Resumo: Este artigo – com base em documentação do Quai d’Orsay e do Élysée na França e do Itamaraty e do Arquivo de Getúlio Vargas no Brasil – reconstitui as premissas da visita oficial do general de Gaulle ao Brasil em outubro de 1964. Acentua as implicações diplomáticas e estratégicas bilaterais e globais da visita à França e ao Brasil. E pondera sobre as relações dos presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart com a França e com o general de Gaulle.
Palavras-chave:GaulleGaulle, Charles de Charles de, - 1890-1970 - 1890-1970, Brasil - Relações Exteriores - França (1964) Brasil - Relações Exteriores - França (1964).
Abstract: This article - based on the documentation Quai d'Orsay and the Élysée in France and the Foreign Ministry and the Getúlio Vargas in Brazil Archive - reconstructs the premises of the official visit of General de Gaulle to Brazil in October 1964. Emphasizes bilateral and global diplomatic and strategic implications of the visit to France and Brazil. And ponders the relationship of presidents Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros and João Goulart with France and with General de Gaulle.
Keywords: Gaulle, Charles de, - 1890-1970, Brazil - Foreign Affairs - France (1964).
Artigos
A presença do general (ou notícias da visita do presidente Charles de Gaulle ao Brasil em outubro de 1964)
The presence of the general Or notes on the former president Charles de Gaulle's visit to Brazil in October 1964
Recepção: 08 Julho 2016
Aprovação: 16 Novembro 2016
SILVA, Daniel Afonso da. A presença do general (ou notícias da visita do presidente Charles de Gaulle ao Brasil em outubro de 1964). Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 19, p. 307 - 337. set./dez. 2016.
Le Brésil ne pourra être sauvé qu’après l’extirpation de la vie politique de la corruption dont les racines prolongent dans le passé jusqu’aux origines du « getulisme ».
Nota diplomática do Quai d’Orsay para a preparação da visita do general de Gaulle ao Brasil em outubro de 1964. Paris, julho de 1964.
Foram de júbilo aqueles dias 13, 14 e 15 de outubro de 1964 em que o general de Gaulle deu de passar pelo Brasil – Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo. Multidões invadiram ruas e praças para avistar seu cortejo. Os mais emotivos não contiveram o chorar. O cais da Guanabara foi onde tudo começou. O homem do 18 juin, herói da France libre, vinha do mar. Tinha saído do Paraguai no domingo, 11 de outubro, a bordo de seu cruzador Colbert. Era esperado no Rio de Janeiro pelas 11h da manhã da terça-feira, 13 de outubro. Autoridades marinheiras monitoravam sua chegada por instrumentos de comunicação e radar. Sabiam que ele não tardaria a chegar. O tempo era instável. Chuva forte com vento era prevista. Mas, pelo momento, somente neblina. Embarcações brasileiras, desde cedo, acompanhavam a nau francesa do general. Quando apontaram na Guanabara sabia-se que sua chegada estava por pouco. As forças foram todas postas em formação. Coronéis e generais foram autorizados a ir à praia contemplar. E, com certeza, foi-lhes inesquecível ver o general aportar. O presidente brasileiro, o marechal Castelo Branco, experiente e disciplinado militar, cumpriu sem tensão o protocolo. Aguardou circunspecto em uma tenda preparada especialmente para a ocasião. Foi o general francês quem primeiramente o saudou com a continência. De sua parte, o marechal anuiu. Diferente do general, o marechal trajava civil. Diferente do marechal, o general portava boné. O ritual de começo previa passar a guarda, fazer discurso, flanar pela antiga capital brasileira, eterna “cidade maravilhosa”, em carro aberto. Assim foi feito. Palavras de afeição emanaram das duas delegações. Do marechal brasileiro vieram moções de boas-vindas. Do general francês, gestos em retribuição. O desfile iniciou na Av. Rio Branco. No carro aberto com o general foram o marechal e o coronel, chefe da Casa Militar, Ernesto Geisel. Foi aí que o homem de estado francês constatou a força de seu prestígio também em terras brasileiras. Entre aplausos e acenos ele percebia o carinho da gente desse país que seus compatriotas haviam imortalizado ora como “terra de contrastes” ora como “tristes trópicos”.[1]
Após deixar flores no monumento aos mortos na segunda guerra, ele partiria para Brasília. E, a essa altura, por certo, já tinha incorporado o “Sinta-se Gen. de Gaulle como se estivesse em sua casa” indicado no editorial da Folha de S. Paulo daquele dia.[2]
Diferenças entre o Rio e Brasília eram muito visíveis. Primeiro na arquitetura. Depois no descampado. Mas o entusiasmo do público seguia similar. Multidões exibiam cartazes com dizeres de afeto à França e ao general. Mas o primeiro movimento foi o momento dos batedores que conduziram a comitiva do líder francês ao Congresso Nacional, à Universidade de Brasília, ao Palácio do Planalto. A franca totalidade da classe política brasileira em atividade se fez notar nesse dia histórico carregado de simbologias. No jantar de honra ofertado pela presidência Castelo Branco, ninguém do oficialato majoritário desde o último abril-maio daquele ano de 1964 esteve ausente. O general Artur da Costa e Silva, por exemplo, esteve lá. Orlando Geisel, chefe da primeira região militar, também. Ministros de vulto e importância como Vasco Leitão da Cunha e Luiz Vianna Filho também. Todos acompanhados de suas mulheres ou consortes. E entre essas mulheres o assunto da noite não seria outro senão a imponência e a dignidade de dona Yvonne de Gaulle que iria estampar os jornais e revistas dos dias e meses seguintes.[3]
Na quarta-feira, 14 de outubro, era possível ler chamadas como “De Gaulle chega hoje em SP” em todos os diários paulistas.[4] O governador Adhemar de Barros havia promovido esse momento com empenho e antecedência. A expectativa era altíssima. Vista a comoção no Rio e em Brasília, São Paulo, para ele, não poderia deixar por menos.
Após seu esperado discurso no Congresso Nacional, o general, agora também doutor honoris causa pela recém-criada Universidade de Brasília, partiu, então, para São Paulo, onde seria recebido na mais intensa emoção. Batedores e cavalaria seguiam o desfie em carro aberto pelas principais ruas do centro da cidade. Chuva de papel caía dos edifícios. O governador demonstrava e percebia aí também o seu prestígio. Funcionários públicos foram reunidos para ver o cortejo passar. Empresários e notáveis foram convidados ao encontro de honra promovido no Jockey Club.[5] Membros da comunidade francesa no Brasil também foram consultados. O general depois falaria a eles em separado. De volta ao Rio de Janeiro, após 22 horas em São Paulo, o líder francês iria, enfim, confabular, em pessoa, com seus enviados nessas terras tão distantes. Iria à Maison de France na Gávea. Mas também falaria aos colegas de caserna na Escola Superior de Guerra antes de retornar ao velho mundo, à França com seus eternos problemas.
Essa passagem do general pelo Brasil foi sua primeira e única. Mas sua presença já se fazia notar havia tempos.
Ao menos desde os anos de 1940, com a resistência liderada por de Gaulle frente à ocupação nazista da França, que o nome do futuro general passava ao conhecimento e à preocupação dos brasileiros.
Primeiro e formalmente, a partir da tentativa de instauração de Comités de Gaulle pelo país desde 1941 (vide seção De volta ao 18 juin). Depois e paralelamente, quando da gestão da situação dos enviados brasileiros em Vichy, e notadamente mediante a atuação do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (vide seção Caminhos de Argel). Em seguida e oficialmente, quando da libertação de Paris em 1944 e da conseguinte correspondência entre de Gaulle e o presidente Getúlio Vargas para o estreitamento da relação entre os dois países (vide seção Destinos recompostos). Em seguida e não desimportante, com a carta-saudação do presidente Juscelino Kubitschek ao general de Gaulle em menção ao retorno do francês à vida pública e política de seu país em 1958 (vide seção Je vous ai compris). Doravante, o presidente-general francês já dispunha de notoriedade mundial. Era muito reconhecido como o responsável pela libertação da França. Era claramente entendido como o homem do 18 juin, o herói da France libre. Tornara-se, portanto, natural que, na condição de presidente de seu país, fosse enfaticamente convidado por outros chefes de estado. No caso do Brasil, o convite mais enfático viria do presidente João Goulart (vide seção Fazer a América). Uma vez aceito o convite, representações diplomáticas dos dois países iniciariam um minucioso processo de preparação da viagem (vide seções Partir ao Brasil e Razões para partir) e recepção (vide seções O momento brasileiro e A presença do general) do general em terras brasileiras.
Essa viagem do general, como amplamente sabido, não dispunha de maiores pretensões além de restabelecer contatos eventualmente rompidos e esmaecidos pelos anos de guerra. O Brasil, na impressão da diplomacia francesa e do próprio general, era um país distante e fora do eixo estratégico dos franceses. Imerso no regime militar, o Brasil, nesse sentido, ficaria ainda mais distante. Especialmente no plano político. Não ao acaso, após essa visita do general em 1964, algum interesse político francês pelo Brasil – uma vez que interesses econômicos e culturais sempre existiram – seria sinalizado apenas a partir fundação da nova república com a eleição do presidente Tancredo Neves em 1985.
Dessa maneira, os pontos de partida e chegada do que segue são os dias de júbilo da presença do general de Gaulle no Brasil em 13, 14 e 15 de outubro de 1964. Seu esforço essencial consiste em reconstituir – com base em documentação, em grande medida inédita, disposta no Quai d’Orsay e no Élysée na França e no Itamaraty e no Arquivo de Getúlio Vargas no Brasil – algumas das premissas dessa presença. Seu interesse fundamental, recompor os fios e os rastros desse momento.
No dia 17 de janeiro de 1941, o capitão Felisberto Batista Teixeira reportava ao seu superior, Filinto Müller, chefe da Delegacia Especial de Segurança Política e Social do presidente Getúlio Vargas, que um certo Alberto Guérin, presidente do Comité de Gaulle em Buenos Aires e editor do jornal France libre na Argentina, estava hospedado no Copacabana Palace havia quatro dias. Dizia ainda que Guérin havia saído da capital argentina com passaporte francês e entrado no Brasil com documentos argentinos. Que tinha preferido a companhia Panair às concorrentes. Que fora apontado para ser recebido pelo enviado do primeiro-ministro Winston Churchill no Rio de Janeiro. Que tivera, antes, porém, uma “longa e demorada” conversa com André Corbin, embaixador da França em Londres. E que, no entremeio daquela conversa, esse embaixador francês teria sido notificado a retornar às pressas a Marselha a mando do marechal Pétain em Vichy.[6]
Guérin continuaria no Rio de Janeiro e, em seguida, seria recebido na embaixada do Reino Unido. Nesse encontro, ele teria sido informado da disposição dos diplomatas britânicos em apoiar “moralmente e financeiramente” a organização de um Comité de Gaulle no Brasil.[7]
Essa seria, certamente, a primeira menção ao nome de Gaulle, referida a Charles de Gaulle e futuro general de Gaulle, entre os brasileiros. E as razões decorrem de diversos significados.
Diante da capitulação do marechal Pétain em função do avanço das tropas de Hitler nos meses que seguiram a declaração de guerra entre França e Alemanha após a invasão alemã da Polônia, Charles de Gaulle, subsecretário de estado, recusaria a derrota e no dia 16 de junho de 1940 partiria para Londres, em exílio voluntário, como diversas outras personalidades políticas, militares e civis francesas. Seu contato franco e direto com o primeiro-ministro britânico lançaria as bases da resistência ao governo de Pétain e ao regime de Hitler (Beevor, 2012). No dia 18 de junho de 1940, Charles de Gaulle, pelas ondas da BBC de Londres, faria seu apelo conclamando os franceses a segui-lo. Seu argumento reforçava que a última palavra sobre a guerra ainda não havia sido dada e que a saída dos franceses era resistir.[8] Dez dias depois, o governo britânico reconheceria Charles de Gaulle como o representante de todos os franceses “livres” e contrários ao regime nazista implantado na França. Doravante, comitês de solidariedade à France libre defendida por de Gaulle foram sendo organizados em todas as partes do mundo e também nas Américas (Crémieux-Brilhac, 2014). Todos os países do México à Patagônia disporiam imediatamente de comitês nesse combate. O início de todos seria ruidoso. Das exceções, o comitê argentino.
Buenos Aires servia, havia anos, de base para Albert Guérin. Albert Guérin era militar, subtenente, cavaleiro da Legião de honra francesa. Após combater na primeira guerra mundial, ele seria alçado à presidência da Câmara de Comércio Franco-Argentina. Nessa condição, ele iniciaria a publicação do importante periódico La Voix de l’Argentine.
Desde o início do segundo conflito mundial, Guérin seguia apreensivo em relação às determinações francesas. Após a capitulação do marechal Pétain e a investida resistente de de Gaulle, ele seguiu de Gaulle e no dia 3 de julho de 1940 fundou, na capital argentina, o Comité de Gaulle pour la libération de la France.
Doze dias depois, de Londres, de Gaulle reconheceria oficialmente esse Comité fundado e presidido por Guérin. A partir de então Guérin passou a ser o primeiro porta-voz oficial do movimento na região. Seu La Voix de l’Argentine passaria a publicar o boletim La France Libre. Sua tiragem inicial de 30.000 exemplares passaria rapidamente a 70.000 até chegar a 110.000. Seu periódico e seus esforços serviriam decisivamente para a difusão das diretrizes da resistência gaullista nas Américas. Em menos de um ano, seu Comité em Buenos Aires coordenava o trabalho de outros 48 espalhados por toda a Argentina e contaria com mais de 30.000 aderentes (Anfrol, 2014, p. 38).
No dia 15 de agosto de 1940 – e, portanto, menos de dois meses do apelo do 18 juin –, de Gaulle faria um discurso, de Londres, endereçado a todos os latino-americanos no qual diria que
en Amérique latine, tant de gens entendent la langue française, tant de gens sentent ce qui se passe dans l’âme française, tant de gens comprennent l’importance mondiale du destin de la France, qu’il est facile pour le soldat que je suis de leur parler à coeur ouvert. (...) Ceux qui, dans l’Amérique latine, aiment la France et croient que la France est nécesaire à l’ordre du monde, ne peuvent souhaiter pour la France autre chose que la victoire.[9]
Esse discurso inflamado e repleto, aos franceses “dissidentes”, de verdade, por certo, também tocou os franceses e simpatizantes da causa francesa residentes no Brasil. Muitos deles gostariam de apoiar mais diretamente. Sentir-se representado. Fazer-se parte. Participar. Mas a credibilidade de seus movimentos era insuficiente. Essa seria a razão da vinda de Albert Guérin ao Brasil e ao Rio de Janeiro.
Após uma primeira reunião sobre o assunto, ocorrida na embaixada do Reino Unido com a presença de franceses e britânicos – e dos espiões brasileiros infiltrados –, foi decidido que Jean Lacombe deveria presidir o Comité brasileiro. Jean Lacombe era o diretor da agência Reuters no Rio de Janeiro e visto como homem sério e cumpridor. Mas, no avançar da conversa, surgiu a reflexão sobre a posição do governo brasileiro. Naqueles inícios de 1941, a presidência Vargas defendia a sua “neutralidade” diante do conflito mundial. Uma associação de apoio explícito à causa francesa poderia infringir e violar essa posição brasileira. Essa questão sugeriu a suspensão da reunião que seria retomada oportunamente durante a permanência de Guérin no país.[10]
No aguardo da próxima reunião, Albert Guérin se encontraria com o advogado francês Henry Torres. Henry Torres seguia uma carreira de relativo sucesso financeiro no Brasil e tinha acesso à imprensa brasileira. Após a eclosão da guerra e da tomada de posição de de Gaulle, ele faria publicar no Correio Paulistano, a 7 de julho de 1940, menos de um mês após o apelo do 18 juin, que
se deve intensificar a propaganda gaullista no Brasil e congregar em torno desse movimento todos os elementos democráticos e antifascistas, pois a causa defendida pelos ingleses e franceses livres é a causa da democracia e esta está ameaçada no mundo inteiro, sendo necessário convocar todas as vontades para salvá-la da investida totalitária.[11]
E seu encontro com Albert Guérin ia justamente nesse sentido. Ele propunha engajar todo o seu entusiasmo no combate e se dizia pronto a apoiar formalmente aquela organização da resistência.
Não tardaria, porquanto, para Albert Guérin ser convocado para uma nova reunião no círculo britânico-francês no Rio de Janeiro. Dessa feita, teria ficado claro aos presentes que a posição brasileira poderia dificultar a atuação de Jean Lacombe à frente do Comité. Como jornalista, ele era certamente monitorado pelos homens do presidente Getúlio Vargas – como, em verdade, tudo e todos o eram. Mais procedente seria a presidência de alguém mais discreto para promover o movimento de maneira mais forte. Nesse entendimento que se chegou à designação do arquiteto Auguste Rendu para a função.[12]
O relato do capitão Felisberto Batista Teixeira não passaria despercebido aos expedientes do tenente Filinto Müller, nem tampouco ficaria ocioso em seu departamento policial. O assunto foi comunicado aos seus superiores, que, certamente, fizeram saber ao presidente brasileiro. A ordem expressa de todos foi para se continuar monitorando.
Depois das conversações de janeiro, Albert Guérin teria retornado à Argentina. Auguste Rendu teria assumido o comitê no Rio. E os britânicos seguiram apoiando discretamente a France Libre no Brasil.
O movimento fora inicialmente liderado por Jean Guerriot. Mas Guerriot era tido por demasiado discreto. Sob a presidência Rendu, tudo começaria a mudar, e rápido. Afinal ele acabara de ser designado pelos homens de de Gaulle e Churchill na região. Sua primeira ação foi oficializar as atividades do comitê. Nesse empenho, ele instalaria o comitê na Praça 15 de Novembro; mais precisamente no edifício número 10.
Informado da movimentação no dia 26 de junho daquele ano de 1941, Filinto Müller, com evidente aval do presidente Getúlio Vargas, determinou ao capitão Felisberto que destituísse o comitê e prendesse seus membros.
Ao capitão, restou fazer cumprir.
Acompanhado de seus homens, o subordinado da delegacia especial de segurança política e social teria intimado Auguste Rendu e feito busca em todas as salas do comitê. Sua justificativa era simplesmente que aquela atividade estaria “contrariando a legislação brasileira”; sem contar que também demais inquilinos do prédio não estariam de acordo com aquelas atividades.
Ao dar entrada com Auguste Rendu na prisão, o capitão Felisberto teria sido abordado por altos comissários britânicos no Rio de Janeiro. Os enviados do primeiro-ministro Winston Churchill não simplesmente vinham livrar o francês, senão que lembrar aos funcionários do presidente Getúlio Vargas que as dependências do prédio onde funcionava o Comitê de Gaulle pertenciam à monarquia inglesa. Rendu seria solto. Mas as atividades do comitê ficariam suspensas. Ao menos aos olhos dos homens de Filinto Müller.[13]
Quando os Estados Unidos do presidente Roosevelt decidem entrar na guerra após os ataques a Pearl Harbor, o destino das posições brasileiras no conflito ficaria menos “neutro”. Nesses idos de 1942-1943, de Gaulle já era de Gaulle. Mesmo que ainda não general.
No dia 3 de junho de 1943 seria criado em Argel, sob a impulsão de de Gaulle, o Comité français de libération nationale – CFLN. No dia 26 de agosto do mesmo ano, os três grandes – Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética – reconheceriam o comitê. Todos os países aliados fariam o mesmo. O presidente Getúlio Vargas enviaria a Argel o já experiente ministro Vasco Leitão Cunha. Mas essa decisão seria carregada de outros significados.
No dia 29 de dezembro de 1942, o enviado brasileiro em Paris, o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, completaria 20 anos no cargo. Ele deveria ter se aposentado no ano anterior, em 1941, quando completara 65 anos. Mas a situação política impedira. No dia 10 de junho de 1940, por demanda do governo de Pétain, ele saíra da capital no sentido Indre-et-Loire e depois Bordeaux até encontrar Vichy em inícios de julho; e, de Vichy, ele servia o Brasil e servia o presidente Getúlio Vargas que decidira ficar “neutro” e manter relações “legais” com o novo governo francês. O avançar da guerra fez diminuir as condições de segurança mesmo aos franceses colaboradores do regime alemão. O medo que assombrava as casas passou às chancelarias. No dia 12 de novembro de 1942, os soldados de Hitler invadiram o escritório brasileiro em Vichy. Todos os subordinados do embaixador Souza Dantas sofreriam perquisição. O Führer acabava, portanto, de bater às portas do Brasil. Olga Benário havia sido extraditada e morta, mas a desconfiança dos alemães em relação aos brasileiros progredia. Após a batida alemã do dia 12 de novembro de 1942, o embaixador Souza Dantas foi convocado a deixar Vichy. Mas as condições eram adversas. A gente do Rio de Janeiro talvez estivesse muito distante física e mentalmente dos perigos da drôle de guerre. Conseguintemente ficava nada constrangida em propor saídas simples e simplórias a assuntos de difícil ou insuperável solução.
O embaixador Souza Dantas e seus subordinados ficaram em Vichy. No antepenúltimo dia do ano, todos os enviados latino-americanos na França comemoraram os 20 anos de atividades diplomáticas do embaixador brasileiros em terras francesas. O próprio marechal Pétain marcou o momento enviando-lhe um presente. Mas no dia 23 de janeiro de 1943 exigiu que ele e sua equipe deixassem Vichy. Indicou que deveriam migrar para Mont-Doré-Les-Bains. 20 dias depois Souza Dantas e os seus seriam conduzidos a Bad Godesberg, na Renânia, por semioficiais alemães, que lhes fariam prisioneiros de guerra até 28 de março de 1944 (Costa Franco, 2008, pp. 7-25; Cadernos do CHDD, 2004, pp. 457-468; Koifman, 2002). Esse drama, por certo, também influíra na decisão brasileira de reconhecer o Comité français de libération nationale.
No dia 26 de agosto de 1944, de Gaulle marcharia por Paris. Os esforços aliados combinados surtiram efeito. Desde o dia D – 6 de junho de 1944 –, a operação Overlord foi cumprindo sua função. Rua a rua, vila a vila, cidade a cidade, região a região foi sendo liberada do jugo nazista e fascista. Orléans, Bretagne, Sudoeste, Paris, Toulon, Marselha e Montpellier e Lyon seriam liberadas entre agosto e setembro daquele ano (Beevor, 2004; Beevor, 2010; Crémieux-Brilhac, 2014). Após a libertação, a reconstrução. Especialmente moral.
Em 31 de agosto de 1944 seria instalado em Paris o Governo Provisório da República Francesa com de Gaulle naturalmente à frente. No dia 12 de setembro, no palácio Chaillot, ele faria o discurso-programa para os novos tempos. Dias depois, ele levaria a boa-nova a Lyon, Marselha, Toulouse, Bordeaux.
Em fins de outubro, Moscou, Londres e Washington reconheceriam esse governo provisório. Doravante o esforço seria reconstituir política e institucionalmente o país. Refazer partidos. Liberar a imprensa. Convocar eleições. Recriar o estado. Rever contratos. Renovar relações. Dentro e fora do país (Soutou, 2011; Rémond, 2003).
Nesse empenho e nessa inspiração que o agora general Charles de Gaulle faria seu primeiro contato direto com o presidente Getúlio Vargas. Foi no dia 26 de dezembro de 1944. Quatro meses da libertação de Paris. O general comunicava o envio do militar Astier de La Vigerie como embaixador francês no Brasil fazendo questão de ressaltar que
Les Français, dans leur malheur, ont ressenti avec émotion la fidélité de l’amitié brésilienne. Sur les champs de bataille, ils ont aussi mesuré la valeur de vos armes. La France n’oblie pas la part prise par le Brésil, hier à ses épreuves, comme aujourd’hui à ses victoires.[14]
Uma manifestação justa e precisa que marca o conjunto da correspondência do general.
Da parte do presidente brasileiro, a reação também seria justa e precisa. França e Brasil, malgrado coadjuvantes no contexto geral da guerra, tinham saído mais íntimos do conflito que ainda levaria alguns meses para terminar. Isso produzia, para além do protocolo diplomático, níveis visíveis de afeição da resposta brasileira que seria enviada no dia 14 de março de 1945 de Petrópolis, onde o presidente Vargas diria que
A amizade da França, tão eloquentemente reafirmada por V. Ex. [o general de Gaulle], é um título de orgulho do meu país, que sempre viu na França imortal o grande guia espiritual, glória da latinidade. O Brasil, cujo espírito se nutre da cultura francesa, sabe quanto deve à França na sua formação mental e participa tão profundamente de suas alegrias de agora quanto sofreu com os seus passados revezes.[15]
A expressão “glória da latinidade” seria retomada pelo general de Gaulle vinte anos depois em sua grande tournée pelas Américas iniciada no México no 15-23 de março de 1964 e finalizada na Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Argentina Paraguai e Brasil em 21 de setembro-15 de outubro também de 1964 (Trouvé, 2014, pp. 115-127).
Mas antes de pronunciar essa ode aos latino-americanos, muitas águas lavariam as ladeiras de Montmartre em Paris e do Corcovado no Rio de Janeiro. O presidente Getúlio Vargas deixaria de ser presidente em 1945 para voltar a sê-lo pelo clamor das urnas em 1950. O general abdicaria do poder em 1946 e retornaria somente em 1958 para consolidar sua presença na História dos seus.
No dia 28 de agosto de 1958, o presidente Juscelino Kubitschek enviaria uma carta-saudação ao general de Gaulle por seu retorno à vida pública francesa e ingresso na presidência da República. Os franceses acabavam de depositar nele – o general – o seu destino. Após o acirramento da tensão sobre a Argélia, o presidente René Coty reconheceu sua impotência e lançou apelo ao retorno do general (Malye & Stora, 2010). A Quarta República francesa, inaugurada no contrassenso do general de Gaulle em 1946, tivera dezessete crises ministeriais até a de maio de 1958 (Rémond, 2003). O ambiente político estava demasiado desgastado. A credibilidade dos políticos em função descera aos mais baixos níveis. Havia anos que o nome do general de Gaulle era suscitado como a derradeira solução para o conjunto de contratempos intermináveis sucedido após a superação de Vichy. Mas naquele 1958, os boatos tomaram dimensão de decisão. Nos dias 1º e 2 de junho, após o adeus do presidente, a Assembleia Nacional ratificaria o retorno do general, conferindo-lhe plenos poderes para formar seu governo e revisar a Constituição. Soterrados em profunda guerra civil, os argelinos confrontavam sua história e seu destino para decidir pela continuação ou não de sua condição colonial. A autodeterminação dos povos tornara-se desejo em todos os domínios coloniais. Os potentados metropolitanos passaram a anacronismos em iminente superação. Aos franceses, como aos argelinos, a hora havia chegado. Logo após assumir a presidência do país, o general de Gaulle partiu, então, a Argel nos dias 4 e 7 de junho de 1958 e em memorável alocução de chegada diria aos argelinos “je vous ai compris”.[16]
Esse “je vous ai compris” marcaria o corta-luz de uma República à outra. Expressaria o interregno entre a agonia da quarta e o resplendor da quinta organização institucional francesa. Seria, como o apelo do 18 juin de 1940, o momento fundador dos novos tempos, dos novos dias (Rémond, 2003).
O presidente brasileiro, atento à importância do evento, congraçaria com o general. Sua missiva indicava as novidades brasileiras e da região sul-americana. Advertia da relevância de sua Operação Pan-Americana. Reafirmava a comunhão franco-brasileira dos valores do Ocidente. E, por fim, convidava o general a vir ao Brasil e à América do Sul constatar esse elixir dos novos tempos.[17] Em observando a mensagem do presidente brasileiro, o general deverá ter assentido consigo mesmo, sim: “je vous ai compris”.
Sua resposta direta ao presidente Juscelino viria de imediato. Nela o general agradecia a consideração e acentuava que sua presidência teria como objetivo também auxiliar os países “subdesenvolvidos” onde se encontrava o Brasil e sua região.[18] Entretanto sua mensagem estratégica seria o envio de seu assessor e ministro André Malraux para uma longa tournée por toda a região e pelo Brasil (Pelosi, 2014, pp. 97-113).
Muito além de dar cabo ao contencioso franco-argelino, o general de Gaulle ambicionava, enfim, aplicar a sua certaine idée de la France na gestão dos negócios do país.[19] O encontro intimista com o chanceler Konrad Adenauer, realizado em sua casa de campanha em Colombey-les-deux-Églises, no dia 14 de setembro de 1958 e o envio de correspondências com o presidente Eisenhower e com o primeiro-ministro Harold MacMillan dez dias demandando a revisão de informações para a dotação de uma bomba nuclear à França indicava a clareza da formulação da política externa francesa doravante. Ela sugeria o imperativo de independência sem isolamento e propunha recolocar o país no cenário mundial. Respeito à autodeterminação dos povos, solidariedade e reciprocidade na gestão e participação na Aliança Atlântica e desejo de atuação permanente na intermediação entre o bloco dos países industrializados e em via de desenvolvimento seriam os eixos principais de sua atuação (Vaïsse, 2009, p. 554). Como disse Dominique de Villepin, o general procuraria incessantemente “dépasser l’impasse bipolaire par une diplomatie d’audace, notamment tournée vers l’Asie et l’Amérique latine, désertées par ses prédécesseurs” [sobrepujar o impasse bipolar ou uma diplomacia audaciosa, especialmente direcionada à Ásia e América Latina, abandonadas por seus predecessores] (Villepin, 2005, p. 35).
O envio, portanto, de André Malraux ao Brasil em 1959 era o indício forte de que mais dia menos dia seria a vez do próprio general ir ao continente. Suas presenças – de Malraux e depois do general – seriam maneiras de refazer os laços que os mal-entendidos da guerra romperam (Pelosi, 2014, pp. 109-110).
“Je suis heureux d’accepter l’invitation de votre Excellence et qu’il me sera particulièrement agréable de me rendre au Brésil en visite officielle à l’occasion du voyage que j’envisage d’accomplier cette année en Amérique latine” [Fico feliz em aceitar o convite de Vossa Excelência e devo dizer que me será particularmente agradável vir ao Brasil em visita oficial na ocasião da viagem que ensejo realizar na América Latina neste ano] escrevia o general de Gaulle ao presidente João Goulart no dia 17 de janeiro de 1964.[20]
Agora não haveria mais volta.
Nada nem ninguém demoveriam o general da decisão de vir ao Brasil.
A necessidade de sua presença no Brasil remontaria aos tempos da resistência, da France Libre, do Comitê de Gaulle no Rio de Janeiro. Mas desde seu retorno à vida pública em 1958, essa visita foi se afirmando como um imperativo de sua diplomacia de influência. Mesmo o Brasil tendo pouco a ofertar. Mesmo a América do Sul sendo um continente “lointain”. Mesmo com os Estados Unidos ofuscando a presença de qualquer país europeu na região (Vaïsse, 2009, p. 439).
O objetivo era “parler à tout le monde” para continuar contando e pesando no mundo (Fontaine, 2009; Badie, 2011; Foucher, 2011). A estratégia era forjar uma “troisième force”, uma terceira via, uma possibilidade para além do conflito Leste-Oeste (Villepin, 2005). A tática envolvia se fazer presente, capitalizar o prestígio, promover “la grandeur” (Vaïsse, 1998).
Mesmo nos momentos mais inglórios da dita “guerra das lagostas” (Costa Braga, 2004), em que a França chegou a chamar seu embaixador no Brasil de volta a Paris, o general jamais cortara em absoluto a possibilidade de diálogo com a presidência brasileira.
No dia 10 de setembro de 1963, por exemplo, quando das fortes inundações no estado do Paraná, o general enviaria um imediato telegrama ao presidente João Goulart colocando o estado francês à disposição para a superação da rude “catastrophe qui vient d’éprouver cruellement le peuple brésilien”.[21] Em outra mensagem ao presidente brasileiro ele reiteraria que “le Brésil, dès sa naissance, s’est trouvé naturellement aux côtes de la France”.[22]
Essa formulação – que em outros registros daria a impressão de mera gentileza protocolar da retórica diplomática – possuía dimensão genuína quando vinda do general. Um dos fatores decisivos da prática presidencial que o general estava criando era o reconhecimento da força e da legitimidade do máximo mandatário da nação.
O presidente da república, na concepção do general, deveria estar acima dos partidos, dos ministérios e dos interesses partidários. Seria ele a escolher o primeiro-ministro e os demais ministros. Seria ele a comandar a defesa nacional e a política externa do país. Seria ele a encarnar a sorte de seu povo (Rémond, 2003). A excepcionalidade histórica do general lhe permitia – ou lhe permitiu até 1965, quando quase fora batido nas eleições presidenciais contra o candidato François Mitterrand, ou até 1968, quando estudantes e grevistas colocaram em questão o seu legado – agir plenamente nesse sentido. De 1958 a 1965, ele encarnaria a nação e o estado quase sem competição. Adiante a usura do poder e os segredos internos da sociedade francesa, entre eles a obsessão por rupturas, modificariam a densidade de sua grandeur. Mas sua visita ao Brasil e às Américas ocorreria no auge de sua presidência.
No dia 9 de janeiro de 1964, o presidente João Goulart escreveria ao general de Gaulle afirmando que “o governo brasileiro, atendendo a um indeclinável de fidelidade aos vínculos históricos que unem os dois países tem a honra de convidar vossa Excelência para visitar o Brasil por ocasião de sua anunciada viagem à Amérique latine.”[23] Esse convite do presidente Goulart reforçava os de seus antecessores. O presidente Juscelino Kubitschek havia insistido várias vezes com André Malraux para convencer o general a atravessar o Atlântico no sentido Brasil. Para a inauguração de Brasília, no dia 21 de abril de 1960, o convidado de honra era general que acabou enviando André Malraux.[24] De Brasília a São Paulo ao Rio de Janeiro esse poeta francês tornado ministro estava virando habitué. Maison de France no Rio de Janeiro e Alianças Francesas em Brasília e São Paulo chegavam a disputar sua presença. Intelectuais e políticos brasileiros como Augusto Frederico Schmith e Horácio Lafer tinham se tornado seus interlocutores privilegiados. Sem contar o próprio presidente Juscelino Kubitschek, que tivera diversos tête-à-tête na esperança de um dia ter com o general (Pelosi, 2014, p. 110). Esse encontro acabaria jamais ocorrendo em sua presidência. No exílio em Paris, após ter os direitos cassados pelo regime instaurado no Brasil em abril de 1964, ele escreveria que “Mon séjour chez vous a renforcé ma conviction : le Brésil et la France sont engagés dans le même combat pour la liberté et la dignité. Cet idéal commun forme la base de l’amitié fervente qui unit nos deux peuples.” [Meus dias em seu país reforçaram a minha convicção: o Brasil e a França estão engajados no mesmo combate pela liberdade e pela dignidade. Esse ideal comum forma a base da amizade fervente que une nossos povos].[25] O presidente Juscelino Kubitschek preferiria, claramente, dizer essas palavras ao general pessoalmente.
Quando da eleição do presidente Jânio Quadros, o general consultaria o seu homem das Américas, André Malraux, para saber da procedência desse novo mandatário do Brasil. Essa consulta não era sem interesse. Uma das primeiras ações do presidente Jânio Quadros fora justamente enviar a Paris o já notório Roberto Campos para falar com o general em seu nome.
O destino econômico dos dois países era incerto naqueles idos de 1960-1961. E continuaria adiante. Mas desde o início se queria, desde a parte do presidente brasileiro, estreitar relações com o mandatário francês.[26]
Os informes de André Malraux faziam saber ao general que o presidente Jânio Quadros havia afeição pelos regimes de Cuba e Moscou, mesmo tendo recebido apoio eleitoral de certa “direita paulista”. Também indicavam que ele e seu novo governo entendiam o conflito franco-argelino que tanto afligia a presidência do general.[27] A difícil transição da presidência Jânio Quadros para a João Goulart foi correntemente informada ao Élysée pelo enviado do general em Brasília, o embaixador Jacques Baeyens. No dia 10 de março de 1963, pelo contencioso das lagostas, o embaixador Baeyens retornara à França (Cadier, 1982, p. 105) ficando os negócios franceses no Brasil a cargo do cônsul francês no Rio de Janeiro Édouard de la Chauvinière até a chegada, em meados de 1964, do novo embaixador, Pierre Sebilleau.[28]
Quando, em março de 1964, do Comício da Central do presidente João Goulart, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade de dona Leonor de Barros, da revolta dos marinheiros e do evento no Clube do Automóvel – 13, 19, 24 e 30 de março respectivamente –, o general de Gaulle cumpria sua viagem oficial ao México, 15-19 de março, e sua visita a Guadalupe, Guiana e Martinica, 20-23 de março. Mas seria de Paris que ele acompanharia a movimentação do Mourão Filho, o discurso de Rubens Paiva em defesa do presidente João Goulart e a manifestação do senador Auro de Moura Andrade declarando “vaga a presidência da república” e “acéfala” a nação. Após a eleição do marechal Castelo Branco à presidência brasileira no dia 10 de abril de 1964, o general de Gaulle enviaria felicitações. Três dias depois do pleito, no dia 13 de abril, ele faria saber ao novo mandatário do Brasil que a França acompanhava com atenção o que se passava nos trópicos. Dois dias depois, no dia 15 de abril, o marechal Castelo Branco agradeceria ao general e enfatizaria o fato de ter sido eleito com aval do Congresso Nacional.[29] Dois meses depois, em fins de junho, o marechal reforçaria o convite para a vinda do general ao Brasil. Mas por esse momento tudo já estava completamente decidido e preparado. O general partiria, sim, ao Brasil.[30]
No dia 4 de junho de 1964, o general de Gaulle diria ao seu primeiro-ministro, Michel Debré, que gostaria de “visiter l’Amérique latine tout entière, et je voudrais le faire cette année. Je sens qu’il est bom que je le fasse, et au-delà de cette année, je ne puis plus répondre de moi-même ni d’ailleurs de rien du tout” [desejo visitar a América Latina inteira neste ano. E importante que eu o faça pois depois deste ano eu não posso nada garantir].[31]
De junho a setembro desse ano o Élysée, o Quai d’Orsay e as embaixadas e consulados franceses espalhados pelos dez países que seriam visitados aportaram imensa quantidade de informação sobre a realidade latino-americana vista pelos franceses e as contradições brasileiras foram exploradas à exaustão. Toda a classe política e intelectual fora descrita com precisão. Todos os ministros passados e presentes. Todos os debates. Todas as questões de sociedade. Todas as dificuldades da relação bilateral. Fazia questão de assinalar que homens do novo regime, os militares em sua maioria, haviam sido formados na França. Que alguns deles estariam dispostos a evitar uma relação “trop fort avec les États-Unis”.[32] Lembrava que o marechal Castelo Branco havia sido convidado a “suivre les cours de l’école supérieure de guerre française” de outubro de 1936 a outubro de 1938. Que havia comendas da Legião de honra e da Croix de guerre francesas. Enfatizava que seus principais assessores – Luis Vianna Filho, Vasco Leitão e Roberto Campos – eram perfeitamente francófonos.[33] Indicava que o Brasil dispunha de uma população “jeune” composta por 77.521 milhões de pessoas sendo 53% menores de 20 anos e apenas 5% com mais de 60 anos. Que os ativos no país não passavam de 24 milhões. Sendo 60% trabalhando na agricultura, 14% na indústria e 22% em carreiras públicas. Que o peso da escravidão se fazia sentir na qualidade “melangée” da população com 33 milhões de brancos, 15 milhões de mestiços e 6.6 milhões de negros. Mas que “la tendance générale de la population est au ‘blanchiment’” e que “il n’y a pas au Brésil de problème racial”.[34] Considerava que o Exército brasileiro só não era maior que o cubano e que havia sido fundamental na constituição da lei, da Constituição e da ordem depois da “Révolution” de 1º de abril em que tomaram o lugar de “políticos amadores e insuficientes”. E que “Le Brésil ne pourra être sauvé qu’après l’extirpation de la vie politique de la corruption dont les racines prolongent dans le passé jusqu’aux origines du « getulisme »”. [O Brasil só poderá ser salvo após se extirpar da vida política toda a corrupção cujas raízes remontam ao getulismo].[35] Enfatizava que o grosso dessa população era rural e ignorava completamente questões políticas com exceção a alguns moradores de grandes cidades. Que apenas “la classe moyenne et le prolétariat ont pris, depuis 30 ans, conscience de la force qu’il représentaient en face des hiérarchies traditionnelles et leurs voix ont pris une importance croissante dans la vie de la nation”.[36] Mas que, mesmo assim, os contrastes regionais eram imensos. Que 22 milhões de brasileiros viviam mal nos 1.500.000 km2 que agrupava Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Que o presidente Juscelino Kubitschek havia chamado a atenção ao problema e o presidente João Goulart tinha avançado muito na questão – ambos com o apoio da competência técnica do Monsieur Celso Furtado, “parfois très engagés politiquement” – mas os problemas eram perenes.[37] Acentuava que a relação franco-brasileira era muitíssimo antiga, mas que a geração que chegara à fase adulta após 1945 no Brasil dispunha de maior sensibilidade e valorização à “l’efficacité de la civilisation technique” e passara a ver a França como “un pays du passé”,[38] e também por conta disso a língua francesa, desde 1963, deixara de ser obrigatória nos colégios, ficando a cargo dos diretores a escolha do ensino do francês ou do inglês.[39] Notificava que a situação financeira ia muito mal e que a tônica dos encontros deveria recair sobre a cooperação nuclear tendo como discussão acessória a venda dos 40 helicópteros Alouette III ao estado brasileiro e de 25 locomotivas elétricas e 85 diesel-elétricas ao estado de São Paulo.[40] No plano de cooperação deveria sugerir a mudança da fase técnico-científica – de intercâmbios para formação de especialistas – para a fase técnico-industrial – de venda massiva de material assim como a exploração de novas áreas suscetíveis de se encontrar urânio como Tucano e Jacobina, na Bahia, Buique, em Pernambuco, e Araxá, em Minas Gerais. No plano comercial era preciso dar mais apoio e guarida às empresas BRACOREP, fabricante dos helicópteros, e da ALSTHOM, fabricante das locomotivas.[41]
Essas eram as impressões e recomendações gerais ao general. Mas o general e sua certaine idée de si mesmo e de sua missão à frente do país diria novamente ao seu primeiro-ministro Michel Debré: “Je vais en Amérique latine sans programme diplomatique bien précis, mais en quelque sorte instinctivement. Peut-être est-ce important. Peut-être est-ce le moment” [Irei à América Latina sem programa diplomático preciso. Vou apenas com a intuição. Talvez seja importante. Talvez seja o momento].[42]
A situação brasileira era simplesmente incerta. Os apoiadores do golpe de março-abril de 1964 começavam a hesitar. A presidência Castelo Branco havia criado o Serviço Nacional de Informação em junho. Logo em seguida romperia as relações do Brasil com a Cuba dos Castro. Aqueles que apoiaram essas manobras esperando eleições em 1965 foram frustrados pela emenda constitucional n. 9, que prolongava o mandato presidencial do marechal até 15 de março de 1967. Malgrado a criação do Banco Central e do Banco Nacional de Habitação, os partidos todos foram extintos. Estavam mantidas as eleições diretas para governador, mas o clima de angústia política era exasperante. O governador Miguel Arraes havia sido preso no Palácio das Princesas. O presidente João Goulart já estava asilado no Uruguai. Todos os políticos ligados a ele, a começar de seu contraparente Leonel Brizola, corriam sérios riscos em permanecendo no Brasil. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, já tinha motivos para desconfiar dos militares. Camadas importantes da sociedade também (Garot, 1994, pp. 145-163; Goulart, 1964; Vianna Filho, 1975; Gaspari, 2002; Gaspari, 2004; Gaspari, 2013). Nada disso retira do general a convicção de visitar o país. Seu enviado em Brasília ainda acentuaria que o presidente Castelo e seu ministro Vasco Leitão, malgrado discretos, estavam absolutamente entusiasmados com a possibilidade da presença do líder francês em terras brasileiras.[43] Mas ninguém parecia explicitar maior acendimento que o governador de São Paulo, Adhemar de Barros.
Já no dia 18 de maio de 1964 ele fora ter com o ministro plenipotenciário do consulado francês em São Paulo, Geoffroy de la Tour du Pin, para fazer influir no roteiro da visita do general ao Brasil. Em conversa amistosa ele teria notificado ao enviado francês que gostaria de receber o general em sua própria casa onde se faria “la plus grande fête”.[44] Descontente com a ausência de resposta, o governador de São Paulo retornaria ao consulado francês oito dias depois, no dia 26 de maio, exigindo falar diretamente com o general. Queria explicar – e, quiçá, ensinar – ao mandatário francês sobre a hierarquia dos estados brasileiros. Queria ressaltar a importância do estado de São Paulo frente aos demais. Queria mostrar que era diferente, mais importante, mais influente e “melhor”. E, portanto, queria fazer instar o general a passar mais tempo em São Paulo que no Rio ou Brasília. Sua proposta era de o general passar 12 horas na capital federal, 24 horas entre os cariocas e, “pelo menos”, 36 horas na capital paulista. Ele ainda reforçava que o mandatário francês poderia – e deveria – ficar hospedado em sua casa nos Campos Elíseos onde “le général poura se croire à Paris”.[45]
Mesmo considerando absurda a atitude do governador de São Paulo, o ministro Geoffroy de la Tour du Pin reportaria essa conversação ao secretário geral do Élysée, Étienne Burin des Roziers. Nesse contato se reforçou que o protocolo e a discrição impediam o general de a) se dirigir a um governador de estado e b) discutir questões internas do país. Ao governador Adhemar de Barros restaria se contentar com o que vinha sendo preparado pelas presidências, Planalto e Élysée, e chancelarias, Itamaraty e Quai d’Orsay.
Na conferência de imprensa convocada pelo general de Gaulle ao Élysée no dia 23 de julho de 1964, um jornalista indagara sobre a premente viagem do mandatário ao Brasil. Por esse momento, a totalidade da opinião pública francesa estava informada do roteiro do general pela América do Sul após sua tournée pelo México e departamentos franceses ultramarinos nas Américas. Havia nela algum entusiasmo. A discussão dos problemas do “terceiro-mundo” era latente na sociedade. O general de Gaulle respondeu esperar que o contato direto da França com esses países pudesse promover “d’heureuses conséquences” e, mais precisamente ao caso brasileiro, diria estar convencido “pour ce qui est du grand pays que nous aimons depuis toujours et qui s’appelle le Brésil.”[46]
O Brasil ficou por último na lista de países visitados pelo general.
Primeiro foi a Venezuela. De 21 a 22 de setembro. Em seguida a Colômbia. De 22 a 24 de setembro. Depois o Equador. De 24 a 25 de setembro. Adiante o Peru. De 25 a 27 de setembro. Em seguida a Bolívia de 28 a 29 de setembro. Depois o Chile. De 1º a 3 de outubro. Em seguida a Argentina. De 3 a 5 de outubro. Adiante o Paraguai de 6 a 8 de outubro. E, por fim, o Brasil. de 13 a 15 de outubro. Os conselheiros franceses do general indicavam que o Brasil queria “jogar” como líder do sul. Por sua demografia e territorialidade dispunha de um peso incontornável na região. Mas, infelizmente, no entender dos diplomatas franceses, estava fortemente aproximado aos Estados Unidos especialmente após os incidentes de março-abril de 1964. A visita do general ao país levava em conta todas essas variantes, mas não tinha como objetivo subvertê-las de imediato. Sua função inicial era gerar apreço, confiança, interação. Como acentuara em todos os países visitados, era a primeira visita oficial de um chefe de estado francês desde sempre. Esse tipo de símbolo, na perspectiva do general, contava muito e em sua concepção era a única maneira de fazer a França continuar mundial. Pois, como reiterava, “si la France cesse d’être mondiale, elle cesse d’être la France”. E aos brasileiros essa França continuaria por tempos essa França justamente pela presença de seu general nesse gesto de visitar o país nesses dias de outubro de 1964.