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Nascidos em um país que não existe mais: dois testemunhos sobre o cotidiano na República Democrática Alemã.
Antero Maximiliano Dias dos Reis
Antero Maximiliano Dias dos Reis
Nascidos em um país que não existe mais: dois testemunhos sobre o cotidiano na República Democrática Alemã.
Revista Tempo e Argumento, vol. 8, núm. 18, pp. 470-487, 2016
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Resumo: Jürgen e Uta Menzel nasceram em Berlim, na República Democrática Alemã (RDA), e por lá viveram mais de 30 anos, até a queda do Muro, em 9 de novembro de 1989 . Uta Menzel nasceu em 1957, formou-se em economia do povo e atualmente trabalha como controladora de finanças. Jürgen Menzel nasceu em 1953, formou-se em engenharia elétrica e trabalha atualmente no setor de tecnologia da informação. Ambos ainda residem em Berlim, oficialmente reunificada em 3 de outubro de 1990. O casal esteve no Brasil, visitando a cidade de Florianópolis no mês de julho de 2013, quanto dispôs-se a participar de uma roda de conversa realizada no Centro de Ciências Humanas e da Educação, na Universidade do Estado de Santa Catarina. Na ocasião expuseram suas memórias e experiências acerca de seu cotidiano na extinta RDA. Neste dia, Jürgen e Uta concordaram em nos conceder a entrevista que segue abaixo. Os entrevistados foram devidamente esclarecidos sobre todos os procedimentos relacionados à entrevista e sua publicação, estando estes de pleno acordo. Entrevista concedida em: 23/07/2013 em Florianópolis

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Entrevistas

Nascidos em um país que não existe mais: dois testemunhos sobre o cotidiano na República Democrática Alemã.

Antero Maximiliano Dias dos Reis
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 8, núm. 18, pp. 470-487, 2016
Universidade do Estado de Santa Catarina

Com a derrota da Amanha, em 1945, chegava ao fim a Segunda Guerra Mundial. União Soviética, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, reuniram-se na cidade de Postdam, decidindo, dentre outras questões, a partilha do território Alemão. Foram definidos os limites de quatro zonas de ocupação. Do lado ocidental se encontravam os americanos, ingleses e franceses, formando a Westzone (Zona de Ocupação Ocidental); do lado oriental, os soviéticos, formando a Sowjetische Besatzungszone (Zona de Ocupação Soviética). Berlim, capital alemã, que estava situada no interior da ocupação soviética, também foi, primeiramente, dividida em quatro setores. O encontro de Postdam deixou bastante evidente a contradição entre os interesses ideológicos destas forças políticas, de um lado formou-se um bloco capitalista, de outro uma frente comunista. Esta divisão demarcou o princípio da Guerra Fria, e no ano de 1949, fez surgir dois países: a República Federativa Alemã (RFA), fundada 23 maio, e a República Democrática Alemã (RDA), fundada em 7 de outubro. No de 1961, a cidade de Berlin, foi dividida com a construção de um muro, que separava comunistas e capitalistas. O país somente voltou a se reunificar com a Queda do Muro de Berlin em 9 de novembro de 1989.

Tempo e Argumento: Em que ano vocês nasceram, e como foi crescer em uma Berlim dividida?

Jürgen: Nasci em 30 de abril de 1954, o muro ainda não havia sido construído[1], mas para mim a divisão da Alemanha sempre foi vista com normalidade, acredito que não influenciou negativamente no meu cotidiano, talvez porque eu não tivesse parentes em Berlim Ocidental.

Uta: Eu nasci em 10 de outubro de 1957, no bairro Berlim-Friedrichshain. Para quem não conhece Berlim, fica a quatro estações de metrô do centro, da Alexanderplatz. Quando o muro foi construído, em agosto de 1961, eu tinha apenas três anos de idade, e assim como para meu marido, cresci com o muro ali fazendo parte de nosso cotidiano.

Tempo e Argumento:E você tinha familiares na Alemanha Ocidental?

Uta: Tinha a irmã da minha mãe que morou em Lübeck, perto de Hamburgo. Para explicar melhor, devo contar um pouco da história da minha família por parte de mãe. Minha mãe nasceu na Silésia, região de fronteira, que hoje em dia pertence aos limites da Polônia, mas naquele período era um território alemão. Foi por causa da Segunda Guerra que a família de minha mãe se dividiu, indo para diferentes partes da Alemanha. Durante o tempo de Hitler, todos os jovens tinham como dever prestar um trabalho obrigatório para a nação. Assim, uma tia foi para Lübeck, outra foi para Güstrow, que é em Mecklemburgo-Pomerânia, também outro Estado. E a minha mãe, Hella, teve de se mudar para Berlim. As três irmãs se comunicaram durante muito tempo apenas através de correspondências.

Tempo e Argumento: E houve alguma possibilidade de encontro depois da construção do Muro?

Uta: Não. Do nosso lado não era possível viajar. Nós não gostávamos desta situação, mas tivemos que aceitar. E minha tia, que morava na Alemanha Ocidental, nunca nos visitou.

Tempo e Argumento:Hoje em dia vocês mantêm contato?

Uta: Minha mãe e minha tia de Lübeck já morreram. Há contato apenas com uma amiga de lá.

Tempo e Argumento:E por parte de seu pai?

Uta: O meu pai era o mais novo de quatorze irmãos. Era muito comum nesta época as famílias serem numerosas. Minha mãe, por exemplo, era a mais jovem entre sete irmãos. Com a guerra, o contato entre os familiares ficou muito difícil, e após a guerra continuou assim, mas meu pai manteve contato com alguns irmãos, independente se moravam na Alemanha do Leste ou do Oeste.

Tempo e Argumento: O que vocês lembram sobre seus pais?

Uta: O meu pai nasceu em 1918[2], ele era marceneiro e depois que terminou o curso técnico teve que ir para a guerra. Ele era casado, mas quando voltou da guerra se divorciou e começou uma formação de professor: “Professor Novo”, como se chamava nesta época. O sistema educacional foi reorganizado pelas forças de ocupação. Na Zona de Ocupação Soviética, a ideia era construir um novo sistema, o que ocasionou a formação de muitos professores. Minha mãe era salva-vidas, o que era incomum para mulheres nesta época. Minha mãe também era casada, mas seu marido morreu na guerra. Minha mãe e meu pai se conheceram após a guerra e se casaram. Eu lembro que diziam que esta guerra nunca deveria ter existido e que o mundo deveria ser mais pacífico e justo. Os dois vinham de uma camada social de poucos recursos. Minha mãe, como muitas mulheres, no final da guerra ajudou no trabalho de recuperação das ruas, limpando o material de construção que restou das casas e prédios destruídos, separando as partes boas, os tijolos e as pedras para reconstruir a cidade, pois quase tudo havia sido destruído[3].

Jürgen: Meu pai nasceu em 1923, numa família de funcionários públicos. Ele era filho único. Concluiu a escola e entrou na universidade, mas com 17 anos ele teve que ir para guerra. Depois da guerra ele também começou a fazer a formação de “Professor Novo”. Minha mãe nasceu em 1926, numa família camponesa. Teve quatro irmãos. Fez uma formação rápida para atuar como professora da educação infantil, mas trabalhou em fábricas e também como vendedora de sapatos.

Tempo e Argumento: Os pais de vocês tiveram algum contato com a estrutura política do Estado?

Jürgen: Meu pai era bem ativo depois da guerra. Ele foi co-fundador da organização Juventude Livre Alemã (Freie Deutsche Jugend - FDJ)[4], no distrito de Berlim-Pankow, foi membro do Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA, ou SED – Sozialistische Einheitspartei Deutschlands)[5], que era o maior partido político da República Democrática da Alemanha, fez parte da Federação Alemã de Sindicatos Livres (Freier Deutscher Gewerkschaftsbund – FDGB)[6] e também da Sociedade pela Amizade Alemã-Soviética (Freundschaft Deutsch-Sowjetischen – FDS). Fazer parte destas instituições era algo normal para muitos alemães do leste. O PSUA, por exemplo, tinha mais de dois milhões de membros em uma população de quase 17 milhões de habitantes. Era comum também fazer parte dos sindicatos e da Sociedade pela Amizade Alemã-Soviética.

Tempo e Argumento: Seu pai viajava muito em virtude destas atividades políticas?

Jürguen: Não, ele viajou pouco. Participava muito de atividades voluntárias nos bairros em que viveu, primeiro em Berlim-Pankow, e mais tarde, também, em Berlim-Friedrichshain.

Uta: Meu pai ficou doente nos anos de 1950, com câncer. Ele parou a formação dele e minha mãe também parou a profissão dela para cuidar do marido. Foi descoberto que ele tinha um tumor. Nesta época meu pai passou a receber um tratamento gratuito do Estado, e a gente uma aposentadoria para nós quatro, pois eu tinha uma irmã. Não era muito MDN[7] 800,00, mas para ter uma ideia do valor, com MDN 80,00 pagávamos o aluguel.

Tempo e Argumento: O aluguel era pago ao governo?

Uta: Era bem comum ter apartamentos para alugar nas duas Alemanhas. Foram fundadas organizações comunitárias imobiliárias em grandes cidades. Essas organizações cuidavam, administravam e alugavam os apartamentos.

Jürgen: O apartamento da casa em que morávamos era de uma pessoa particular, também morávamos de aluguel.

Uta: Meus pais moraram primeiro num quarto, num apartamento que dividiam com a locadora, o banheiro e a cozinha. Não havia apartamentos suficientes, por causa da destruição da guerra foram construídos novos apartamentos. Meus pais conseguiram um apartamento individual a partir de 1955, na Avenida Stalin, hoje Avenida Karl Marx. Estes edifícios foram construídos no modelo stalinista de arquitetura, semelhante às construções de Moscou[8]. Em geral, os edifícios tinham sete andares.




Fonte: Fotografia cedida pelo casal.

Tempo e Argumento: Do que vocês se lembram da infância?

Uta: Nos anos de 1950 e 60, era muito difícil conseguir uma vaga na educação infantil para mim e minha irmã. Como minha mãe ficava em casa para cuidar de meu pai, eu apenas entrei na educação infantil com quatro ou cinco anos. Consigo me lembrar de que a gente jogava e fazia brincadeiras fora da sala de aula, no pátio. Na sala de aula havia muitos brinquedos que eu não tinha em casa, brinquedos daquela época, como as casas de bonecas, etc. Na educação infantil, tínhamos café da manhã, almoço e um lanche à tarde. Eu ficava na escola das 08h até umas 15h. As crianças dos pais que precisavam trabalhar podiam ficar até às 18h. Lembro que aprendi coisas básicas, por exemplo, como escovar meus dentes, lavar minhas mãos, etc. Aprendemos a conviver, a ajudar o outro e dividir as coisas. Também fiz a pré-escola, quando comecei a desenvolver algumas habilidades de matemática. Em geral, as crianças que não iam para educação infantil entravam já na pré-escola, que era garantida para todos em um nível educacional semelhante. As refeições eram de baixo custo e equivaliam a MDN 0,70. A comida era igual para todos para não causar ciúmes de alguém que tivesse, por exemplo, uma banana ou suco. Banana era um verdadeiro luxo.




Fonte: Fotografia cedida pelo casal.

Jürgen: Eu não tenho memórias muito detalhadas, mas também frequentei por um tempo o jardim da infância. Depois, eu segui o caminho normal da educação do ensino fundamental, do primeiro ano até o décimo ano.

Uta: Nós tínhamos uma escola que era a escola geral e que se chamava colégio politécnico (PolytechnicheOberschule), que ia do primeiro ao décimo ano. Neste colégio, aprendíamos a usar ferramentas, a bater com martelos, também tínhamos aulas de artesanato. Não havia separação entre os meninos e as meninas, todo mundo aprendia junto. Não tinha artes manuais apenas para as moças e manejo de ferramentas para os moços. Era tudo junto. A partir do sétimo ano, a gente ficava uma vez por semana numa empresa, uma semana era de prática e a outra de teoria. Por exemplo, lembro que a gente foi para uma fábrica de metal e praticamos algumas técnicas que eram utilizadas na produção. Pois era necessária uma noção de como tudo funcionava. Isto era diferente de acordo com as regiões. No setor rural as empresas e indústrias eram voltadas para os produtos do campo. Lembro bem de minha trajetória educacional, no primeiro ano a gente aprendia o alfabeto, e com meio ano de estudos já conseguíamos ler textos simples. A partir do quinto ano começavam as disciplinas, como biologia, química, física, geografia e história, que antes do quinto ano eram dadas juntas. A primeira língua estrangeira, a partir do quinto ano, era a russa. A partir do sétimo ano todo mundo tinha de aprender mais uma língua estrangeira, para entrar na universidade depois de doze anos. A segunda língua estrangeira era opcional, para os que quisessem fazer um curso técnico depois do décimo ano. Oficialmente tinha inglês e francês, mas havia poucos professores de francês. Havia ainda escolas especializadas em que você poderia aprofundar o curso, aprender tcheco. Também havia escolas de matemática, de música para apoiar e formar talentos, e também escolas voltadas para o esporte. Em nossa adolescência havia muitas organizações de esportes, como atividades pedagógicas de integração. Na escola, tínhamos atividades de contraturno, relacionadas à cultura e ao esporte. E, nas férias, as crianças saíam para o campo, em viagens organizadas pelas empresas onde os pais trabalhavam. As crianças dos trabalhadores viajavam de férias duas ou três semanas.




Fonte: Fotografia cedida pelo casal.

Tempo e Argumento: E você, Jürgen, foi influenciado pelo seu pai a participar de alguma organização?

Jürgen: Na escola, em geral a maioria das crianças fazia parte da Organização Pioneira (Pionierorganisation), do primeiro ao quarto ano e, depois, do quinto ao sétimo ano, da Organização Ernst Thälmann (Organisation Ernst Thälmann). A partir do oitavo ano a maioria fazia parte da organização Juventude Livre Alemã (FDJ – Freie Deutsche Jugend). Esta não foi uma influência de meu pai, pois era um caminho comum para a maioria dos jovens. Foram poucas crianças que não fizeram parte dessas organizações.

Tempo e Argumento: Vocês tinham formação política nestas organizações?

Jürgen: Falávamos sobre questões políticas, mas também havia jogos, brincadeiras e diversão. Na FDJ, tínhamos cartilhas que falavam sobre assuntos políticos, como a Segunda Guerra, a Revolução de Outubro, sobre os países em desenvolvimento. Nos anos de 1960, o assunto eram as grandes guerras de libertação na África, guerra do Vietnã, Revolução Cubana. Era importante para a RDA que entendêssemos um pouco sobre estes eventos.

Tempo e Argumento: Havia muitos exilados políticos na RDA?

Uta: Na minha turma tinha uma moça, Irina, ela era tcheca. O pai dela era espanhol e lutou contra o Franco, precisou exilar-se e escolheu a Alemanha Oriental. A mãe dela era tcheca, mas todos eles moravam em Berlim. Ela comentou que alguns fatos ocorreram de forma diferente do que nos foi ensinado. Mas nesta época eu tinha apenas 11 anos, e não entendia muito sobre estes assuntos, eu era muito jovem. Sobre os perseguidos políticos lembro também que em outro momento vieram os chilenos. E também havia os cubanos, mas não se tratava de exílio e sim de intercâmbio.

Tempo e Argumento: E como foi a juventude de vocês?

Uta: Em nossa juventude tivemos acesso à mídia da Alemanha Ocidental. Oficialmente não poderíamos, mas como morávamos em Berlim, ouvíamos a rádio e assistíamos TV dos dois lados, tentando criar uma opinião própria. Tínhamos acesso a álcool e cigarros, mas a outras drogas não. Talvez fosse possível obter alguma coisa no mercado paralelo, mas em geral não tínhamos interesse. A diversão dava-se na prática de esporte e nos eventos. Havia festas que iam das 17h às 20h/21h, das quais participávamos a partir dos 15 anos de idade. As discotecas não funcionavam até tarde. Não era comum nesse tempo ficar até de manhã. Havia uma lei de proteção para menores de 16 anos. Apenas a partir dessa idade se conseguia entrar nestes lugares depois das 22h. Alguns clubes para os jovens fechavam à meia-noite, por causa do barulho e da vizinhança. Nessa época, nossos pais achavam que nossas saídas eram demoradas mesmo que a gente não ficasse na rua depois das 22h, como acontece hoje em dia. Com 18 anos, com a maioridade, começaram as festas de aniversário até 1h/2h. E, durante a universidade, a gente também festejava bastante até mais tarde.

Jürgen: Minha turma de amigos sempre foi formada por colegas, primeiro da escola, depois da universidade, e quando comecei a trabalhar eram os colegas do trabalho.




Fonte: Fotografia cedida pelo casal.

Uta: Depois da universidade, nos conhecemos através de amigos em comum do trabalho. Eu trabalhava com uma amiga e ele com um amigo, que nos apresentaram.

Tempo e Argumento: Quais os grupos de rock que vocês ouviam?

Uta: Conhecíamos Beatles, Rolling Stones, Puhdys, City, Silly, Electra, Stern-Combo Meisen[9]. Existiam vários grupos e também estilos diferentes. Eu gostava muito de rock. Havia grupos da Bulgária, Tchecoslováquia e Hungria. E também escutávamos pela rádio os grupos da Alemanha Ocidental. De vez em quando você conseguia comprar LPs dos Rolling Stones, Beatles ou outros grupos ocidentais. Não era fácil, mas de vez em quando conseguia. Também havia concertos clássicos e teatro.




Fonte: Fotografia cedida pelo casal.

Tempo e Argumento: Na universidade como era o sentimento em relação ao governo?

Uta: Em geral, positivo. Discutíamos, mas não com o pensamento de derrubar o governo. Questionávamos sobre a meta do governo de ter 100% dos estudantes como membros na organização de jovens FDJ. Se alguém não queria fazer parte da organização, por que deveria ser forçado? O importante era que não apenas pensávamos em festejar, mas também discutir sobre assuntos políticos internos e externos.

Tempo e Argumento: E especificamente sobre Stalin e Kruchev?

Jürgen: Não eram de nossa época, eram mais da época de meus pais. Uta percebeu quando a rua dela, de Avenida Stalin, passou a se chamar Avenida Karl Marx. Foi mudança de endereço, mas não percebemos mudanças políticas. Não éramos bem informados sobre o período de Stalin. Recebemos maiores informações somente depois que o muro caiu.

Uta: Os administradores da RDA não se posicionavam sobre os dois. Sabíamos uma ou outra coisa, mas não tínhamos um aprofundamento sobre eles, não tínhamos um posicionamento específico.

Tempo e Argumento: Como foi o começo, em relação ao trabalho?

Jürgen: Depois da minha formação escolar fiquei três anos no serviço militar. Eu fiquei voluntariamente por mais tempo, a obrigação era de 18 meses. Primeiro, porque eles faziam muita divulgação na escola sobre a carreira militar e era mais interessante trabalhar na base aérea do que ficar 18 meses na fronteira. Também recebia mais dinheiro na base. Depois, a gente recebia uma bolsa para estudar na universidade que era um pouquinho maior do que as outras. Todo estudante recebia uma bolsa de estudo. Estudei matemática por cinco anos. Quando o estudo terminou, havia listas de empresas que procuravam por mão de obra qualificada. A partir de suas notas você conseguia escolher uma empresa para trabalhar. Eu comecei em uma empresa de energia, em Berlim, que era pública. Não havia empresas particulares, apenas restaurantes, hotéis, e pessoas que trabalhavam manualmente, como artesãos. Recebi um contrato por dois anos, durante este tempo tinha um pessoa que era responsável para minha inserção profissional, e avaliava se eu estava cumprindo corretamente minhas tarefas de trabalho.

Tempo e Argumento: Você lembra se havia reclamações trabalhistas?

Jürgen: Existiam sindicatos de trabalhadores, também para a construção civil e para os camponeses. Eu tinha um colega que era informado sobre a legislação de trabalho. Ele tinha o livro da legislação, era bem fino, ele era especialista na lei, sabia tudo. Quando tínhamos problemas, primeiro tínhamos que procurar o sindicato interno, que ajudava, não precisava ir à Justiça. As leis de trabalho eram bem claras e bem simples de entender e todos deviam cumpri-las.

Tempo e Argumento: E o salário cobria as necessidades?

Jürgen: Não havia problemas quanto a isto, mas às vezes as pessoas tinham dinheiro a mais, porque não era sempre que tinham produtos para comprar.

Uta: Esperei de 10 a 15 anos para ter um carro. Algumas famílias inscreviam todos os seus membros, para receberem um carro para cada um. A cada cinco anos, essas famílias conseguiam trocar de carro e aí vendiam o carro velho pelo mesmo preço do novo. Era assim que obtinham o dinheiro para comprar o carro novo. Mas carro era um produto de luxo.

Tempo e Argumento: Havia algum ressentimento em relação aos produtos do Ocidente?

Jürgen: Eu não sou uma pessoa consumista.

Uta: Para nós, os aluguéis eram baratos e as coisas comuns como comida e roupas também eram bem acessíveis. Claro que com o desenvolvimento da tecnologia vieram os desejos, de ter televisão colorida, computador, e também máquina de lavar. Estes produtos eram bem mais caros, mas tinham uma qualidade muito boa e duravam muito tempo. Minha máquina de lavar, por exemplo, custou MDN 2.000,00. Nessa época eu ganhava MDN 900,00 por mês.

Tempo e Argumento: E você Uta, como começou a trabalhar?

Uta: Parecido com meu marido. A partir das ofertas das empresas regionais, as pessoas que estudavam Economia de Exportação tinham mais facilidade de achar o primeiro emprego e depois vinham as pessoas que estudavam Economia do Povo, Economia Nacional, como eu. Lembro que a universidade promovia conversas vocacionais para indicar uma profissão. Havia profissões que precisavam de cinco anos de formação. Depois de graduados, os jovens, em algumas profissões, precisavam trabalhar por três anos em um lugar indicado, como uma troca devido ao estudo ser gratuito.

Tempo e Argumento: Como vocês viram a reunificação da Alemanha?

Uta: De um lado, é muito bom ver a Alemanha reunificada, trouxe mais liberdade e oportunidades para a população da RDA. Mas, para mim, pessoalmente, no que se refere a minha área de trabalho, trouxe muita incerteza. Nasci em um país onde tínhamos a garantia de vaga de trabalho. A Alemanha tem um sistema social, ainda hoje, considerado bom. Acho que isso é fruto da luta ideológica entre os dois Estados, ambos buscavam manter uma base sólida de segurança social. Porém, hoje, os benefícios sociais são cada vez menores.

Jürgen: Não foi uma reunificação de igual para igual. Muitas pessoas que exerciam determinados postos de trabalho ou que eram consideradas de elite na RDA não tiveram uma posição social semelhante na Alemanha reunificada. Pessoas da Justiça, Militares, uma parte do aparelho do Estado foi integrado, mas para os cargos mais altos precisaram se candidatar novamente. Muitos não foram reconhecidos automaticamente, sendo despedidos, como foi o caso dos integrantes da Stasi (Ministeriumfür Staatssicherheit - Ministério para a Segurança do Estado). Em regiões mais isoladas, no campo, a maioria dos policiais e dos professores não conseguiu manter o seu ofício.

Uta: Foi diferente da transformação que ocorreu na República Tcheca e na Polônia, onde também houve a troca do sistema, mas não uma reunificação. Por exemplo, no caso da Alemanha, os professores da parte oriental precisaram se candidatar novamente a um cargo de educação na Alemanha reunificada, os professores das universidades também. Todos da RDA, mas não os da RFA, tiveram que passar por isso, como uma espécie de avaliação.

Jürgen: Mas a maioria se candidatou e foi contratada.

Uta: Mas é o fato de que precisavam se candidatar novamente que eu acho criminoso. Nosso diploma de conclusão da universidade também foi analisado e na maioria das vezes foi aprovado como equivalente, mas a gente precisava ser reconhecida novamente, precisava passar por esse processo constrangedor para obter um documento de reconhecimento após a reunificação. Muitas empresas, especialmente no setor industrial, foram fechadas, como não tinham estrutura econômica e o tempo de adaptação foi pequeno, não conseguiram concorrer no sistema capitalista. Milhares de trabalhadores perderam o emprego. Até hoje em dia existem muitas regiões na porção oriental da Alemanha que não se recuperaram desta situação, sobretudo pessoas mais velhas. Os jovens se mudam para regiões onde há maior oferta de empregos. Um bom exemplo são minhas sobrinhas. As duas se mudaram da cidade de Greifswald (Mecklemburgo-Pomerânia) para Hamburgo, porque não achavam um emprego na região onde nasceram.




Fonte: Fotografia cedida pelo casal.

Tempo e Argumento: Como vocês entendem o ideário do socialismo atualmente?

Uta: Para mim a ideia do socialismo não morreu. Do meu ponto de vista é necessária e significativa para que as pessoas vivam em paz, com maior igualdade econômica, sem uma diferença tão grande entre o pobre e o rico, para que todas as crianças e pessoas tenham a possibilidade de ter uma vida digna. Isso não ocorre nesse momento no mundo. Esta possibilidade é para mim o significado do socialismo. Acho que há semelhanças entre o socialismo e a religião, no que se refere ao dever de amar o seu próximo. Quando fazíamos parte dos Pioneiros, tínhamos os nossos dez mandamentos. Dentre eles estavam: amor a nossa pátria, amor aos nossos pais e amor à paz.

Jürgen: A gente teve a possibilidade de viver nos dois sistemas, e o capitalismo também não parece ser o final, porque os problemas sociais tendem a ficar cada vez piores. Mesmo vivendo na Alemanha, onde ainda há uma boa seguridade social.

Material suplementar
Bibliografia:
BABO, Alexandre. República Democrática Alemã. Sociedade Avançada. Lisboa: Editora Prelo, 1975.
MAUTNER, Yvonne Miriam Martha; ALVES, Cintia. Os kombinate e a construção pré-fabricada de moradias na Alemanha Oriental. São Paulo: Revista PÓS do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, 2015.
REIS, Thais Rezende. A ostalgia, o riso, e a carnavalização em am kürzeren ende der sonnenalee e goodbye, lenin!. Literatura e Autoritarismo - UFSM, v. 17, p. 5, 2011.
Notas
Notas
[1] Distintos são os argumentos sobre o que havia motivado a construção do Muro de Berlin, no ano de 1961. O governo da RDA chamava o muro de “parede de proteção antifascista” (antifaschistischer Schutzwall), alegando que a construção deu-se devido a uma questão econômica, em função do mercado de câmbio paralelo. Pois, até então, era permitido que homens e mulheres trabalhassem em Berlim Ocidental, porém, os salários que eram recebidos em marcos ocidentais passaram a gerar forte inflação na Zona de Ocupação Soviética, os marcos orientais equivaliam a um terço da moeda ocidental. Outra alegação considera que foi o acirramento da Guerra Fria e o expressivo fluxo de migrações no sentido leste-oeste o motivo da construção do muro. Devido à fuga em massa de um Estado, cujas características eram a centralização do poder de forma totalitária, e que empregava aparelhos censores e repressores no combate a toda e qualquer opinião ou postura divergente.
[2] Neste mesmo ano, em 11 de novembro, havia terminado a Primeira Guerra Mundial.
[3] A RDA não teve a isenção das dívidas de guerra e tampouco a ajuda financeira que a RFA recebeu do Plano Marshall; arcou ao mesmo tempo com o pagamento das reparações de guerra à União Soviética e com os custos de sua reconstrução.
[4] Um em cada três jovens da RDA fez parte da Juventude Livre Alemã. Criada em 1946, a Freie Deutsche Jugend – FDJ, era uma organização nacional com eleições para todos os níveis de representação de sua estrutura, também tinha cadeiras na Câmara do Povo (Volkskammer). No total, havia sessenta e uma vagas para serem ocupadas por jovens deputados com idade até trinta anos, de ambos os sexos. Foi a FDJ que elaborou a Lei da Juventude, em uma ampla campanha nacional, com propostas populares que depois de estudadas foram levadas em conjunto com o Partido Socialista Unificado da Alemanha e o Conselho de Estado.
[5] O Partido Socialista Unificado da Alemanha (Sozialistische Einheitspartei Deutschlands – SED), foi fundado em abril de 1946, surgiu na unificação do Partido Comunista da Alemanha (Kommunistische Partei Deutschlands – KPD), secretariado por Wilhelm Pieck; e do Partido Social Democrata da Alemanha (Sozialdemokratische Partei Deutschlands – SPD), secretariado por Otto Grotewohl.
[6] A FDGB também foi criada em 1946; era formada por 15 sindicatos, e contava com quase todos os trabalhadores da RDA. O número de filiados em 1986, por exemplo, era de 9,6 milhões, equivalente a 98% da força de trabalho do país. A Federação Alemã de Sindicatos Livres, a Juventude Livre Alemã, juntamente com a Sociedade pela Amizade Alemã-Soviética e o Partido Socialista Unificado da Alemanha, formavam, com outras organizações, tais como, Liga Democrática das Mulheres, Associação Cultural da RDA, Associação de Ajuda Mútua Camponesa, etc., a Frente Nacional da Alemanha Democrática, que contava ainda com os partidos Liberal Democrático, Nacional Democrático, Democrático dos Agricultores e com a União Democrata-Cristã. Esta era uma frente única de onde saiam os deputados eleitos à Câmara do Povo.
[7] Mark der Deutschen Notenbank (entre 1964 e 1967 o marco oriental foi oficialmente chamado de Marco do Banco Central Alemão).
[8] A construção de moradias pré-fabricadas na RDA, devido à destruição ocasionada pela guerra, teve para além do papel emergencial, um simbolismo importante na construção daquilo que seria uma nova sociedade socialista. A cadeia produtiva de habitações, do projeto à execução, sofreu um forte processo de estatização e centralização, alinhado à política social praticada ao longo dos governos de Ulbricht e Honecker, nas décadas de 50, 60 e 70. Duramente criticada por sua qualidade e rusticidade formal e material, a quantidade de moradias produzida pelos “combos da construção de moradia” (Wohnungsbaukombinate), mesmo com escassa base de recursos materiais disponíveis, substituiu com ganho de qualidade o padrão habitacional envelhecido e insalubre que restara do entre-guerras. As habitações ganharam banheiro interno, aquecimento central e montaram-se linhas de acesso direto ao transporte coletivo. Tanto no setor ocidental, quanto no oriental, a locação de habitações foi uma saída para a falta de moradia, sendo que na Berlin Oriental, o aluguel foi fortemente subsidiado; seu valor em centavos não ultrapassou um marco oriental por m² durante todo o período de existência da RDA.
[9] As bandas Puhdys, City, Silly, Electra, Stern-Combo Meisen são bandas que a partir dos anos de 1960 foram formadas e atuavam na RDA.



Fonte: Fotografia cedida pelo casal.



Fonte: Fotografia cedida pelo casal.



Fonte: Fotografia cedida pelo casal.



Fonte: Fotografia cedida pelo casal.



Fonte: Fotografia cedida pelo casal.



Fonte: Fotografia cedida pelo casal.
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