Traduções
Significado e interpretação na História das Ideias
Recepção: 01 Abril 2017
Aprovação: 20 Abril 2017
SKINNER, Quentin. Significado e interpretação na História das Ideias. Tradução de Marcus Vinícius Barbosa.Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 358 - 399. jan./abr. 2017. Tradução de:
Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: SKINNER, Quentin. Visions of Politics. Londres: Cambridge University Press, 2001, vol. I, cap. 4, p. 57-89
A tarefa do historiador das ideias[1] é estudar e interpretar um cânone de textos clássicos. O valor de escrever este tipo de história advém do fato de que textos clássicos sobre moral, política, religião e outros tipos de pensamento contêm uma “sabedoria intemporal[2]” na forma de “ideias universais[3]”. Como resultado, podemos aprender e nos beneficiar de forma direta ao investigar estes “elementos atemporais”, uma vez que eles possuem uma relevância perene[4]. Isso nos sugere que a melhor maneira para nos aproximarmos destes textos deve ser nos concentrando no que cada um deles diz[5] sobre cada um dos “conceitos fundamentais[6]” e das “questões permanentes” sobre moral, política, religião, vida social[7]. Em outras palavras, devemos estar preparados para ler cada um dos textos clássicos “como se tivessem sido escritos por um contemporâneo[8]”. Na verdade, é essencial nos aproximarmos dessa maneira, enfocando-nos simplesmente em seus argumentos e examinando o que eles têm a dizer sobre os problemas perenes. Se, em vez disso, nos desviarmos, examinando as condições sociais ou os contextos intelectuais de onde eles afloraram, perderemos de vista sua sabedoria intemporal e, por conseguinte, o contato com o valor e o motivo pelos quais estudá-los[9].
Estas são as premissas que quero questionar, criticar e, se possível, desqualificar no que segue. A crença de que teóricos clássicos comentam um determinado conjunto de “conceitos fundamentais” deu origem, parece-me, a uma série de confusões e absurdos exegéticos que atormentaram durante muito tempo a história das ideias. Entretanto, o sentido pelo qual essa crença é ilusória não é inteiramente fácil de isolar. É fácil condená-lo como um “equívoco fatal[10]”, mas, ao mesmo tempo, é difícil negar que as histórias de diferentes atividades intelectuais estiveram sempre marcadas pelo emprego de vocabulários relativamente estáveis e característicos[11]. Mesmo que aceitemos a argumentação vaga de que é somente em virtude de determinados traços comuns que podemos definir e diferenciar atividades específicas, continuamos obrigados a aceitar alguns critérios e regras de uso para que certas atividades possam ser corretamente reconhecidas, e outras desconsideradas, como exemplos de uma determinada atividade. Do contrário, não teríamos maneira – muito menos justificativa – para delimitar e falar, por exemplo, da historiografia sobre o pensamento ético e político como sendo a história de atividades reconhecidas. É de fato a verdade, e não o absurdo, da reivindicação de que tais atividades devem ter alguns conceitos característicos que parece ser a principal fonte de confusão. Se, pelos menos, devem existir alguns traços familiares conectando todas as ocorrências de tal atividade, as quais devemos primeiramente apreender para poder reconhecer a própria atividade, torna-se impossível considerar tal atividade, ou qualquer ocorrência dela, sem termos algumas preconcepções sobre o que esperamos encontrar.
A relevância desse dilema para a história das ideias – e, especialmente, para a afirmação de que historiadores deveriam se concentrar no que os textos clássicos dizem sobre os temas canônicos - é clara. É impossível estudar simplesmente o que um autor tenha dito (especialmente em uma cultura estrangeira) sem trazermos à tona nossas próprias expectativas e pré-julgamentos sobre o que eles possam estar dizendo. Esse é um dilema, conhecido pelos psicólogos, como o fator determinante do conjunto mental do observador. Nossas experiências passadas “determinam nossa percepção dos detalhes de uma maneira específica”, e quando essa estrutura de referência se estabelece, “o processo consiste em estar preparado para perceber ou reagir de determinada forma[12]”. O dilema resultante pode ser exposto, para os propósitos deste texto, na forma de um axioma onde os modelos e preconcepções através dos quais organizamos e ajustamos nossas percepções e pensamentos tendem a atuar como determinantes daquilo que pensamos e percebemos. Devemos classificar, com o fim de entender, e somente podemos classificar o que não nos é familiar de acordo com o que nos é familiar[13]. O perigo constante nas tentativas de alargar nosso conhecimento histórico reside em permitir que nossas expectativas sobre aquilo que alguém está dizendo ou fazendo determinem nosso entendimento sobre aquilo que os agentes fizeram, transformando sua ação em algo que eles não aceitariam – ou sequer poderiam aceitar – como uma descrição do que realmente faziam.
Essa noção da prioridade de paradigmas já foi proveitosamente explorada na história da arte[14], onde causou a substituição de uma história essencialmente historicista sobre o desenvolvimento do ilusionismo por uma história disposta a traçar as mudanças de intenções e convenções. Mais recentemente, uma exploração análoga também foi frutífera na história da ciência[15]. Devo aqui tentar aplicar um conjunto similar de considerações para a história das ideias. Tentarei desvelar até que ponto o atual estudo histórico do pensamento ético, político, religioso, entre outros, está contaminado por uma aplicação inconsciente dos paradigmas de familiaridade os quais, para o historiador, disfarçam uma inaplicabilidade essencial para o passado. Não busco, é claro, negar que a metodologia que critico tenha, algumas vezes, dado lugar a resultados notáveis. Quero, entretanto, insistir nas várias maneiras nas quais o estudo do que cada escritor clássico diz inevitavelmente corre o perigo de cometer diversas formas de absurdos históricos, e ao mesmo tempo, analisar as várias maneiras nas quais os resultados não podem ser considerados como histórias, mas sim como mitologias.
A mitologia mais persistente foi criada por historiadores que trabalham com a expectativa de que cada autor clássico (na história da teoria moral e política, por exemplo) terá alguma doutrina sobre cada um dos temas considerados constitutivos de um tópico. É um passo perigosamente curto desde estar sob a influência (mesmo que inconscientemente) de tal paradigma e “encontrar” doutrinas sobre todos os temas obrigatórios em um determinado autor. O resultado disso é um tipo de discussão considerada como a mitologia das doutrinas.
Esta mitologia toma diversas formas. Em primeiro lugar, está o perigo de transformar observações dispersas ou acidentais de um teórico clássico em sua “doutrina” sobre um dos temas esperados. Isso, por sua vez, tem o efeito de gerar dois tipos específicos de absurdos históricos. Um deles é mais característico das biografias intelectuais e das histórias sintéticas do pensamento, nas quais o foco se coloca sob os pensadores individuais (ou sua linhagem). O outro é mais característico da “história das ideias”, na qual o foco se centra sob o desenvolvimento próprio de alguma “ideia-unidade”.
O perigo específico das biografias intelectuais é o anacronismo. Um autor pode ser “apresentado” como defensor de uma ideia, com base em uma similaridade de terminologia ao acaso, sobre um argumento do qual, em princípio, não poderia contribuir. Marsilius de Pádua, por exemplo, em um ponto de sua Defensor Pacis, apresenta algumas observações tipicamente aristotélicas sobre o papel executivo dos governantes em contraste ao papel legislativo do povo[16]. Um comentarista contemporâneo que se depara com essa passagem estará familiarizado com a doutrina, importante na teoria e prática constitucional desde a Revolução Americana, de que uma condição para a liberdade política é a separação entre os poderes executivo e legislativo. A origem dessa doutrina pode ser traçada a partir da hipótese historiográfica (somente considerada dois séculos após a morte de Marsilius) de que o colapso da República Romana no Império ilustra o perigo inerente, para a liberdade dos súditos, ao atribuir a qualquer autoridade única o poder político centralizado[17]. Marsilius não sabia nada sobre a historiografia, tampouco sobre as lições que dela seriam extraídas. (Sua própria discussão deriva do Livro IV da Política de Aristóteles, e não se ocupa do problema da liberdade.) Nada disso, entretanto, foi suficiente para prevenir um debate acirrado sobre a questão de que se deveria, ou não, dizer que Marsilius possuía uma “doutrina” sobre a separação dos poderes e, nesse caso, se ele deveria ser “considerado o fundador da doutrina[18]”. Mesmo aqueles que negam que Marsilius deva ser acreditado por tal doutrina tendem a embasar suas conclusões em seu texto[19], e não apontando a inexatidão de supor sua pretensão de contribuir ao debate cujos termos lhe eram indisponíveis.
O mesmo tipo de anacronismo marca a discussão centrada em torno do dictum oferecido por Sir Edward Coke no caso de Bonham no sentido de que o Common Law[20] na Inglaterra poderia, por vezes, ultrapassar o estatuto. O comentarista contemporâneo (especialmente estadunidense) encontra nessa observação ressonâncias muito posteriores da doutrina do judicial review[21]. O próprio Coke não sabia nada sobre tal doutrina. (O contexto de sua ideia é aquele no qual um partido político asseverava a James I que a característica definidora da lei é o costume e não, como James aparentemente reivindicava, a vontade do soberano[22]). Nenhuma dessas considerações históricas foi suficiente, entretanto, para prevenir a reiteração da pergunta descabida de “se Coke realmente teve a intenção de advogar pela judicial review[23]”, ou a insistência de que Coke deve ter pretendido articular essa “nova doutrina” e então oferecer uma “excepcional contribuição para a ciência política[24]”. Novamente, aqueles especialistas que negaram que Coke deveria ser acreditado por tamanha clarividência basearam sua conclusão, principalmente, na reinterpretação do texto de Coke, ao invés de notar a singularidade lógica da narrativa implícita sobre as intenções do mesmo[25].
Além da rudimentar possibilidade de atribuir a um escritor um significado ao qual este não teve intenção de transmitir, há o perigo maior e insidioso de encontrar facilmente prováveis doutrinas nos textos clássicos. Consideremos, por exemplo, os comentários aristotélicos que Richard Hooker propõe no Livro I de seu Of the Laws of Ecclesiastical Polity sobre a sociabilidade natural[26]. Poderíamos muito bem crer que a intenção de Hooker era simplesmente – como muitos advogados escolásticos daquele período – criar um meio para diferenciar as origens divinas da Igreja das origens mais mundanas das associações civis. Entretanto, o comentarista contemporâneo que enxerga Hooker no topo de uma “linhagem” começando “em Hooker até Locke e de Locke aos Philosophes[27]” tem pouca dificuldade em transformar suas observações em nada menos do que sua “teoria do contrato social[28]”. Consideremos, da mesma maneira, as observações sobre a tutela que John Locke propõe em um ou dois pontos de seu Two Treatises of Goverment[29]. Poderíamos acreditar que Locke está meramente apelando à uma das analogias legais mais habituais da escrita política daquele período. Novamente, não obstante, o comentarista contemporâneo que vê Locke no topo de uma tradição de “governo pelo consentimento” pode, sem dificuldade, reunir as “passagens dispersas no” estudo sobre esse tema, e sugerir uma “doutrina” de Locke sobre a “confiança política[30]”. Consideremos, da mesma forma, as observações que James Harrington faz em The Commonwealth of Oceana sobre o lugar dos advogados na vida política. O historiador que investiga as supostas visões dos republicanos ingleses da década de 1650 sobre a separação dos poderes pode se sentir momentaneamente desconcertado ao descobrir que Harrington (“curiosamente”) não fala, nesse momento, sobre funcionários públicos. Mas, um historiador que “espera” encontrar a doutrina nesse grupo insistirá, sem dificuldade, que “esta parece ser uma declaração vaga sobre a doutrina[31]”. Em todos estes casos, onde um determinado autor parece estar anunciando alguma doutrina, confrontamo-nos com a mesma pergunta obrigatória. Se o autor quis articular a doutrina que a ele se atribui, porque falha tão notavelmente em fazê-lo, a tal ponto que o historiador deve reconstruir suas supostas intenções a partir de suposições e insinuações?
A mitologia das doutrinas pode ser igualmente demonstrada a partir da “história das ideias”. O objetivo aqui (nas palavras de Arthur Lovejoy, pioneiro desta abordagem) é traçar a morfologia de uma determinada doutrina “em todos os domínios da história nos quais ela aparece[32]”. Seu ponto de partida característico é estabelecer um tipo ideal para uma doutrina – seja ela a igualdade, o progresso, a razão de Estado, o contrato social, a grande cadeia dos seres, a separação dos poderes, etc. O perigo desta abordagem é que a doutrina investigada se converte, rapidamente, em uma entidade concreta. Na medida em que o historiador busca uma ideia assim caracterizada, torna-se muito fácil considerar que a forma desenvolvida da doutrina sempre esteve presente na história, mesmo se muitos pensadores não puderam encontrá-la[33], mesmo se ela “tenha desaparecido” em diversos períodos[34], ainda que uma era inteira tenha falhado em “desenvolver uma consciência” sobre ela[35]. O resultado disso é que o relato assume uma linguagem apropriada para a descrição de um organismo vivo. O fato de que as ideias pressupõem agentes desaparece facilmente na medida em que as ideias se levantam para lutar por si mesmas. Diz-se, por exemplo, que o “nascimento” da ideia de progresso no século dezesseis[36] foi relativamente fácil, pois “transcendeu” os “obstáculos para sua aparição”, e “ganhou terreno” nos cem anos seguintes[37]. Entretanto, a ideia de separação dos poderes veio ao mundo com maior dificuldade. Ainda que tenha quase conseguido “emergir” durante a Guerra Civil inglesa, “não conseguiu se materializar por completo”, passando-se mais cem anos, “desde a Guerra Civil inglesa até meados do século dezoito para que uma divisão tripartite surgisse de maneira integral e se impusesse”[38].
Essas reificações dão passo a dois tipos de absurdos históricos, não somente dominantes nesse tipo de história, mas que parecem inescapáveis quando se segue essa abordagem[39]. A tendência de buscar aproximações a um tipo ideal dá passo a uma forma de história dedicada, quase sempre, a demonstrar “antecipações” precoces de doutrinas posteriores e, consequentemente, a parabenizar alguns escritores pela sua clarividência. Marsilius de Pádua é reconhecido pela sua “singular antecipação” de Machiavelli[40]. Machiavelli é notável por “construir as fundações para Marx[41]”. A teoria dos signos de John Locke é alardeada “como uma antecipação da metafísica de Berkeley[42]”. A teoria de causalidade de Joseph Clanvill é enaltecida “na medida em que antecipou Hume[43]”. O tratamento de Lord Shaftsbury do problema da teodiceia é elogiado porque “de alguma forma antecipou Kant[44]”. Algumas vezes, até a falsa aparência de que isso é história é posta de lado, e os escritores do passado são simplesmente exaltados ou culpados na medida em que aspiraram ser como nós. Montesquieu “antecipa as ideias de pleno emprego e do welfare state”: isso mostra a sua mente “iluminada, astuta[45]”. Machiavelli pensava a política essencialmente como nós: esse é o seu “significado duradouro”. Mas seus contemporâneos não pensavam assim: isso torna suas perspectivas políticas “completamente irreais[46]”. Shakespeare (“um autor eminentemente político”) era cético a respeito “da possibilidade de existir uma sociedade inter-racial e inter-religiosa”: essa é uma das evidências do seu valor como “um texto sobre a educação moral e política[47]”. E assim por diante.
Encontramos um absurdo relacionado aos debates intermináveis sobre se uma ideia-unidade deve ser declarada como “surgida” em determinado momento, e se “ela se encontra realmente” no trabalho de algum autor. Consideremos, novamente, as histórias sobre a ideia de separação dos poderes. Já podemos encontrar a doutrina “nas obras” de George Buchanan? Não, porque ele “não a articulou” completamente, ainda que “ninguém tenha chego perto de fazê-lo” naquele momento[48]. Mas “encontra-se”, talvez, quando se iniciam as propostas constitucionais apresentadas pelos royalists na Guerra Civil inglesa? Não, porque não se trata “da doutrina pura[49]”. Ou consideremos as histórias da doutrina do contrato social. Podemos “encontrar” a doutrina nos panfletos produzidos pelos huguenotes nas guerras religiosas francesas? Não, porque suas ideias não estão “completamente desenvolvidas”. Contudo, “estava” nas obras dos seus adversários católicos? Não, porque suas afirmações eram “incompletas”, mesmo que “decididamente mais avançadas[50]”.
Então, pode-se dizer que a primeira forma da mitologia das doutrinas consiste, por meio dessas várias maneiras, em confundir observações dispersas e acidentais de um teórico clássico com a sua “doutrina” sobre um dos temas dos quais o historiador espera de antemão encontrar. A segunda forma que discutirei envolve o oposto desse erro. O teórico clássico que não consegue apresentar uma doutrina reconhecível sobre um dos temas obrigatórios é criticado por estar aquém de sua tarefa específica.
Atualmente, o estudo histórico da teoria moral e política é afligido por uma versão nefasta (mas muito influente) deste erro. Estas disciplinas, eles nos lembram, tratam ou devem tratar de “normas verdadeiras[51]”, eternas ou pelo menos tradicionais. Portanto, é apropriado tratar a história destas disciplinas considerando o tom característico da reflexão contemporânea “sobre a vida e seus objetivos” “como um tom inferior”, e tomar como o foco desta história a designação de culpa desse colapso[52]. Thomas Hobbes, ou algumas vezes Niccolò Machiavelli, são condenados pela primeira desobediência do homem[53]. Seus contemporâneos são elogiados ou culpados na medida em que reconhecem ou subvertem essa mesma “verdade[54]”. Leo Strauss, o principal proponente dessa abordagem, “não hesita em afirmar”, quando compara as obras políticas de Machiavelli, que merecem ser delatadas como “imorais e irreligiosas[55]”. Também não hesita em assumir que tamanho tom de denúncia seja apropriado para seu objetivo declarado de tentar “compreender” as obras de Machiavelli[56]. Aqui, o paradigma determina a direção de toda a investigação histórica. A história só pode ser reinterpretada se o próprio paradigma for abandonado.
Entretanto, a versão principal desta forma de mitologia das doutrinas consiste em fornecer aos teóricos clássicos doutrinas as quais se consideram ser próprias de sua matéria, mas que inexplicavelmente estes não conseguiram examinar. Algumas vezes, infere-se sobre aquilo que estas grandes figuras disseram de tal maneira que se lhes possa atribuir crenças adequadas. Tomás de Aquino pode não ter se pronunciado sobre “a tolice da desobediência civil”, mas podemos ter certeza de que “ele não a aprovaria[57]”. Marsilius de Pádua certamente aprovaria a democracia, uma vez que “a soberania que defendia pertencia ao povo[58]”. Richard Hooker “não estaria muito contente”, uma vez que “sua nobre, religiosa e ampla concepção da lei foi reduzida ao imperativo da vontade popular[59]”. Tais práticas parecem meramente pitorescas, mas podem ter um matiz sinistro, como quiçá sugerem estes exemplos: um meio de impor nossos próprios preconceitos aos nomes mais carismáticos sob o pretexto de realizar uma especulação histórica inócua. A história se torna, então, uma série de truques que jogamos às custas dos mortos.
A estratégia mais comum, entretanto, é se apropriar de uma doutrina que um teórico deveria ter exposto, ainda que não consiga fazê-lo e, então, criticá-lo por sua incompetência. A evidência mais notável da influência dessa abordagem, talvez, seja o fato de nunca ter sido questionada como um método para discutir a história das ideias políticas, mesmo pelo maior anti-essencialista dos teóricos políticos, T. D. Weldon. A primeira parte do seu livro States and Morals expõe as várias “definições de Estado” que todos os teóricos políticos “ou formularam, ou deram como óbvias”. Nós aprendemos que todas as teorias sobre o Estado cabem em dois grupos principais. “Alguns o definem como um tipo de organismo, outros como um tipo de máquina”. Munido dessa descoberta, Weldon dedica-se “a examinar as principais teorias apresentadas sobre o Estado”. Contudo, argumenta que mesmo “aqueles escritores que são geralmente considerados como os mais importantes na matéria” nos decepcionam muito, uma vez que poucos conseguem expor sua teoria sem “inconsistências ou mesmo contradições". Hegel aparece como o único teórico “completamente fiel” a um dos dois modelos estabelecidos - que são, Weldon nos recorda, os objetivos principais da exposição de cada teórico. Um escritor menos confiante pode ter se perguntado, nesse ponto, se sua caracterização inicial sobre o que todos esses teóricos se propuseram fazer pode estar correta. Mas o único comentário de Weldon é que parece “bastante estranho, que depois de mais de duzentos anos de profundo pensamento”, quase todos tenham permanecido tão confusos[60].
A literatura exegética está repleta de casos similares desta mitologia das doutrinas. Consideremos, por exemplo, o lugar, na teoria política, das questões sobre o voto e a tomada de decisão e, de uma maneira geral, sobre o papel da opinião pública. Essas questões se tornaram centrais na recente teoria política da democracia, ainda que exercessem pouco interesse nos teóricos que escreveram antes do estabelecimento das democracias representativas modernas. A ressalva histórica parece desnecessária, mas não foi suficiente para deter os comentaristas que criticaram A República de Platão por “omitir” a “influência da opinião pública[61]”; ou aqueles que criticaram Dois Tratados de John Locke por omitir “toda referência à família e à raça” e por não deixar “completamente claro” seu posicionamento sobre a questão do sufrágio universal[62]. É realmente surpreendente, asseguram-nos, que nenhum dos “grandes escritores da política e da lei” dedique espaço para discussão da tomada de decisões[63]. Consideremos, de maneira similar, a questão da medida na qual o poder político é submetido à manipulação por aqueles socialmente mais beneficiados. Esta é uma inquietação natural para os teóricos da democracia, ainda que seja uma questão de pouco interesse para aqueles sem compromisso com o poder popular. Novamente, a ressalva histórica é óbvia, contudo não foi suficiente, mais uma vez, para prevenir que alguns comentaristas criticassem isso em Machiavelli, em Hobbes ou em Locke, uma vez que nenhum deles contribui, com um “insight genuíno”, a esse debate majoritariamente moderno[64].
Uma versão ainda mais predominante desta mitologia consiste em criticar os escritores clássicos a partir da concepção, desenvolvida a priori, de que eles pretendiam que qualquer um de seus textos se transformasse em sua contribuição mais sistemática para a sua disciplina. Pressupõe-se primeiramente, por exemplo, que uma das doutrinas que Richard Hooker tentava enunciar em Laws era uma descrição das “bases da obrigação política”, portanto é sem dúvida um “defeito das opiniões políticas de Hooker” não ter posto atenção suficiente para refutar a teoria da soberania absolutista[65]. Assume-se em primeiro lugar, igualmente, que uma das preocupações básicas de Machiavelli em O Príncipe era explicar “as características dos homens na política”, consequentemente não é difícil para um cientista político contemporâneo demonstrar que o pífio esforço de Machiavelli é “extremamente parcial e assistemático[66]”. Novamente, assume-se que Two Treatises de Locke incluí todas as doutrinas que ele possa ter desejado expressar sobre “leis naturais e a sociedade política”, então “se pode perguntar”, inegavelmente, porque ele não consegue “advogar por um Estado mundial[67]”. E, mais uma vez, pressupõe-se que um dos objetivos de Montesquieu em O espírito das leis era expor uma sociologia do conhecimento, então é, sem dúvida, “uma fraqueza sua” não explicar os fatores determinantes e, de maneira inegável, “devemos acusá-lo” de não conseguir aplicar sua própria teoria[68]. Mas, diante de todas essas supostas “falhas”, da mesma forma como acontece na versão oposta desta mitologia, continuamos a nos confrontar com a mesma pergunta obrigatória: se qualquer um destes escritores alguma vez pretendeu, ou pudesse ter pretendido, fazer aquilo pelo qual são castigados por não ter feito.
Quero considerar, agora, um segundo tipo de mitologia que tende a surgir pelo fato de que os historiadores estarão, inevitavelmente, destinados a abordar as ideias do passado. Pode parecer que alguns dos escritores clássicos não são completamente consistentes, ou mesmo que não conseguem oferecer qualquer exposição sistemática de suas opiniões. Suponhamos, entretanto, que o paradigma que conduz a pesquisa é aquele que pretende elaborar a doutrina de cada autor clássico sobre cada um dos temas mais característicos das disciplinas. Será perigosamente fácil, para o historiador, tratar como sua a tarefa de fornecer a esses textos uma coerência que lhes possa, aparentemente, faltar. Tal perigo é exacerbado pela notória dificuldade de preservar a ênfase e o tom próprios de uma obra ao parafraseá-la, e pela tentação que segue em encontrar uma “mensagem” que possa ser abstraída e melhor comunicada[69].
A escrita da história sobre a filosofia moral e política está infiltrada por essa mitologia de coerência[70]. Se a “opinião acadêmica atual” não enxerga coerência em Laws de Richard Hooker, deve-se procurar mais, pois a coerência certamente deve existir[71]. Se existe dúvida a respeito dos “temas centrais” da filosofia política de Hobbes, a tarefa do exegeta é descobrir a “coerência interna de sua doutrina” através da leitura, uma e outra vez, de textos como Leviatã, até que o argumento – em uma frase reveladora - tenha “assumido alguma coerência[72]”. Se não existe um sistema coerente “rapidamente acessível” para o estudante das obras políticas de Hume, o dever do exegeta é “esquadrinhar as obras uma após a outra” até que “o elevado grau de consistência em todo o corpus” tenha sido, “a qualquer custo[73]”, devidamente exibido (mais uma vez por meio de uma frase relevadora). Se as ideias políticas de Herder estão “raramente organizadas de maneira sistemática”, e se encontram “espalhadas pelas suas obras, algumas vezes dentro dos contextos mais imprevisíveis”, a função do exegeta é tentar “apresentar essas ideias de forma coerente[74]”. O fato mais revelador nessas reiterações sobre a tarefa do acadêmico são as metáforas, normalmente utilizadas, de esforço e perseguição. A ambição é “chegar” sempre a uma “interpretação unificada”, “obter” uma “visão coerente sobre o sistema de um autor[75]”.
Esse procedimento concede aos pensamentos dos maiores dos filósofos uma coerência e, geralmente, um ar de sistema fechado, o qual pode ser que jamais tenham atingido ou mesmo pretendido alcançar. Se se assume primeiro, por exemplo, que a interpretação da filosofia de Rousseau deve se centrar na descoberta de sua “ideia fundamental”, sua contribuição, durante várias décadas, em diferentes ramos da investigação[76] deixará de ser, rapidamente, algo importante. Se se assume que cada aspecto das ideias de Hobbes foi desenvolvido como uma contribuição para um sistema “cristão” global, deixará de ser algo peculiar sugerir que devemos recorrer a sua autobiografia para elucidar um ponto tão crucial como as relações entre a ética e a vida política[77]. Se se assume, de antemão, que uma “filosofia moral coerente” atravessa tudo o que Edmund Burke escreve; então tratar o “corpus de suas publicações” como “um pensamento único[78]” deixa de ser algo problemático. Algumas demonstrações das dimensões que tais procedimentos podem alcançar são apresentadas em um estudo recente sobre o pensamento político e social de Marx, onde sente-se necessário justificar a exclusão das contribuições de Engels para demonstrar que eram “dois seres humanos diferentes[79]”.
Algumas vezes, os objetivos e o êxito do autor permanecem dispersos de forma que os esforços de tais exegetas em extrair um sistema coerente de seus pensamentos são repelidos. Frequentemente, entretanto, isso gera apenas uma forma alterada do absurdo histórico: a falta de tal sistema se torna uma justificativa para a rejeição. Sente-se, por exemplo, que há tanto uma urgência ideológica como uma conveniência exegética para que os diversos pronunciamentos de Marx sejam apresentados através de leituras sistemáticas. Apesar dos esforços de seus críticos, tal sistema continua sendo difícil de encontrar. Podemos relacionar essa dificuldade com a preocupação de Marx, em diferentes momentos, com uma gama de problemas sociais e econômicos diferentes. Mas, ao invés disso, a crítica de que não conseguiu desenvolver o que se supõe ser “sua” teoria básica, e sim “algo fragmentário[80]”, tornou-se comum. Tais críticas aparecem ainda mais facilmente quando os escritores são antecipadamente classificados de acordo a um modelo ao qual, então, espera-se que aspirem. Se se supõe, em primeiro lugar, que todos os pensadores conservadores devem ter um conceito “orgânico” sobre o Estado, então, sem dúvida, Lord Bolingbroke “devia possuir” tal concepção, e parece inegavelmente estranho que ele não organize seus pensamentos dessa forma[81]. Se, primeiramente, assume-se que qualquer filósofo que escreva sobre a teoria da justiça deva “contribuir” para uma das três perspectivas “básicas” dessa disciplina, então o fato de que nem Platão nem Hegel o façam pode ser utilizado para demonstrar que eles “parecem resistir em tomar uma posição definitiva” sobre a matéria[82]. Em todos estes casos, a coerência ou a falta dela, que se descobre rapidamente, deixa de ser um relato histórico de qualquer pensamento que alguém já tenha pensado.
A objeção é óbvia, mas não se mostrou suficiente, na prática, para prevenir o desenvolvimento da mitologia da coerência em duas direções que só podem ser chamadas metafísicas – em seu sentido mais pejorativo. Há, primeiro, a suposição de que deve ser algo apropriado ignorar, com o objetivo de extrair uma mensagem com o máximo de coerência, as afirmações de intenção que os próprios autores fazem sobre o que estão escrevendo, ou mesmo desconsiderar obras completas que podem prejudicar a coerência de seu sistema de pensamento. A literatura exegética sobre Hobbes e Locke pode ilustrar ambas tendências. Sabe-se, agora, que Locke, em seus primeiros escritos sobre teoria política, estava preocupado em delimitar e defender uma postura marcadamente conservadora e, até mesmo, autoritária[83]. Mesmo assim, parece aparentemente possível, a despeito disto, tratar a política de Locke como um corpo de visões que podem simplesmente ser classificadas como pertencentes a um teórico político “liberal”, sem maiores considerações sobre o fato de que essas eram as visões que Locke possuía aos cinquenta anos, e que teria repudiado aos trinta[84]. O Locke aos trinta ainda não é “Locke” – um grau de patriarcalismo que nem mesmo Sir Robert Filmer[85] atingiu.
Sobre Hobbes, conhece-se, a partir de suas declarações explícitas, qual caráter pretendia que sua teoria política adquirisse. Seu Leviatã, como nos informa na revisão e na conclusão, foi escrito “com o exclusivo propósito” de demonstrar que “o Direito Civil dos soberanos, e o Dever e Liberdade dos indivíduos” podem ser fundamentados “sob as conhecidas Inclinações naturais da Humanidade”, e que a teoria assim embasada deve centrar-se na “Relação mútua entre Proteção e Obediência[86]”. Entretanto, continua sendo possível insistir que essa “parte científica” do pensamento de Hobbes não é nada mais do que um aspecto bruscamente arrancado de um “todo religioso” transcendente. O fato de que o próprio Hobbes pareça não ter consciência desse nível superior de coerência não provoca uma retratação, mas sim uma contra afirmação. Hobbes simplesmente “não consegue deixar claro” que sua discussão sobre a natureza humana “na verdade” serve como um instrumento a um propósito religioso. Isto “estaria mais claro” se Hobbes tivesse “escrito em termos de uma obrigação moral e civil” e, então, desvelado a “verdadeira unidade” e o caráter basicamente religioso de todo seu “sistema[87]”.
Analisemos agora a outra tendência metafísica que surge a partir da mitologia da coerência. Uma vez que os textos clássicos devem exibir uma “coerência interna” que cabe ao intérprete revelar, qualquer barreira aparente a essa revelação, advinda de qualquer contradição, não pode ser considerada um obstáculo real porque não se constitui em uma contradição verdadeira. Em outras palavras, a premissa é que a pergunta correta em um caso tão duvidoso não consiste no fato de se um autor era inconsistente, mas sim “como suas contradições (ou aparentes contradições) podem ser explicadas?[88]”. A explicação fornecida pelo princípio da navalha de Ockham (de que uma aparente contradição provavelmente é uma contradição) é explicitamente ignorada. Tais incompatibilidades, somos alertados, não devem permanecer insolúveis, mas devem nos ajudar a alcançar “um entendimento completo de toda a teoria[89]” - da qual as contradições, evidentemente, formam apenas uma parte não sublimada. A própria ideia de que as “contradições e divergências” de um autor devem servir de “prova de que seu pensamento mudou” foi descartada por uma autoridade influente como apenas outro engano do conhecimento acadêmico do século XIX[90].
Pensar dessa forma significa direcionar o historiador das ideias pelo caminho acadêmico de “resolver antinomias”. Somos informados, por exemplo, que nosso objetivo, ao estudar a política de Machiavelli não deve ser restringir-se a algo tão direto como a tentativa de traçar o desenvolvimento do seu pensamento entre a escrita de O Príncipe, em 1513, e os Discursos, em 1519. Ao invés disso, a tarefa considerada apropriada deve ser a construção de um esquema de crenças de Machiavelli suficientemente geral, para que as doutrinas de O Príncipe sejam capazes de ser incorporadas[91] aos Discursos sem que nenhuma contradição aparente seja resolvida[92]. A historiografia sobre o pensamento social e político de Marx exibe uma tendência similar. Não se concebe que Marx tenha se desenvolvido e mudado de ideia desde as linhagens humanísticas de Economic-Philosophical Manuscripts para o sistema aparentemente mecânico esboçado vinte anos depois no volume I de O Capital. Ao contrário, algumas vezes somos assegurados de que a tarefa adequada é a construção de “uma análise estrutural do pensamento completo de Marx”, de forma que as evidentes divergências possam ser vistas como parte de “um corpus[93]”. Por outro lado, por vezes nos informam que os primeiros materiais de Marx mostram que ele sempre esteve “obcecado por uma visão moral da realidade”, e que isso pode ser usado para desqualificar suas futuras pretensões científicas, uma vez que ele “aparece não como o cientista da sociedade que afirma ser, mas, ao invés disto, como um pensador moralista ou religioso[94]”.
Esta crença na conveniência de resolver as antinomias recebeu, inclusive, uma defesa explícita. Ela adveio da caneta de Leo Strauss, que sustenta que a pista para compreender qualquer “erro” aparente cometido por um “mestre da arte da escrita” se encontra em refletir sobre a ameaça de perseguição e seus prováveis efeitos na exposição de nossos pensamentos[95]. Durante uma “era de perseguições” é preciso esconder as crenças menos ortodoxas “nas entrelinhas” de uma obra publicada. (“A expressão”, aprendemos com alívio, “é claramente metafórica”). Por conseguinte, se “um hábil escritor”, em tal circunstância, parece se contradizer ao expor seu ponto de vista, “devemos suspeitar, sensatamente”, então, que as aparentes contradições foram deliberadamente plantadas como um sinal para os leitores “confiáveis e inteligentes” de que tal escritor se opunha as perspectivas ortodoxas que parece sustentar.
A dificuldade desta defesa consiste no fato de que ela depende de duas concepções definidas a priori que, mesmo que implausíveis, não só são deixadas sem argumentação, mas são tratadas como “fatos”. Primeiro, a investigação toma seu rumo a partir da afirmação de que ser original é ser subversivo. É dessa maneira que sabemos em quais textos devemos procurar por doutrinas nas entrelinhas. Em segundo lugar, qualquer interpretação baseada na leitura das entrelinhas está virtualmente livre de crítica pelo “fato” de que “homens descuidados são leitores negligentes”. Assim, não conseguir “enxergar” a mensagem nas entrelinhas significa ser descuidado, enquanto “enxergar” significa ser “confiável e inteligente”. Contudo, suponhamos que lhes perguntamos como encontrar os meios pelos quais reconhecer se estamos ou não lidando como uma das “eras de perseguição” relevantes, e se, por conseguinte, devemos ou não tentar ler nas entrelinhas. Recebemos dois argumentos obviamente circulares. Como devemos reconhecer uma era de perseguição? São aquelas em que escritores heterodoxos estarão obrigados a utilizar essa “técnica de escrita peculiar”. Devemos assumir que tal técnica é usada invariavelmente? Não devemos assumir sua presença “quando fosse menos exato do que não o fazer”. Apesar desta defesa explícita, entretanto, continua sendo difícil enxergar de que maneira a insistência de que devemos procurar pela “coerência interna” no pensamento de um autor possa resultar a algo mais do que um relato mitológico daquilo que este realmente pensou elaborar.
As duas mitologias que discuti provêm do fato de que os historiadores das ideias estarão inevitavelmente determinados, ao abordar qualquer autor, por alguns prejulgamentos sobre as características definidoras da disciplina ao qual este supostamente contribuiu. Bem pode parecer, entretanto, que mesmo que tais mitologias se proliferem até esse nível de abstração, elas dificilmente aflorarão – ou serão mais fáceis de detectar e descartar – quando o historiador opera apenas no nível de descrição da economia interna e do argumento de um trabalho individual. É, de fato, comum insistir que não há nada problemático na empreitada de dissecar os conteúdos e os argumentos dos textos clássicos. Dessa maneira, é ainda mais necessário insistir que, mesmo neste nível, continuamos a ser confrontados com outros dilemas gerados pela prioridade dos paradigmas e, por conseguinte, com outras maneiras pelas quais a exegese histórica pode se tornar uma mitologia.
Ao considerar qual significado um determinado texto pode nos oferecer, é mais fácil descrever, em primeiro lugar, a obra e sua suposta relevância de uma maneira em que não haja espaço para a análise daquilo que o autor pode ter pretendido ou querido dizer. O resultado característico desta confusão é um tipo de discussão que pode ser denominada como a mitologia da prolepse, o tipo de mitologia que tendemos a criar quando estamos mais interessados no significado retrospectivo de determinado episódio do que em seu significado para o agente naquele momento. Por exemplo, frequentemente se sugeriu que o Renascimento se inicia a partir da ascensão de Petrarca ao monte Ventoux. Agora, pode-se dizer isto para, de uma maneira romântica, dar-nos a verdadeira explicação do significado da ação de Petrarca e sua relevância para nós. Mas, nenhum relato a partir dessa descrição pode ser, verdadeiramente, um relato sobre qualquer ação que Petrarca possa ter pretendido, ou mesmo o significado de seu ato[96]. Em poucas palavras, a mitologia da prolepse é característica pela fusão da assimetria entre o significado que um observador pode, justificadamente, dizer encontrar em um episódio histórico e o significado do episódio em si.
Uma das prolepses que constantemente é denunciada, mas tem sido recorrente, é a tentativa de estigmatizar a perspectiva política de Platão na República como pertencente a um “militante político totalitário[97]”. Outro caso é a insistência de que a visão política de Rousseau não só “proporciona a justificativa filosófica para o totalitarismo, bem como para o Estado nacional democrático[98]”, mas tal era a força desta “previsão” que Rousseau deveria “assumir uma responsabilidade especial pela emergência do totalitarismo[99]”. Em ambos os casos, um relato sobre o que deveria ser, na verdade, o significado histórico de uma obra se confunde com um relato sobre o que o autor estava fazendo, que não poderia, em princípio, ser verdadeiro.
Tais versões grosseiras da mitologia podem ser (e foram) facilmente denunciadas. Mas isso não foi suficiente para prevenir que o mesmo tipo de prolepse reaparecesse, de maneira menos evidente, em discussões sobre outros teóricos políticos reconhecidamente influentes. Como exemplo, consideremos os casos de Machiavelli e Locke. Machiavelli, nos dizem várias vezes, “foi o fundador da orientação política moderna[100]”. A partir de Machiavelli, “nos encontramos na porta de entrada para o mundo moderno[101]”. Esse pensamento pode muito bem fornecer-nos um relato verdadeiro sobre o significado histórico de Machiavelli (ainda que pareça pressupor uma visão um tanto inocente sobre a causalidade histórica). Entretanto, essa afirmação é frequentemente utilizada para iniciar uma discussão sobre os elementos marcadamente “modernos” no pensamento de Machiavelli, e foi, inclusive, apresentada como um relato sobre “a intenção dos ensinamentos políticos de Machiavelli[102]”. O perigo, aqui, não é “enxergar” facilmente os elementos “modernos”, os quais o comentarista está predeterminando a encontrar. Há, também, o perigo de que tais interpretações possam se separar de qualquer coisa que, em um princípio, poderia ser um relato plausível sobre o que os escritos políticos de Machiavelli queriam alcançar.
Um problema similar atormentou a discussão sobre a filosofia política de Locke. Somos informados (corretamente, sem dúvida) de que Locke foi um dos fundadores da escola empírica e liberal do pensamento político moderno. Mas, por muitas vezes, essa caracterização é elidida na afirmação de que Locke, por si só, era um teórico político “liberal[103]”. O resulto disto foi a transformação de uma afirmação sobre Locke que poderia ser verdadeira em uma afirmação sobre o conteúdo de suas obras que não pode ser verdadeira. Locke dificilmente poderia ter desejado contribuir para uma escola da filosofia política cuja criação, como sugere essa própria interpretação, tenha sido seu maior sucesso[104]. O sinal indubitável, resumidamente, de que nos encontramos na presença da mitologia da prolepse é que a discussão estará aberta para o tipo mais grosseiro de crítica que pode ser levantada contra as formas teleológicas de explicação: o episódio deve esperar o futuro para ganhar significado.
Mesmo quando essas precauções receberam a devida atenção, o objetivo aparentemente simples de descrever o conteúdo de um texto clássico pode, ainda, permitir o surgimento de dificuldades similares. Há também a possibilidade de que o observador descreva, de forma equivocada, o pretenso significado de um texto através de um processo de escorço[105] histórico. Este perigo dificilmente não aflora na tentativa de compreender uma cultura estrangeira ou um esquema conceitual não familiar. Se há qualquer perspectiva de que o observador possa comunicar com sucesso tal entendimento dentro de sua própria cultura, é obviamente perigoso, e igualmente inescapável, que ele aplique os critérios de classificação e diferenciação que lhe são familiares. O consequente risco é que o observador pode “enxergar” algo aparentemente familiar durante o estudo de um argumento que não lhe é familiar e, por conseguinte, oferecer uma descrição equivocadamente reconhecível do mesmo.
A escrita da história das ideias está marcada por duas formas particulares de tal paroquialismo. Há, em primeiro lugar, o risco de que o historiador possa abusar de seu ponto de vista ao descrever uma referência aparente em alguma passagem de um texto clássico. Dessa forma, um argumento em uma obra pode fazer com que o historiador se recorde de um argumento similar em um trabalho anterior, ou pode parecer contradizê-lo. Em ambos os casos, o historiador pode supor, erroneamente, que o escritor posterior tinha a intenção de se referir ao anterior, e então falar, equivocadamente, sobre a “influência” do trabalho inicial.
Isso não significa dizer que o conceito de influência não tenha força explicativa. O perigo, entretanto, consiste na facilidade do uso do conceito de uma maneira aparentemente explicativa sem considerar se as condições suficientes, ou ao menos necessárias, para a aplicação do conceito foram alcançadas. O resulto frequente é uma narrativa que se lê como os primeiros capítulos das Crônicas, mesmo sem a justificação genética. Consideremos, por exemplo, a suposta genealogia das visões políticas de Edmund Burke. Seu objetivo, em Thoughts on the Causes of Present Discontents, era “se contrapor a influência de Bolingbroke[106]”. Considera-se que o próprio Bolingbroke escreveu sob a influência de Locke[107]. Em contrapartida, afirma-se que Locke foi influenciado por Hobbes, autor que “realmente” tinha em mente ao escrever Dois Tratados[108], ou que, então, tenha se preocupado em contrariar a influência de Hobbes[109]. E se diz que Hobbes, por sua vez, foi influenciado por Machiavelli[110], por quem aparentemente todos foram influenciados[111].
A maioria destas explicações são puramente mitológicas, como se pode observar facilmente se consideramos quais seriam as condições necessárias para ajudar a explicar o surgimento em um autor B de uma doutrina que evoca a “influência” de um escritor A[112]. Tal conjunto de condições deveria incluir, pelo menos, as seguintes: (I) que se sabe que B estudou as obras de A; (II) que B não poderia encontrar as doutrinas relevantes em outro autor que senão A; e que (III) B não poderia ter concebido estas doutrinas relevantes de forma independente. Agora, consideremos meu exemplo anterior de acordo a este modelo. É possível dizer que a suposta influência de Machiavelli em Hobbes, e de Hobbes em Locke, não consiga passar pelo teste (I). Hobbes certamente nunca discutiu, de maneira explícita, Machiavelli, e Locke nunca discutiu explicitamente Hobbes. Pode-se demonstrar que a suposta influência de Hobbes em Locke, e de Bolingbroke em Burke, não passa o teste (II). Burke poderia ter encontrado, da mesma maneira, as doutrinas de Bolingbroke, pelas quais se diz ter sido influenciado, em uma gama de políticos panfletários do início do século dezoito hostis ao governo de Walpole[113]. Locke poderia, de maneira similar, ter encontrado as doutrinas que se dizem características de Hobbes em uma gama de escritos políticos de facto da década de 1650 – as quais se sabe, ao menos, que Locke leu, enquanto não se sabe de que maneira teria lido a Hobbes[114]. Finalmente, é evidente que nenhum dos exemplos citados passa o teste (III) - pode-se dizer que não está claro como é possível passá-lo.
A outra forma imperante de paroquialismo decorre do fato de que os comentaristas inconscientemente abusam de seus pontos de vista ao descrever o sentido de uma obra. Há sempre o risco, assim, de que o historiador conceitualize um argumento de uma maneira que os elementos estranhos se dissolvam em uma falsa familiaridade. Dois exemplos óbvios devem ser suficientes para demonstrar esse ponto. Consideremos, em primeiro lugar, o caso de um historiador que decida (talvez acertadamente) que a preocupação com a expansão do direito ao voto era um aspecto fundamental do pensamento político radical da Revolução Inglesa durante meados do século dezessete. Tal historiador pode ser levado a conceitualizar essa demanda dos Leveller[115] de acordo com um argumento pela democracia. O risco surge quando o conceito de uma “filosofia da democracia liberal[116]” é usado como um paradigma para a descrição e entendimento do movimento dos Leveller. O paradigma se torna desnecessariamente difícil para explicar alguns dos traços mais característicos da ideologia deste grupo. Se estamos predeterminados, por exemplo, a pensar de acordo ao “republicanismo secular” da liderança Leveller, não será surpreendente que sua indecisão diante da monarquia e seu apelo ao sentimento religioso pareçam surpreendentes[117]. O paradigma da “democracia”, além disso, conduzirá a pesquisa histórica em direções inapropriadas. Um conceito anacrônico do welfare state pode ser encontrado no pensamento Leveller, bem como uma crença no sufrágio universal que jamais tiveram[118].
Consideremos, da mesma maneira, um historiador que decida (talvez acertadamente) que o argumento de Locke, contido em Dois Tratados, sobre o direito de resistir aos governos tirânicos esteja relacionado com o seu argumento sobre o papel do consentimento em uma comunidade política legal. Tal historiador pode ser levado a usar a noção de “governo pelo consentimento” como um paradigma para descrever o argumento de Locke[119]. Surge o mesmo perigo. Quando falamos sobre governo pelo consentimento, geralmente temos em mente uma teoria sobre as condições que devem existir se os arranjos legais de uma associação civil são considerados legítimos. É natural, portanto, voltar-se para o texto de Locke com esta conceitualização em mente, e encontrar tal teoria um tanto quanto mal concebida. Entretanto, quando Locke fala sobre o governo pelo consentimento, não parece ser o que tinha em mente. A preocupação de Locke com o conceito de consentimento surge relacionada a sua explicação das origens das sociedades políticas legítimas[120]. Isso dificilmente pode ser considerado um argumento a favor do consentimento. Mas esse parece ter sido o argumento de Locke, e o resultado a partir deste ponto seria descrever equivocadamente sua teoria e, portanto, acusar-lhe de ter corrompido uma explicação que, de fato, não tentava apresentar.
A dificuldade com a qual me preocupo aqui, portanto, é que além de inescapável, é perigoso para os historiadores das ideias se aproximarem de seus objetos com paradigmas preconcebidos. Será evidente agora que o momento no qual surgem tais perigos é aquele no qual o historiador começa a ignorar certas considerações gerais aplicáveis a tarefa de apresentar e compreender afirmações. Uma reflexão sobre tais questões me permitirá resumir as lições metodológicas nas quais, até agora, procurei insistir.
Uma dessas considerações é que não se pode afirmar, a respeito de nenhum agente, que tenham dito ou feito algo que jamais poderiam aceitar como uma descrição acertada daquilo que fizeram ou pretenderam dizer. Esta autoridade especial dos agentes sobre suas intenções não exclui a possibilidade de que um observador esteja em posição de oferecer uma explicação mais completa ou convincente do que os próprios agentes sobre a suas ações. (A psicanálise está fundada sobre esta possiblidade). Mas isso exclui a possibilidade de que uma explicação sobre o comportamento de um agente possa sobreviver a demonstração de que esta depende do uso de critérios de descrição e classificação que não estavam disponíveis para o agente. Pois, se um enunciado ou qualquer ação foi realizada por um agente de maneira intencional, e possui um significado para o mesmo, qualquer explicação plausível sobre o que o agente pretendeu deve, necessariamente, recair sobre, e utilizar-se da, gama de descrições que esse agente poderia, em princípio, ter utilizado para descrever e classificar o que ele ou ela estavam dizendo ou fazendo. Caso contrário, a explicação resultante, ainda que convincente, não será uma explicação sobre o enunciado ou a ação do agente[121].
É evidente que esta é, precisamente, a consideração tão facilmente ignorada toda vez que teóricos clássicos são criticados pelos historiadores das ideias por não conseguir expor suas doutrinas de uma maneira coerente, ou por não conseguir articular uma doutrina sobre um dos supostos temas perenes. Não se pode considerar como correta uma avaliação sobre qualquer ação dos agentes que afirme que tenham falhado em fazer algo, ao menos que esteja claro, em primeiro lugar, que eles poderiam ter conseguido e que, de fato, tinham a intenção de realizar aquela ação em particular. Aplicar esse teste significa reconhecer que muitas das questões que propus (como a dúvida sobre a exposição de uma doutrina da separação dos poderes por Marsilius, etc.) são nulas, estritamente, pela falta de referência. Não há meios de formular tais questões de uma maneira que, em um princípio, pudessem fazer sentido para os agentes envolvidos. O mesmo teste deixa claro que as afirmações a respeito das “antecipações” que examinei – alegações sobre a forma de “podemos considerar a teoria de Locke” dos sinais “como uma antecipação da metafísica de Berkeley – são igualmente sem sentido[122]. Não há sentido em considerar a teoria de Locke desta forma se nosso objetivo é dizer qualquer coisa sobre ele. (A intenção de Locke dificilmente foi antecipar a metafísica de Berkeley). Podemos contar essas estórias se quisermos, mas a escrita da história (não obstante, uma moda entre os filósofos) não pode simplesmente consistir em estórias: uma característica adicional do relato histórico é que ele deve, supostamente, perseguir a verdade[123].
Uma última consideração que vale a pena sublinhar está relacionada com atividade de pensar. Devemos considerar o fato de que pensar é uma atividade de esforço, não um mero manuseio de um caleidoscópio de imagens mentais[124]. A tentativa de pensar sobre problemas, como uma tarefa comum de introspecção e observação, não parece tomar a forma de, ou estar reduzida a uma atividade padronizada ou uniformemente intencional. Pelo contrário, nos engajamos em uma luta contra palavras e significados muitas vezes intolerável; ultrapassamos os limites de nossa inteligência, nos confundimos e descobrimos, frequentemente, que as tentativas de sintetizar nossas perspectivas revelam, ao menos tanto desordens conceituais quanto doutrinas coerentes. Entretanto, é precisamente essa consideração que é ignorada toda vez que um intérprete insiste em reunir os pensamentos desafortunadamente ‘dispersos’ de um escritor clássico e apresentá-los de maneira sistemática, ou em descobrir algum nível de coerência ao ponto de que os esforços e as confusões que normalmente marcam a atividade de pensar sejam levados a desaparecer, desprovidos de toda paixão.
Pode parecer, agora, que existe uma objeção óbvia a linha de argumentação que tratei de apresentar. Dissequei os perigos que surgem quando alguém enfoca os textos clássicos da história das ideias tratando-os como objetos de investigação autossuficientes, concentrando-se no que cada autor diz sobre cada uma das doutrinas canônicas e, dessa maneira, buscando recuperar o sentido e o significado dos seus trabalhos. Pode-se contestar, entretanto, que com suficiente cuidado e estudo tais perigos podem ser evitados, com certeza. Mas se eles podem ser evitados, o que acontece com meu argumento inicial, de que há algo intrinsicamente equivocado nessa abordagem?
A maneira de resposta, gostaria de desenvolver uma tese complementar, contudo mais forte que aquela que até agora defendi. A abordagem que discuti, devo argumentar, não pode, em princípio, permitir-nos chegar a um entendimento adequado sobre os textos que estudamos na história do pensamento. A principal razão é que, se quisermos entender qualquer texto deste tipo, devemos poder oferecer uma explicação não somente do sentido do que foi dito, mas também daquilo que o autor em questão pode ter pretendido com o que disse. Um estudo que enfoca exclusivamente naquilo que um escritor disse sobre uma doutrina será não somente inadequado, mas pode ser, em alguns casos, absolutamente enganoso como um guia para o que o escritor em questão tenha pretendido ou querido dizer.
Consideremos, primeiro, o fato óbvio de que, algumas vezes, o sentido dos termos que utilizamos para expressar nossos conceitos mudam ao longo do tempo; portanto, uma explicação sobre o que um autor diz sobre um determinado conceito pode dar lugar a um guia potencialmente enganoso sobre o sentido de seu texto. Tomemos, por exemplo, a recepção da doutrina do imaterialismo do bispo Berkeley nas mãos de seus críticos contemporâneos. Tanto Andrew Baxter como Thomas Reid destacaram o “egoísmo” da visão de Berkeley, e foi com esta posição que o seu trabalho foi discutido na Encyclopédie[125]. É, portanto, de alguma importância saber que, se os contemporâneos de Berkeley quisessem acusá-lo daquilo que entendemos por egoísmo, eles estariam, mais provavelmente, referindo-se ao seu “hobbinismo”. Quando eles falam do seu egoísmo, o que querem dizer é algo mais parecido aquilo que conhecemos como solipsismo[126].
Uma segunda, e ainda mais importante razão para pensar que o que um autor diz sobre uma doutrina pode se mostrar como um sinal enganoso daquilo que queria dizer é que escritores, frequentemente, empregam deliberadamente uma gama daquilo que pode ser chamado de estratégias retóricas oblíquas. A mais óbvia delas é a ironia, cujo emprego produz a distinção entre aquilo que se diz daquilo que se quer dizer. Examino alguns dos problemas resultantes dessa estratégia no capítulo 6, mas o ponto essencial possa talvez ser introduzido aqui. Tomemos, por exemplo, a maneira pela qual a doutrina da tolerância religiosa foi apresentada pelos intelectuais ingleses no momento do Toleration Act de 1689. Há boas razões para dizer que as várias contribuições ao debate, em grande parte, refletiram uma visão comum. Mas seria somente a partir do resultado de uma investigação histórica sofisticada que poderíamos reconhecer que Shortest-Way de Daniel Defoe e a maneira como lidou com os dissidentes, a Letter ao Papa de Benjamim Hoadly sobre os poderes da Igreja e a Letter Concerning Toleration de John Locke tinham como objetivo transmitir uma mensagem similar sobre o valor em tolerar a dissidência religiosa. Um estudo sobre o que cada autor diz sobre esse tema garantiria um completo mal-entendido, no caso de Defoe, e uma confusão considerável no caso de Hoadly. Somente Locke parece dizer algo remotamente parecido ao que pretendeu comunicar, e mesmo nesse caso talvez devêssemos desejar (recordando a Swift) encontrar algum meio de assegurar-nos de que não há ironia envolvida. Em poucas palavras, é difícil compreender como ler estes textos “uma e outra vez”, como somos incitados a fazer[127], pode permitir que nos movamos desde daquilo que se diz em direção àquilo que se quis dizer.
Um problema adicional e intratável pode surgir facilmente com relação as estratégias oblíquas. Poderia existir alguma razão para duvidar, como apontou um especialista, se é “historicamente mais plausível” dizer que um autor “acreditou naquilo que escreveu” do que supor que possa não ter sido sincero. Consideremos, por exemplo, a maneira na qual esse problema surge na interpretação de filósofos como Thomas Hobbes ou Pierre Bayle. Quando Hobbes discute as leis da natureza, a doutrina que apresenta inclui a afirmação de que elas são as leis de Deus, e de que somos obrigados a obedecer às leis da natureza. Tais sentimentos explícitos foram tradicionalmente descartados por serem considerados fruto do trabalho de um cético empregando um vocabulário familiar de uma maneira heterodoxa. Entretanto, vários revisionistas procuraram insistir (a forma das palavras é reveladora) que Hobbes deveria, no fim das contas, ter “pretendido dizer seriamente o que frequentemente dizia, de que a “Lei Natural” é o mandamento de Deus, e deve ser obedecida porque é um mandamento de Deus[128]”. O ceticismo de Hobbes é então tratado como um disfarce; quando sua máscara é arrancada ele emerge como um expoente da deontologia cristã. O mesmo acontece com Bayle, cujo Dictionnaire contêm a maioria das doutrinas apropriadas para uma teologia calvinista do tipo mais rigoroso e estrito. Mais uma vez, costumou-se ignorar essa mensagem explícita, insistindo que Bayle não pode ter sido sincero. Mas, novamente, alguns revisionistas tentaram argumentar que, longe de ser o protótipo de um filósofo sarcástico, Bayle era um homem de fé, um pensador religioso cujas afirmações devem ser vistas a partir do seu valor nominal para que seus argumentos sejam entendidos[129].
Não é meu objetivo perguntar diretamente quais destas linhas de interpretação devem ser escolhidas nos casos de Hobbes ou Bayle. Mas, gostaria de apontar a inadequação da metodologia pela qual estas interpretações revisionistas foram levadas a cabo. Dizem que “um estudo minucioso dos textos”, um enfoque nos textos “em si”, será suficiente em cada caso para estabelecer o argumento revisionista[130]. O fato de que a aceitação destas interpretações implica o reconhecimento de algumas pressuposições peculiares sobre Hobbes, Bayle e o período em que viveram parece não ter sido reconhecido. Os dois pensadores foram aceitos pelos Philosophes como seus grandes predecessores no ceticismo e foram entendidos da mesma maneira tanto por críticos contemporâneos como por simpatizantes, que jamais duvidaram que eles tinham a intenção de falar de forma destrutiva sobre as ortodoxias religiosas imperantes. É possível, obviamente, descartar essa objeção, insistindo que todos os críticos contemporâneos de Hobbes e Bayle estavam igualmente equivocados e, na mesma medida, sobre a natureza das intenções subliminares dos seus textos. Aceitar essa hipótese improvável significa apresentar, simplesmente, dificuldades adicionais sobre as atitudes de Hobbes e Bayle. Ambos tinham boas razões para reconhecer que a heterodoxia religiosa era um compromisso perigoso. Hobbes (de acordo com John Aubrey) viveu por um tempo com medo de que os bispos fizessem “uma petição para que o velho senhor fosse queimado como um herege[131]”. Bayle foi retirado do seu cargo de professor em Sedan por ser anticatólico, e mais tarde demitido de seu cargo de professor em Roterdã por não ser suficientemente anticatólico. Se ambos escritores pretenderam que suas obras propagassem sentimentos religiosos ortodoxos, torna-se impossível compreender porque nenhum deles retirou de seus trabalhos, em edições posteriores – como ambos poderiam ter feito, e como Bayle foi instigado a fazer -, aqueles trechos que foram, aparentemente, tão gravemente mal interpretados, e porque nenhum deles tentou corrigir os supostos equívocos que afloraram a partir das intenções subliminares de seus textos[132].
Os textos de Hobbes e Bayle, em resumo, levantam questões que não podemos pretender resolver lendo-os “uma e outra vez” até que comecemos a acreditar que os compreendemos. Se decidimos agora – como resultado de uma reflexão sobre as implicações que enfatizei – de que é duvidoso perguntar se seus textos queriam significar o que diziam, será a partir da informação para além dos próprios textos. Se, ao contrário, continuamos sentindo de que somos capazes de insistir que os textos dizem o que queriam significar, resta-nos o problema de explicar as implicações peculiares de tal afirmação. Seja qual for a interpretação que aceitemos, não podemos esperar defendê-la simplesmente nos referindo aos supostos significados dos textos.
Ainda mais importante, entretanto, do que qualquer uma dessas considerações, está o fato de que, no caso de qualquer afirmação séria, o estudo do que alguém diz não pode nunca ser um guia suficiente para compreender o que se pretendia dizer. Para compreender qualquer afirmação séria, devemos atentar-nos não somente ao significado do que é dito, mas ao mesmo tempo na força da intenção com a qual a afirmação é exposta. Precisamos, assim, concentrar-nos não só naquilo que as pessoas estão dizendo, mas também naquilo que estão fazendo ao dizê-lo. Estudar o que os pensadores disseram sobre tópicos canônicos na história das ideias é, em resumo, realizar somente a primeira de duas tarefas hermenêuticas, cada uma delas indispensável se nosso objetivo é atingir um entendimento histórico sobre o que escreveram. Para além de nos atermos àquilo que disseram, devemos, ao mesmo tempo, compreender o que pretendiam dizer ao dizê-lo.
Insistir nessa afirmação significa se basear nos argumentos de Wittgenstein sobre o que está em jogo na recuperação de significado e no desenvolvimento feito por J. L. Austin dos argumentos de Wittgenstein sobre significado e uso. Ofereço um relato completo destas teorias e sua relevância no capítulo 5 e 6[133]. Contento-me aqui em ilustrar a diferença existente entre o estudo de textos individuais ou de “unidade-ideias” se reconhecemos, de maneira séria, o fato de que há sempre uma pergunta a ser feita sobre o que os escritores estão fazendo, bem como sobre o que eles estão dizendo, se nosso objetivo é compreender seus textos.
Para ilustrar esta afirmação, consideremos primeiramente o caso de um texto individual. Descartes, em suas Meditações, acredita ser de vital importância a possibilidade de reivindicar a ideia de conhecimento indubitável. Mas por que esta era uma questão para ele? Historiadores tradicionais da filosofia quase nunca se perguntaram isto; geralmente assumiram por óbvio que, sendo Descartes um epistemólogo, e sendo a questão da certeza um dos problemas centrais da epistemologia, não havia um enigma especial a ser desvendado. Sentiram-se, por conseguinte, capazes de se concentrar naquilo que tomaram como sua tarefa básica, a de examinar criticamente o que Descartes diz sobre como podemos saber algo com certeza.
Minha insatisfação com essa abordagem – para me valer dos termos úteis de R. G. Collingwood – advém do fato de que ela nos deixa sem qualquer noção sobre a questão específica a qual Descartes pode ter pretendido apresentar sua doutrina da certeza como solução[134]. Por conseguinte, deixa-nos sem nenhum entendimento sobre o que ele estaria fazendo ao apresentar sua doutrina na forma na qual a apresentou. Dessa maneira, creio que houve um grande avanço no campo dos estudos sobre Descartes nos últimos anos quando alguns pesquisadores – Richard Popkin, E. M. Curley e outros – começaram a se perguntar precisamente estas questões sobre as Meditações[135]. À maneira de resposta, eles sugeriram que parte do que Descartes estava fazendo respondia a uma nova e especialmente corrosiva forma de ceticismo que aflorava a partir da recuperação e difusão dos antigos textos pirrônicos no final do século dezesseis. Eles nos proporcionaram não só um meio de caracterizar as Meditações, mas, ao mesmo tempo, nos deram uma chave para interpretar muitos de seus efeitos em detalhe. Eles nos permitiram pensar, novamente, porque o texto está organizado de uma determinada forma, porque se utiliza um determinado vocabulário, porque se aponta e enfatiza particularmente certos argumentos, e porque, de uma maneira geral, o texto possui uma identidade e uma forma distinguida.
Um conjunto de considerações similar pode ser aplicado ao projeto de Lovejoy de se concentrar nas “unidade-ideias[136]” e em “traçar um grande, mas elusivo tema” através de um determinado período ou mesmo “através de vários séculos[137]”. Consideremos, por exemplo, o projeto que tenta escrever a história da ideia de nobilitas no início da era moderna na Europa. O historiador pode começar, acertadamente, apontando que o termo recebeu um significado pelo fato de que era utilizado para se referir a uma qualidade moral particularmente valorizada. Ou o ele pode, de maneira igualmente apropriada, apontar que o mesmo termo foi utilizado para denotar o pertencimento a uma classe social específica. Na prática, não está claro qual dos significados deve ser aplicado ao estudar um caso determinado. Quando Francis Bacon afirma que a nobreza adiciona majestade ao monarca, mas diminui o seu poder, poderíamos pensar (lembrando sua admiração por Machiavelli) tanto no primeiro quanto no segundo significado (lembrando sua posição oficial). Um problema adicional surge do fato de que essa ambiguidade foi comumente usada por moralistas de maneira estratégica. O objetivo é, algumas vezes, insistir que alguém pode ter qualidades nobres mesmo quando não tenha nascido em berço nobre. A possibilidade de que alguém possa ser corretamente chamado de nobre “mais pela lembrança de sua virtude do que pela distinção de suas propriedades” era um paradoxo frequente no pensamento moral renascentista[138]. Entretanto, algumas vezes o objetivo consiste em insistir que, embora a nobreza possa ser atingida, está de fato relacionada a nobreza de sangue. Essa feliz coincidência foi assinalada ainda mais comumente[139]. Foi sempre possível para o moralista, além disso, transformar a ambiguidade básica do conceito de nobilitas, contrastando a nobreza de sangue com a baixeza de comportamento. Quando sir Thomas More descreve, em Utopia, o comportamento nobre da aristocracia militar, ele bem poderia estar procurando desacreditar o conceito imperante de nobilitas[140].
Meu exemplo é obviamente muito simplificado, mas ainda suficiente, creio, para expor duas debilidades inerentes ao projeto de escrever história de “unidade-ideias”. Primeiramente, se queremos entender uma determinada ideia, mesmo em uma determinada cultura em um determinado momento, não podemos simplesmente nos concentrarmos, à maneira de Lovejoy, em estudar os termos pelos quais ela foi expressada. Ela pode ter sido utilizada, como sugere meu exemplo, com intenções variadas e incompatíveis. Não podemos nem sequer esperar que um contexto de enunciado possa resolver essa dificuldade. O próprio contexto pode ser ambíguo. Ao contrário, devemos estudar os vários contextos nos quais as palavras foram utilizadas – todas as funções que cumpriram, todas as coisas que se podiam fazer com elas. O erro de Lovejoy não é somente a procura de um “significado essencial” da “ideia”, como algo que deve necessariamente “permanecer intacto”, mas também supor a necessidade de tal significado “essencial” (ao qual escritores individuais “contribuem[141]”).
Um segundo problema é que, ao escrever este tipo de histórias, nossas narrativas perdem quase imediatamente o contato com os agentes das declarações. Quando eles aparecem em tais histórias, em geral surgem somente porque a unidade-ideia relevante – o contrato social, a ideia de progresso, a grande cadeia dos seres, etc. – aparece de alguma forma em seus trabalhos, e então se pode dizer que contribuíram para o seu desenvolvimento. O que não podemos aprender com tais histórias é qual papel – trivial ou importante –pode ter ocupado uma ideia determinada no pensamento de qualquer autor. Tampouco podemos aprender qual lugar – central ou periférico –possa ter ocupado esta ideia no clima intelectual de um período durante o qual tenha aparecido. Talvez somos informados de que a expressão foi usada em diferentes momentos para responder a uma série de questões. Mas não podemos esperar aprender (para utilizar o argumento de R. G. Collingwood) quais questões o emprego de tal expressão buscava responder, e então quais razões existiam para que se continuasse a empregá-la.
A crítica a ser feita para este tipo de história não é somente de que parecem estar perpetuamente sujeitas a perder sua razão de ser. Consiste, ao contrário, em que, assim que percebemos de que não existe uma determinada ideia a qual vários escritores contribuíram, mas sim uma variedade de afirmações feita por uma série de agentes com uma multiplicidade de intenções, percebemos que não há uma história da ideia a ser escrita. Há somente a história de seus vários usos, e das várias intenções com as quais foi empregada. Tal história dificilmente toma a forma da história de uma “unidade-ideia”. Pois a persistência de expressões particulares não nos diz nada confiável sobre a persistência das questões as quais as expressões podem ter sido empregadas para responder, menos sobre aquilo que os diversos escritores queriam dizer ao usá-las.
Em resumo. Quando percebermos que há sempre uma questão a ser respondida sobre o que os escritores estão fazendo ao dizer o que dizem, parece-me que não devemos continuar a organizar nossas histórias perseguindo as “unidade-ideias” ou nos enfocando naquilo que os escritores individuais dizem sobre as “questões perenes”. Dizer isto não significa negar a existência de longas continuidades na filosofia moral, social e política ocidentais, e que estas estiveram refletidas no emprego estável de alguns conceitos-chave e modos de argumentação[142]. Significa simplesmente dizer que existem boas razões para não continuar a organizar nossas histórias em torno do estudo de tais continuidades, de maneira que acabamos com ainda mais estudos de um determinado tipo, no qual as visões de Platão, Agostino, Hobbes e Marx sobre “a natureza do Estado justo” são expostas e comparadas[143].
Uma razão para meu ceticismo em relação a tais histórias, como tentei demonstrar na primeira parte do meu argumento, não é simplesmente o fato de que cada pensador – para tomar o exemplo que acabei de dar – parece responder à questão sobre justiça de maneira própria. É, também, o fato de que os termos empregados ao delinear a questão – neste caso os termos “Estado”, “justiça” e “natureza” – apresentam-se em suas teorias, se se apresentam, de uma maneira divergente, ao ponto de parecer uma confusão óbvia supor que quaisquer conceitos estáveis estão sendo escolhidos. O equívoco, em resumo, consiste em presumir a existência de um conjunto de questões às quais diferentes pensadores estão todos tentando responder.
Uma razão mais profunda para meu ceticismo é aquela que procurei ilustrar nesta parte de meu argumento. A abordagem que critiquei envolve a abstração de argumentos particulares do seu contexto de aparecimento com o objetivo de apresentá-los como “contribuições” para supostos debates perenes. Mas essa abordagem nos impede perguntar o que um determinado autor poderia estar fazendo ao apresentar sua “contribuição” particular e, portanto, separa-nos de uma das dimensões do significado que precisamos investigar se pretendemos compreender o escritor em questão. É por isso que, apesar das longas continuidades que inegavelmente marcaram nossos padrões de pensamento inerentes, permaneço cético quanto ao valor de escrever histórias de conceitos ou “unidade-ideias”. A única história das ideias a ser escrita são as histórias de seus usos na argumentação.
Se meu argumento, até agora, faz sentido, podem resultar dele duas conclusões acertadas. A primeira diz respeito ao método apropriado para o estudo da história das ideias. Sugeri que a compreensão dos textos pressupõe o entendimento do que se pretendia como seu significado e como ele deveria ser recebido. Para entender um texto deve-se, pelo menos, compreender tanto a intenção implícita e a intenção que representa o ato comunicativo presente no texto. A questão que precisamos confrontar ao estudar tais textos, portanto, é o que pretendiam comunicar seus autores – ao escrever, no momento em que escreveram, para o público específico que tinham em mente – ao endereçar tais afirmações. Parece-me que, dessa forma, a maneira mais esclarecedora de proceder deveria começar por uma tentativa em delimitar a gama completa de comunicações que poderiam ter sido convencionalmente realizadas em uma determinada ocasião através de um pronunciamento específico. Depois disto, o seguinte passo deve ser traçar as relações entre tal pronunciamento e seu contexto linguístico mais amplo como uma maneira de decodificar as intenções de um determinado autor[144]. Uma vez que se percebe, dessa forma, que o foco apropriado de estudo é essencialmente linguístico e que a metodologia apropriada, consequentemente, tem a ver com a recuperação das intenções, o estudo de todos os fatos relacionados com o contexto social de um determinado texto pode, então, ocupar seu lugar como parte desta empresa essencialmente linguística. O contexto social aparece, assim, como o melhor marco para ajudar a decidir quais significados reconhecíveis de maneira convencional poderiam, em princípio, estar à disposição de alguém. Como procurei mostrar no caso de Hobbes e Bayle, o próprio contexto pode ser usado como um tipo de corte de apelação para avaliar a plausibilidade relativa de inscrições de intencionalidade compatíveis. Não sugiro, é claro, que essa conclusão seja, por si mesma, particularmente original[145]. O que sim afirmo é que a revisão crítica que realizei avança em direção a apresentar um argumento a favor desta metodologia – em direção ao seu estabelecimento não como uma preferência estética ou como um artifício do imperialismo acadêmico, mas como uma questão para compreender as condições necessárias para o entendimento de tais pronunciamentos.
Minha segunda conclusão geral diz respeito ao valor em estudar a história das ideias. A possibilidade mais entusiasmante é aquela do diálogo entre a análise filosófica e a evidência histórica. O estudo das afirmações proferidas no passado apresenta questões específicas, e pode produzir conclusões de interesse filosófico. Entre os tópicos que podem ser iluminados de maneira mais intensa ao adotarmos uma abordagem intensamente diacrônica e possível pensar em particular, no fenômeno da inovação conceitual e no estudo da relação entre mudança linguística e mudança ideológica. Tento perseguir algumas dessas implicações nos capítulos 8, 9 e 10 do volume I.
Contudo, minha principal conclusão é que a crítica que apresentei sugere um ponto mais óbvio sobre o valor filosófico do estudo da história das ideias. Por um lado, parece-me causa perdida tentar justificar o tema nos termos das respostas que se possam dar aos “problemas perenes” que supostamente aparecem nos textos clássicos. Como procurei mostrar, abordar o tema dessa maneira é resumi-lo a termos desnecessariamente simplistas. Qualquer afirmação é inevitavelmente a materialização de uma intenção específica em uma ocasião específica, proferida para a solução de um problema particular e, portanto, é específica para seu contexto ao ponto que seria simplista tentar transcendê-lo. A conclusão não é somente que os textos clássicos dizem respeito a suas próprias perguntas e não as nossas; é também que – para reviver o argumento de R. G. Collingwood[146] – não existem problemas perenes em filosofia. Existem somente respostas individuais a perguntas individuais e, potencialmente, existem tantas questões quanto questionadores. Ao invés de buscar “lições” diretamente aplicáveis na história da filosofia, seria melhor aprender a pensar por nós mesmos.
Não se pode concluir que o estudo da história das ideias não tenha valor filosófico. O próprio fato, parece-me, de que os textos clássicos tenham a ver com os seus próprios problemas e não necessariamente com os nossos é o que lhes confere sua “relevância” e significância filosófica atual. Os textos clássicos, especialmente aqueles sobre moral, teoria social e política, podem nos ajudar a revelar – se lhes permitimos – não a mesma uniformidade essencial, mas sim uma variedade de considerações morais e compromissos políticos viáveis. Pode-se dizer que é aqui onde se encontra seu valor filosófico e, inclusive, moral. Existe uma tendência (algumas vezes explicitamente apresentada, como no caso de Hegel, como modo de proceder) de supor que a melhor, e não somente inescapável, perspectiva para o estudo das ideias do passado é a nossa situação presente, por ser esta, por definição, a mais evoluída. Tal afirmação não sobrevive o reconhecimento do fato de que as diferenças históricas sobre questões fundamentais podem ser resultado de diferenças de intenção e convenção mais do que uma competição por uma comunidade de valores, muito menos resultado da evolução da percepção do Absoluto.
Reconhecer, para além disso, que nossa sociedade não difere de qualquer outra e que possui suas próprias crenças locais e suas próprias organizações da vida social e política é chegar a um ponto de vista muito diferente e, desejo argumentar, muitos mais saudável. Um conhecimento da história de tais ideias pode nos mostrar a medida na qual estas características e nossas próprias organizações, que estamos dispostos a aceitar como verdades “atemporais[147]”, podem ser pouco mais do que contingências de nossa história local e nossa estrutura social. Descobrir, a partir da história do pensamento, que de fato não existem tais conceitos atemporais, mas somente a variedade de conceitos diferentes que existiram em diferentes sociedades, é descobrir uma verdade geral não só sobre o passado, mas sobre nós mesmos.
É um lugar comum – somos todos marxistas nesse sentido – que nossa própria sociedade interpõe limites invisíveis sobre nossa imaginação. Merece, portanto, transformar-se em lugar comum que o estudo histórico das crenças de outras sociedades deve se fazer como uma maneira indispensável e insubstituível de limitar tais limitações. A alegação de que a história das ideias consiste em pouco mais do que “ideias metafísicas antiquadas” – apresentada, de maneira frequente, na atualidade com um paroquialismo aterrorizante como motivo para abandonar esse tipo de história – se transformaria, portanto, na razão para considerar tais histórias como indispensavelmente “relevantes”, não pelas lições brutas que delas se possam extrair, mas porque a própria história pode oferecer uma lição para o conhecimento de si mesmo. Exigir da história do pensamento uma solução para nossos problemas imediatos é não somente cometer uma falácia metodológica, mas algo parecido a um erro moral. Mas, aprender com o passado – e não podemos aprender de outra maneira – a diferença entre o que é necessário e o que é produto contingente de nossos arranjos locais, é aprender uma das chaves para a autoconsciência.