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O imaginário pan‐americanista e O Cruzeiro Internacional (1957-1965)
The pan-americanist imaginary and O Cruzeiro Internacional (1957-1965)
Revista Tempo e Argumento, vol. 8, núm. 17, pp. 154-179, 2016
Universidade do Estado de Santa Catarina

Dossiê


Recepção: 15 Fevereiro 2016

Aprovação: 19 Abril 2016

DOI: https://doi.org/https://dx.doi.org/10.5965/2175180308172016154

Resumo: O artigo tem como objetivo identificar as principais ideias que fundamentaram o lançamento da revista O Cruzeiro Internacional (1957-1965), periódico brasileiro publicado em língua espanhola e distribuída em toda a América Latina, Espanha e parte dos Estados Unidos. Busca-se compreender de que forma essas ideias permearam a difusão de um imaginário pan-americano específico, relativo a determinados grupos e/ou governos e que orientou, através de textos e imagens fotográficas, um conjunto de representações sociais sobre a América Latina. Estas, em linhas gerais, foram norteadas pela defesa de uma unidade latino-americana sob a hegemonia, econômica, política e cultural do Brasil, em âmbito regional e dos EUA, em escala mundial.

Palavras-chave: Fotojornalismo – América Latina, O Cruzeiro Internacional, Periódicos - Brasil.

Abstract: The article aims to identify the main ideas that supported the launch of the magazine O Cruzeiro Internacional (1957-1965), Brazilian journal published in Spanish and distributed throughout Latin America, Spain and areas of the United States. It tries to understand how these ideas have permeated the diffusion of a specific pan-American imaginary on certain groups and/or governments that guided through texts and photographic images a set of social representations on Latin America. These, in general, were selected for the defense of a Latin American unity under the economic, political and cultural hegemony of Brazil, at the regional level and the of USA worldwide.

Keywords: Photojournalism – Latin America, O Cruzeiro Internacional, Journals - Brazil.

O artigo discute a promoção de um imaginário pan-americano na revista ilustrada brasileira O Cruzeiro Internacional[1], à época, uma das duas revistas internacionais veiculadas em todo continente latino-americano. Editada no Brasil entre 1957 e 1965, ela circulou quinzenalmente, sendo comercializada em todos os países da América Latina, além de Espanha e Estados Unidos.

Neste estudo nos detivemos na análise dos dois primeiros anos de circulação da revista, por ser este o período que concentra o maior número de discursos (editoriais, reportagens, artigos e publicidade) com intuito de legitimar a circulação do periódico em língua espanhola e, portanto, defender seus ideais e objetivos.

A revista tinha no gênero fotorreportagem[2] seu principal atrativo, e, desde seu primeiro número, uma determinada ideia de pan-americanismo transparece como elemento norteador dos discursos verbais e imagéticos publicados. Estes, de uma forma geral, estão relacionados às concepções políticas e ideológicas do grupo jornalístico Diários Associados e seu proprietário, Assis Chateaubriand. Contudo, não é nosso objetivo aqui analisar as imagens fotográficas publicadas na revista, mas discutir as ideias que estiveram na origem de tal empreendimento. Essas ideias orientaram um conjunto de representações sociais sobre a América Latina no periódico, à medida que “[...] em uma imagem fotojornalística, entendida como narrativa, estão implicados também aquele que narra, o contexto da narrativa e o próprio narratário” (FERREIRA, 2013, p. 31).

Entretanto, por se tratar de uma revista ilustrada, tendo nas imagens fotográficas o eixo central dos seus discursos, era na narrativa visual que se concentravam com maior intensidade os significados dessas representações. Mesmo que as imagens fotográficas não representem o real, elas expressam e agem sobre os processos de construção dos conceitos sobre o mundo, pois “[...] o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo [...]” (FLUSSER, 2002, p. 14).

Embora exista uma considerável produção sobre a revista O Cruzeiro no Brasil, não foram encontrados estudos significativos sobre a edição internacional do periódico. Temos conhecimentos de dois trabalhos que, no entanto, têm objetivos distintos dos aqui propostos. Um deles, de Elisa Bachega Casadei (2012), é um artigo na área da comunicação que tem o propósito apenas de trazer ao conhecimento do público a existência deste periódico, em geral desconhecido. O outro é um livro de um professor da Universidade Católica do Chile, Alejandro Jiménez Escobar (2004), com o título: Neruda EnO Cruzeiro Internacional, cuja proposta não é a revista em si, mas a publicação, em 1962, da obra de Neruda - Confieso que he vivido - na revista O Cruzeiro Internacional, em dez capítulos. Segundo o autor, os capítulos publicados constituem-se na essência do posterior best-seller com o mesmo título.

Ao estudar a circulação de uma revista brasileira, no seu propósito de domínio cultural do espaço latino-americano nos anos de 1950, a pesquisa insere-se nos estudos culturais que têm a mídia como fonte e objeto de pesquisa. Também se vincula aos estudos interamericanos que abordam tanto as relações entre Estados Unidos e América Latina, quanto as relações internas entre os países americanos. Neste caso específico, sublinha-se a dimensão cultural do pan-americanismo, latino-americanismo e antiamericanismo sem descurar, no entanto, a materialidade dessas relações, bem como sua relação com os poderes político e econômico.

O estudo da circulação desta revista na América Latina atrela-se ao entendimento de região como “espaços simbólicos nos quais a hegemonia é a um só tempo construída e desafiada, uma vez que em toda relação de poder estão presentes, além da violência e do conflito, negociação, troca e mesmo identificação, que afetam a própria estrutura da dominação” (AZEVEDO, 2011, p. 286). Nesse sentido, observa-se que a circulação de ideias e os processos de mediação e representação cultural, em diferentes veículos de representação - discursos diversos -, contribuem para a conformação de um imaginário sobre a América Latina.

As matérias veiculadas na revista, tanto nos textos verbais, quanto imagéticos, são de conteúdos diversos: ciência, tecnologia, artes, política e economia, e sobretudo temas simbólicos da modernidade que exaltam o estilo de vida da classe média, seus valores e hábitos de consumo. Entretanto, devido às características próprias do veículo - revista ilustrada de variedades -, estes aparecem de uma forma branda e, ao mesmo tempo, dotados de um caráter pedagógico intensificado pelos recursos das novas tecnologias visuais, como a composição, montagem, primeiros planos, etc. Esta pedagogia visual em O Cruzeiro Internacional está diretamente associada a um ideal civilizador na correta condução do mundo, missão assumida explicitamente em relação ao Brasil na publicação nacional, pretendendo exercer o mesmo papel em relação à América Latina.

Dessa forma, a articulação texto/contexto é fundamental para decifrar a representação do mundo social veiculada na revista, conforme o modelo relacional sugerido por Roger Chartier (2002), que propõe estudar a conexão entre a representação do mundo social com o próprio mundo social, para melhor entendimento desse último. Porém, a eficácia das representações para impor determinadas visões de mundo, ou seja, “estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, que definem limites e autorizam os comportamentos e os papéis sociais”, depende de seu reconhecimento, de seu poder de fazer crer, que não reside nas representações, mas

numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é a da competência das palavras. (BOURDIEU, 2007, p. 14)

A partir desse entendimento, acreditamos que a força das representações sociais na revista O Cruzeiro Internacional estava, de um lado, no fato de ela exprimir os interesses de um grupo poderoso - o seu público leitor, composto pelas camadas altas e médias da sociedade, sensível às transformações decorrentes do crescimento acelerado que vinha ocorrendo no último decênio –, e, de outro, pelo prestígio que a revista desfrutava no campo jornalístico, inserindo-se na luta das representações de que nos fala Bourdieu, que são:

[...] as lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social através dos princípios de divisão que, quando se impõe ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a realidade da unidade e da identidade do grupo (BOURDIEU, 2007, p. 113).

A revista ocupava uma posição privilegiada neste embate enquanto meio de comunicação de massa, entendido como o principal mediador das representações sociais no mundo contemporâneo. Tais meios de comunicação, segundo Sandra Jovchelovitch (2000, p. 89), “tornaram-se constitutivos da vida social, [...] alteraram modos de interação, transformaram o acesso a, e ao consumo de bens simbólicos”, sendo por isso uma fonte importante para o estudo das representações sociais, neste caso, aquelas relativas às relações interamericanas no contexto do pós- Segunda Guerra Mundial.

Este tipo de periódico teve uma importante função política, na medida em que fatos sociais do período (tratados, guerras, etc.) foram apreendidos, interpretados e difundidos por eles. Podemos citar, além de O Cruzeiro Internacional, a Life en Espanõl, que cumpria as mesmas funções. Recorre-se aqui ao conceito de poder brando (soft power) desenvolvido por Joseph S. Nye (1990), no qual as relações internacionais não estão subsumidas exclusivamente às relações diplomáticas oficiais, mas constituem um conjunto de relações oficiais, privadas, comerciais e culturais. Essencialmente, refere-se à atração exercida por um conjunto de ideias defendidas e sua capacidade de convencimento dos outros. Para Ramos e Zahran (2006) o termo aproxima-se do conceito de hegemonia de Gramsci. Ambos se referem “a um conjunto de princípios gerais, ideias, valores ou instituições; compartilhados, consentidos ou considerados legítimos por diferentes grupos; mas que ao mesmo tempo são recursos de poder, influência ou controle de um grupo sobre outro” (RAMOS; ZAHRAN, 2006, p. 134).

Este papel da revista O Cruzeiro Internacional não passou despercebido pelos intelectuais e lideranças dos países do Hemisfério. Fernando Diez de Medina, na época ministro da educação da Bolívia, fez publicar uma resposta a um discurso de Assis Chateaubriand veiculado na mesma revista, por ocasião do aniversário de um ano do periódico, na sua versão internacional. Para Medina, “o Sr. Chateaubriand é um estadista e um condutor de opinião em sua pátria. Amparado por uma poderosa cadeia de diários, revistas, rádio e televisão, parece que agora aspira a orientar o pensamento americano segundo sua própria fórmula: ampliar cada vez mais o ciclo vital dos brasileiros” (O CRUZEIRO: Edicion Internacional, 18/06/1958, p. 58).[3] Mais adiante, o autor critica o projeto imperialista de Chateaubriand, levantando hipóteses sobre o verdadeiro sentido do seu discurso pan-americanista:

De que se trata? De vender uma mercadoria – O Cruzeiro - [...] de abrir novos mercados - ou expandi-los – para a poderosa expansão industrial de interesses mercantilistas que defende a cadeia publicitária do Senador Chateaubriand? Ou se trata seriamente de uma política definida que, se não sustenta o Itamaraty, ao menos contaria com o respaldo de grandes setores da opinião brasileira? (O CRUZEIRO: EDICION INTERNACIONAL, 18/06/1958, p.58).

Nesse sentido, pode-se dizer que estas revistas exerciam o que Valente e Santoro (2006) definem como “diplomacia midiática”.[4] Mesmo que não vinculadas oficialmente ao Estado, elas influenciavam e, em alguns casos, reforçavam valores culturais subjacentes à política externa exercida pelos países centrais. Elas iam além do âmbito estatal, mobilizando a opinião pública no processo de convencimento e formação de opinião, que agiam e interferiam sobre a política externa. No caso da Life en Español, muitas de suas publicações davam continuidade à visão civilizadora dos EUA, ou seja, a ideologia que fundamentava sua política externa. Nessa perspectiva, Hunt (1987), utilizando fontes diversas, inclusive iconográficas, descreve as formas como a América Latina era representada na virada do século XX, reproduzindo uma imagem, em geral, ligada à feminilidade, infância, emoção, grotesco, etc.

Para Thompson (2005), essa forma de poder simbólico é atribuição específica dos meios de comunicação caracterizados como “um tipo distinto de atividade social que envolve transmissão e a recepção de formas simbólicas e implica utilização de recursos de vários tipos "todos eles decorrentes de alguma forma técnica" (p.24). Para o autor, "as ações simbólicas podem provocar reações, liderar respostas de determinado teor, sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descrer, apoiar os negócios de estado ou sublevar as massas em revolta coletiva" (p. 24).

Essas considerações a respeito da importância da mídia na sociedade moderna e contemporânea tornam seu estudo uma fonte privilegiada para a análise histórica. Ela constitui-se, também, num registro impresso dos acontecimentos de uma época sem descuidar, no entanto, que foi elevada a esta categoria – acontecimento - por uma escolha dentro de uma multiplicidade de acontecimentos que permeiam a vida social. Por isso é fundamental para a análise desvendar essa subjetividade, procurando identificar quais as forças que agem sobre uma ou outra representação e como elas poderiam influenciar a realidade ou mesmo quais as relações que mantém com a realidade. No caso da revista O Cruzeiro Internacional, esse entendimento pode ser encontrado tanto nas ideias defendidas por seu proprietário, já bastante difundidas na bibliografia sobre a imprensa, no Brasil, como na ideologia relacionada aos grupos que ela representava.

Parafraseando Thompson (2005), a mídia é fundamentalmente cultural, sendo que a questão central nos estudos que a tomam como objeto é o caráter significativo das formas simbólicas e sua contextualização social. Portanto, o conhecimento histórico das sociedades americanas do período, suas inter-relações internas e externas são fundamentais para o entendimento do significado dos periódicos em questão.

O contexto histórico, situado nos anos 1950, tinha como pano de fundo a Guerra Fria e as discussões acerca do desenvolvimento latino-americano, culminando com a Revolução Cubana em 1959 e os posteriores desdobramentos. O período foi marcado por uma série de tratados e organizações que visavam regular as relações interamericanas sob a hegemonia dos Estados Unidos num clima de crescente oposição, por parte dos países latino-americanos, à política imperialista deste país.

Entre os anos 1950 e 1970, o capitalismo mundial desenvolveu-se em torno dos Estados Unidos, que quadruplicaram as suas exportações para o resto do mundo, mas também se tornaram um importante importador de bens de consumo a partir do final da década de 1950. Em 1952, a eleição do republicano Eisenhower para a presidência dos Estados Unidos marcou a culminância desse processo. Segundo Muniz Bandeira (1973), Oswaldo Aranha teria se referido a Eisenhower como sendo manipulado pelos grandes banqueiros, industriais e comerciantes norte-americanos. Para ele, o período que se inaugurava seria caracterizado pelo domínio de Wall Street sobre o Estado. “O capitalismo no poder não conhece limitações, sobremodo as de ordem internacional” (BANDEIRA, 1973, p. 341).

As multinacionais americanas aumentaram suas filiais estrangeiras de cerca de 7,5 mil em 1950 para mais de 23 mil em 1966. Contudo, as empresas de outros países as foram seguindo cada vez mais, sendo sua principal função a de “internalizar mercados ignorando fronteiras nacionais”, tornar-se independentes de fronteiras nacionais, isto é, tornar-se independentes do Estado e seu território. Assim,“[...] na América Latina, já em 1950, trezentas filiais de empresas norte-americanas respondiam por 90% das inversões realizadas pelas empresas estadunidenses na região [...]” (FURTADO, 1975, p. 53).

Inserida na luta contra o avanço do fascismo no hemisfério, na década de 1930, na tentativa de mudar a imagem negativa dos EUA na América Latina, Roosevelt lançou a política da Boa Vizinhança - uma série de acordos que previam intercâmbio cultural e econômico e a suspensão das intervenções militares norte-americanas na América Latina. É desta época o lançamento da edição latino-americana da revista estadunidense Reader’s Digest, que, com apoio do governo norte-americano, se tornou um importante instrumento de penetração do american way.[5]

No contexto que emergiu após o segundo conflito mundial, entretanto, as estratégias principais dos Estados Unidos concentraram-se em afastar do hemisfério qualquer influência da União Soviética. Contudo, a exclusão da América Latina dos planos de ajuda do governo americano no pós-guerra, deixando esta função unicamente à iniciativa privada, gerou muitos descontentamentos. A ênfase na Segurança Nacional no que se refere à política externa para a América Latina não ia ao encontro dos anseios dos países latino-americanos.

Em meio às reformulações da política norte-americana para a América Latina foram criados novos instrumentos a fim de preservar sua influência na região. Em 1947, foi criado o TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), que obrigava seus signatários, com o quórum de dois terços de aprovação, a interromper relações com qualquer violador dos princípios soberanos dos países americanos. Em 1948, era criada a OEA, que tinha como princípios básicos a não intervenção, igualdade jurídica entre os Estados, arranjo pacífico das diferenças e a defesa coletiva contra as agressões. Tratava-se de manter a paz interamericana, mantendo o foco no combate comum ao principal inimigo externo: o regime comunista, definido pelos Estados Unidos como contrário à democracia que deveria ser defendida na América Latina. No entanto, os Estados Unidos não tardaram a apoiar os regimes ditatoriais surgidos no período, como os de Fulgêncio Batista (Cuba), Pérez Jiménez (Venezuela) e Somoza (Nicarágua).

O esforço bélico dos Estados Unidos no processo de intensificação de sua política de segurança hemisférica contra a ameaça comunista, e seu consequente apoio às ditaduras latino-americanas, contribuiu para o crescimento do antiamericanismo na região. A própria OEA, criada como uma tentativa norte americana para submeter os vinte e um países membros ao controle norte-americano, passou a ser palco de disputas de influências. A principal divergência era quanto às prioridades distintas entre os países latino-americanos e os Estados Unidos. Os primeiros tinham como preocupação central a ajuda financeira para seu desenvolvimento, enquanto os últimos se preocupavam exclusivamente com a segurança hemisférica.

Na esteira das queixas dos países latino-americanos contra a política estadunidense em relação à América Latina, surge a proposta do presidente brasileiro Juscelino Kubitscheck da criação da Organização Pan-Americana, que reivindicava, em última análise, maior apoio financeiro para o desenvolvimento dos países latino-americanos. A ideia era uma espécie de plano Marshall para a região. A OPA foi uma das mais significativas iniciativas da política brasileira frente à política externa norte-americana, que, posteriormente, deu margem à Política Externa Independente. “Com a OPA, o governo Kubitscheck pretendia aglutinar várias nações latino-americanas, tendo a clara e reforçada liderança brasileira” (PEREIRA, 2011, p. 5). Embora encarnando uma perspectiva tradicional, o que a OPA trouxe de novo era “a crença que só o desenvolvimento econômico poderia deter a revolução comunista, que este desenvolvimento só poderia ser obtido com um esforço aglutinado dos países latino-americanos e com a decisiva participação e compromisso dos Estados Unidos em restabelecer a aliança pan-americana”. (PEREIRA, 2011, p. 5).

Assim, embora o antiamericanismo tenha raízes históricas na região, durante os anos 1950, a disputa entre as duas grandes potências pela hegemonia mundial, aliada ao esforço americano na luta anticomunista no hemisfério, levou à reedição de políticas de interferência no continente, contribuindo para a intensificação de reações contra a hegemonia norte-americana. Além do mais, muitos países latino-americanos vivenciavam um crescimento urbano-industrial, decorrente, em parte, da política de substituição de importações do período da guerra. As políticas nacionalistas, por sua vez, promoviam acirradas discussões da intelectualidade nacional e regional, acerca do desenvolvimento dos países latino-americanos, e, de uma forma geral, andavam no sentido radicalmente contrário às instruções norte-americanas.

Exemplo da potencialidade explosiva do antiamericanismo na América Latina foi demonstrado por ocasião da visita do vice-presidente Richard Nixon à Venezuela, em maio de 1958, quando enfrentou uma série de manifestações antiamericanas em Caracas e quase foi agredido fisicamente por manifestantes, expondo a insatisfação latino-americana com a política externa dos Estados Unidos.

É este o contexto em que foi lançado O Cruzeiro Internacional, primeiro empreendimento editorial internacional brasileiro. A versão brasileira da revista já era nacionalmente consagrada como a principal revista ilustrada do país, carro-chefe da rede de comunicação dos Diários Associados, que, em 1957, pôs em prática um ousado projeto de expansão para os países da América Latina, incluindo Espanha e Estados Unidos.

O Cruzeiro integrou o primeiro conglomerado de imprensa e a primeira Rede de Comunicação, englobando diferentes mídias no Brasil - o oligopólio formado pelos Diários Associados de propriedade de Assis Chateaubriand. Fundada em 1928, a revista inseriu-se no contexto inicial do processo de modernização dos meios de comunicação no país, no final dos anos 20, que se consolidou nos anos 50. Porta-voz de um discurso modernizante, a revista foi a primeira do gênero de circulação nacional. O grande boom da revista ocorreu nos anos 40, quando trouxe propostas inovadoras, entre as quais a intensa utilização do fotojornalismo, difundindo um ideal editorial de “reportagem” em contraposição ao modelo literário vigente no país até os anos 30. A linha adotada inspirou-se no jornalismo norte-americano, especialmente em revistas como a Life, tendo, por base, atualidades rapidamente digeríveis, adequando-se à vida moderna. O grande diferencial foi a utilização da fotografia, não mais como mera ilustração, mas como construtora de um discurso visual sobre os acontecimentos.

Estas mudanças conectam-se com uma renovação da linguagem fotográfica no Brasil apontada por Fabris (2012) como ligada aos partidários da Nova Visão e Nova Objetividade. Eles “tinham colocado no centro de seu programa a ideia do ver melhor: concebiam a objetiva da câmera como um segundo olho capaz de educar o olho natural, levando-o a perceber o mundo a partir de ângulos inusitados”. Esta concepção tinha como princípio fundamental a ideia de objetividade documental, que foi amplamente utilizada pela comunicação de massa, sendo seu principal expoente o fotojornalismo. A fotografia de imprensa deixa de servir apenas como ilustração do texto, passando a ser “[...] uma elaboração conceitual, materializando um conhecimento visual específico sobre o mundo. Não se tratava mais de simplesmente registrar o real, mas de ativamente construí-lo” (COSTA, 2012).

Nesse contexto, as revistas ilustradas, como O Cruzeiro, tiveram um importante papel na defesa de interesses políticos e econômicos de grupos e/ou governos, e mesmo na difusão de determinadas visões de mundo. Elas fundamentavam-se, de um lado, na pretensa objetividade das fotorreportagens e, de outro, na possibilidade de construção da realidade por meio, sobretudo, dos novos recursos tecnológicos e das ideias da fotografia de vanguarda.

A revista O Cruzeiro, nacionalmente, adotou um discurso pedagógico direcionado explicitamente e nominalmente a uma burguesia nacional[6], a qual pretendia educar segundo os moldes do mundo que julgava civilizado, ou seja, europeu e norte-americano. Na sua versão latino-americana, ela guiou-se pelos mesmos princípios. Porém, nessa, o Brasil aparecia como líder do processo, colocando-se num estágio de civilização superior aos demais países latino-americanos.

O lançamento de O Cruzeiro Internacional ocorreu em meio à conjuntura político-econômica brasileira marcada pelo entusiasmo juscelinista, coincidindo também com outro lançamento – o da Operação Pan-Americana (OPA), conforme descrito acima. Wilson Aguiar e Odilo Costa Filho foram encarregados de dirigir a edição internacional, sendo substituídos mais tarde por outros diretores, entre os quais Constantino Paleólogo, na década de 1960. Em seu livro: O Brasil na América Latina: uma experiência de jornalismo internacional, com tradução para o espanhol, Paleólogo (1960) escreveu sobre o processo de idealização e concretização do projeto da revista. Descreveu, também, a nova proposta editorial, sob sua gestão, que propunha conteúdos mais voltados para a realidade dos países latino-americanos, criticando a forma estereotipada como o continente vinha sendo tratado pela revista até então.

Antes do lançamento oficial em 1957, a empresa editorial havia feito algumas experiências veiculando, no ano anterior, em alguns países da América Latina, edições da revista brasileira com parte das reportagens traduzidas para o espanhol. Porém, após pesquisas realizadas na Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Paraguai, ao longo do ano, decidiu-se pela edição de uma revista voltada para alguns interesses específicos dos países vizinhos. Paleólogo (1960) afirma que as pesquisas revelaram que uma revista brasileira, que pretendesse somente difundir a “filosofia de vida” do Brasil, fracassaria, sendo preciso uma orientação totalmente nova.

O empreendimento teria recebido apoio inicial do Presidente da República, que, segundo Glauco Carneiro (1999), havia se comprometido a liberar verbas para publicações do Governo em todas as edições, de no mínimo oito páginas, a fim de divulgar os projetos estatais desenvolvidos a partir do Plano de Metas. Esse apoio governamental, entretanto, não se efetivou, o que contribuiu para inviabilidade financeira da revista, que, mesmo assim, se manteve em circulação por oito anos com um déficit que contribuiu para a decadência do grupo Associados, conforme apontado por autores que estudaram o periódico.

Em seu apogeu, nos dois primeiros anos, a revista foi um sucesso de vendas. Circulou em mais de 20 países, superando periódicos tradicionais como a El Hogar na argentina, com 300 mil exemplares em edições de, em média, 84 páginas. Entretanto, mesmo com o sucesso de tiragem, a revista foi deficitária desde o início e, embora a publicação tenha encerrado oficialmente em 1965, a partir de 1962 ela foi minguando e passou, quase que exclusivamente, a traduzir parte da edição de sua congênere nacional.

Além da alegada promessa por parte de Juscelino Kubitschek, teriam sido feitos acordos com anunciantes norte-americanos para a venda de espaços publicitários, o que também não se efetivou. Tanto Carneiro (1999) quanto Acioly Netto (1998) atribuem a desistência dos anunciantes à interferência do grupo Time - Life, que também havia lançado uma versão em espanhol para circulação na América Latina. Importante conhecer a atuação desta revista, na medida em que ela serviu de base para a criação de O Cruzeiro Internacional.

A revista Life era a versão “mais leve” da Time, uma revista de notícias criada em 1923 que, de uma forma geral, divulgava uma síntese dos eventos ocorridos na semana - nacional e internacionalmente -, tendo como alvo a classe média americana. A Life nasceu em 1936 como uma revista de fotojornalismo voltada, sobretudo, para a difusão do American Way of Life. Tinha como objetivo declarado educar as massas, veiculando matérias científicas e artísticas e imagens de outros países. Seu grande diferencial era o predomínio da imagem na narrativa dos acontecimentos (SILVA, 2012). O sucesso da revista foi grande, explodindo em tiragens com a Segunda Guerra Mundial. Em 1953, em plena Guerra Fria, a revista passou a editar uma edição latino-americana, a Life en Español.

A Life nn Español era voltada para a América Latina e trazia, além dos conteúdos da versão em inglês, outros específicos da região. A revista obteve apoio do Estado defendendo a importância de divulgar produtos e valores americanos, o que foi consolidado com o Smith-Mundt Act, “que incentivava a divulgação e promoção dos Estados Unidos através da mídia americana em circulação em outros países” (SILVA, 2012, p. 68). Henry Luce justificava a criação da Life Internacional nestes termos:

Time Life internacional foi lançada em 1945 porque os Estados Unidos eram literalmente o único poder do mundo capaz de restabelecer algumas continuidades da civilização ... é essa destacada singularidade do poder e influência [dos Estados Unidos] que é ... a premissa factual - a premissa existencial do que Time Inc. deveria realizar no mundo (SILVA, 2012, p. 68, apud GRAINGE, 2001, p. 4).

Para Silva (2012), o grupo dirigido por Luce atuava no sentido de tentar influenciar os rumos da política externa americana, cobrando e realizando ações que reforçassem a hegemonia norte-americana. A mesma autora afirma que as edições internacionais de Time e Life “ajudaram a transmitir ao mundo uma certa imagem da América: a América do consenso, da classe média, do capitalismo, do consumo, da democracia e da liberdade” (p. 70)

Esta expressão imperialista da mídia norte-americana, entretanto, sofria resistências nos países latino-americanos. As reações antiamericanas no continente tinham raízes históricas, devido à política intervencionista na região desde o século XIX, culminando com a Doutrina Monroe, que estimulou posições intelectuais contrárias ao imperialismo norte-americano, bem como algumas ações e movimentos de cunho nacionalista contrários ao domínio estadunidense. No século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, este sentimento chegou ao seu ápice em um contexto que foi se tornando cada vez mais complexo no decorrer dos anos 1950.

Mesmo sendo declaradamente favorável ao domínio econômico norte-americano, especialmente no que diz respeito à defesa da entrada do capital estrangeiro no país, o grupo dos Diários Associados soube aproveitar o contexto. Pretendia assumir o posto de intermediário entre os países latino-americanos e os Estados Unidos, papel que, em termos de imprensa, vinha sendo ocupado pela Life. Entretanto, os nacionalismos emergentes na América Latina poderiam ser um empecilho. Por ocasião da inauguração de O Cruzeiro Internacional em 1957, na presença do então presidente Juscelino Kubitschek, Assis Chateaubriand discursou dizendo:

A edição desta revista em língua espanhola [...] tinha que ser feita por nós, por nossa organização. Ela significa mais um golpe que das nossas fileiras parte contra o nacionalismo caricatural que aqui se faz. Nosso povo, senhor presidente, ou se levanta contra este nosso estado macrocefálico, contra o dilúvio dos monopólios estatais, que todos os dias nos esmagam, e contra a deformação da ideia nacional, ou ele sucumbirá nos dias que correm e que significam em todas democracias ocidentais, a partir da Alemanha, da Inglaterra, dos Estados Unidos e do Canadá, a ressurreição da livre empresa. (O CRUZEIRO, 04/05/1957, p.22)

O Cruzeiro Internacional, desde o início, se inspirou na revista Life, ao mesmo tempo em que se posicionava como sua concorrente. “A ideia inicial era compor uma redação com jornalistas contratados de diversos países latino-americanos e que utilizassem, em seus textos, uma espécie de ‘espanhol interamericano’, ou seja, que passasse por cima das diferenças regionais da língua e fosse relativamente bem aceito em todos os países" (CASADEI, 2012, p.82).

O objetivo de concorrer com as americanas Seleções e Life, mais especificamente com esta última, é citado por Paleólogo (1960, p.17). Para o autor, eles tiveram “coragem de exportar, sob a forma da revista, o seu pensamento e a sua concepção filosófica de vida” . Segundo a avaliação feita pelo autor, devido aos nacionalismos dos países latinos, seria prudente evitar a propaganda excessiva do Brasil. Avaliava, ainda, que havia um desconhecimento mútuo entre o Brasil e os países hispânicos, mas havia também um interesse desses países pelo Brasil.Para o autor, entre os Estados Unidos e o Brasil, “ao sul, evidentemente, estava situado o país amigo, o aliado desinteressado, a nação que pelo tamanho e pelas suas possibilidades de progresso, estava destinada a estabelecer o equilíbrio de influências na América” [...] “assumia o novo papel no novo contexto” (PALEÓLOGO, 1960, p. 30). Esta concepção é simbolizada na imagem publicitária (Fig. 1), veiculada nas primeiras edições da revista. Nela, o Brasil aparece na parte superior da imagem apoiando os demais países da América Latina, intermediado pela revista O Cruzeiro. Na imagem, que representa o mapa da América, o Brasil parece ocupar o espaço dos Estados Unidos.


01
O Cruzeiro:Edicion Internacional, 02/04/1957, p. 09; 01/12/1957, p. 5.
Fonte: Acervo Jornal Estado de Minas/GEDOC


02
O Cruzeiro:Edicion Internacional, 02/04/1957, p. 09; 01/12/1957, p. 5.
Fonte: Acervo Jornal Estado de Minas/GEDOC

Esse novo papel, ainda segundo o autor e editor da revista, era explicitado na missão anunciada como sendo a de aproximar os povos latino-americanos (Brasil e hispânicos), atuando, assim, como intérpretes:

Que éramos nós todos, afinal de contas? Uma comunidade de nações classificadas de subdesenvolvidas, lutando pela sua emancipação econômica e rebelando-se contra aqueles que viam em nós, apenas um campo lucrativo para a intervenção de capitais, mas que não se preocupavam em absoluto com nosso destino e nossa e a nossa evolução. Tínhamos deficiências, sem dúvida, mas ninguém poderia julgar-nos por elas. Chegara o tempo em que devíamos empenharmos, todos, em estimular os nossos inúmeros aspectos positivos, a fim de que as deficiências fossem eliminadas. A comunidade latino-americana de nações não necessitava de críticos, necessitava, isto sim, de um intérprete. (PALEÓLOGO, 1960, p.4 6).

O autor continua a explanação dos objetivos e méritos da revista internacional, afirmando que foi esta sua função, de intérprete da América Latina, que preparou o caminho para a Operação Pan-Americana de Juscelino Kubitschek. Paleólogo tece críticas ao monopólio norte-americano das notícias que veiculavam somente informações positivas dos EUA de forma acrítica, enquanto as notícias da América Latina tratavam, em geral, de seu subdesenvolvimento (1960, p. 66). O Cruzeiro Internacional assim se posicionava:

[...] num processo de evolução natural como intérprete da América Latina [...] a divulgação dos episódios da vida norte-americana exclusivamente sob seu aspecto róseo, sem submetê-los a qualquer crivo analítico, foi eliminando esse tipo de matéria "fabricada", substituindo-a por artigos e fotos referentes ao Brasil e à América Espanhola. E a revista nada sofreu do ponto de vista jornalístico. Pelo contrário: tôda uma multidão de criaturas, que até então nunca se julgara nem fôra julgada digna de transformar-se em tema de reportagem, começou a surgir nas páginas da publicação. Mulheres lindas de tôdas as nações, cientistas, escritores, pintores, atôres e atrizes, mendigos e milionários, excêntricos e idealistas, enfim tôda a multicolorida gama da humanidade latina do Novo Mundo foi sendo revelada a um público que parecia nunca ter suspeitado de sua existência. (PALEÓLOGO, 1960, p. 67)

Em sua concepção, no papel de intérprete da América Latina, a revista poderia dar respostas em nome do subcontinente, o que antes só era feito em nível local (nações). Definida como uma revista feita por latino-americanos para latino-americanos, “sua missão primordial, por conseguinte, acabou sendo a de oferecer uma grande e unificada tribuna livre aos povos da América Latina” (PALEÓLOGO, 1960, p. 76). O autor ainda conclui que a criação de O Cruzeiro Internacional,

[...] é um acontecimento inédito no mundo. Pela primeira vez, na história da imprensa universal, uma revista nasceu para representar e interpretar tôda uma comunidade de nações. Esquecida da existência de fronteiras, alheia às pequenas diferenças que geram animosidades entre países, assumiu, como objetivo superior, a tarefa de exprimir o que todos têm de grande, de belo e de justo, mesmo quando, para fazê-lo, é forçada a mostrar o reverso da medalha. Não é a revista de um só povo - pertence a vinte nações. Talvez seja esta a primeira parte da lição que a América Latina está preparando para ministrar ao mundo. (PALEÓLOGO, 1960, p. 89).

Numa perspectiva regional, podemos entender a América Latina como o espaço de circulação de dois periódicos internacionais, produzidos nos polos regionais centrais, num contexto tanto de intensificação dos mecanismos de controle norte-americano no subcontinente, quanto de reação ao domínio imperialista nos países latino-americanos. Desta forma, a região é entendida enquanto espaço de representação simbólica, lugar de disputas, onde a hegemonia pode ser problematizada a partir dos seus elementos simbólicos. Esses, na revista em questão, traduzem uma determinada ideia de pan-americanismo que aparece de forma explícita nos discursos de Chateaubriand publicados em O Cruzeiro Internacional:

Neste continente urge sustentar cada dia com maior veemência a ideia de cooperação entre nós, os da árvore ibérica, cooperação com os irmãos de língua anglo-saxônica do norte, cooperação com a Europa, de onde nos chegou o homem branco, estandarte da civilização e da cultura do hemisfério. Antes de Colombo, Vespúcio, Cabral, Pizzaro, Cortês, a América, com exceção dos Maias e Incas, era selvagem. A fundação dos Estados livres do Continente é uma dádiva do homem branco, portador da ideia de liberdade que o indígena desconhecia. Terminemos com o mito do aborígene que, com exceção do Peru e México, em nada contribuíram para criar uma América que é nossa. O imigrante europeu foi que plantou aqui a árvore do dinheiro. O castelhano é como o inglês e o português, o idioma de liberdade. Temos todas as razões para promover esta edição, elegendo a língua espanhola para reunir os povos ibéricos da América em torno de um mesmo solo e um ideal comum. (O CRUZEIRO: EDICION INTERNACIONAL, 02/04/1957, p. 8)

Essa disputa, entretanto, não estava localizada apenas nos polos centrais, citados acima, mas passava pelas querelas internas entre os países latino-americanos, como podemos auferir da publicação da resposta ao discurso de Assis Chateaubriand. A réplica foi escrita por Fernando Diez Medina, ministro da educação da Bolívia, sob o título: Insurgência da Nova América. Segundo ele, ao defender que a única forma capaz de “compensar nossa imaturidade social e nossa adversidade geográfica” seria a aproximação política de nossos povos e a abertura dos mercados ao capital europeu e norte-americano, Chateaubriand não levava em conta a diversidade dos países latino-americanos. Nas palavras de Medina, “[...] não é o mesmo falar de aproximação a partir do Rio de Janeiro do que de La Paz [...] em que a América, a do centro, a do Sul, é um mosaico de povos, de costumes, de diversidades econômicas, que não se pode medir com o mesmo critério.” O autor ainda cita “o repúdio ao nacionalismo e ao mito do aborígene [...] especialmente por parte de um condutor de opinião continental” como inadmissível. (O CRUZEIRO: EDICION INTERNACIONAL, 01/07/1957, p. 49).

Sinteticamente, os objetivos da publicação latino-americana são assim descritos no editorial de abertura da primeira publicação: “O Cruzeiro procura pôr em evidência nossa origem comum, nossos comuns interesses e nossas comuns ideias. Ela surge decidida a constituir-se em um elemento promotor de nossa aproximação” (O CRUZEIRO: EDICION INTERNACIONAL, 07/04/1957, p. 8). Munidos desses princípios frequentemente reiterados em discursos, alguns de autoria do próprio Chateaubriand, a revista promovia e divulgava um determinado imaginário pan-americanista, a partir da produção e reprodução de representações sociais sobre a América Latina. Estas foram exploradas através de um conjunto de imagens e textos veiculados em fotorreportagens sensacionalistas, colunas de fofocas ou em artigos de cunho político-econômico. Em qualquer um dos formatos, na maioria dos casos, a ideia de pan-americanismo, conforme concebida pelo grupo editor da revista, permanecia como fio condutor dos discursos que, de uma maneira geral, podem ser categorizados em: história; concurso de novelas; fotorreportagens sobre temas latino-americanos; e discursos políticos sobre o pan-americanismo.

Na categoria história, títulos como: La profecia de Bolivar y el Canal de Panamá; La independencia do México y Anarquia; La America y los Romanos (sobre o conhecimento da América pelos etruscos); El espiritu Espanõl y la America Cristiana; Washington y Bolívar; America y los Viajes Alrededor del Mundo; Garcilaso de La Vega, El Inca; entre outros, constroem representações de uma América Latina cujos processos históricos apresentam traços em comum, ao mesmo tempo que a seleção dos temas enaltece determinados elementos da pretendida unidade em detrimento de outros.

As matérias que abordam a História da América Latina estão, em sua maioria, na coluna Secretos y Revelacionesde la Historia, assinada por Gustavo Barroso, membro da Academia Brasileira de Letras e diretor do Museu Histórico Nacional. O autor assinava coluna idêntica na publicação brasileira da revista, porém com acréscimo de “do Brasil” no título e com temas referentes especificamente à História do Brasil. Na versão latino-americana os temas publicados em espanhol referem-se aos outros países da América Latina ou a algum aspecto considerado comum ao conjunto de países latino-americanos.

No que se refere ao concurso de novelas, O Cruzeiro Internacional assim anuncia seus objetivos: “esperamos promover um proveitoso movimento literário e contribuir para o desenvolvimento e intercâmbio cultural entre todos os países de fala castelhana” (O CRUZEIRO: EDICION INTERNACIONAL, 16/04/1957, p. 6).

O concurso de novelas foi lançado no primeiro número da revista com a chamada: “Gran Concurso Interamericano de Novela”, sendo dirigido exclusivamente para autores latino-americanos. As campanhas promocionais do certame estão presentes nas páginas da revista durante quase todo o seu primeiro ano. A propalada unidade era promovida, assim, através de um projeto cultural que pressupunha uma matriz intelectual latino-americana dada, inicialmente, pela língua em comum, considerada um dos instrumentos unificadores do continente, conforme o discurso de Chateaubriand descrito acima. Foi na esteira desse ideal que a revista publicou os dez capítulos da obra de Pablo Neruda já referido acima.

Quanto às temáticas das fotorreportagens, podemos agrupar num primeiro conjunto títulos como: El verdadero Origen del Rio Amazonas; Iguazu, Agua Grande; El Paraiso de los Esquiadores (sobre Bariloche); Antártida el Silencio blanco; Polo Sur: Misterio, Aventura, Soledad; Patagonia. Também alguns referentes a locais históricos em matérias como: Las Siete Ciudades Misioneras , Colonia del Sacramento, Monumento a San Martin, El Gaucho, entre outras.

Como revista ilustrada, que tinha na fotografia o principal eixo de seu discurso, as grandes reportagens fotográficas, muitas delas compostas por várias páginas, constituem o seu conteúdo principal. Se utilizarmos a categoria de espaço, proposta, entre outros, por Mauad (1996) e Leite (1993) para leitura das mensagens visuais das fotorreportagens, podemos dizer que predominam as representações da América Latina que enfatizam o espaço geográfico através, principalmente, das fotografias de paisagens, que acentuam, de um lado, o caráter exótico e pitoresco da natureza, e, de outro, a potencialidade econômica, a ser explorada.

Também significativas são as fotorreportagens que evidenciam o espaço figurado, composto por personagens considerados representativos da América Latina. Nesse grupo, mulheres, artistas, atletas e políticos ocupam lugar de destaque, lembrando que é uma extensa reportagem sobre Carlos Gardel que abre a primeira edição da revista, figurando já na capa. Outro exemplo é a reportagem La Joven Moderna da América, que constrói, em nove páginas, um perfil da mulher latino-americana que possuiria um “equilíbrio entre as virtudes tradicionais e a liberdade da educação moderna” (O CRUZEIRO: EDICION INERNACIONAL, 01/12/1957, p. 16). Também personagens do mundo do esporte latino-americano, como jogadores de futebol, aparecem nas páginas da revista. Observa-se que, enquanto na publicação brasileira o futebol é um dos temas que visam promover a unidade nacional, na edição internacional ele assume identidade latino-americana como podemos auferir do título Futbol Pasión de un Continente (O CRUZEIRO: EDICION INERNACIONAL, 01/03/1957, p. 24).

Assim, se, conforme Leite (1993, p. 19), a fotografia pode ser entendida como a “redução cultural e ideológica de um espaço geográfico, num determinado instante”, podemos dizer que o conjunto de fotografias que integram as fotorreportagens de O Cruzeiro Internacional representam, em última análise, uma determinada visão cultural da América Latina, por sua vez condicionada por um contexto histórico específico.

Os discursos políticos publicados, sobretudo, na coluna de política internacional de autoria de Teóphilo de Andrade se articulam ao conjunto de textos e imagens em torno da ideia de pan-americanismo. Temas como: Integración de la America Latina; La internacionalización del Canal de Panamá; Vocación Democrática de America; Coexistencia, Guerra Fría y Desarme; abordam as principais questões políticas latino-americanas da época, em especial a relação com os Estados Unidos e sua inserção na política e economia mundial. Em geral pregam a necessidade da união hemisférica em torno dos Estados Unidos, entretanto, clamam pela necessidade da contrapartida econômica por parte do irmão do norte.

No espaço desse artigo, não pormenorizamos a análise das fotorreportagens, pois optamos por privilegiar as ideias e o contexto que permearam as escolhas e a publicação dos temas. Entretanto, acreditamos que, a partir do exposto, podemos dizer que O Cruzeiro Internacional procurou instrumentalizar o imaginário pan-americanista da América Latina, a fim de promover a ideia da união do continente em torno de alguns princípios básicos: justiça, liberdade, democracia, república e desenvolvimento econômico sob a égide do capitalismo mundial.

Em artigo publicado na edição comemorativa do primeiro aniversário de O Cruzeiro Internacional, Assis Chateaubriand escreveu: “[...] nosso imperialismo não se choca com os vizinhos, é de uso doméstico, não dá medo de nada...” (O CRUZEIRO: EDICION INTERNACIONAL, 05/05/1958, p. 7). A defesa explícita de um imperialismo brasileiro na América Latina, pelo proprietário da revista, e os discursos em prol da criação da edição internacional são esclarecedores acerca do modelo proposto, ou seja, a união hemisférica, sob a hegemonia econômica, política e cultural do Brasil em âmbito regional, e dos Estados Unidos em escala mundial.

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Notas

[1] A revista iniciou com o nome de O Cruzeiro: edicion internacional e posteriormente passou a denominar-se O Cruzeiro Internacional. No presente artigo optamos por utilizar sempre o nome O Cruzeiro Internacional para se referir ao periódico, pois os próprios editores, de uma forma geral, assim se referiam à revista.
[2] Na fotorreportagem a ênfase na imagem fotográfica tem o mesmo valor do texto verbal. Nadja Peregrino (1991) afirma que na fotorreportagem há a preponderância da imagem sobre o texto escrito, não sendo ela uma simples reportagem verbal ilustrada, mas, na verdade, visual auxiliada por texto. Gava (2003) afirma que nesse modelo as imagens não suplantam o texto, sendo o principal fator a diagramação, ou seja, a forma como as fotografias e os textos se combinam e se completam na página. Para ele, esta combinação é que dá sentido ao texto, pois nem imagens, nem texto atuam isoladamente, mas são parte de um todo que é mais importante que as partes.
[3] Todas as citações que têm como referência os textos publicados na revista O Cruzeiro Internacional foram traduzidos livremente para o português pela autora deste texto, portanto, optei por não incluir nota explicativa em todas as citações.
[4] Mesmo que os autores se refiram às mídias atuais que envolvem os novos recursos midiáticos da era da informação, consideramos úteis as ideias gerais contidas no conceito.
[5] A este respeito ver JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande: análise de Seleções do Reader’s Digest, Porto Alegre: editora da Universidade São Francisco, 2001.
[6] O termo “burguesia nacional” é referido em diversos discursos da própria revista em sua versão brasileira e em discursos proferidos em outros veículos de imprensa por Assis Chateaubriand, que, entre as diversas campanhas que promovia através de seus veículos de imprensa, uma dela tinha como objetivo a educação da “burguesia nacional”. Mais sobre este tema em Meyrer (2012).

Informação adicional

Para citar este artigo: Meyrer, Marlise Regina. O imaginário pan-americanista e O Cruzeiro Internacional (1957-1965). Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 17, p. 154 - 179. jan./abr. 2016.



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