Resumo: Neste texto, são discutidos aspectos da trajetória da Escola de Samba Nenê da Vila Matilde[1], de 1954 a 1967, centrando-se nos temas escolhidos para suas performances carnavalescas, com a intenção de detectar as possíveis pulsões críticas presentes nessas escolhas. Nesse sentido, a pesquisa argui se os motes de seus desfiles eram centrados apenas nas vivências do grupo ou se também dialogavam com os demais segmentos sociais. Traçar o seu perfil, nesse período de criação e consolidação das agremiações carnavalescas da comunidade negra, implica situá-la no grupo maior, de igual natureza, cujo percurso tem início em 1937, com o surgimento da “Lavapés”, considerada a primeira escola de samba paulistana. Embora a “Nenê” tenha sido criada em 1949, o marco dessa reflexão tem início em 1954, por suas passeatas expressarem um padrão temático em suas exibições; e estende-se até 1967, ano que antecede a institucionalização pelo poder público dos desfiles carnavalescos na capital paulista, a partir de quando passou a haver investimento de recursos públicos em sua montagem e nas escolas de samba. A pesquisa apoiou-se na imprensa diária, nos memorialistas (autobiografia, fotos e depoimentos dessas lideranças carnavalescas) e na bibliografia pertinente, buscando detectar os traços dessa Escola antes de sua institucionalização.
Palavras-chave: Carnaval Carnaval, Escolas de samba – São Paulo Escolas de samba – São Paulo, Negros Negros, Nenê da Vila Matilde (escola de samba) Nenê da Vila Matilde (escola de samba), Samba Samba.
Abstract: This paper discusses aspects of Nenê da Vila Matilde[2] Samba School trajectory’s, between 1954-1967, focusing on the themes chosen for their carnival performances with the intention of detecting possible critical drives in those choices. In this sense, the research examines whether the themes of their parades were focused only on the experiences of the group or if they also were connected with other social segments. Tracing it’s profile in this creation period and consolidation of black community’s carnival groups implies to place it in the larger group of the same kind, whose journey begins in 1937 with the "Lavapés" emerging, considered the first São Paulo’s samba school. Although "Nenê" was created in 1949, the landmark of this image begins in 1954 as their marches express a default theme on their views. And it extends until 1967, one year before the institutionalization of carnival parades by São Paulo’s government, investing public funds in their assembly and samba schools. The research relied on daily press, memoir writers (autobiography, photos, testimonies of those carnival leaders) and the relevant literature, trying to detect the traces of this School before that institutionalization.
Keywords: Brazil, Carnivals, Samba Schools of São Paulo, Black, Samba-Enredo, Nenê da Vila Matilde.
Artigos
Batucadas, enredos e carnavalização. Os passos da Escola de Samba Nenê da Vila Matilde (1954-1967)
Drumming, plots and carnivalization. The steps of Nenê da Vila Matilde Samba School (1954-1967)
Recepção: 17 Novembro 2015
Aprovação: 11 Agosto 2016
“O presente sem passado não anda muito longe.” (Seu Nenê)[3]
Discutir os temas trazidos pelas escolas de samba paulistanas antes da oficialização dos carnavais na cidade, ocorridos em 1968, é desafiante. A escassez de registros, na imprensa diária e demais fontes, sobre a estruturação dos desfiles carnavalescos dessas agremiações que são exibidos nas ruas é realçada pela bibliografia especializada, muito embora ocorram crônicas breves dessas apresentações e, aqui e acolá, algumas fotos de suas performances. Em decorrência disso, torna-se difícil (mas não impossível) reconstruir os motes das exibições dessas escolas de samba no decurso dos anos, buscando os sentidos dessas encenações, as visões de mundo de seus integrantes expressas nas escolhas de seus trajes, no gestual, nas alegorias e nas pândegas diversas que invertem valores e consagram outros, utilizando-se do exagero e do riso para construir uma nova ordem, pelo menos nos dias dedicados a Momo, deus da galhofa e da zombaria.
Chegar às propostas dessas agremiações significa vencer obstáculos, pela ausência de informações de todo tipo: estrutura dos desfiles, descrição do que era exibido pelos pândegos; tipo de trajes usados no desenvolvimento dos temas; imprecisão e divergências em relação aos marcos iniciais de alguns cordões cuja matriz é o samba. Ao transformarem os cordões em escolas de samba, essas origens são deixadas à margem[4], ou são tomadas como referência de sua origem, não importando a nomenclatura original ou a nova. Os próprios protagonistas têm dificuldades de precisar essas questões[5].
Este texto visa refletir sobre as performances da Escola de Samba Nenê da Vila Matilde, criada doze anos depois da emergência da Lavapés, inserindo-a no contexto das associações, já existentes, dedicadas ao samba. Lembra Seu Nenê que ele e um grupo de amigos[6] — Tóquio, Juvenal, Balduíno, José Brito Laurindo, Didi, Getúlio, Julião, Expedito, Livino, Benedito Justino, a irmã Geraldina e Manolo —, ao criarem a Escola de Samba Nenê da Vila Matilde, em 1949, o cenário paulistano já se alterara com a presença de várias agremiações dedicadas ao samba. As reflexões neste artigo, contudo, voltam-se aos temas e sambas-enredo que organizaram os seus desfiles, de 1954 a 1967[7], os quais conferem relevância à Escola em relação às demais agremiações existentes. Os seus motes voltam-se ao universo sociopolítico referente ao grupo ou ao país, mesmo considerando os limitados recursos financeiros para exibições mais acuradas de propostas que exigem alegorias e formas escultóricas, que se inscrevem em universo de conhecimento fora do mundo do samba[8].
O texto termina em 1967, por ser o último ano de encenações das escolas de samba estruturadas sem interferência financeira do poder público municipal da capital paulista. A partir de 1968, com a oficialização desses festejos, as agremiações passaram a receber verbas para estruturação dos desfiles (BARONETTI, 2013).
A mudança de rumo (atendendo as demandas das diversas associações carnavalescas da cidade que solicitaram a oficialização desses festejos, como relata Seu Nenê) requer a agregação das escolas de samba numa entidade única, o que significa criar novamente uma associação centralizadora de todos os agrupamentos carnavalescos. Surge, então, a União das Escolas de Samba Paulistanas (UESP), em 1973, com a finalidade de agregar as escolas de samba e blocos carnavalescos e representá-los junto ao poder público. Porém, Wilson de Moraes (1978) afirma que nesse processo também houve mudanças internas nas escolas, prevalecendo o modelo carioca para a estruturação de seus desfiles. O mesmo afirma Sebastião Amaral, do cordão Vai-Vai, que especifica, em depoimento, a estrutura do(s) cordão(ões) e o que mudou em sua transformação em escola de samba, assunto que será tratado posteriormente.
As dificuldades das pesquisas de temas dessa natureza, por limitações e ausência de registros, sempre foram contornadas quando o pesquisador pôde recorrer aos próprios protagonistas, como fizeram as sociólogas Ieda Marques Britto (1986), Olga von Simson (2007), o carnavalesco Wilson de Moraes (1978) e mais recentemente Bruno Sanches Baronetti (2013), que entrevistaram os integrantes das agremiações carnavalescas de seu interesse, recuperando, assim, os passos desses pândegos dos carnavais de rua, organizados sob a rubrica de escolas de samba, de então e de hoje. Simson, além dos depoimentos, conseguiu fotos dos arquivos pessoais dessas lideranças, dos desfiles dos antigos cordões e das escolas de samba, em particular as fotos da Escola de Samba Nenê da Vila Matilde.[9]
Na pesquisa em questão, além dos jornais, os registros memoriais desses protagonistas, homens e mulheres, foram bastante significativos para elucidar as particularidades de algumas dessas agremiações. Arquivados em formato de depoimentos no Museu da Imagem e Som/SP – MIS, esses registros trazem as lembranças, sob sua perspectiva, dos principais protagonistas que estiveram envolvidos na organização e consolidação das agremiações dedicadas ao samba e aos carnavais da cidade. Também foram utilizados livros autobiográficos, a exemplo de Escolas de Samba de São Paulo, de Wilson R. Moraes, e o livro Memórias do Seu Nenê da Vila Matilde, de Alberto Alves da Silva (Seu Nenê). Este último, ao falar de sua trajetória carnavalesca e da própria escola, ainda traz, em rápidas pinceladas, informações sobre outros agrupamentos.
Sabe-se que essas recordações carregam elementos subjetivos e foram construídas em situações distintas (uma autobiografia e registros memorialísticos arquivados em banco de dados de história oral sobre o Carnaval Paulistano, do MIS/SP). Contudo, são lembranças que certamente omitem protagonistas, esquecem outros e projetam fatos corriqueiros, evidenciando situações fartamente debatidas pelos teóricos que se dedicam à narrativa oral[10]. Esses traços não são muito diferentes dos registros, lacunas e “esquecimento” da imprensa, cujos compromissos nem sempre passam pelos interesses de valorização das práticas culturais dos segmentos populares[11]. Assim, esses itinerários são delineados no decurso desse texto, bem como os possíveis sentidos do que foi apresentado nos desfiles de rua, considerando as questões apontadas sobre as fontes, suas subjetividades e lacunas.
As notícias dos desfiles dessas associações voltadas ao samba são recorrentemente incompletas, muito embora seus nomes sejam listados pelos jornais, em alguns anos, durante os carnavais, a exemplo da Escola de Samba Nenê da Vila Matilde, que é presença constante nos desfiles de rua referentes a essas celebrações. Fundada em janeiro de 1949, o seu primeiro desfile ocorre no mesmo ano. Os seus integrantes eram jovens, homens e mulheres, fantasiados de marinheiros, com suas camisas listradas, chapéus e, o mais importante, alguns dos componentes masculinos usavam acessórios femininos, e vice-versa. As fantasias são simples e despojadas, mas fazem uso de elementos caricatos buscando subverter a ordem, conforme analisam Propp[12] e outros teóricos do riso e do humor. Em geral, os jovens do sexo masculino usam as clássicas camisas listradas e chapéus. Esse vestuário está associado ao marinheiro/malandro que não tem perfil comportado. As moças, três delas, portam roupas brancas e uma espécie de quepe (pequeno chapéu), indicando tratar-se de “comportadas marinheiras”. Uma das pessoas, de traços delicados, à direita da foto, veste camisa listrada, tal qual os rapazes, usa brincos e uma discreta pulseira indicando tratar-se de travestimento (não importa o sexo; a inversão ocorre nas duas situações). No grupo, também há elementos de inversão entre os rapazes – dois deles portam chapéus femininos.
Nos primeiros anos, informa Seu Nenê, o agrupamento cantava nos desfiles músicas de sucesso dos carnavais em curso e, à medida que se consolida, passa a introduzir os sambas-enredo para suas exibições (SILVA, BRAIA, 2000).
Entretanto, antes dessa discussão, convém demarcar as escolas de samba que já existiam na cidade, em 1949, mesmo sendo de pequeno porte, como observa Alberto Alves da Silva, Seu Nenê, um dos fundadores da escola de igual nome, a saber:
(Em 1949 existiam as seguintes escolas de samba:) [...] “21 de abril, do Brás; Lavapés; Cruzeiro do Sul; Unidos do Tatuapé (que faziam o carnaval da Rua Domingos de Oliveira até o Largo da Concórdia); no Centro, tinha a Brasil Moreno. Tinha a Primeira do Itaim, e na Penha tinha a Ases da Garoa, tinha a Acadêmicos de Tatuapé. Entre os bairros de Vila Formosa e Vila Isabel, tinham a Primeira e a Segunda de Vila Isabel. De Santo Amaro, tinham a Primeira e a Segunda de Santo Amaro. Tinha a Ipiruíbe da Mooca, que era só de branco... Tinha a Rosas Negras, que foi a vice-campeã no Quarto Centenário, a Som de Cristal e a Preto e Branco do Pires.” (SILVA, BRAIA, 2000, p. 53-54)
Ainda mapeando as escolas de samba, no carnaval de 1955, tem-se notícias da existência de algumas agremiações na cidade, a exemplo da Escola de Samba Rosas Negras (mencionada anteriormente), do bairro da Liberdade, que desfilou na região central em homenagem ao jornal Correio Paulistano. No domingo de carnaval, o mesmo jornal noticia o desfile das escolas de samba Cruzeiro do Sul, Vila Vitória, Patriotas, Voz do Morro, Nenê da Vila Matilde, Coração de Bronze, Primeira de Santo Amaro e Garotos do Itaim.[13] Da mesma forma, em 1959, o rol das escolas de samba apresentando-se no Parque Ibirapuera é significativo.
(Desfilaram nos três dias as seguintes escolas de samba e os cordões) [...] No domingo, sagraram-se vencedoras as escolas de samba Nenê da Vila Matilde (20 mil cruzeiros), Lavapés (10 mil) e Unidos do Morro de Vila Maria (5 mil). Prêmio extra de 5 mil cruzeiros foi conferido à escola de samba Unidos de Vila Peruche por ser a mais numerosa. Na segunda-feira, foram classificadas as escolas de samba Unidos do Gavião (15 mil cruzeiros), Unidos da Casa Verde (10 mil), Jóqueis Unidos (6 mil) e mais Garotos do Ipiranga e Coração de Bronze (4 mil cada). No último dia, os prêmios foram levantados pelos seguintes cordões carnavalescos: Paulistano (20 mil cruzeiros) e Vai-Vai (15 mil cruzeiros). (Folha da Manhã, 12/02/1959, p. 4)
No Gráfico 1, produzido segundo informações de fontes impressas (como os jornais diários e depoimento autobiográfico de Seu Nenê), é possível visualizar as escolas de samba existentes na capital de 1937 a 1967, ano anterior à oficialização do carnaval da cidade, seguindo o modelo carioca.
Verifica-se, com base nos registros de Seu Nenê, que eram agremiações pequenas, cujo raio de exibição, na capital, era o bairro que as abrigava e acolhia, assim como aos seus integrantes. O Quadro 1, a seguir, traz informações coletadas sobre as escolas de samba existentes na capital paulista, expondo o nome da escola, o bairro e a data da primeira referência de sua exibição e não de sua fundação, exceto Lavapés, cujo ano de fundação e de primeira exibição coincidem. Em muitos casos, as informações da imprensa referem-se àquelas que foram premiadas nos desfiles oficiais, tanto em 1955 quanto em 1959, pois os jornais não trazem a lista de todas as escolas, somente daquelas que desfilaram ou ganharam algum prêmio.
Essas agremiações foram fundadas (tanto as escolas de samba, quanto os cordões) por jovens vinculados a uma unidade familiar e por amigos próximos que se reuniam para tocar os seus instrumentos ou fazer uma batucada, passo inicial para a formação tanto dos cordões quanto das escolas de samba. Essa foi a origem da Nenê, que agregou os batuqueiros que se reuniam no Largo do Peixe, o Vai-Vai no Bixiga ou os cordões da Barra Funda, cujos integrantes fundadores se reuniam para tocar os seus instrumentos na Alameda Glete, a exemplo de Camisa Verde e Branco, fundado por Dionísio Barboza, em 1914 (interrompido em 1939; retornou em 1953, pelas mãos de Inocêncio Tobias), e Campos Elyseos, em 1919.
Assim, agregar outros integrantes a esse núcleo inicial, no decurso dos anos, permitiu que algumas dessas agremiações chegassem a 1967 com os mesmos dirigentes ou com os seus continuadores, como acontece com as escolas de samba Lavapés, Nenê da Vila Matilde, Acadêmicos de Tatuapé, Unidos do Morro de Vila Maria, Unidos de Vila Peruche e os cordões Camisa Verde e Branco, Cordão Futebolístico Carnavalesco Vai-Vai e o Cordão Carnavalesco Campos Elyseos, conforme o Quadro 2, indicado a seguir.
De acordo com Silva (2008) e Amaral (1981), alguns desses protagonistas carnavalescos relembram os “cordões” e escolas que se tornaram referência, pela tradição e qualidade de seus músicos e ritmistas e, por isso, consagraram-se nos carnavais da cidade[15], tornando-se matriz de muitas agremiações de igual natureza. Nesse sentido, essas nomenclaturas são vistas por tais dirigentes como mera formalidade, pois as diferenças são pautadas pelo samba/ritmo e a qualidade dos músicos e instrumentistas que integram sua bateria, como observam Alberto Alves da Silva (Seu Nenê) e Sebastião Eduardo Amaral (Pé Rachado, do Vai-Vai) (SILVA, 2012), embora a estrutura de um cordão fosse bastante diferente de uma Escola, como lembra Sebastião Amaral:
No cordão, no Abre alas eram os clarins. Até um clarim era importante. Mas até quatro era uma beleza.
Tinha um corpo de balizas. Eram grandes – cinco ou seis. Tinham homens e mulheres balizas. No (cordão) Vai-Vai tinham três.
Vinham as filas.
E depois a “corte”. Era uma corte completa. Não era muito completa. Tinha o Rei e a rainha.
Depois da corte tinha Alegoria, que era o explicativo do enredo. A 1ª Alegoria foi a chegada da corte no Brasil.
Depois vinha a bateria (12). Era só caixa, bumbo, cuíca. Quando saiu em 1966 tinham 165. (MIS/SP- AMARAL - Entrevista dada em 02/10/1981)
Diferentemente dessa experiência, a Escola de samba “Nenê”, por exemplo, já começou bastante afinada, como afirma o relato de Seu Nenê, uma vez que tinham “uma boa percussão, porque a maioria era músico, e isso foi uma coisa que logo destacou a escola. Tínhamos malacacheta, tamborim, chocalho, agogô, surdo. Desde o primeiro momento, tivemos uma pegada de escola de samba” (SILVA, BRAIA, 2000, p. 56).
Assim, a cartografia, mesmo lacunar, dessas escolas permite que se considere sua espacialidade e as possíveis exibições de suas performances nos diversos ambientes da cidade, oficiais ou não, a exemplo dos bairros Vila Esperança, na Zona Leste; Largo Lapeano, na Lapa; Liberdade; Tatuapé; Santo Amaro[16]. Também participaram dos carnavais da Avenida São João e dos Parques Dom Pedro II e Parque do Ibirapuera, entre outros, identificados nos registros da imprensa como os palcos dos desfiles oficiais das escolas de samba. Por exemplo, essas agremiações desfilaram no Ibirapuera de 1955 a 1959, no carnaval oficial da cidade, conforme aponta o Gráfico 2, a seguir[17]. Esses registros são apenas indicativos, pois as informações da imprensa são genéricas, como pode-se observar em relação aos eventos de 1958[18]. Ou, então, centradas naquelas que foram vencedoras, às vezes, citando apenas o primeiro lugar, como já foi explicitado anteriormente.
O mapeamento, acima, sugere indagações sobre os assuntos apresentados por essas agremiações aos demais pândegos. Os registros são raros, exigindo ampla pesquisa. No caso da Escola de Samba Nenê da Vila Matilde, essa recuperação beneficia-se dos relatos de seu Nenê (SILVA, BRAIA, 2000), que informa que a Escola usou, inicialmente, letras de músicas que faziam sucesso nas rádios como mote para os seus desfiles de 1950 a 1953. Seu Nenê relembra algumas delas: Normalista (1950)[19], Amor de Madalena (1951), de Blecaute, Lata d´água (1952)[20] e Joga a Chave (1953)[21]. Nos anos seguintes, a Escola, inspirando-se nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro[22], apresenta temas que se deslocam ao universo sociopolítico do passado do grupo, a exemplo de 1954, com Zumbi dos Palmares, e, também, questões relativas ao país e ao estado de São Paulo.
As motivações para essas mudanças de foco podem ser pensadas além do exemplo carioca? Não seria esse o espaço adequado para a busca de inversão da ordem, promovida por aqueles que sofreram, em passado não tão distante, com as diferentes faces da escravidão no país? As questões étnicas não seriam formas de trazer à esfera pública os ressentimentos sufocados sobre esse passado, travestidos e teatralizados num processo de carnavalização, revertendo os sinais, conforme analisa Bakhtin (1987), para outra experiência? E os sambas-enredo, peças importantes nessa teatralização, conseguiram extravasar para a sociedade, nesses desfiles, os sentimentos do grupo sobre o seu passado?
Rastrear esses temas pode esclarecer dimensões do assunto, mesmo porque alguns dos motes referem-se ao universo afro, projetando-se aqueles referentes à problemática da escravidão negra, analisada em diferentes momentos: primeiramente, expresso na homenagem a Zumbi dos Palmares[23], depois em temas correlatos. Porém, suas exibições ocorreram na conjuntura anterior ao golpe militar de 1964, período que se caracteriza por intensa efervescência política. A hipótese é que essa conjuntura, mesmo subjetivamente, acabe por imprimir sua marca nessas escolhas, pois a intenção dos carnavalescos é repensar o passado escravo, de dor e sofrimento dos descendentes afro-brasileiros, a julgar pelas questões dessa natureza trazidas a eventos dedicados à alegria, como o carnaval.
O resultado do levantamento sobre as performances de Nenê da Vila Matilde, entre os anos de 1950 a 1967, indica temas relacionados a letras de música em voga, temas ligados às questões do grupo e outros assuntos de âmbito nacional, além de um vínculo com o passado paulista ao tratar o tema do bandeirante, como evidenciam o Quadro 3, a seguir, e o Gráfico 3, mais adiante.
Nos registros de seu Nenê, somente em 1956 é que a Escola desfila o seu primeiro samba-enredo. Essa modalidade de exibição, segundo Monique Augras (1998), citando Tinhorão, é a adequação do samba à temática do desfile. Na interpretação da autora, ele teria aparecido nos desfiles carnavalescos do Rio de Janeiro, em 1933, com algumas interrupções, firmando-se depois da década de 1950. Segundo outras versões, o primeiro teria sido em 1934 (desfilado pela Mangueira) e o seguinte só apareceu em 1938 (com o Salgueiro) que é considerado, de fato, o primeiro samba-enredo de escola obedecendo a um enredo. O tema era “Asas para o Brasil” e homenageava Santos Dumont. A autora explica o surgimento do samba-enredo como uma decorrência do enquadramento oficial dos desfiles.
No caso paulista, a experiência temática ocorreu na exibição de temas sociais ou associados à identidade de São Paulo e do país. A Nenê trouxe, inicialmente, a leitura de Casa Grande e Senzala para a avenida, assunto que será abordado posteriormente.
Os motes dos demais desfiles carnavalescos estão sintetizados no Quadro 3, a seguir, que traz informações detalhadas das exibições feitas pela Escola de Samba Nenê da Vila Matilde.
A origem dessa mudança de estrutura dos desfiles é atribuída (conforme depoimento de Seu Nenê) ao contato com o mundo do samba carioca, que teria provocado inquietações sobre as possibilidades de outros arranjos para os desfiles carnavalescos. Essas novas ideias foram partilhadas com outros integrantes da diretoria da Escola, resultando na introdução do uso de alegorias e samba-enredo, em vez de temas vinculados a letras de música em voga, recorrentemente empregados pelas agremiações. Essa sistemática, contudo, não foi acompanhada pelas demais escolas, como mostra o Quadro 4, a seguir, no qual é possível observar que apenas Unidos de Vila Peruche propõe samba-enredo, situação que se altera de 1968 em diante.
No caso paulista, portanto, o uso do samba-enredo pelas escolas, antes de 1968, não era resultante do processo de “institucionalização dos desfiles”, que sofria pressão do julgamento das comissões oficiais – que existiam em São Paulo desde a gestão do Prefeito Fábio Prado, na década de 1930 (SILVA, 2008) –, considerando que a oficialização do carnaval paulistano, de fato, somente ocorrerá em 1968.
O Gráfico 3, a seguir, sistematiza essas informações, agrupando-as por temas. Alguns elementos chamam a atenção no carnaval paulistano das escolas de samba, pois buscavam inserir “novidades” que se consolidam no carnaval carioca. Presencia-se o uso de alegorias e dos sambas-enredo, com destaque para os temas voltados ao universo afro.
Prosseguindo o exame do Quadro 3 e do Gráfico 3, nota-se que, embora não haja descrição da estrutura dos desfiles, os temas percorrem o prolongado cativeiro e as agruras, por vários séculos, provocadas pela involuntária “diáspora” negra e assuntos voltados à identidade nacional. O primeiro bloco relativo ao universo afro é exibido na avenida, em 1954, na homenagem ao principal líder negro da luta contra a escravidão, como já mencionado anteriormente.
Zumbi, o líder negro rebelde que integrou o quilombo dos Palmares e, de lá, liderou a luta contra a escravidão[24], enfrentando as tropas do império colonial português por várias décadas, ganha a avenida para orgulho de sua comunidade. O tema, de forma alegórica, relembra a situação dos negros cativos de outrora, bem como participa dos embates de memória entre os diversos grupos de então, que reivindicam ser os responsáveis pela riqueza do estado de São Paulo, em seu IV Centenário.[25] O grupo protesta, colocando em evidência o “esquecimento” da expressiva participação dos negros nesse processo.
O assunto afro tem continuidade com Casa Grande e Senzala (primeiro samba-enredo) e sua superação com a Lei Áurea, que é o momento de ruptura dessa situação de escravização dos africanos e seus descendentes. Porém, novamente o tema é apresentado em Chica da Silva e, posteriormente, em A escrava Isaura (Figura 4), deixando antever que não se trata apenas de encenação ritualizada, mas uma forma de, meio século após a abolição, não apagar da memória das novas gerações a experiência de dor e violência sofrida pelos seus pais, avós e antepassados.
Assim, recuperando essa trajetória, tem-se, em 1956, o primeiro samba-enredo apresentado pela Nenê da Vila Matilde. Embora as explicações de seu principal protagonista, Seu Nenê, sobre a escolha de assuntos gerais ou voltados à questão afro apareçam naturalizadas, os sentidos vão além do desejo de “inovar” os desfiles. A ideia do tema Casa Grande e Senzala, diz Seu Nenê, foi uma sugestão de Mario Protestano dos Santos (Popó) e Dr. Lucrécio, não obstante o desenvolvimento do assunto tenha sido decisão coletiva: dele, do Popó, da mulher, Maria Tereza, Antonio Pedro Alves de Almeida (Tóquio), de Dr. Lucrécio e de Nicolau. A autoria do samba-enredo[26], cuja letra expomos a seguir, coube a Álvaro Pedro Rosa (Paulistinha) e Popó (Mário Protestano dos Santos), jornalista de O Dia:
Samba-enredo Casa Grande e Senzala (1956) – (SILVA, BRAIA, 2000, p. 16).
Aruanda ficou, o mar separou
Senhor! Meu Senhor!
Nego tudo deixou
É banzo que nego tem
É banzo que nego tem
Na casa grande tudo é alegria
Na casa grande tudo é festança
Na senzala nego chora
Chora que nem criança
É banzo que nego tem
É banzo que nego tem
O conteúdo do samba-enredo que, por si só, indica uma perspectiva crítica sobre o passado de escravização do grupo, não é o que traduz a letra, que aborda a escravidão como um infortúnio acidental vivido pelo negro que foi separado de sua África querida. Confinado na senzala, lamenta sua falta de sorte sendo consumido pela tristeza, choro e desamparo. O tom conformista, que é apenas uma das facetas da escravidão, não abarca a trajetória vivenciada pelos negros, que amargaram um prolongado cativeiro no país, sofrendo todo tipo de violência. Sabe-se, pela bibliografia especializada[27], que a trajetória cativa do grupo vai além das lágrimas, e está marcada por diversas formas de enfrentamento ao sistema escravocrata: fuga, assassinato de seus algozes, resistência armada, rebeliões, entre outras.
Não há descrição sobre o planejamento e execução do enredo para o desfile, tais como a decisão da indumentária e demais apetrechos complementares para sua exibição. A foto, em preto e branco, tirada após o desfile da escola, no quintal da casa do pai de Seu Nenê — a escola ainda não tinha sede —, permite ver como o tema foi mostrado ao público, bem como a alegria de seus componentes ao exibir o troféu recebido.
Nessa foto, os homens e mulheres vestem fantasias diferenciadas, na busca de execução do enredo. Quantos aos homens, alguns usam chapéus, outros turbantes ou nenhum adereço na cabeça. Já as mulheres trajam roupas igualmente diferenciadas, algumas sem muitos enfeites, a não ser na cabeça, que aparece adornada com chapéus (as sinhazinhas), lenços e adereços não identificados. Há elementos na foto que sugerem que alguns trajes são de cor branca, mas havia uma parte da indumentária de algumas mulheres, provavelmente as escravas, que tinham uma espécie de avental de outra cor por cima de parte da saia. Também não há indicação de adereços. Olga von Simson esclarece a importância da indumentária, tanto masculina quanto feminina, para estabelecer a diferenciação entre a Casa Grande e a Senzala, considerando a solução dada um elemento fundamental por garantir o balizamento e o sentido do enredo.
No ano seguinte, a discussão foi a Lei Áurea, que, no relato de Seu Nenê (SILVA, BRAIA, 2000, p. 58), era uma “homenagem aos escravos e à Princesa Isabel”. O tema reiterava o do ano anterior, o que não foi interessante para a Escola, por ser repetitivo, admite Seu Nenê.
Assim, os desfiles dos anos seguintes foram estruturados seguindo temas históricos — O Grito do Ipiranga (1958), o Despertar de um Gigante (1960), A Marquesa de Santos (1961) —, que foram intercalados com temas afros, a exemplo de 1959 e 1962, cujos sambas-enredo foram: Chica da Silva (letra de Paulistinha e música de Popó) e A Escrava Isaura.
Voltando aos sambas-enredo afros, Chica da Silva, por exemplo, exalta a paixão despertada pela “crioula bonita” que enfeitiça o contratador João Fernandes, homem de confiança da Coroa portuguesa. João Fernandes acumula riquezas e compete com o próprio rei de Portugal[28]. Segundo a lenda, ele faz as vontades mais bizarras de Chica da Silva, até mesmo desviar o curso de um rio para ela navegar de barco.
Já o tema de A Escrava Isaura desloca-se para o século XIX, de um Brasil já independente e escravocrata. A foto do desfile de A Escrava Isaura apresenta figurantes vestidos a caráter, tendo, no centro, Tóquio, vice-presidente da Escola, cujos trajes indicam tratar-se de um homem livre, comum (SILVA, BRAIA, 2000, p. 45).
Os demais trajes, usados pelos integrantes masculinos da escola, são casacos estampados sobre calças brancas, meias longas ajustadas até o joelho e sapatos “estilo mocassin”, com fivelas[29], indicando tratar-se de um tempo distante, não aquele discutido no romance da segunda metade do século XIX, que tematiza a saga de A Escrava Isaura. Este romance conta a trajetória de uma jovem escrava mestiça de pele branca, filha de homem livre, branco, com escrava de outro senhor. A criança – que foi criada como uma sinhazinha pelos senhores, donos de sua mãe –, ao chegar à idade adulta, sofrerá as agruras de sua condição. Por sua situação ambivalente, ao mesmo tempo escrava e moça refinada que desperta paixão aos senhores de escravos e ao filho de seu senhor (que pretende usar de suas “prerrogativas” de proprietário para possuí-la sexualmente, como procedia com as demais escravas)[30], luta para conseguir sua liberdade e casar-se, conforme os cânones exigidos para as moças de elite. As promessas de liberdade, sempre adiadas por seus donos originários, não deixam outra alternativa que não a fuga, para livrar-se do cativeiro e das investidas sexuais do herdeiro. Apesar das repetidas tentativas, sempre é capturada, logrando a sua liberdade após longa epopeia de sofrimento, bem ao estilo das historietas românticas, nas quais a heroína triunfa no final da trama.
Independentemente disso, essa estória possibilita dramatização e se constitui em apelo crítico e teatral, por trazer elementos gerais que envolvem o período do cativeiro negro em toda a sua complexidade, trazendo desde a luta dos escravos, com suas fugas e organização de resistência nos quilombos, à dos antiescravistas, que se posicionam em relação à questão, engajando-se nessa luta de forma efetiva. Nesse sentido, é um tema agregador para sua encenação em desfiles carnavalescos, por não excluir desse processo as elites, tornando possível, sem muitos percalços, a crítica ao sistema escravista e o desvelamento das múltiplas faces da resistência. O impacto do desfile não pôde ser aferido, pois a imprensa não registrou (por escrito ou por fotos) a exibição do tema na Avenida São João. [31]
A negatividade do legado escravo sobre a comunidade explicita-se na reafirmação do valor étnico dos afrodescendentes, em Enaltecendo uma raça, mote de seu desfile de 1963. Isso deixa antever os descontentamentos da comunidade negra em relação à continuidade de sua exclusão dos circuitos diversos de funcionamento da sociedade brasileira – a exemplo da inserção desigual no mercado de trabalho, sem condições de competitividade com os demais trabalhadores brasileiros brancos, o que limita a melhoria de suas vidas em todos os níveis (ANDREWS, 1998) – e, certamente, dos preconceitos de todo tipo, enfrentados cotidianamente. Se isso não ocorresse, não haveria motivos para definir temário voltado a essa exaltação do grupo.
Não se trata de marcar, somente, situações de protestos. Os demais assuntos voltam-se ao Brasil (e procuram articular, de algum modo, São Paulo à história do país e do próprio grupo) e vão do ato fundador, com O grito do Ipiranga (samba-enredo de Paulistinha e Tóquio), a elementos que caracterizam os bastidores de sua história nos primeiros anos do Império, como A Marquesa de Santos (1961)[32], fruto de pesquisas sobre o assunto, como informa Seu Nenê. Em outras palavras, pensam a trajetória do país desde o ato fundador (O grito do Ipiranga)[33] à contemporaneidade, a exemplo do desfile de 1960, o Despertar de um Gigante.
Cabe observar que essas incursões por temas históricos para os sambas-enredo, voltados para a identidade do país ou de São Paulo, devem ser lidas a partir das percepções de Tóquio e Paulistinha (e da diretoria da escola), que recriam, à sua maneira, os eventos em si. Certamente a falta de acesso ao conteúdo dos enredos impôs limites às reflexões por inibir a apreensão das visões de mundo do grupo, presentes nessas representações. Essa situação foi minorada pela localização das fotos de alguns dos desfiles exibidos nos carnavais da cidade que permitiram visualizar as indumentárias e esculturas dos carros alegóricos que tematizaram o assunto, possibilitando a apreensão de seus possíveis sentidos.
Exemplos disso são os desfiles de 1960 e 1961 da Escola, cujos registros são apenas as fotos. Em 1960, a agremiação traz Despertar de um Gigante que tematiza o Brasil contemporâneo. O carro alegórico projeta, simbolicamente, uma “torre de Petróleo”, em cuja lateral se vê escrito “Brasília”, a indicar a fundação da nova capital. Essas representações enfatizam os símbolos do “progresso” do país e instauração de nova realidade, celebrados de forma ufanista no título do próprio tema, deixando para trás o seu passado de promessas do vir a ser.
No ano seguinte, a passeata da escola sobre a Marquesa de Santos, evidencia-se em duas fotos: a do carro alegórico que traz a “coroa da Marquesa” no centro do monumento, e a do casal principal que personifica D. Pedro I e a Marquesa de Santos. Esse material ratifica possibilidades de incursões sobre aspectos dessa proposta, a exemplo dos trajes que aparecem como simulacros dos protagonistas reais e a possível releitura dos carnavalescos sobre o assunto. Os trajes, por exemplo, buscam alguma similitude com os heróis que serviram de inspiração. A Marquesa porta uma veste de renda com muitos babados na saia, luvas, “colar de pérola”, tiara real e um leque ornamentado. Já a personagem de Pedro I aparece em trajes elegantes (sobrecasaca bordada), em contraste ao traje branco, que inclui peruca, coroa, luvas, meias e sapato afivelado. Entretanto, o desafiador é a percepção dos carnavalescos sobre a Marquesa favorita do Imperador, que, ao trazerem para avenida a história amorosa de ambos, redefinem os papéis vividos por aquela mulher, que na representação deixa de ser a amante clandestina e torna-se, simbolicamente, a imperatriz ausente, leitura essa demonstrada pela coroa (sem protagonista) do principal carro alegórico do enredo.
Além dos temas apresentados acima, foram propostos outros que recuaram ainda mais no tempo, para rememorar a epopeia bandeirante dos setecentos, com a homenagem a Paes Leme, o Bandeirante (1964) e O Tronco do Ipê (1967), romance (ambientado no norte fluminense, produtor de café, mas já decadente), escrito por José de Alencar.
As encenações carnavalescas, em 1964, voltadas ao tema Paes Leme, o Bandeirante, trazem o carro alegórico que marca a trajetória do controvertido bandeirante paulista “caçador de Esmeraldas” e alargador de fronteiras, mas também “caçador de índios”, submetendo-os à escravização. O jornal O Estado de S. Paulo limitou-se a informar que, em Vila Esperança, “haverá desfile de carros alegóricos apresentando motivos de épocas passadas” (O Estado de S. Paulo, 8/2/1964, p. 19). Mas o jornal Folha de S. Paulo divulga que ocorreram desfiles programados na Lapa, patrocinados pelo Clube dos Lojistas locais, que financiou várias escolas de samba com quantias relativamente vultosas, visando à elaboração das fantasias requeridas para as exibições dessas escolas.[34]
Nessa mesma linha de reafirmação de identidade do país, em 1967, inscreve-se O Tronco do Ipê (Figura 8), tema que celebra um de seus mais importantes escritores românticos, José de Alencar, intelectual de projeção, conforme exploram os estudiosos de sua produção[35], identificado com a defesa desses ideais de demarcação dos traços do país e de sua nacionalidade.
Na foto, fragmento desse momento, a representação do assunto aparece expressa na alegórica Ala das Pastoras[36], confundindo-se a tradição afro e o simbolismo representado pelo romance, exibido no enredo carnavalesco.
Encerrando essas reflexões, diria que ao trazer para os espaços públicos os seus desfiles temáticos sob a batida do samba, a Nenê viveu a experiência e as dificuldades de estruturar os desfiles, colocando em cena os carros alegóricos, o que implicava resolver impasses de todo tipo, desde a falta de recursos para sua montagem às estratégias para movimentar as alegorias durante os desfiles. Ao mesmo tempo, essa trajetória da Nenê (desfilando nos carnavais da cidade, pautada por samba-enredo desde 1956), a colocava numa situação privilegiada ante as demais agremiações após a oficialização dos carnavais em 1968. Essas experiências da Nenê eram diferentes dos cordões Camisa Verde e Branco e Vai-Vai, os quais possuíam estrutura de desfiles diversa à das escolas de samba, embora contassem com músicos e instrumentistas. O “batuque e músicas” de seus desfiles não era o do samba, e sim apoiado nas “marchas sambadas”, conforme esclarece Wilson de Moraes (1978).
Em depoimento, Amaral admite que a passagem do cordão Vai-Vai para Escola de Samba, em 1971, não foi simples. A “dificuldade foi controlar a bateria que ainda (era) muito pesada. Tinha noção de como funcionava uma escola. Já tinha introduzido as alas. O difícil era a porta-bandeira. A ‘corte’ acabou. E tinham os sambas-enredo exigidos para os desfiles” (Fita 112.31-32 – Carnaval Paulistano –MIS/SP- AMARAL - Entrevista concedida em 02/10/1981).
As reflexões desenvolvidas neste texto têm relevância especial por trazerem alguns elementos que permitem esclarecer aspectos que já estavam presentes nas escolas de samba paulistanas, antes mesmo do processo de institucionalização, em 1968. Exemplo disso é a existência de samba-enredo e de temas que, embora apareçam naturalizados, estiveram presentes nas performances carnavalescas exibidas na cidade desde o ano de 1954, trazidos pela Escola de Samba Nenê da Vila Matilde, com o tema Zumbi dos Palmares.
Isso significa que as alterações já estavam em curso quando as principais lideranças dessas agremiações solicitam ao Prefeito da capital, Faria Lima[37], a sua institucionalização, objetivando resolver a questão da falta de recursos para a montagem dos desfiles, de acordo com as exigências requeridas pelos temas de suas escolhas, que exigiam a incorporação do trabalho de profissionais especializados para a montagem das alegorias e esculturas carnavalescas.
Cabe ainda assinalar que, no período ditatorial, os temas dos sambas-enredo voltaram-se para assuntos gerais da história do país ou da literatura, diferentemente do período anterior, em que prevaleceram assuntos mais críticos e voltados ao universo dos afrodescendentes – seja no período da escravidão, seja na atualidade –, com a escolha de letras de música de sucesso que nem sempre centravam-se no universo lírico amoroso do cancioneiro popular, a exemplo de “Lata d´agua”, que tematizava a difícil vida de uma mulher que carregava, morro acima (favela), na cabeça, a água que necessitava em seu dia a dia, sugerindo que era “lavadeira de roupa” para o seu sustento e de sua família.
Enfim, assuntos que, de uma forma ou de outra, traziam o universo de seus protagonistas, fazendo, eles próprios, uma releitura de suas agruras ao representar aquele universo, vivendo os seus próprios papéis e os de seus senhores, que os submeteram ao cativeiro. Essas representações expressam o coroamento e o descoroamento de seu mundo, numa espécie de paródia da vida ordinária, de antes e de então, tal qual reflete Bakhtin (1987). Ou no período após a abolição, que igualmente trazem temas os quais, sub-repticiamente, desvelam a continuidade da submissão a situações de exclusão e abandono, expostos nos desfiles exibidos na avenida durante esses folguedos momescos.