experiência tem uma relação intrínseca com o fazer de professoras. Pode-se chamar de saberes experienciais o conjunto de saberes atualizados, adquiridos no âmbito da prática da profissão. Segundo Maurice Tardiff (2002), o aprofundamento das discussões fomenta novos olhares sobre a formação. Ele defende que a reflexão sobre o fazer histórico pedagógico e a qualidade do ensino pressupõem uma análise sobre o fazer dos professores, vistos como mola propulsora no processo de ensino.
O fazer das professoras não é um tema estanque. A discussão não se esgota com análises teóricas em determinados períodos históricos, pois a cada ano surgem novos profissionais nos espaços escolares que trazem consigo uma gama de ações, saberes, experiências. São tempos de formação diferenciados, já que os saberes adquiridos no espaço universitário, na formação teórica e na prática diária também são diferentes.
O desafio é perceber como se gesta a concepção de saber, a construção de práticas diferenciadas, a constituição de elementos que caracterizem a formação dos(as) professores(as) teórica e prática. O conteúdo do parecer CNE/CP 009/2201 apresenta, de forma geral, as funções que qualificam a formação do professor:
aponta três competências nucleares que devem fundamentá-la: a competência teórico-prática, que consiste na investigação de saberes já proclamados e na produção científica fundada no inusitado. [...] a competência dialógica caracteriza-se pela compreensão do educador como agente de interlocução entre a escola e a sociedade. [...]a competência ética que diz respeito à grandeza e à responsabilidade de ser educador, [...]consciência de que o professor é uma pessoa pública, cujos valores ultrapassam a sala de aula, repudiando ideologias e práticas transgressoras da dignidade humana (CNE/2001).
Neste documento, são expressas todas as competências exigidas dos professores, impressas na realidade do espaço escolar: a possibilidade de analisar e discutir as questões histórico-pedagógicas na concepção teórica e prática. Refletir sobre a dimensão do ensino, suas problemáticas e a atuação dos profissionais no cotidiano permite aos acadêmicos(as) nortear suas reflexões sobre a trajetória profissional e o processo de formação. Acompanhar a construção de ser professor(a) é um caminho que possibilita aprofundar a fundamentação teórica e prática de sua função.
As narrativas nos legaram representações sobre a formação e a profissão de professora que delineiam caminhos, desejos, influências em ser professora e demarcam as questões de gênero, em que “as professoras foram mais receptivas, parece que trabalham com mais afinco”.[2]
O discurso produzido no processo de formação inicial delimita também o lugar de onde as mulheres professoras narram sua busca por identidade. Como aponta Selva Garrida Pimenta (1996), a identidade não é um dado imutável. Nem externo, que possa ser adquirido. Mas é um processo de construção do sujeito historicamente situado. A profissão de professora, como as demais, emerge em dado contexto histórico, como resposta a necessidades postas pelas sociedades, adquirindo estatuto de legalidade. Nesta perspectiva, a professora Ellen, formada em História há dez anos, atuando no ensino fundamental em São José/SC, com turmas do 6º ao 9º ano, refaz, através das memórias, o registro da busca por uma identidade docente. Segundo ela:
Para mim, a formação em ser professora sempre foi muito importante, tanto que tenho isso como uma atividade contínua. Ao longo do minha vida profissional busco ser uma professora diferente, com empenho, quero o máximo nas minhas aulas. Brinco que meu envolvimento é total. Sobra pouco tempo para outras coisas, mas como sou sozinha, não tenho filhos, me realizo no que eu faço. Acredito na educação, vivo isso. Não sei, mas acho que há muitos professores que não são assim, porque eles chegam, sentam, abrem o livro. É uma escolha de que professor quer ser. Eu quero que se identifiquem comigo.[3]
Sua narrativa nos aproxima de seu olhar sobre o que significa ser docente. Além disso, percebe-se que, socialmente, ainda estamos impregnados de discursos carregados de simbolismos sobre ser professora e mulher. Desta maneira, os trabalhos de significação da experiência e de produção de memória são também trabalhos de construção de identidades. De acordo com Paul Ricouer, a memória possui duas funções primordiais: “assegura a continuidade temporal, permitindo deslocar-nos sobre o eixo do tempo; permite reconhecer-se e dizer eu, meu” (1997, p. 171).
O tempo de trabalho apresenta questões que podem ser analisadas como elementos importantes na formação das professoras, pois modificam sua forma de lidar com o ensino, com a vida. Assim, a formação profissional é influenciada pela formação pessoal. O tempo de aprendizagem depende também das relações que se configuram na vida fora do trabalho. Em várias ocupações - e esse é o caso do magistério -, a aprendizagem do trabalho, segundo Tardiff (2002, p. 57), passa por uma escolarização mais ou menos longa, cuja função é fornecer aos futuros trabalhadores conhecimentos teóricos e técnicos.
Na instituição escolar, espera-se um modelo de aluno, de professor/a, de sala de aula, de material didático, entre outros, que na prática diária se apresentam de forma bem diferente do imaginado. Pode-se dizer que o cotidiano escolar filtra e seleciona os outros saberes, permitindo assim aos professores rever seus saberes, “julgá-los e avaliá-los e, portanto, objetivar um saber formado de todos os saberes retraduzidos e submetidos ao processo de validação constituído pela prática cotidiana” (TARDIFF, 2005, p. 54).
É importante analisar as experiências democratizantes para que se possa saber que, além da aparente homogeneidade que os espaços escolares teoricamente oferecem, há todo um universo de práticas diferenciadas, de iniciativas criativas, de atuações autônomas que refletem a formação dos professores.
Assim, mesmo que a profissão de professora tenha inúmeras dificuldades, é possível perceber, em certos depoimentos, o envolvimento, o engajamento, a expectativa de transformar o processo educativo. Estas diferenças de concepção de História expressas por professores/as contribuem para a formação de outros profissionais que se espelham nas práticas diferenciadas. Regina da Silva, que há seis anos atua como professora de História no ensino fundamental, afirmou o que ser professora representa:
Vários fatores me levaram para o caminho do ensino de História, dentre eles vou destacar os que considero mais relevantes. A princípio o fato de que esta profissão requer o aperfeiçoamento contínuo que, foi aliado à minha sede de aprender. Junto a isso está a importância, o valor e o poder desta profissão diante da formação do pensamento humano e a intencionalidade política nesta prática, considerando a possibilidade de mudança e transformação da realidade. Desde pequena tive facilidade de comunicação, de trabalhar com outras pessoas e dialogar com a vivência das pessoas. [4]
Percebe-se, em seu relato, que a formação constitui uma preocupação em sua vivência, assim como a atuação na sociedade, uma vez que encaminha para a profissão de professor/a a intencionalidade, a transformação da realidade, elementos que estão presentes na prática diária. Mas ao mesmo tempo, ao salientar que “desde pequena tive facilidade de comunicação, de trabalhar com outras pessoas e dialogar com a vivência das pessoas”, parece naturalizar e até mesmo essencializar a função de professora.
Além disso, numa análise mais ampla, pode-se dizer que, no processo educativo, as mudanças, as rupturas partem do processo dialógico que visa a construir atitudes, posturas diferenciadas, em que o/a professor/a traz uma série de elementos de sua personalidade para a atuação profissional. Na profissão de professor/a, a interação humana é algo constante, situada na mediação dos saberes, das habilidades, das competências. Se separarmos os profissionais por gênero, estaremos contribuindo para a construção da separação também entre as crianças com quem trabalhamos, perpassando um discurso da habilidade e competência de cada sujeito em separado.
Esse fenômeno permite compreender por que os professores, ao serem questionados sobre suas competências profissionais, falam, muitas vezes, primeiro de sua personalidade, suas habilidades pessoais, seus talentos naturais, como fatores importantes de êxito em seu trabalho” (TARDIFF, 2002, p. 265).
Estreitar as relações é um elemento que, para alguns professores/as, pode ser a chave de novas práticas educativas, mas que ainda está distante de ser um consenso, como relata a professora Márcia dos Santos, com dez anos de profissão:
Comecei a trabalhar na Escola neste ano (2005), mas já havia substituído uma professora em 2001, por isso conheço a realidade da escola. Cheguei com muitas expectativas, com vontade de mudar as coisas, de trazer novas propostas de trabalho. Mas, no começo do ano estranhei um pouco, porque todas as tentativas de mudança não estavam dando certo. Eu ia embora muito frustrada, cada dia tinha uma nova dificuldade para superar. Ainda bem que sou solteira, então tenho tempo para me preparar. Eu sempre superei as dificuldades. Num dia, na sala da 701 houve uma discussão com um aluno. Fui para casa pensando em tudo aquilo, comecei a perceber que só conseguiria avançar se colocasse em prática todas as intenções iniciais. Tive que rever a minha formação e, aprender com a prática diária, com o coletivo.[5]
Aprender com o coletivo, reformular as aulas, rever os conceitos são elementos que fazem parte do cotidiano de muitos/as professores/as; porém, é necessário que sua formação permita uma problematização e um aprofundamento em algumas questões. A própria professora já definiu a situação que se estabelece na escola, pois, segundo ela, por ser solteira, tem mais possibilidades. Isto faz lembrar da formação na Escola Normal, em que as “futuras professoras - as “normalistas” -, em sua maioria não casavam; viviam para o trabalho de docente. Novamente, percebe-se que os discursos de gênero fundamentam as práticas e as concepções de muitos/as professores/as.
O jeito do professor/a de lidar com a realidade vivenciada no espaço escolar aponta para diferentes temporalidades de saber, diferentes graus de intencionalidade na prática educativa, diferentes maneiras de ser e estar na profissão de professor/a, de conceber as relações de gênero. Por isso, o saber profissional está, de certo modo, na confluência de vários saberes provenientes da história de vida individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores educativos, dos lugares de formação, etc. (TARDIFF, 2002, p, 64).
Nas narrativas de determinados/as professores/as, ficam expressas as diferenças de concepção de sua prática, de sua experiência. Thaiz Tomé, que atua na rede municipal há cinco anos como professora de História, afirma que na atuação profissional sentiu falta de uma formação mais direcionada para o ensino, e de debates sobre as relações de gênero:
O início da minha carreira não foi muito fácil, pois era novata e não tinha experiência em sala de aula, tendo que enfrentar a indisciplina dos alunos, o que me ocasionou certo frustramento. Considero que a minha formação universitária estava muito longe da realidade que se tem que enfrentar nas escolas. As teorias, muitas vezes, não me ajudaram a avançar com o que tinha que ministrar nas aulas de História. Além disso, era eu e outro professor, que não perdia tempo de fazer “brincadeirinhas” sobre a minha forma de dar aula.[6]
Alguns elementos por ela citados podem ser encontrados em outras narrativas. De fato, percebe-se, principalmente no início da carreira, que muitos/as professores/as questionam a formação universitária. Não é o caso, aqui, de aprofundar a discussão sobre modelo de formação das licenciaturas e bacharelados nas universidades, faculdades e fundações, uma vez que esse debate tem sido largamente realizado por inúmeros teóricos.[7]
Cabe ressaltar, porém, que os/as professores/as apontam os primeiros anos como os mais difíceis. Ao longo dos anos, vão incorporando novos elementos à sua prática; assim, conforme o tempo de trabalho, acumulam conhecimentos que serão utilizados na profissão. Neste sentido, não se pode alegar que todo o saber derive da formação acadêmica. A formação vai além do que se aprende na universidade, levando em conta toda uma gama de experiências e a construção de saber da vida de cada sujeito social, de suas motivações, apreensões, ações, vivências. O início da carreira é acompanhado também de uma fase crítica, pois é a partir das certezas e dos condicionamentos da experiência prática que os professores julgam sua formação universitária anterior (TARDIFF, 2002, p. 86).
De certa forma, pode-se dizer que uma parte importante da competência profissional dos/as professores/as tem raízes em sua história de vida. Pimenta (1996, p. 84) ressalta que a formação dos/as professores/as deve ser entendida como autoformação, na qual suas experiências e práticas vão se transformando em seus saberes. O professor constantemente reflete na e sobre a prática. Outro ponto que reflete a falta de problematização das relações de gênero no espaço escolar fica claro quando a professora cita as “brincadeirinhas” do colega. Isto parece confirmar que a construção social de gênero delimita os espaços de circulação do saber no âmbito escolar, pois, se no século XIX as escolas passaram a ser um universo “feminilizado”, na atualidade, os homens parecem querer marcar os territórios em que atuam, reconstruindo histórias de identidade social.
Considera-se importante analisar a formação para que se compreenda a imagem que o/a professor/a tem de si mesmo e de seu trabalho. Muitos, que já trabalham há mais de 20 anos no espaço escolar, apontam outros elementos em relação à experiência da formação. Andréia Lima, que trabalha há 25 anos, destaca:
Ser professor hoje é muito diferente de quando iniciei. A gente ficava maravilhada em estar na sala de aula, em ensinar História, tudo era novidades para os alunos. Hoje, ainda busco me superar, mas tenho visto que cada vez mais o desinteresse impera na sociedade e na escola não é diferente. As crianças precisam ser motivadas sempre, então busco produzir diálogos com que vivem fora da sala, suas famílias também são utilizadas como exemplo. Não me canso nunca de pensar formas de fazerem se sentir sujeitos da História. Vivo a História intensamente, como pessoa e profissional.
No seu exercício, o/a professor/a é responsável pela produção de saberes e valores por meio de processos de ensino-aprendizagem no ambiente escolar. Na transmissão dos saberes, aglutina conhecimento histórico, saberes curriculares, saberes pedagógicos, saberes práticos da experiência. Esse conjunto constrói as identidades dos/as professores/as, evidenciando os elementos de sua formação pessoal e profissional.
A narrativa de Andréia aponta algumas questões relacionadas aos saberes instituídos na vivência do/a professor/a. Ao longo da trajetória escolar, ele/ela vai identificando os problemas, buscando soluções, vivenciando situações inusitadas. A construção e a transmissão dos saberes elencados no processo educacional raramente permitem momentos de interação entre os diferentes profissionais do sistema escolar para que possam externar seus sentimentos, estreitar laços. Segundo Andréia, o que se quer com as reuniões de troca de experiências:
é momento em que a gente não fique falando dos alunos, mas que se fale de quem é o professor? Como me sinto em meio a violência que domina o espaço escolar? Como vislumbro o fato de muitas vezes assumir o papel mãe, tia, professora dos alunos? Enfim, somos sujeitos com as mais diferentes vivências e experiências, por isso é importante que se tenham momentos de troca, para que se pense no coletivo propostas de mudanças nos paradigmas educacionais”.
Pode-se dizer que as trocas de experiências configuram momentos de desabafo dos problemas enfrentados no cotidiano da escola e na própria formação dos professores. Em relação à formação acadêmica, há nas narrativas dos/as professores/as algumas questões sobre o que consideram importante na “preparação” para atuar em sala de aula. Maria, professora há oito anos, relata:
A formação acadêmica que tive me propiciou a preparação para o que tive que enfrentar. Mesmo assim, é difícil trabalhar. Os alunos só pensam em brigas, pontapés, palavrões [...] e para os estudos não dão a mínima importância. [...] nossos alunos perderam a vontade de sonhar...
Os problemas com a violência no espaço escolar, com a indisciplina, são fruto do contexto social em que alunos/as e professores/as estão inseridos. O modelo educacional de ação é regido pela lógica disciplinar que, historicamente, impõe à escola uma função ideológica. Este modelo, tão amplamente debatido e criticado, pressupõe também um modelo de aluno. Entretanto, na prática, os/as professores/as ressaltam não existir essa homogeneização; o que há, são inúmeras rupturas no modelo disciplinar. Em meio à diversidade de histórias, o/a professor/a precisa redimensionar suas concepções ao processo educativo e, por isso, a formação continuada o pode auxiliar nesse redimensionamento. Ao longo das ações diárias, aprende a incorporar as estratégias de ensino e a compreender melhor os alunos, suas necessidades. O domínio progressivo do trabalho provoca uma abertura em relação à construção de suas próprias experiências, abertura essa ligada a uma maior segurança e ao sentimento de estar dominando bem suas funções (TARDIFF, 2005, p. 88).
Em sua formação, busca o aperfeiçoamento contínuo. Nesse processo, a experiência prática constitui um conjunto de ações sobre o seu fazer pedagógico. Ela configura um processo de investigação. Ela sozinha, entretanto, não é suficiente para modificar o processo educativo. O conhecimento teórico-crítico, produzido ao longo da história, pode ser utilizado como ferramenta para significar a formação e contribuir com ela.
As características que remetem cada professor/a à sua prática mostram a preocupação do indivíduo e sua história. Sua formação se opera dentro de um processo educativo no qual ele é um mediador dos conhecimentos produzidos pela sociedade. Para Ramalho (2004, p. 21-22), emergiu no Brasil um “modelo formativo”, com base em certas características, como “treinamento de habilidades”:
a) conteúdos descontextualizados da realidade profissional, fragmentados, reveladores de uma formação acadêmica fragilizada;
b) distância do objeto da profissão, com uma evidente dicotomia teoria/prática, com o criticado estágio terminal e com escassos momentos para mobilizar saberes da profissão na prática real.
A autora apresenta algumas questões, pertinentes e muito debatidas em relação à formação, uma vez que as discussões a fomentar se devem focar no fato de que é necessário aliar teoria e prática, produzir saberes, assumir o ensino como investigação, reflexão, produção. Neste sentido, na produção de conhecimento desde a formação inicial até a prática diária no espaço escolar, a reflexão deve aliar o teórico à prática. A formação dos/as professores/as “não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos, de técnicas), mas por meio de um trabalho de reflexibilidade crítica sobre as práticas de (re)construção permanente de uma identidade pessoal” (NOVOA, 2005, p. 25).
Ao lançar a proposta de formação para além da questão técnica, o autor amplia a noção de formação, permitindo, assim, valorizar a experiência acumulada pelos professores, estimular sua reflexão sobre as práticas. Assim, as crenças, os valores, as concepções de ensino e aprendizagem, o conteúdo curricular, a vivência familiar contribuem na formação de sua profissão.
A construção dos saberes e competências são elementos presentes na vivência dos professores; neste sentido, são cada vez mais valorizados os espaços de formação que levam em conta as perspectivas de socialização, interação, pois, segundo as narrativas de vários/as professores/as, faltam tempo e espaço para a formação:
O excesso de carga horária acarreta desgaste físico e mental, que requer um tempo de lazer e descanso, tempo este que na profissão de professor muitas vezes é direcionado para o planejamento [...] o professor quando sai da escola, na volta para casa leva consigo a responsabilidade de voltar no dia seguinte preparado para dar sentido e significado ao conhecimento. Nesses momentos, fico pensando que a formação deve levar em conta a nossa experiência, a subjetividade, não que não seja importante discutir a pesquisa histórica, o fazer pedagógico.[8]
Os anos de profissão permitem aliar os conhecimentos teóricos à prática realizada na sala de aula. Envolvem dois tempos no processo de produção do conhecimento: o das relações e espaços de formação e a produção de saberes. Nóvoa (1992 p. 9) considera necessário valorizar as histórias de vida, apontadas por ele como meios de produção de um pensamento propriamente pedagógico sobre a profissão docente, já que esta profissão precisa se dizer e se contar: é uma maneira de a compreender em toda a sua complexidade humana e científica.
A desconsideração da existência de outras instâncias pelas quais cada sujeito transita ou transitou em sua trajetória de vida/profissão dificulta a possibilidade de que as professoras possam dar sentido às formações profissionais, o que impede que se percebam as contribuições que os demais espaços por onde transitam contribuam para a própria formação escolar.
Muitos professoras ressaltam a necessidade de valorizar as experiências, as práticas educativas, de fomentar espaços em que os vários aspectos da formação - desde a acadêmica, os cursos, as condições de trabalho, a valorização das práticas - que ampliem o redimensionamento do sistema educativo.
A ênfase em aperfeiçoamento profissional tem sido uma de suas constantes reclamações, pois, muitas vezes, não alcançam o que almejam trabalhar no espaço escolar; poucos/as são os que têm condições de participar de cursos diferenciados. Cláudia ressaltou:
A maior dificuldade diz respeito ao pouco incentivo no que concerne ao aperfeiçoamento profissional. Enquanto alguns profissionais encontram todas as facilidades para realizar cursos, participar de eventos, os professores encontram muitas dificuldades no que diz respeito a essa questão. Outra dificuldade, não sei bem se é dificuldade, talvez um desafio, é que os cursos muitas vezes não trazem utilidade para trabalhar com realidade, a vida do aluno. [9]
Valorizar a experiência da professora e a realidade do aluno é um aspecto que precisa ser também prioritário na prática pedagógica. “O papel de facilitador que o formador desempenha não possa envolvê-lo num tipo de ensino mais tradicional, expositivo e que ele assuma, quando necessário, a função de comunicar, descrever teorias, aconselhar, exercer o espírito crítico” (1996, p. 19).
Logo, nessas breves linhas, tem-se buscado refletir sobre os caminhos da formação das profissionais da educação, acompanhando suas trajetórias, contando um pouco da “aventura” de ser professora.
Referências
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Notas