Dossiê
Recepção: 27 Janeiro 2016
Aprovação: 23 Abril 2016
DOI: https://doi.org/https://dx.doi.org/10.5965/2175180308172016006
Resumo: Este artigo busca compreender alguns aspectos da noção de humanismo na fotografia e sua proximidade com a cultura política e a cultura visual do período, a partir das experiências específicas de George Rodger e Henri Cartier-Bresson, dois fotógrafos que viveram em primeira mão e que deram testemunho do horror dos campos de concentração nazistas ao final da Segunda Guerra Mundial. George Rodger fotografou o campo de Bergen-Belsen assim que foi libertado pelas tropas britânicas. Henri Cartier-Bresson esteve com uma equipe de filmagem registrando as massas de deportados recém-libertados dos campos de concentração e extermínio nazista. Essas experiências viriam a ter impactos profundos na biografia e no trabalho de ambos. Nos dois casos, está presente uma noção de humanismo atrelada aos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, que se faz ver na fotografia e na representação fotográfica, de significativa consequência para a cultura visual contemporânea.
Palavras-chave: Cultura visual, Cultura Política, Fotografia de Guerra, Fotojornalismo, Campos de Concentração.
Abstract: This article aims to grasp some aspects of the notion of humanism in photography and its closeness to the political culture and the visual culture in the period, through the specific experiences of George Rodger and Henri Cartier-Bresson, two photographers who were first-hand witnesses and provided accounts of horror in the Nazi concentration camps at the end of World War II. George Rodger photographed the Bergen-Belsen camp as soon as it was liberated by the British troops. Henri Cartier-Bresson was there with a film crew recording the deported masses newly freed from the Nazi concentration and extermination camps. These experiences came to have profound impact on the biography and work of both of them. In the two cases, there is a notion of humanism linked to World War II events, which is observed in photography and photographic representation, and it has a significant consequence for the contemporary visual culture.
Keywords: Visual Culture, Political Culture, War Photography, Photojournalism, Concentration Camps.
O humano e o desumano: cultura visual, cultura política e as imagens feitas por George Rodger e Henri Cartier-Bresson nos campos de concentração nazistas
Falaram-me os homens em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si.
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.
Alberto Caeiro[2]
Terminada a Segunda Guerra Mundial, os países Aliados se viram em dificuldades para julgar e punir os responsáveis pelas atrocidades cometidas naqueles campos. Hannah Arendt ressalta que após a guerra, durante o julgamento dos vencidos em Nuremberg, um novo âmbito teórico precisou ser elaborado para dar conta juridicamente não apenas do assassinato em massa cometido pelos nazistas, mas também por seu alvo ser constituído por civis de diversas nacionalidades, e pela dura crueldade com que esse assassinato foi metodicamente colocado em prática. Esse novo conceito foi denominado crime contra a humanidade. Segundo a autora:
Foi precisamente a catástrofe dos judeus que levou os Aliados a conceber a ideia de “crime contra a humanidade”, porque, escreveu Julius Stone em Legal Controls of International Conflict (1954), “se se tratasse de cidadãos alemães, o assassinato em massa de judeus só poderia ser coberto pela acusação de crime contra a humanidade”. E o que impediu o tribunal de Nuremberg de fazer justiça completa quanto a esse crime, que tinha tão pouco a ver com a guerra que sua execução efetivamente entrava em conflito com a conduta de guerra e a atravancava, foi o fato de estar ligado a outros crimes. (ARENDT, 2000, p. 208)
Corroboram essa imputação os testemunhos dos sobreviventes dos campos. Diferentes relatos convergem ao afirmar que o que o sistema concentracionário lhes negava era justamente sua condição de seres humanos. Assim, Robert Antelme, em A espécie humana, afirma que “o resultado de nossa luta terá sido apenas a reivindicação arrebatada e quase sempre solitária de permanecer, até o fim, homens”, ao mesmo tempo que Primo Levi intitula o livro que escreveu sobre o período em que esteve internado em Auschwitz com a eloquente questão: É isto um homem?[3]. A noção de humanidade e, por consequência, a de humanismo, agregou desse modo novos significados com o fim da Segunda Guerra Mundial[4].
De modos diferentes, o fotógrafo inglês George Rodger (1908-1995) e o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004) testemunharam a catástrofe humana dos campos de concentração e extermínio nazistas, e compactuaram da noção de humanidade e humanismo que permeou o ambiente cultural, inclusive a cultura política, daquele momento. Essa vivência impactou tanto o fazer fotográfico deles, que se deixa ver por meio da estética de suas imagens, como seus caminhos profissionais – eles viriam a ser cofundadores da agência fotográfica cooperativa Magnum, em 1947.
O Retorno
Henri Cartier-Bresson se apresentou voluntariamente para trabalhar como fotógrafo junto ao exército francês[5], e foi capturado em Saint-Dié, nos Voges, em 22 de junho de 1940, dia da assinatura do armistício. Ele foi enviado para um Stalag, campo alemão de prisioneiros de guerra, e conseguiu escapar em sua terceira tentativa, três anos depois. Apesar desses campos de prisioneiros não serem da mesma natureza dos campos de concentração e extermínio, Cartier-Bresson também teve contato próximo com os efeitos dos campos de concentração de civis ao realizar o filme Le Retour.
Assim que fugiu de seu cativeiro, recuperou sua câmera, que por segurança havia enterrado perto de uma fazenda, e voltou a fotografar. Ele registrou a libertação de Paris e os últimos dias da guerra na Europa. Menos de um ano depois de sua fuga, no início de 1944, Cartier-Bresson tinha a intenção de filmar a volta dos prisioneiros deportados, desde a abertura dos primeiros campos retomados pelo recuo dos alemães. No entanto, o tempo necessário para levantar a verba, organizar a produção e resolver as questões burocráticas fez com que o filme começasse a ser rodado apenas meses depois, no início de 1945, quando os campos já estavam quase vazios. Finalmente, foi realizado por meio de uma encomenda oficial do Ministério dos Prisioneiros, Deportados e Refugiados francês aos Serviços Norte-Americanos de Informação, financiado por este, rodado em 35 mm, dirigido por Cartier-Bresson, e filmado por operadores da seção de cinema do Exército norte-americano, capitão Krimsky e tenente Richard Banks, além de uma sequência rodada em Paris por Claude Renoir, e narrado por Claude Roy (MICHAUD, 2009, p. 89, e ASSOULINE, 2008, p. 158-159).
Le Retour, embora não mostre com detalhes o momento da abertura dos campos, traz o momento seguinte, talvez menos dramático, mas não menos trágico, em que milhares de recém-libertos recebem alimento, os primeiros cuidados médicos e, também, cuidados sanitários, especialmente contra uma infestação de tifo; e, em seguida, o lento processo do retorno propriamente dito, desde o caos nas estradas alemãs devido à enorme marcha, a demorada movimentação das massas humanas, a vida nos centros provisórios de repatriação, novamente longas colunas de deportados, a pé, em trens, por avião, em seu caminho de volta, até a emocionante chegada de repatriados franceses em Paris.
Por um lado, Le Retour é um testemunho e relato jornalístico da história recente. Como ressalta Philippe-Alain Michaud (2009, p. 89, tradução nossa), esse filme está inscrito em uma cultura política específica ao imediato pós-guerra francês, de união e reconstrução: “Segundo a ideologia predominante da reconciliação nacional, o filme associa na mesma mitologia do ‘retorno’ prisioneiros de guerra, trabalhadores do STO [o Service du Travail Obligatoire, alistamento e deportação forçada de trabalhadores franceses para a Alemanha] e deportados (na narração não é feita menção ao extermínio dos judeus)”[6]. Por outro lado, ele é também o retorno pessoal de Cartier-Bresson, que esteve preso em um Stalag, que esteve na pele de alguns dos homens que filmou, e cujas imagens, segundo seu biógrafo Pierre Assouline, ressentem-se dessa experiência, carregando seu peso. Segundo o autor (ASSOULINE, 2008, p. 159), “Le Retour é o relato de uma longa transumância. Das primeiras às últimas imagens, tudo é movimento – filas, cortejos, marchas, colunas. Vemos massas humanas à espera. Muitos, que precisam reaprender a viver em liberdade, só se movem quando ordenados”.
Diferente de quando fez filmes durante a Guerra Civil Espanhola, quando não fotografou (ver ZERWES, 2013, vol. 1), Cartier-Bresson acompanhou com sua Leica os operadores de câmera que dirigia em Le Retour. Assim, uma das fotografias mais reconhecidas de toda sua carreira data desse momento; ela é a fixação de um instante dentro de uma das sequências do filme. Em abril de 1945, a equipe de filmagem registrou, no centro provisório de repatriação de Dessau, na Alemanha, um interrogatório ao ar livre, improvisado pela vontade de justiça e vingança dos ex-prisioneiros contra colaboracionistas. Durante esse interrogatório, uma mulher que havia sido delatada e presa pela Gestapo testemunha contra a pessoa que a delatou e não conseguiu reprimir sua raiva em direção a essa pessoa – sequência mostrada pelas Imagens 3 a 6, correspondentes aos 13’05’’ do filme. Por sua vez, a fotografia de Cartier-Bresson mostra exatamente o momento em que a acusadora se projeta contra a acusada, com o rosto transtornado e a postura incorporando e demonstrando toda a raiva contra sua delatora. Esta tem a postura absolutamente submissa, os braços junto ao corpo e o olhar voltado para baixo. Em primeiro plano, um homem impassível está tomando notas e é visto de perfil. Atrás, muitas pessoas aglomeradas acompanham a cena e, à esquerda, uma delas está vestida com o característico uniforme listrado dos campos nazistas.
Apesar de terem sido tomadas pelo mesmo olhar, de formarem um duplo, o instante eleito para o disparo da câmera e registrado em fotografia ganhou muito maior repercussão do que o filme inteiro. A sequência da qual ela foi retirada é formada por um plano um pouco mais afastado do que a fotografia, onde a mulher acusada é levada à frente do homem sentado na mesa e ao lado da acusadora. Enquanto o plano se aproxima um pouco, formando um enquadramento quase idêntico ao da fotografia, o narrador afirma que uma das primeiras tarefas dos habitantes dos centros provisórios de repatriação é identificar os poucos misérables, traidores e agentes da Gestapo, que tentam se misturar com os deportados. Nesse momento, a câmera se aproxima mais, em um plano mais fechado nos rostos da acusada e da acusadora, e logo esta, que estava falando normalmente, parece se transtornar e – por frações de segundo – muda sua expressão para outra de raiva e desfere um tapa na acusada, que se desloca para a esquerda[7].
A comparação entre essa sequência do filme e a fotografia é assim significativa: Cartier-Bresson disparou o obturador exatamente durante essas frações de segundo em que uma mudança pronunciada se deu na cena, e os 24 quadros por segundo do filme oferecem todas as possibilidades que ele negou em nome desta, tornando visível um análogo à folha de contatos dessa imagem. A fotografia do interrogatório, desse modo, não possui som, uma narração ou o movimento mostrando a sequência inteira, mas é comparável ao filme em narratividade. Aquele instante em que a cena se transforma, ou seja, em que a mulher retorce sua boca, insufla o peito, olha diretamente para a acusada e leva seu braço para trás preparando o tapa, é carregado da ideia de movimento, todo ele concentrado na mulher que acusa sua delatora, pois o restante da imagem é estático. A ideia de movimento, aqui, cria uma imagem muito simbólica e, assim, narrativa. Toda a raiva acumulada por anos de subjugação e humilhação é concentrada nas feições contorcidas daquela mulher.
Esse instante particular que o fotógrafo por vezes busca, em que ocorre uma mudança fundamental, que é uma representação estética e estática da ideia de movimento, será anos mais tarde, com a tradução para o inglês do livro de Cartier-Bresson, Images à la sauvette, publicado em 1952, intitulado O momento decisivo nesse idioma.
A noção desse instante é, portanto, recorrente em suas fotografias. Ele já vinha jogando com a ideia de movimento desde o início da década de 1930. Um exemplo é a fotografia feita nas proximidades da Gare Saint-Lazare, em Paris, em 1932. Nela, um homem é retratado no exato momento em que pula sobre uma poça de água. Esse saltador é fotografado no exato instante em que já deixou para trás o local em que se apoiava, mas ainda não alcançou o novo ponto de apoio. O cuidado com a geometria, tão caro à Cartier-Bresson, é bem visível, ao contrário do homem propriamente dito, que nos aparece apenas como uma silhueta negra, e que tem seu duplo invertido refletido na água abaixo de seus pés. O que difere a fotografia de 1932 da de 1945 não é, portanto, a capacidade de apresentar um instante prenhe de movimento, mas sim sua capacidade narrativa, e isso pode ser relacionado diretamente ao tempo de guerra vivido pelo fotógrafo.
Pierre Assouline (2008, p. 161) ressalta que nos últimos momentos da guerra, durante o período da libertação dos campos de prisioneiros, Cartier-Bresson “nunca foi tão repórter”. Seu método de trabalho mudou, e ele, pela primeira vez, fez detalhadas anotações e elaborou longas legendas para suas fotografias. Esse detalhamento teria o propósito de, ao mesmo tempo, auxiliar os jornais e revistas que publicariam as fotografias, e evitar que modificassem o sentido das imagens. O autor afirma que “ele anota tudo, mesmo para as cenas aparentemente mais anódinas, e não hesita em contar uma história quando necessário” (ASSOULINE, 2008, p. 161), e cita uma dessas legendas, para o retrato de dois homens em uma motocicleta, que sorriem, à frente de uma multidão que festeja:
Acampamento russo, lado americano. Russos esperam para atravessar. Dois franceses na moto, oficiais que acabam de atravessar a zona russa a caminho de Paris. O que dirige é o tenente Henri de Vilmorin. O tenente Gendron está sentado atrás dele. Os dois eram próximos a De Gaulle nas FFL. A moto se chama Caroline e os carrega desde Berlim. Eles haviam sido capturados nos Vosges nesse inverno durante a última batalha. O tenente Vilmorin foi, dos seus sete mil camaradas de Stalag, o último a partir. Ele dirigia o comitê de libertação. (ASSOULINE, 2008, p. 162)
Da mesma forma, contribuiu para uma modificação em seu fazer fotográfico a experiência das filmagens que ele realizou durante a Guerra Civil Espanhola e, principalmente, durante esse anticlímax, que foi o término da Segunda Guerra Mundial na Europa. Peter Galassi (1987, p. 41-44) e Philippe-Alain Michaud (2009, p. 91) concordam que a noção do que mais tarde seria chamado de momento decisivo mudou entre as fotografias que Cartier-Bresson realizou na década de 1930 e as do imediato pós-guerra. Nos anos em que ele fotografou imagens como a famosa cena em que um homem salta uma poça d’água atrás da Gare Saint-Lazare parisiense em 1932, o instante decisivo apareceria em suas fotografias como um olhar que recorta um fragmento de percepção, que o isola, o retira de seu contexto. Já na década seguinte, o momento decisivo se transformaria em uma fatia de espaço e tempo que conteria em si o significado do evento retratado, ou seja, o evento como um todo. Para Michaud, entre um período e outro, o que muda é que a imagem não é mais deslocada do evento da qual faz parte, mas preserva uma ideia de continuidade, sugere um antes e um depois. A prática cinematográfica durante a guerra espanhola e a mundial teria, assim, ajudado Cartier-Bresson a usar seu instante decisivo em favor da narração[8].
A experiência dos campos de concentração, como prisioneiro e depois como cineasta e fotógrafo, teve impacto no caminho que ele trilhou depois desses anos de guerra. Ele não retomou o trabalho de pintura, que desenvolveu até meados da década de 1930 no ateliê de André Lhote[9]. Após Le Retour, ele abandonou por longos anos o cinema. Foi, por outro lado, nesse período que tomou a fotografia com mais seriedade. No começo de 1947, ele e o já então famoso fotógrafo de guerra Robert Capa (1913-1954) se encontraram no MoMA, em Nova York, que havia montado uma exposição de fotografias de Cartier-Bresson[10]. Ele repetiu por diversas vezes que, naquela ocasião, uma conversa com Capa o ajudaria a se decidir por adotar a reportagem fotográfica como profissão[11]. Poucas semanas depois da abertura da exposição, em fevereiro de 1947, e da conversa com Capa, Cartier-Bresson receberia a notícia da fundação da Magnum, e do seu papel como sócio, durante uma viagem fotografando os EUA, para um livro que nunca foi lançado.
Atrocidades
Apesar de George Rodger não ter vivido na pele o trabalho forçado do sistema concentracionário, ele viveu a experiência profundamente impactante fotografando o campo de concentração de Bergen-Belsen. Rodger era correspondente de guerra da revista Life desde 1939. No começo de março de 1945, ele havia entrado na Alemanha com as tropas britânicas: no dia 26 acompanhou quando Churchill cruzou o rio Reno, e entre 28 e 31 se deslocou pela região já testemunhando a grande quantidade de deportados de diversas nacionalidades que começavam a tomar as estradas comandadas pelos Aliados. Rodger foi então enviado pela Life para Paris, e estava lá quando o primeiro campo de concentração nazista foi libertado. Ohrdruf foi tomado por tropas norte-americanas em 4 de abril de 1945. As primeiras fotografias dos horrores encontrados lá dentro foram publicadas no jornal londrino Times, e nos norte-americanos News Chronicle e Daily Mirror em 9 de abril. No dia seguinte, o New York Times, o Los Angeles Times e o Washington Post também trouxeram fotografias da profusão de corpos emaciados encontrados em Ohrdruf (ZELIZER, 1989, p. 89-90). Já no dia 11 de abril, tropas americanas entraram em Buchenwald, e cenas ainda piores foram registradas nesse campo.
Rodger retornou para a Alemanha no mesmo dia em que tropas britânicas libertaram Bergen-Belsen, 15 de abril, e nos dias seguintes, ele e seu motorista foram até o local. Segundo o depoimento desse motorista, Dick Stratford, citado pela biógrafa de Rodger, Carole Naggar (2003), eles entraram pelo portão aberto e andaram desacompanhados pela área do campo. Outros fotógrafos, tanto civis, como Rodger, quanto os militares, relataram semelhante liberdade para retratar os campos assim que foram libertados. Não havia diretrizes do que ou como fotografar, mas uma reiterada sensação de que aquilo que estavam vendo deveria ser mostrado para o mundo (ZELIZER, 1989, p. 92). O trabalho de Rodger naquele dia seguiu, portanto, o método particular que ele havia desenvolvido durante as 51 frentes de batalha que tinha fotografado até então. Como de costume, ele foi acompanhado apenas de seu motorista. Ao entrar, não encontraram outros fotógrafos ou pessoal do exército, e ficaram dirigindo pela enorme área do campo. Dick Stratford diz que:
Não havia nada que nós pudéssemos fazer. Nós só dissemos oi para as pessoas, e isso foi tudo. Não tinha possibilidade de conversa. Um dia depois disso o exército chegou para assumir o comando do campo. [...] Eles fizeram os SS recolherem os corpos e os enterrarem adequadamente, porque havia apenas montes de corpos. Era inimaginável. (Apud NAGGAR, 2003, p. 138, tradução nossa)[12]
Além de fotografar, Rodger também fez no local anotações sobre as fotografias, e um levantamento de informações, que ele mais tarde detalhou e datilografou, enviando junto com os filmes para a Life. Esse relato datilografado fornece dados precisos, como a estimativa de que, apenas no mês de março, 17.000 pessoas haviam morrido de fome, e que ainda então continuavam a morrer uma média de 300 a 350 pessoas, “muito além da possibilidade de serem ajudados pelas autoridades britânicas”[13] (Apud NAGGAR, 2003, p. 138, tradução nossa). No entanto, ele também traz um tom dramático, que tenta dar a dimensão da catástrofe:
A magnitude de sofrimento e horror em Belsen não pode ser expressa em palavras, e até eu, como uma testemunha ocular, achei impossível o compreender completamente – havia uma quantidade muito grande dele; era muito contrário à todos os princípios de humanidade – e eu fiquei atordoado. Em baixo dos pinheiros, os mortos espalhados estavam deitados não em dois ou três, ou em dúzias, mas em milhares. (Apud MILLER, 1997, p. 43-44, tradução nossa)[14]
O relato de Rodger traz de antemão a advertência de que aquela cena de horror não poderia ser completamente expressa em palavras. Ainda assim, o seu trabalho lá como repórter fotográfico tinha como objetivo documentar e comunicar o que testemunhou em palavras, mas principalmente em imagens, para os leitores da revista da Life.
A revista publicou, sob o título de Atrocidades, três de suas fotografias na edição do dia 7 de maio de 1945, junto com fotografias de Buchenwald feitas por Margaret Bourke-White, e outras do campo de Gardelegen, próximo a Berlim. As fotografias de Rodger publicadas nesta edição são tomadas mais abertas do campo, em que aparecem grandes quantidades de corpos emaciados. Sobre essas tomadas abertas, é frequentemente citado um depoimento de Rodger, em que ele conta sua angústia ao se descobrir buscando, após algum tempo já fotografando Belsen, enquadramentos da paisagem repleta de vítimas a partir de um ponto de vista estético (ver NAGGAR, 2003, p. 140). Essas suas fotografias ajudaram, no entanto, a construir a representação visual do assassinato em massa nas câmaras de gás ocorrido nos campos nazistas. Fotografias mostrando pilhas de corpos amontoados, sendo carregados por pessoas ou maquinários, passaram a ser identificadas como uma iconografia do campo de concentração enquanto evento histórico[15].
Além dessas imagens mais abertas, Rodger realizou uma documentação bem mais extensa do campo. Fazem parte do conjunto de imagens que ele realizou lá, que não foram publicadas pela Life, alguns retratos, tanto de sobreviventes quanto de alguns dos soldados da SS que trabalhavam no campo, mas que agora estavam em poder dos aliados, aguardando julgamento. Essas fotografias têm um tom bastante diferente daquelas que foram publicadas. Chamam a atenção especialmente os retratos de soldados do sexo feminino, que trazem características estéticas específicas, ao mesmo tempo em que evocam um sentimento diferente no espectador. Por sua peculiaridade dentro do corpo maior de imagens realizadas por Rodger, esses retratos permitem que articulemos algumas considerações sobre suas condições de feitura e algumas das intenções do fotógrafo.
Na edição do dia 7 de maio de 1945, em que a Life publicou a reportagem com fotografias de Belsen, o texto da revista reproduz esse tom ao apresentar os crimes nazistas como direcionados não a nenhum povo determinado, mas à humanidade[16]. A reportagem apresenta uma justificativa para a publicação de imagens tão chocantes, fazendo referência a uma edição da revista publicada sete anos antes:
With the armies in Germany were four LIFE photographers whose pictures are presented on these pages. The things they show are horrible. They are printed for the reason stated seven years ago when, in publishing early pictures of war’s death and destruction in Spain and China, LIFE stated, “Dead men will have indeed died in vain if live men refuse to look at them”.[17]
A frase entre aspas remete ao texto de uma reportagem sobre as guerras na China e na Espanha, publicada na edição da revista de 24 janeiro de 1938. Nela, a revista faz uma defesa do que seria a verdadeira fotografia de guerra, utilizando as fotografias do húngaro radicado na França Robert Capa (1913-1954). Esse fotógrafo havia ganhado fama a partir das imagens que fez muito próximas das frentes de batalha desde as primeiras semanas da guerra da Espanha. A Life o apresentou como “um dos melhores repórteres fotográficos” quando publicou nessa edição fotografias que ele fez da batalha de Teruel, ocorrida no final de dezembro de 1937[18].
Nessa página dupla, aparecem fotografias de Capa com alguns dos temas mais publicados pela imprensa antifascista, como a ameaça à população civil, causando ondas de refugiados e ferindo mulheres, idosos e crianças. Em especial, a foto da direita se tornou muito conhecida, e é mostrada na revista com destaque, ocupando a página toda. Na página anterior, são mostrados dois lados do conflito: uma fotografia de mulheres e crianças obrigadas a abandonar suas casas, andando em uma estrada; e abaixo um soldado republicano ferido sendo auxiliado por um colega na retaguarda do conflito. A terceira fotografia, maior, aparece justamente como uma síntese do evento. Um pai carrega seu filho ferido na perna. A legenda chama a atenção para o curativo improvisado na perna da criança e a ferida ainda sangrando, bem como para a expressão do rosto do pai, com um “cigarro apagado e esquecido” na boca.
Predominam nas fotografias de Capa e de outros fotógrafos antifascistas dos anos de 1930, e em especial da Guerra Civil Espanhola, esse olhar muitas vezes chamado de humanista, que busca singularizar indivíduos anônimos e faz uma contraposição desses homens e mulheres à sociedade estruturada em massas e apologética da técnica[19]. Elas trazem apenas os efeitos causados pelo inimigo invisível, que é capaz da mais bárbara destruição. O rosto que elas dão para a guerra não é o dos armamentos e dos combatentes, mas sim o rosto desses indivíduos, geralmente civis e inocentes, que sofrem suas terríveis consequências. Os artistas e intelectuais de esquerda europeus retrataram a Guerra Civil Espanhola como o modelo de uma luta internacional para a preservação da civilização, por meio da contenção da barbaridade fascista. A partir de então a luta contra o fascismo internacional foi transformada por eles em uma luta do humano contra o desumano, não restando alternativa além de uma união também internacional de todas as forças a favor da vida e da civilização, contra um inimigo identificado com uma fria e destrutiva tecnologia. Inimigo este que permaneceu sem rosto, representado apenas pela destruição que suas armas produziam.
Os retratos que Rodger fez daquelas mulheres, que permitem que nos deparemos com os perpetradores de crimes nazistas, contrariam a prática fotográfica alinhada a essa estética humanista que também ele havia seguido até então.
São retratos posados, e não de snapshots, pois apesar de ter fundos diferentes e, portanto, de ter sido tirados em locais diferentes, foram todos realizados a partir da mesma posição da câmera. Em todos os casos (Imagens 9, 10, 11 e 12), o retrato é feito em primeiro plano, do meio do torso para cima, com as retratadas ocupando praticamente todo o quadro, que não apresenta nenhum outro elemento. O fotógrafo se posicionou levemente de baixo para cima, e levemente à direita. Quase todas as retratadas olham para a esquerda, apenas uma volta seu olhar, mas não seu rosto, para a câmera (Imagem 11). A relação entre o rosto das retratadas e a legenda das fotografias causa uma sensação diferente no observador. Somos informados que essas mulheres, à primeira vista normais, sem nenhum elemento que as possa distinguir, faziam parte da SS e trabalhavam no campo, tendo responsabilidade pelas barbaridades lá ocorridas.
A partir das opções formais – proximidade e consistência estética – e das informações dadas pelas legendas – a ocupação dessas retratadas, e em alguns casos a fama de crueldade – o fotógrafo parece demonstrar a intenção de realizar ao mesmo tempo um inventário e uma investigação[20].
Um inventário na medida em que esses retratos nos remetem à tradição imagética dos estudos tipológicos, de registros no estilo das fotografias de identificação. Allan Sekula ressalta que o retrato fotográfico na virada do século XIX ocupou um lugar importante no estabelecimento de relações entre o corpo humano e a sociedade e no estabelecimento de um padrão de normalidade e de graduações dos desvios dessa normalidade[21]. Já na década anterior à Segunda Guerra Mundial, o fotógrafo alemão August Sander realizou um dos mais ambiciosos projetos de inventariação por meio do retrato. Sua intenção era buscar os aspectos visíveis dos indivíduos enquanto tipos sociais, ou seja, “considerar o mundo histórico em seus aspetos humanos” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 79-80). Em que pesem as diferenças formais, de enquadramento, os retratos acima parecem trazer esse olhar que busca avaliar uma alteridade, que atenta para a particularidade dos indivíduos ao mesmo tempo que busca extrair deles uma característica social.
Os retratos de Rodger parecem também promover uma investigação. Em seu depoimento citado acima, ele afirma que o que viu no campo de Bergen-Belsen estaria além da possibilidade de compreensão, pois seria muito contrário a todos os princípios da humanidade. Ao produzir esses retratos, essa espécie de inventário, o fotógrafo parece procurar naqueles rostos alguma possibilidade de explicação para as paisagens de morte que ele viu e fotografou. Eles nos remetem às palavras de Walter Benjamin, para quem “mesmo o ambiente e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação anônima, num rosto humano”, e cujo exemplo maior é a obra de Sander: “mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos” (BENJAMIN, 1996, p. 102-103). Esses retratos parecem, portanto, propor uma investigação acerca da própria humanidade dessas pessoas, que foram capazes de atos tão desumanos.
Considerações finais
A possibilidade ou não de representação da realidade concentracionária, assim como a da produção artística sobre o tema, e, no limite, de qualquer produção de cultura após 1945, foram e são ainda hoje tema de acalorados debates[22]. Para Cartier-Bresson, esse desafio foi de certo modo formador de um novo modo do fazer fotográfico, bem como da compreensão da função desse meio. Para Rodger, a experiência fotografando Bergen-Belsen e, portanto, produzindo imagens inevitavelmente estéticas, foi muito custoso emocionalmente e desembocou em uma decisão pessoal e profissional, a de não mais fotografar guerras. Preferindo esquecer essas fotografias por anos, o fotógrafo apenas voltou a elas em 1994, permitindo a publicação no livro retrospectivo de sua carreira, Humanity and inhumanity[23].
Após tantos anos, os fotógrafos Bruce Bernard e Peter Marlow (1999), ao editarem o livro de Rodger, parecem ter usado justamente esse momento das fotografias de guerra – nomeadamente das fotografias do campo de concentração nazista – como um eixo na longa carreira do fotógrafo. Ao intitularem o livro Humanity and inhumanity, eles fazem referência ao relato escrito por Rodger em Bergen-Belsen e enviado para a Life, bem como ao modo com que ele respondeu ao desafio de narrar algo que, segundo ele, seria impossível de representar. Os retratos das soldados SS femininas são, portanto, uma parte fundamental da tentativa do fotógrafo de documentar e compreender o horror que ele viu. Assim como foi o registro dos prisioneiros recém-libertos dos campos, feito por Cartier-Bresson em vídeo e fotografia. Nos termos de Georges Didi-Huberman, essas imagens parecem buscar ao mesmo tempo a constituição de um arquivo e um testemunho; testemunho na medida em que noticia, conta sobre seu momento de feitura, e arquivo na medida em que é formado de partes que, constantemente remontadas e recombinadas, podem fazer com que o passado seja conhecido[24].
É possível, portanto, identificar no discurso subjacente à produção fotográfica de Cartier-Bresson e Rodger, durante os últimos momentos da Segunda Guerra Mundial, uma proximidade com os discursos produzidos no momentos que imediatamente se seguiram por intelectuais como Arendt e Antelme – como visto no início deste artigo. Tais discursos remetem diretamente à noção de humanismo. É justamente essa proximidade entre o discurso visual dessas produções fotográficas e o discurso escrito da produção crítica e histórica que nos permite falar sobre uma aproximação entre cultura visual e cultura política nas imagens aqui analisadas. Nesse sentido, elas corroboram a noção de cultura visual proposta por W. J. T. Mitchell (2002, p. 171), em que esse campo de saber não lida apenas com a construção social do campo visual, mas também com a construção visual do campo social.
Referências
ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
ASSOULINE, Pierre. Cartier-Bresson, o olhar do século. São Paulo: L&PM, 2008.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BERNARD, Bruce, MARLOW, Peter (Eds). Humanity and inhumanity: the photographic journey of George Rodger. London: Phaidon Press, 1999.
CARTIER-BRESSON, Henri. Scrapbook. London, New York: Thames and Hudson, 2007.
COOKMAN, Claude. Henri Cartier-Bresson Reinterprets his Career. History of Photography, v. 32, n. 1, spring 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images in spite of all. Chicago and London: University of Chicago Press, 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Pueblos expuestos, pueblos figurantes. Buenos Aires: Manantial, 2014.
GALASSI, Peter. Henri Cartier-Bresson: the early work. New York: The Museum of Modern Art, 1987.
LANZMANN, Claude. A lebre da Patagônia. São Paulo: Cia das letras, 2011.
LOPES, Teresa Rita. Pessoa por conhecer: textos para um novo mapa. Lisboa: Estampa, 1990.
LOWE, Paul. Picturing the perpetrator. In: BATCHEN, Geoffry, GIDLEY, Mick, MILLER, Nancy K., PROSSER, Jay (eds). Picturing Atrocity: photography in Crisis. Reaktion Books, London, 2012.
MICHAUD, Philippe-Alain. Le film ou l’impensé photographique. In: CARTIER-BRESSON, Anne, MONTIER, Jean-Pierre (Eds). Revoir Henri Cartier-Bresson. Paris: Éditions Textuel, 2009.
MILLER, Russel. Magnum, Fifty years at the front line of history. New York: Grove Press, 1997.
MITCHELL, W. J. T. Showing seeing: a critical of visual culture. Journal of Visual Culture, v. 1, n.2, p. 165-181, 2002.
NAGGAR, Carole. George Rodger: an adventure in photography 1908-1995. New York: Syracuse University Press, 2003.
SCHABER, Irme. Gerda Taro : une photographe révolutionnaire dans la guerre d’Espagne. Monaco: Éditions du Rocher, 2006.
SEKULA, Allan. The body and the archive. October, v.39 (winter, 1986), pp. 3-64.
SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org). Palavra e imagem, memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006.
ZELIZER, Barbara. Covering atrocity in image. In: Remembering to forget: Holocaust memory through the camera's eye. Chicago: The University of Chicago Press, 1989.
ZERWES, Erika. Tempo de guerra: cultura visual e cultura política nas fotografias de Guerra dos Fundadores da Agência Magnum, 1936‐1947. 2013, 2 vols. Tese (doutorado em História) – Universidade de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Notas
Sobre o método de trabalho de Rodger, Dick Stratford afirmou: “Rodger was a very independent person. He knew what he wanted and went to great lengths to get it. He did not mix with other photographers. We went out mainly on our own. He did not work with a writer. He wanted to be on his own and write his own background information. When we went into Belsen, the gates were wide open and I did not see any other photographer or army personnel. We just drove around. […] [George] was the only person in there taking still photographs. He had a little black book and he took the notes. He also typed every night. I never saw him really upset, it was all part of the job. Never, except after Belsen”. Apud NAGGAR, Carole. George Rodger, An Adventure in Photography, 1908-1995. New York: Syracuse University Press, 2003, p. 136.
O texto desta reportagem de janeiro de 1938 diz: “Once again LIFE prints grim pictures of War, well knowing that once again they will dismay and outrage thousands and thousands of readers. But today’s two great continuing news events are two wars – one in China, one in Spain. (…) Obviously LIFE cannot ignore nor suppress these two greatest news events in pictures. As events, they have an authority far more potent than any editors’ policy or readers’ squeamishness. But LIFE could conceivably choose to show pictures of these events that make them look attractive. They are not, however, attractive events. The important thing that happens in a prize fight is that one man hits another. Only a picture of a blow shows a fight. The important thing that happens in a war is that something or somebody gets destroyed. Victory comes to the side that destroys the greatest number of somebodies and somethings. Pictures of war are therefore pictures of something or somebody getting destroyed. The pictures on these pages of the Spanish war were taken by one of the world’s best news photographers, Robert Capa. But even the best pictures cannot show war in all its horror and ugliness. They may depict some of the blood, some of the broken bodies, some of the violence and destruction but they leave unrecorded the terrible will to kill, the even more terrible will to live, the long lonely pain and the utter heartbreak of a whole people. No picture can convey the sounds that come from a thousand dead men. (…) The love of peace has no meaning or no stamina unless it is based on a knowledge of war’s terrors. Only then, by contrast, can the benefits and blessing of the absence of war be fully appreciated and maintained. Dead men have indeed died in vain if live men refuse to look at them’”. Revista Life, 24 de janeiro de 1938.
Informação adicional
Para citar este artigo: ZERWES, Erika. O humano e o desumano: cultura visual, cultura
política e as imagens feitas por George Rodger e Henri Cartier-Bresson nos
campos de concentração nazistas. Revista Tempo e Argumento,
Florianópolis, v. 8, n. 17, p. 08 - 26. jan./abr. 2016.