Artigos
Recepção: 18 Maio 2016
Aprovação: 21 Setembro 2016
DOI: https://doi.org/http://dx.doi.org/10.5965/2175180308192016236
Resumo: O presente artigo consiste numa reflexão acerca da memória, de suas tensões com a história e das relações de ambas, em suas especificidades e interdependências, com a noção de regimes de historicidade do historiador francês François Hartog. Seu diálogo com as categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativa do historiador alemão Reinhart Koselleck permite perceber como modos distintos de articulação entre passado, presente e futuro influenciam enormemente nas dinâmicas de funcionamento da memória, gerando efeitos nas experiências dos sujeitos históricos no tempo.
Palavras-chave: Memória, Historiografia, Regimes de Historicidade.
Abstract: The present article consists of a reflection on memory, its tensions with history and their relations, in their specificities and interdependencies, with the notions of historicity regimes of the French historian François Hartog. His dialogue with the German historian Reinhart Koselleck's space of experience and horizon of expectation makes it possible to see how distinct modes of articulation between past, present and future greatly influence the dynamics of memory functioning, generating effects on the experiences of historical subjects in time.
Keywords: Memory, Historiography, Regimes of Historicity.
Para citar este artigo:
MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. O cotidiano, os “regimes de historicidade” e a memória. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 19, p. 236 - 253. set./dez. 2016.
I) Introdução
Uma das muitas facetas da memória é a busca de nexos entre o passado e o presente, do fortalecimento da noção de continuidade que permite a sensação de estar ligado, de pertencimento. Uma continuidade necessária ao ordenamento dos acontecimentos em uma vida para que ela alcance o sentido de ter sido vivida de uma forma e não de outra. Assim, as circunstâncias em que se vive no presente implicam na constante modelação e remodelação da memória. Em outras palavras, significa dizer que a conjuntura do presente e, nela, a posição ocupada por pessoas ou grupos, pode ser favorável a algumas lembranças enquanto outras são esquecidas, provocando as nuances que caracterizam a memória como um fenômeno dinâmico e fluido.
Nessa perspectiva, a reflexão que ora se apresenta enfatiza os diversos sentidos atribuídos à memória através dos tempos: uma discussão teórica e conceitual motivada pela necessidade de compreensão dos atuais usos que a história vem fazendo da memória. Usos esses que têm suscitado diversas questões relacionadas, especialmente, à intensa proliferação de histórias construídas a partir das memórias de indivíduos e grupos específicos – historicamente marginalizados – que constroem narrativas sobre sua própria história. Tais narrativas apontam para uma série de concorrências e tensões, observadas em campos circunscritos das relações sociais, os pequenos territórios da vida cotidiana. Muitas dessas novas questões tornaram-se possíveis a partir de uma intensa reflexão acerca da memória, empreendida por diversos campos das ciências sociais. Tais estudos têm se mostrado profícuos na análise de temas intrínsecos ao debate sobre a dimensão das generalidades e singularidades que caracterizam a memória.
II) “O conceito de memória é crucial”
Toda e qualquer reflexão a respeito da memória e de suas utilizações torna imprescindível uma discussão sobre suas relações com o tempo, cultura e com a história. Relações marcadas tanto por seu caráter conflituoso quanto por seu entrelaçamento e interdependência. Nesse sentido, é emblemático que segundo a mitologia grega, Clio, musa da história, seja filha da memória e do tempo. A memória em suas relações com a história se constitui, desse modo, como o lugar de onde nasce a história. A memória, como mãe, proporciona o alimento que garante a sobrevivência de sua filha: a história. Raciocínio que, se continuado, nos conduz ao ponto no qual, como no desenvolvimento do ciclo da vida, ocorre uma inversão dos papéis, quando a mãe, a memória, já incapaz de lembrar-se com clareza, precisa do alimento oferecido por sua filha: a história.
Uma reflexão sobre a metáfora criada a partir do mito nos leva a compreender a história e a memória como categorias distintas e conflitantes, porém entrelaçadas através de uma relação de diferença e de uma “relação de relação” caracterizada ora pelo retraimento da memória, ora por seu transbordamento, mas nunca por seu desaparecimento. O movimento da memória e, com ele, a metamorfose de seus usos e significações advém dos diferentes modos de se conceber e sentir o tempo, da relação que nele se estabelece entre passado, presente e futuro, cujo sentido pode ser compreendido pelo pensamento de Santo Agostinho:
Não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. (AGOSTINHO, 2002, p.348)
Pensar os significados do tempo nos diversos momentos da experiência da humanidade é pensar nos diferentes significados atribuídos à memória. O historiador francês François Hartog, em diálogo com o historiador alemão Reinhart Koselleck, elabora uma argumentação sobre o tempo que encontra como pano de fundo as reflexões de Santo Agostinho. Tal argumentação consiste em pensar a experiência do tempo apenas sendo possível por meio da consideração do entrelaçamento entre passado e futuro; recordação e esperança. Para Koselleck, as categorias genéricas experiência e expectativa apresentam-se ainda mais adequadas, pois “a expectativa abarca mais que a esperança e a experiência é mais profunda que a recordação”.
(...) a coordenação entre experiência e expectativa deslocou-se e modificou-se no transcurso da história (...) o tempo histórico não é apenas uma palavra sem conteúdo, mas também uma grandeza que se modifica com a história, e cuja modificação pode ser deduzida da coordenação variável entre experiência e expectativa. (KOSELLECK, 2006, p.309)
As variações da configuração e do peso da memória na construção da história e na formação de identidades encontram-se diretamente relacionadas aos modos de se conceber e sentir o tempo. A partir desta concepção, Hartog identifica, através da experiência europeia, o que chama de três grandes regimes de historicidade: o antigo, o moderno e o cristão. Em cada um deles a relação entre memória e história assume configurações diferenciadas, nas quais se opera ora uma sobreposição, ora uma oposição e ora uma articulação entre os dois domínios, porém nunca o desaparecimento de nenhum deles.
Sabemos que o passado não é um objeto do qual podemos dispor para o esquecimento deliberado. Sabemos, também, que o passado dispõe de nós tanto quanto podemos dele dispor. Os regimes de historicidade não operam, evidentemente, de forma isolada, cada um a seu turno. Eles podem ser simultâneos, apresentando-se um em predominância aos outros em alguns momentos, ou em absoluta tensão entre eles. Em momentos em que a experiência predomina sobre a expectativa, podemos pensar na predominância de regimes de historicidades cujo espaço da experiência é mais alargado em função de continuidades do passado ainda fortemente presentes, havendo alguma projeção para o futuro, sem que com isso haja rompimento, ao menos aparente, com o passado. Nesses casos, o peso da memória, mais afetiva e ligada às tradições, parece sobrepor-se ao da história. Por outro lado, rupturas ou descontinuidades com o passado são observadas em momentos cujas atenções se voltam para o futuro. O horizonte de expectativas passa a predominar sobre o espaço de experiência, momento em que a narrativa histórica, metodologicamente formulada, parece ser a medida do regime de historicidade em predominância, indicando as formas de se sentir e conceber o tempo. Há ainda os momentos de brechas, nos quais a ordem do tempo é posta em questão. Neles, verifica-se uma certa desorientação, uma perda de sentido, conforme Hartog: “A história, escrevia François Furet em 1995, voltou a ser”.
Esse túnel no qual o homem entra na escuridão, sem saber aonde suas ações o conduzirão, incerto de seu destino, desprovido da segurança ilusória de uma ciência do que ele faz. Privado de Deus, o indivíduo democrático vê tremer em suas bases, no fim do século XX, a divindade história: angústia que ele vai ter de conjurar. A essa ameaça da incerteza se une, no seu espírito, o escândalo de um futuro fechado. (FURET, 1995 apud HARTOG, 2013, p.20)
As brechas no tempo seriam, então, causadas pelo descrédito da história enquanto orientadora das ações no presente, ao mesmo tempo em que as pessoas seriam incapazes de lembrar, talvez pela ausência de um pragmatismo funcional da lembrança, diante da incerteza de um tempo incompreendido.
Na obra “Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural”, Aleida Assmann coloca-se contra, principalmente, ao argumento de autores como Pierre Nora, que defendem o fim da memória no mundo contemporâneo. Para Assmann, a memória não desaparece, nunca é totalmente enquadrada pela história; ela assume novas formas de expressão culturalmente definidas. Ao proferir tal sentença, a autora critica concepções essencializadoras da memória, abrindo espaço para problematização e análise de seus mais diferentes formatos assumidos ao longo do tempo (ASSMANN, 2011).
As relações entre história e memória, incluindo todas as suas variáveis, estão, portanto, no cerne das análises dos modos como se dão as ações dos homens no tempo, ou seja, de como se constituem e se conformam, culturalmente, sua própria historicidade, seus próprios regimes de historicidade.
Assim, com base na expressão de Santo Agostinho: Nos tempora sumus, Hartog concebe o tempo não como uma categoria puramente exterior e sobre a qual não teríamos nenhuma ação, mas como:
[...] uma formulação erudita da experiência do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nosso próprio tempo. Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaço de trabalho e de pensamento. Ele dá ritmo à escrita do tempo, representa uma “ordem” à qual podemos aderir ou, ao contrário (e mais freqüentemente) da qual queremos escapar, procurando elaborar outra. (HARTOG, 1996, p.129)
Trata-se de uma categoria a partir da qual há a pretensão de organização do passado pelos sujeitos e – pondo em relevo a dinâmica de tal formulação – com os sujeitos no tempo. A contrapartida dessa duplicidade característica de ações se reflete na conformação de nossos modos de vivenciar e discorrer acerca de nosso próprio tempo.
III) História, memória e tempo
Da experiência temporal, segundo Hartog, podem derivar diferentes concepções e sentidos, sobretudo pela necessária relação que estabelece com distintos regimes de historicidade.
Nesse sentido, a história como mestra da vida – historia magistra vitae – apresenta-se, em grande medida, correspondente ao regime de historicidade antigo. Este caracterizado pela percepção de um tempo duradouro, no qual as experiências ocorriam subjacentes “A estrutura temporal da história passada [que] delimitava um espaço contínuo no qual acontecia toda a experimentação possível” (KOSELLECK, 2006, p.43). Neste universo, a natureza humana é entendida como estável; olhar para o passado é garantir a boa ação presente e futura. Podemos dizer que nele a memória – embora já passível de desconfianças – ocupava lugar de proeminência na escrita da história, então mais preocupada com o mesmo, o que não se altera, o recorrente. O horizonte de expectativas é muito restrito neste regime, pois os acontecimentos tomam formas – ao menos em sua aparência – pouco ou nada diferentes das mesmas formas antigas.
“A história científica do século XIX começou por estabelecer uma ruptura clara entre o passado e o presente”, sustenta François Hartog. A circularidade foi substituída por uma linearidade estendida rumo a um futuro que se abria como espaço do novo. Sintomático desta transformação é a verificação de que, a partir do acontecimento francês, também o conceito de revolução passa por mudança, deixando de significar o retorno a um ponto de origem e passando a ser compreendido como momento de ruptura. Verificou-se um salto na função do historiador e, simultaneamente, no estatuto da memória, pois da elaboração do exemplar, como feito pela história magistra, a história passou a ocupar-se pela busca do único, daquilo que não se repete mais. Sobre a distinção do regime de historicidade antigo em relação ao moderno, afirma Hartog:
Se ainda há uma lição da história, ela vem do futuro, e não mais do passado. Ela está em um futuro que dever vir a acontecer diferentemente do passado, enquanto a história magistra repousava sobre a idéia de que o futuro não repetia o passado, mas também nunca o excedia (movia-se do interior de um mesmo círculo, com as mesmas regras do jogo, a mesma Providência e os mesmos homens, partilhando a mesma natureza humana). (HARTOG, 1996, p.131)
A reclamação da sociedade burguesa pelo protagonismo da história impôs uma mudança da relação entre passado, presente e futuro. O passado deveria ser reconstituído pela história e não pela memória. A missão da história passou a ser a de deslegitimação da memória, do passado vivido, visando à construção de um mundo com novos parâmetros identitários, numa relação projetada do presente para o futuro e não mais do passado para o presente. Entretanto, segundo Hartog, “a passagem de um regime a outro conduz a períodos de cruzamentos [...] Um regime, enfim, jamais existe em estado puro.” (HARTOG, 1996, p.132).
Beatriz Sarlo, sem fazer referência à noção de regime de historicidade, mas claramente referindo-se ao momento em que Hartog observou essa “quebra de continuidades”, afirma que a:
[...] destruição da continuidade entre gerações não vem da “natureza” da experiência, mas da aceleração do tempo; não vem do choque que deixou emudecidos os soldados da Primeira Guerra Mundial, mas de experiências que já não se entendem e são mutuamente incomensuráveis: os jovens pertencem a uma dimensão do presente em que os conhecimentos e as crenças dos pais se revelam inúteis. (SARLO, 2007, p.29)
As teorias estruturalistas da modernidade e a intervenção capitalista moderna conduziram à crença em um tempo linear e progressivo, deixando pouco ou nenhum espaço para a plasticidade, pluralidade e subjetividade da memória, mas apenas para um suposto caráter científico, totalizante e unificador da história. Sarlo identifica neste momento a “morte do sujeito”, ou seja, um descrédito com relação ao testemunho oral, a lembrança, a memória, e prossegue:
Quando essa guinada do pensamento contemporâneo parecia completamente estabelecida, há duas décadas, produziu-se no campo dos estudos da memória e da memória coletiva um movimento de restauração da primazia desses sujeitos expulsos durante os anos anteriores. Abrindo um novo capítulo que poderia se chamar “O sujeito ressuscitado”. (SARLO, 2007, p.30)
O “horizonte de expectativas” do mundo moderno foi sendo atrofiado diante de uma série de acontecimentos, como as crises do capitalismo e os horrores das Guerras Mundiais, sobretudo do Holocausto. As teorias estruturalistas e pós-estruturalistas, se por um lado, há tempos, já preconizavam a impossibilidade de uma progressão rumo a um futuro triunfal, por outro, eram representativas deste. Assim, é no âmbito dos efeitos causados sobre a conformação do regime de historicidade então predominante que, para Hartog, foi sendo substituído pelo que chamou de hipertropia do tempo presente ou presentismo. Movimento caracterizado por uma perda de confiança no futuro e uma certa decepção com as ideologias conformadoras de Verdades globalizantes. Seria o presentismo um novo regime de historicidade? Estaríamos diante de uma nova forma de perceber e lidar com tempo? Essas são perguntas feitas pelo próprio Hartog.
No regime de historicidade moderno, a íntima ligação entre história e memória foi eclipsada, ou seja, passou para o segundo plano em função da ênfase metódica no documento escrito como forma privilegiada de “acesso ao real”. Movimento que parece sofrer um certo abrandamento no regime atual, caracterizado por um crescente investimento social nas “tarefas da memória”, expressão que pretende indicar a prática, nem sempre espontânea, de uma memória motivada por uma certa obrigação de lembrança, por um certo “dever de memória” (NORA, 1984). O lugar privilegiado do documento escrito no labor do historiador segue ileso, o que não se pode dizer sobre sua exclusividade enquanto fonte legítima capaz de informar sobre o passado. A virada subjetiva e o desenvolvimento tecnológico ocorridos nas últimas décadas, somados à forte tendência de valorização do testemunho afetaram significativamente as variações possíveis nas relações entre história e memória. As Guerras Mundiais, os genocídios, o Holocausto, as colonizações, enfim, os grandes traumas históricos deixados pelo século XX, silenciadores de uma considerável parcela da humanidade, contribuíram para fazer emergir, com força, a valorização da memória, de um certo “dever de memória”, afirmando, por exemplo, a história oral, bem com como seus suportes, como o audiovisual, e ainda o patrimônio enquanto expressão cultural de uma diversidade de grupos específicos, como fontes legítimas no fazer histórico; sugerindo assim um novo regime de historicidade?
IV) História: moderna arte da memória?
Paolo Rossi, em “A força das imagens e os lugares da memória”, apresenta uma denúncia sobre a ausência ou pouca importância atribuída ao estudo das antigas artes da memorização, chamadas pelo autor de “fósseis da investigação científica”. Ausência que geraria o desconhecimento de questões vitais acerca do passado, ocasionando, consequentemente, a existência de um “continuísmo historiográfico imaginário”. Ou seja, a ideia de uma ausência de rupturas em função da marginalização do discurso sobre as antigas artes da memorização.
O antigo regime de historicidade está marcado por um universo cultural absolutamente diverso. A predominância da ideia de um tempo estável, quase inerte, permite a ambição de absorção da totalidade do saber existente. Segundo Koselleck, até o século XVIII “quando uma transformação social ocorria, era de modo tão lento e em um prazo tão longo que os exemplos do passado continuavam a ser proveitosos” (KOSELLECK, 2006, p.43). Daí o interesse voltado para o desenvolvimento da arte de memorizar o maior número possível de informações através das técnicas de memorização – a mnemotécnica – dito por outros termos, da utilização da espacialização como método: ordenamento de imagens (símbolos) nos lugares da memória. Tratava-se de uma interiorização da coisa de modo que esta coisa fosse sempre lembrada através de uma ordenação.
Jonathan D. Spence dedicou-se à escrita de um texto biográfico cujo personagem é o missionário jesuíta Matteo Ricci que, em 1596, ensinou os chineses a construírem um palácio da memória. Spence observou que “o objetivo real das construções mentais era o de oferecer espaços para a armazenagem dos milhares de conceitos que constituem a soma do conhecimento humano”. (SPENCE, 1986, p.:20). Aqui, as antigas artes da memória estavam inseridas no regime de historicidade cristão que admitia como possível uma única ordenação das coisas e o domínio sobre a totalidade do conhecimento.
Paolo Rossi destaca em sua análise que o estudo dessas temáticas, a partir da mentalidade pós-iluminista, acabou fazendo com que tais questões parecessem “loucas aspirações”, “resquícios das trevas da Idade Média, “curiosidades e extravagâncias” (ROSSI, 2004, p.41). Na perspectiva do autor, a valorização do contexto histórico do funcionamento das antigas artes da memória é o melhor caminho para a compreensão daquele universo cultural tão diverso do nosso. As antigas artes da memória não podem ser reduzidas a técnicas mnemônicas. É isso também, mas não somente isso.
Para Patrick H. Hutton (1993), a antiga arte da memória não era apenas uma técnica, era um recurso para recuperar mundos perdidos, abrindo espaço para uma analogia que permite pensar a história com a moderna arte da memória. Argumento que analisado a partir da tensão atual entre memória e história torna-se digno de reflexão.
História e memória são domínios distintos que reclamam para si a verdade dos acontecimentos passados. Pierre Nora, em seu famoso artigo Entre mémoire et histoire: la problematique des liex, procura distinguir nitidamente tais domínios:
A memória é a vida [...]. A história é a construção sempre problemática e incompleta do que já não é. A memória é sempre um fenômeno atual, um vínculo vivido com o eterno presente: a história, uma representação do passado. Dado que é emocional e mágica, a memória só se acomoda àqueles detalhes que a confortam [...]. A história, enquanto operação intelectual e laica, apela à análise e ao discurso crítico [...] A memória é um absoluto e a história não conhece mais que um relativo [...] A história é a deslegitimação do passado vivido. (NORA, 1984, p.10)
Contudo, Nora argumenta que tal separação não deve ser tomada como dado absoluto. Muito pelo contrário: história e memória se articulam, alimentam-se mutuamente. Para o autor, no mundo contemporâneo, a balança entre história e memória tende para o lado da história que “conquista a memória para si”. “Esta conquista e erradicação da memória teve o efeito de uma revelação, como se um antigo laço de identidade tivesse sido quebrado e alguma coisa que experimentado tenha terminado – a equação entre memória e história” (NORA, 1984, p.8) .
O autor diagnostica o fim de uma relação íntima entre a história e a memória e o início de um período em que a história com sua “crítica destruidora da memória espontânea” a faz desaparecer. Desta forma, conclui: “fala-se tanto em memória porque ela não existe mais”. O que resta é aquilo que se chama de memória historicizada, que vem do exterior e é interiorizada como uma obrigação individual, pois não representa mais uma prática social. Ela se constitui como uma memória dever que consiste numa secreção voluntária de uma memória perdida que se fixa em lugares, lugares de memória.
A noção de lugares de memória posta em relevo por Nora, e grande parte das demais ideias enfatizadas pelo autor devem ser compreendidas a partir de sua intenção e do contexto da análise. A reflexão apresentada por Nora sobre a transformação histórica da relação entre memória e história tem como referência o contexto cultural francês, cuja característica naquele momento, conforme expressou, era de esfacelamento da identidade nacional e de sua contra face, a memória da França como nação. A reflexão de Nora representa uma crítica às novas realidades políticas e culturais trazidas pela proposta da União Européia e dos novos desafios da globalização e do multiculturalismo. Desse modo, quando Nora escreve que “a necessidade humana de continuidade e pertencimento gera a exteriorização de uma memória que não mais existe interiormente”, ele está referindo-se especificamente à memória social francesa, o que a nosso ver, não impede, mas exige cuidados maiores no estabelecimento de um diálogo com suas ideias. Procedimento que pode evitar análises equivocadas bem como apropriações infundadas.
No universo de outro regime de historicidade, ou seja, de um outro tempo, uma outra cultura, as antigas artes da memorização se ocupavam da interiorização e fixação de experiências e informações constantes e recorrentes em determinados lugares da memória. Diversamente, os lugares de memória apresentados por Nora parecem representar a materialização de um dever de memória que não se concretiza sem a presença de uma certa “vontade de memória”, esta geralmente ligada à necessidade de pertencimento que é inerente a homens e mulheres. “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos”, argumenta Jacques LeGoff (LE GOFF, 1986, p.476).
No contexto da sociedade contemporânea marcada pela produção e circulação de uma avalanche constante de informações efêmeras, a luta contra o esquecimento tornou-se um dever. O presente foi ampliado e hipertrofiado – diz Hartog –, daí a proliferação do culto ao passado marcado pelo interesse de tudo registrar. A memória está em todo lugar: nas minisséries televisivas, na proliferação de biografias, nos museus, nas casas tombadas como patrimônio histórico, nos álbuns fotográficos e nas recordações materiais de viagem. Uma memória certamente atravessada pela história – como afirmou Nora – porém, igualmente marcada pela motivação da memória ou por uma vontade de memória. Seria esta a história a ser considerada a moderna arte da memória? Pensemos nisso.
V) Concorrências e tensões entre memória e história
O crescente “investimento social na lembrança”, fenômeno presenciado na sociedade contemporânea, torna necessária uma reflexão teórica sobre as interdependências e distinções entre história e memória. É o que pretende Beatriz Sarlo ao criticar a atual supervalorização do testemunho em primeira pessoa. A autora apresenta uma crítica às reconstruções feitas somente a partir da memória, argumentando que todas as fontes possíveis devem ser trabalhadas, “não só os testemunhos mas também as fontes escritas são indispensáveis para a compreensão do movimento das idéias na história” (MOTA, 2009).
Nas últimas décadas, a história se aproximou da memória e aprendeu a interrogá-la; a expansão das ‘histórias orais’ e das ‘micro-histórias’ é suficiente para provar que esse tipo de testemunho obteve uma acolhida tanto acadêmica quanto midiática. (SARLO, 2007, p. 43)
Vimos, anteriormente, as afirmações de Nora acerca de uma classificação binária das categorias história e memória. Mesmo admitindo não ser uma separação absoluta, “história e memória se articulam, alimentam-se mutuamente”, o autor defende uma sobreposição da história sobre a memória, “[...] a memória não existe mais” (NORA, 1984, p. 14).
Nesse sentido, a análise de Sarlo se contrapõe ao pensamento de Nora, ao defender que “do meio século que vai do fim da Segunda Guerra Mundial até o presente, a memória ganhou um estatuto irrefutável” (SARLO, 2007, p.44). A autora propõe uma crítica à cultura da memória e uma problematização da noção do estatuto de verdade ou de uma verdade menos questionável atribuída ao testemunho. O “dever de memória”, citado por Nora como sintoma do término de uma relação íntima da memória com a história, para Sarlo “induz uma relação afetiva, moral, com o passado, pouco compatível com o distanciamento e a busca de inteligibilidade que são o ofício do historiador” (SARLO, 2007, p.43).
A perspectiva de Pierre Nora e de Beatriz Sarlo diverge em vários aspectos. Nora se posiciona em defesa de uma memória supostamente espontânea e absoluta, enquanto Sarlo critica as utilizações da memória que negligenciem seu caráter discursivo. Para a autora:
Os discursos da memória, tão impregnados de ideologias como os da história, não se submetem, como os da disciplina histórica, a um controle que ocorra numa esfera pública separada da subjetividade. A memória tem tanto interesse no presente quanto a história ou a arte, mas de modo distinto. Mesmo nesses anos, quando já se exerceu até as últimas conseqüências a critica da idéia de verdade, as narrações de memória parecem oferecer uma autenticidade da qual estamos acostumados a desconfiar radicalmente. (SARLO, 2007, p.67)
É relevante registrar que Sarlo não pretende deslegitimar a memória, opondo-se ao testemunho. Muito menos pretende atribuir à história o que nega pertencer à memória: o domínio sobre uma Verdade mais legítima que outras possíveis. Diz a autora:
É certo que a memória pode ser um impulso moral da história e também uma de suas fontes, mas esses dois traços não suportam a exigência de uma verdade mais indiscutível que aquelas que é possível construir com – e a partir de – outros discursos. Não se deve basear na memória uma epistemologia ingênua cujas pretensões seriam rejeitadas e qualquer outro caso. Não há equivalência entre o direito de lembrar e a afirmação de uma verdade da lembrança; tampouco o dever de memória obriga a aceitar essa equivalência. (SARLO, 2007, p.:44)
O processo de funcionamento da memória consiste em fazer emergir os dados do passado que se misturam aos dados do presente imediato, significando – como aponta Ecléa Bosi – que “a memória permite a relação do corpo presente com o passado, e, ao mesmo tempo interfere no processo atual das representações” (BOSI, 1994, p.46-47). Assim, devemos entender que o registro seletivo da memória se faz a partir do “chão de uma tradição” ou cultura, própria de um grupo ou classe e suas variações indicam, além das formas individuais de apropriação dessa cultura, o desenvolvimento processual da “transformação na continuidade”.
VI) À guisa de conclusão
As ideias postas aqui em relevo buscam contribuir com a necessária reflexão em torno de um tema crucial para a historiografia: a questão da memória e suas relações com o tempo.
A partir do conceito de regime de historicidade proposto pelo historiador francês François Hartog, em diálogo com as noções de campo de experiência e horizonte de expectativas do historiador alemão Reinhart Koselleck, vimos como modos distintos de articulação das categorias de passado, presente e futuro influenciam enormemente na dinâmica de funcionamento da memória. A familiarização com tais conceitos é imprescindível para análises que pretendam fugir dos perigos do anacronismo na história, ou seja, do equívoco da investigação de universos culturais a partir de conceitos de outros universos culturais.
Nessa perspectiva, entendemos as antigas artes da memória como uma tradição interrompida e desconectada do universo cultural do ocidente moderno; no entanto, “uma ‘retórica rígida’ constituída no contexto da difusão da antiga arte da memória percorreu caminhos subterrâneos, condicionando a lógica nova [...] de alguns grandes pensadores modernos” – destaca Paolo Rossi (ROSSI, 2004, p. :25). O autor analisa o processo – na modernidade – de abandono das imagens nos lugares e constata a permanência da ideia de que os símbolos e as imagens se constituem em ajudas da memória.
As imagens e os símbolos também perpassam o pensamento de Pierre Nora ao refletir sobre a constituição de lugares de memória, imagens de diversas tipologias em que se depositam os restos de uma memória não mais internalizada. A necessidade humana de continuidade e pertencimento geram a exteriorização de uma memória que não existe mais internamente. Esta exteriorização, segundo Nora, não seria espontânea, mas, praticada como um dever. Um dever de memória que, de acordo com Sarlo, disseminou-se após a Segunda Guerra Mundial gerando uma supervalorização do testemunho, que passou a requerer para si o estatuto de uma verdade irrefutável. A memória e a história passaram a reivindicar o passado. A autora apresenta uma série de argumentos que apontam a história como categoria mais confiável para tal fim.
Assim, a partir desses esclarecimentos acerca do conceito de memória, da dinâmica de seu funcionamento e de suas imbricações com a história, é possível analisar aspectos socioculturais de grupos específicos. Isto a partir da valorização de suas vozes, acompanhada de um esforço no sentido da aplicação da crítica teórico-metodológica da história, pois “se o que a memória procura é recuperar um lugar perdido ou um tempo passado, seria alheia a seu movimento a deriva que a afastaria desse centro utópico” (SARLO, 2007, p.42). Na infrutífera disputa pela verdade entre a memória e a história, optamos por concentrar nossos esforços na discursividade, na proliferação de vozes da história e da memória e na articulação dessas duas dimensões.
Referências
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