Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir a importância da ideia de progresso na fundamentação de um projeto de hegemonia política e econômica em Chapecó, Santa Catarina, entre 1950 e 1969. Com a intensão de ocupar a região considerada como “vazio demográfico”, o governo do estado de Santa Catarina articulou o projeto de conquista da região através da atuação de companhias colonizadoras, responsáveis pela acomodação de migrantes eurodescendentes provindos do Rio Grande do Sul. Neste sentido, durante a primeira metade da década de 1950, as companhias colonizadoras simbolizaram o empreendimento de um processo “civilizatório” para a região, baseados em ideias de trabalho árduo, religiosidade católica e progresso. Com o linchamento de quatro forasteiros acusados de incendiar a igreja matriz em 1950, contemporâneo do declínio do poder político e econômico das companhias colonizadoras, as elites locais precisaram se articular na composição de um projeto político em torno da agroindústria como nova matriz produtiva, como forma de levar adiante o projeto colonizador. A ideia de progresso, neste sentido, mais do que um conceito abstrato, passou a traduzir e fundamentar a construção de um projeto político hegemônico, reunindo em torno de si diferentes grupos políticos e econômicos e que, nas décadas de 1950 e 1960, se materializou no aumento da infraestrutura regional e se difundiu por todos os demais grupos sociais do município. O artigo conclui com a abordagem do que consideramos ser o momento mais significativo desta construção: os festejos do cinquentenário de Chapecó, em 1967, durante a ditadura civil-militar, e a aproximação das elites locais em torno de um projeto que se consolidou na década de 1970.
Palavras-chave: Chapecó Chapecó, SC – Política e Governo SC – Política e Governo, Agroindústria Agroindústria, Chapecó Chapecó, SC – História SC – História, Chapecó Chapecó, SC – Colonização SC – Colonização.
Abstract: The present article aims at discussing the importance of the idea of progress foregrounding a project of political and economic hegemony in Chapecó, Santa Catarina, between 1950 and 1969. With the intention of occupying a region regarded as a "demographic void," Santa Catarina state government articulated the project of conquering the region through the use of colonizing companies responsible for settling migrants of European descent from Rio Grande do Sul state. In this sense, during the first half of the 1950 decade, the colonizing companies symbolized the development of a "civilizing" process in the region, based on the ideas of hard work, Catholic faith, and progress. With the lynching of four outsiders accused of burning down the main church in 1950, contemporary to the decline of political and economic powers of colonizing companies, local elites had to coordinate in composing a political project around agribusiness as the new productive matrix, as a means of pushing the colonizing project forward. In this sense, the idea of progress (more than an abstract concept) began to translate and underpin the construction of a hegemonic political project, gathering different political and economic groups and resulting in an increase of regional infrastructure, spreading to the other social groups in the municipality in the 1950 and 1960 decades. The article concludes with an approach of what is considered the most significant moment of this construction: the celebration of the 50th anniversary of Chapecó in 1967 and local elites closing in around a project that was consolidated in the 1970 decade.
Keywords: Chapecó, SC – Politics and Government, Agroindustry, Chapecó, SC – History, Chapecó, SC – Colonization.
Artigos
“O Oeste Catarinense não pode parar aqui”. Política, agroindústria e uma história do ideal de progresso em Chapecó (1950 ‐ 1969)
"Western Santa Catarina cannot be stopped". Politics, agribusiness and a history of the ideal of progress in the Chapecó (1950-1969)
Recepção: 02/02/17
Aprovação: 21/06/17
“Todos sentem-se orgulhosos de ver o nome de Chapecó colocado no ápice do progresso e os chapecoenses sentem-se felizes pela vitória.” (Jornal Folha d’Oeste. Os “Generais” da vitória. Chapecó, 14 de outubro de 1967, nº 119, p. 3)
Em 1967, após a realização da I Exposição Feira Agropecuária e Industrial (EFAPI), a imprensa local adotou uma narrativa de competição esportiva (“vitória”) para expressar um ideal de confiança sobre o presente. Chapecó, enfim, teria alcançado um lugar especial junto ao hall de sociedades, que em uma competição imaginária, alcançaram os padrões elevados – e em seu entendimento, “superior” – característicos da civilização ocidental. Tal questão expressa, em linhas gerais, uma luta contra o passado em dois aspectos: uma memória otimista, marcada pela marcha do empreendimento colonizador que “venceu” os sertões desconhecidos e, com trabalho árduo, teria alcançado um patamar de “progresso” exemplar, tanto moral quanto material e social – e a EFAPI marcaria, de acordo com esta interpretação, o momento máximo de conquistas civilizatórias para a sociedade regional até então; por outro lado, a “vitória” também pode ser interpretada como um rompimento com o passado, neste caso, representado pelo linchamento de quatro “forasteiros” acusados de incendiar a igreja central em outubro de 1950.
Até aquele momento, predominavam duas narrativas sobre Chapecó e a região: a mais intensa e exógena, ou seja, empreendida por visitantes de órgãos governamentais, viajantes e outros que interpretavam Chapecó enquanto uma distante vila com ruas sem calçamento, população esparsa e caracterizada, sobretudo, pela violência. Por outro lado, uma narrativa interna buscava ressaltar a importância do empreendimento colonizador com vistas a civilizar os sertões[1]. Este artigo analisa como a segunda opção, otimista em relação à colonização, se sobrepôs não apenas como argumento retórico, mas como projeto fundamental para a viabilização do empreendimento regional. Após o linchamento de 1950 – que resultou na não comercialização de lotes destinados à colonização por um período de dois anos[2] –, a ideologia do progresso se tornou necessária para revisitar o passado, apaziguar os conflitos sociais e prescrever o futuro.
Metodologicamente, não trabalharemos com a distinção do termo “progresso” enquanto conceito ou fato. E explicamos: em sua apresentação para o livro clássico de Christopher Dawson sobre a vinculação deste conceito com a religião, Joseph T. Stuart faz uma diferenciação entre Progresso (com “P” maiúsculo) e progresso (com “p” minúsculo); o primeiro estaria ligado ao ideário de Progresso – em um sentido simbólico – enquanto o segundo se refere ao fato do progresso – os eventos, fatos que “demonstram” que a sociedade e as ciências progridem (STUART, 2012, p. 11). Segundo Bruce Mazlish e Leo Marx, “a ideia de progresso é um conceito multiforme. Pode ser, simultaneamente, uma filosofia da História, uma ideologia ao serviço de interesses de diferentes grupos sociais e uma fé do tipo milenarista” (MASLISH; MARX, 2001, p. 22). Neste artigo, observaremos como os ideais de progresso, expressos na retórica política, na imprensa e em outras formas de construção simbólica, fundamentaram o surgimento de instituicões voltadas a promoção de um tipo especifico de progresso e desenvolvimento, que por sua vez, fundamentaram novas formas de propaganda. Em resumo, utilizando a bibliografia sobre a história da região, material de imprensa e entrevistas, abordaremos o progresso enquanto construção de uma hegemonia, ou seja, como a imposição dos valores de determinado grupo à sociedade em geral[3].
Conforme demonstra Koselleck, a ideia de progresso apresentou como novidade no século XVIII o “não advento do fim do mundo” e, a existência do Estado, neste sentido, pressupôs a “eliminação das profecias apocalípticas” (KOSELLECK, 2006, p. 37). De certa forma, a construção da hegemonia do grupo representado inicialmente por companhias colonizadoras e, posteriormente, pela agroindústria, buscou eliminar o apocalipse representado pelo linchamento de 1950. E a ideia de progresso foi fundamental para o sucesso dessa tarefa.
Entendemos que este ideal, não sem modificações, permanece. Como exemplo, em 25 de agosto de 2017, o município de Chapecó completou um século de fundação político-administrativa. A propaganda oficial e as homenagens realizadas por parte da prefeitura municipal e de entidades empresariais em torno do primeiro centenário da “Capital do Oeste” reforçam um ideário de trabalho e progresso atribuído à colonização eurodescendente provinda do Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XX. O argumento desta narrativa, sob o ponto de vista das elites políticas e empresariais, é a valorização de uma história construída em torno da chegada dos colonizadores de origem italiana e alemã para ocupar um espaço “vazio” e “sem lei”[4]. A história de Chapecó resume-se, sob esta perspectiva, à história de um grupo de migrantes de origem europeia que, chegando na região a partir da década de 1920, imprimiu um determinado processo civilizatório que teria evoluído de uma pequena vila para a cidade conhecida nacionalmente na atualidade, principalmente através da produção agroindustrial. A história de Chapecó é, de acordo com esta perspectiva hegemônica, uma história de progresso, uma linha de tempo baseada na evolução contínua partindo de tempos menos complexos para a atualidade; e a defesa do “progresso de Chapecó”, está desde a década de 1940 ligada à “defesa dos valores relacionados à manutenção da ordem e à preservação dos interesses da comunidade, predominantemente italiana, através da ética do trabalho e do ideário religioso, apoiados no projeto desenvolvimentista da região” (HASS, 2007, p. 195). Tais valores, neste sentido, constituem a base para a ordem e o progresso.
Com o intuito de demonstrar como este processo foi construído, este artigo busca localizar historicamente a construção de um conjunto de ações – obras públicas, comemorações, projetos, instituições – que se inserem na visão de “melhoramento” e “avanço” da sociedade em direção a um futuro considerado melhor do que o presente. Não pretendemos realizar, desta forma, uma análise da retórica política apenas, mas entender através da imprensa, de entrevistas e de outras fontes de pesquisa como tal noção traduz determinados ideais buscando a construção de um projeto hegemônico. Entendemos, desta forma, como no caso chapecoense os ideais de progresso organizaram uma agenda de ações que modificaram radicalmente o espaço do município; serviu, neste sentido, como prescrição organizativa do futuro, e desde então, dominou a pauta política municipal.
Desta forma, este artigo interpreta a construção de uma hegemonia da ideia de progresso a partir do seguinte argumento: os valores introduzidos pelos eurodescendentes durante o processo inicial de colonização da região contrapõem a ideia de futuro (progresso) aos valores locais de caboclos (subsistência, presente) e mandonismo local/coronéis (patrimonialismo, presente), estudados tanto por Renk (2005) quanto por Hass (1997)[5]; no entanto, podemos considerar que mesmo com a predominância destes ideais de progresso antes da Segunda Guerra Mundial, existiam fortes processos de resistência por parte dos grupos locais; após o linchamento de 1950, e a organização das elites em torno de um projeto político efetivado com a instalação da agroindústria, o ideal de progresso foi reconhecido como processo dominante ao longo da década de 1970 e difundido mesmo por aquelas populações excluídas por este processo. A título de exemplo, embora se localizando fora do período analisado, a ascensão de movimentos sociais na região desde fins da década de 1970 questionou em grande parte a narrativa oficial da história de Chapecó: a história regional, de acordo com estes grupos, não iniciou com a chegada dos migrantes, uma vez que os grupos indígenas e caboclos ocupavam a região desde os “tempos d'antes” – a idealização da época anterior à colonização, de acordo com os “brasileiros”, o grupo étnico que habitava a região. No então, é possível observar que os grupos autodenominados progressistas, ligados à ascensão dos movimentos sociais, mesmo criticando os impactos do progresso – degradação ambiental, exclusão social e outras marcas atribuídas ao capitalismo – não romperam com seus pressupostos[6].
Desta forma, debateremos o tema em termos gerais, apresentando o argumento deste trabalho.
Hoje já não é de bom tom entre historiadores e cientistas sociais falar que se acredita em progresso. Contudo, a bem da verdade, penso que nós, brasileiros, nunca acreditamos nele com a mesma convicção com que os norte-americanos acreditam […]. Ou, se alguma vez acreditamos no progresso, pensamos nele muito mais numa forma de espiral do que em uma flecha mirada para o futuro. (WEGNER, 2015, p. 10)
A provocação acadêmica feita na epígrafe deste texto pelo pesquisador brasileiro Robert Wegner é interessante para refletir como, no pensamento social e político nacional, a tradição iluminista – na qual podemos mapear as origens da ideia de progresso, foi adaptada ou ressignificada ao longo da formação da nação brasileira[7]. Por outro lado, este artigo busca apontar justamente um processo inverso e muito característico em determinadas regiões do Sul do Brasil, ou seja, como a ideia de progresso foi adotada pelas elites locais representando “uma flecha mirada para o futuro”, de acordo com a expressão de Wegner. Nesta perspectiva, o ideal de progresso foi apropriado por uma aliança político-empresarial e serviu como ferramenta tanto para uma reinterpretação do passado coronelista da região, dominado pela violência, quanto para a organização de uma determinada ideia de futuro. Localizamos a ascensão de tal construção social entre o ano de 1950, marcado pelo linchamento de quatro “forasteiros” acusados de incendiar a igreja local, e o final da década de 1960. Embora os “anos dourados” do ideal de progresso em Chapecó possam ser facilmente identificáveis na década de 1970 – quando da articulação de um plano de desenvolvimento na gestão de Altair Wagner (1973-1977) e do CODEC na gestão de Milton Sander (1977-1983), o período entre 1950 e 1967 marcou a necessidade de modificações na estrutura econômica do município: a indústria madeireira declinou nos anos que seguiram o final da Segunda Guerra Mundial e uma nova forma de organização produtiva precisou ser construída para dar continuidade ao processo colonizador iniciado em 1917 com a criação do município.
Sob o argumento de que tais áreas, em disputa com a Argentina, até 1895 (Questão de Palmas ou Missiones) e, com o Paraná, até 1916 (O Contestado), precisavam ser "civilizadas", em agosto de 1917, foram criados quatro municípios abrangendo as áreas que estavam anteriormente sob litígio. Chapecó, com a maior extensão territorial[8], reunia em sua área uma diversa e esparsa população: fazendeiros, assentados das colônias militares que reivindicavam a área em disputa com a Argentina; assentados dos passos de tropa; remanescentes da atividade tropeira que ligava o Rio Grande do Sul ao Paraná; remanescentes de quilombolas (situados na atual divisa entre Santa Catarina e Paraná); assim como remanescentes das disputas políticas do Rio Grande do Sul e do Contestado. Estas populações, excetuando-se os coronéis proprietários, eram consideradas “atrasadas” pelas elites estaduais, que iniciaram as negociações para a atração de companhias colonizadoras, voltadas à ocupação deste “vazio demográfico” por colonos descendentes de europeus. A pequena propriedade e a agricultura em pequena escala, familiar, assim como o extrativismo da madeira e da erva-mate deram a tônica deste empreendimento civilizatório entre 1917 e 1945, envolvendo disputas entre os grupos locais de antigos proprietários e os grupos ligados às companhias colonizadoras.
O predomínio político dos colonizadores, no caso de Chapecó, ligados à Empresa Colonizadora Ernesto Francisco Bertaso S.A., através do próprio coronel Bertaso, nascido na Itália, deu origem a uma série de ações voltadas não somente à colonização, mas ao empreendimento do futuro já na década de 1930: a elaboração do mapa urbano da cidade de Chapecó, em 1931, expressou um “desejo de modernidade” por parte das elites locais (PETROLI, 2008, p. 150). Sob a égide do Estado Novo, os grupos hegemônicos posicionaram-se sobre o devir, sobre como a sociedade chapecoense deveria organizar suas ações: “um futuro próspero dependeria da preocupação com o presente, da preocupação com a infância. Assim, a preocupação com o futuro não diz respeito somente à construção de uma cidade moderna, em termos de traçado e arquitetura urbana”, argumenta o autor, mas “necessário seria alfabetizar, educar moral e intelectualmente a mocidade, no sentido de construir uma sociedade homogênea, ou seja, uma sociedade que buscasse sempre, por meio do trabalho, o desejado progresso” (PETROLI, 2008, p. 150-51).
Em uma sociedade nacional na qual jornalistas, políticos, engenheiros, magistrados e médicos eram as principais personagens dos processos de modernização, Petroli (2008, p. 38-43) ainda destaca que Serafim Enoss Bertaso[9], filho do coronel Bertaso e engenheiro responsável pela elaboração do traçado urbano da região central de Chapecó, assim como o Juíz Antônio Selistre de Campos[10] exerceriam grande influência na elaboração dos ideais de progresso. De fato, Petroli demonstra que a preocupação destes não era apenas retórica, mas juntamente com a elite local, organizaram ações visando tornar possível a construção de uma “Capital do Oeste”, através da melhoria da infraestrutura regional: construção de estradas, melhoramento das comunicações, fornecimento de energia elétrica, construção de escolas, organização da produção agrícola[11].
Neste diálogo com a bibliografia sobre a história da região, observamos que os ideais de progresso, desenvolvimento ou modernidade estavam presentes nas primeiras décadas de colonização. O que marca a diferença para o período posterior a 1950, em nosso argumento, é que o linchamento de quatro forasteiros acusados de queimar a igreja matriz de Chapecó e o processo subsequente de instabilidade política, geraram insegurança tanto na população local quanto por parte de possíveis investidores interessados no município. A violência local e seus relatos na imprensa regional e nacional trouxeram novamente para a pauta um debate sobre a “incivilidade” da região, que, aliada ao declínio da produção madeireira, exigiu um esforço das elites políticas e empresariais na busca de soluções para os empreendimentos locais. Após o linchamento
Pararam os bailes, as festas, e o cinema quase fechou por falta de público. Os viajantes não chegavam mais no povoado. Muitos moradores mudaram-se e outros ausentaram-se por algum tempo. A cidade levou mais de um ano para voltar ao seu ritmo normal. (HASS, 2007, p. 149)
Também, “os migrantes deixaram de vir, acarretando a estagnação do projeto colonizador”, uma vez que a empresa Colonizadora e Industrial Ernesto Francisco Bertaso S.A. “por dois anos não conseguiu vender um pedaço de terra na região” (HASS, 2007, p. 149). Este foi um dos motivos “para a elite local mobilizar-se em torno da instalação de um frigorífico no lugar, a fim de reativar o fluxo migratório e a economia regional” (HASS, 2007, p. 149).
O incentivo à atividade agroindustrial, o desenvolvimento de Chapecó enquanto polo regional, e a aceleração do processo de urbanização, os debates em torno do traçado da BR-282, a realização da Exposição-Feira Agropecuária, Industrial e Comercial (EFAPI), entre outras ações, marcaram uma agenda política que mobilizou os dois principais grupos políticos durante o período. Argumentamos neste artigo que, se as elites locais expressaram um “desejo de modernidade e progresso”, conforme Petroli (2008, p. 9), na construção urbana e na formação dos cidadãos chapecoenses durante o Estado Novo, após o linchamento ocorrido em outubro de 1950, o progresso tornou-se uma necessidade para a continuidade do projeto colonizador e seu sucesso. A ideia de progresso traduziu-se em projeto hegemônico que uniu diferentes tradições políticas após 1950 e fez convergir diferentes partidos ou grupos políticos e sociais.
Contando com uma população diferenciada étnico-culturalmente, as populações conhecidas como “tradicionais” expressavam em sua organização social concepções pouco análogas à ideia de Progresso. A organização social dos povos indígenas e dos caboclos pautava-se muito mais pela noção de tempo presente do que pela ideia de futuro[12]. Em termos práticos, tais ideias se traduziam pela não acumulação de posses, evidenciadas na criação de animais à solta, no uso comum da terra, entre outras características. Também, os grupos políticos que disputavam o controle local, nas primeiras décadas, caracterizavam-se muito mais pelo patrimonialismo, característica do sistema coronelista de dominação, do que por ideais iluministas e projetos de futuro pautados no melhoramento social, técnico, científico ou mesmo político: para estes grupos, o controle político está acima de qualquer perspectiva de mudança social[13].
Desta forma, o ideal de Progresso serviu como instrumento organizador da intervenção sobre a natureza e a sociedade, como elo entre diferentes grupos políticos e dominou a retórica política por grande parte da história da região. E tal operação, observa-se, foi tão intensa que mesmo nas décadas que se seguem ao período abordado, momento marcado pela ascensão dos movimentos sociais (MST, MAB, MMC, entre outros), o aumento demográfico e o surgimento de novos grupos voltados à atuação política na região (partidos políticos, notadamente), a estratégia de convencimento e disputa de poder ainda dialogam com os ideais de progresso[14]. Possíveis narrativas de grupos sociais “tradicionais” foram silenciadas ou reorganizadas a partir dos interesses vigentes, e os grupos marginalizados pelo processo de modernização assumiram e ainda assumem os ideais de Progresso como seus[15].
De forma comparativa, outras formas de narrativa são construídas por elites em diferentes regiões ou cidades, demonstrando que progresso, modernização ou desenvolvimento não são as únicas formas de interpretar e organizar o futuro: o termo “estagnação” demonstra, a partir da leitura de Otávio Soares Dulci (1999), como as elites de Minas Gerais interpretaram o declínio da atividade de mineração e buscaram uma solução na industrialização para romper com o atraso econômico. Também, o trabalho de Duval Albuquerque Jr. (2009) sobre a invenção do Nordeste argumenta como a imagem de “atraso” é um elemento constitutivo de uma identidade regional expressa nas artes. As obras tanto de Dulci quanto de Albuquerque demonstram a pluralidade de narrativas, reforçando a diferença àquela apresentada neste artigo. Mesmo que os grupos hegemônicos insistam que a história de Chapecó e região seja análoga à ideia de progresso, e isto não represente uma singularidade, argumentamos que o reforço de tal ideário aconteceu justamente por determinadas situações sociais, políticas e econômicas, cujo evento central se encontra no linchamento de 1950. E para o entendimento deste processo, propomos um debate inicial sobre a história do conceito de progresso, principalmente em relação às suas origens na modernidade.
Existe um grande debate sobre a noção de progresso desde o início do século XX, seja ele afirmativo, reflexivo ou crítico. Para este artigo, selecionamos como bibliografia o debate sobre as origens destes ideais – marcadamente inspirados pelo melhoramento da sociedade, e sua aproximação, ao longo do século XIX, com a noção de ordem. Em resumo, optamos demonstrar, mesmo que rapidamente, que as formulações de progresso social de Turgot e Concorcet[16] foram substituídas, ao longo do século XIX por uma lei de Progresso cética e que inspira competitividade, como em Spencer e Comte. Outras formas de entendimento deste ideário são possíveis; no entanto, optamos por este caminho por se tratar da corrente de pensamento mais próxima do projeto de colonização da região.
As contradições do progresso são objeto de debate entre filósofos, políticos, cientistas sociais, historiadores e mesmo literatos. O historiador estadunidense Robert Nisbet afirmou que, entre 1750 e 1900, a ideia de progresso atingiu seu auge no Ocidente, transformando-se em ideia dominante “mesmo levando-se em conta a importância crescente de outras ideias como igualdade, justiça social e soberania popular” (Nisbet, 1985, p. 181). No século XIX, por outro lado, o escritor britânico Samuel Butler escreveu sua crítica à sociedade vitoriana na peça Erewhon, na qual seus cidadãos “desconfiam que o aperfeiçoamento contínuo das novas máquinas” poderia levá-las a um estágio de consciência e assim, “ganhar independência e, um dia, já que mais fortes, escravizarem a espécie humana.” A solução apresentada foi destruir as máquinas, “até mesmo os relógios, antes que fosse tarde demais” (DUPAS, 2006, p. 15). A ironia de Butler, neste sentido, pode ser interpretada como uma crítica à sociedade ocidental contemporânea e posterior ao escritor inglês que embarcou nestes ideais sem estabelecer uma relação consistente sobre suas consequências. O progresso, mesmo com “irresistíveis sucessos”, afirmaria Gilberto Dupas no início do século XXI, “acumula um passivo crescente de riscos graves que podem levar de roldão o imenso esforço de séculos da aventura humana para estruturar um futuro viável e mais justo para as gerações futuras” (DUPAS, 2006, p. 16).
Em uma análise sobre as origens e significados deste conceito, Dupas expõe que o surgimento de um termo polissêmico, ao menos inicialmente, de progresso, pode ser entendido como a tentativa de estabelecimento de uma fé secular após o período medieval no qual o mundo seria criado pelo homem (DUPAS, 2006, p. 11). Nesta passagem do Teocentrismo para o Antropocentrismo, característica da modernidade, a “doutrina do progresso” se incorporou à filosofia do século XVIII “e foi se convertendo em credo em que os constantes avanços tecnocientíficos ratificavam ao criar produtos e serviços que se transformam em objeto de desejo e símbolos de progresso” (DUPAS, 2006, p. 13). Se, para Nicola Abbagnano, a formulação de uma ideia de Progresso aparece primeiramente nos escritos de Alessandra Tossoni, Fontenelle, retomando Giordano Bruno e Francis Bacon, ao contrapor os “antigos” e “modernos” (ABBAGNANO, 2007, p. 63), Christopher Dawson afirma que o progresso enquanto doutrina “foi formulado claramente pela primeira vez pelo abade de St. Pierre após o término da guerra de Sucessão Espanhola”, entre 1701 e 1704, “numa época em que ele estava fazendo sua propaganda para formação de um tipo de Liga das Nações que deveria garantir paz perpétua na Europa” (DAWSON, 2012, p. 47). No entanto, retomando Koselleck, é fundamental entender que a ideia de progresso representa uma novidade para a modernidade, porque “a história da Cristandade, até o século XVI, é uma história [...] de uma contínua expectativa do final dos tempos; por outro lado, é também a história dos repetidos adiamentos desse mesmo fim do mundo” (KOSELLECK, 2006, p. 24).
Para o debate proposto neste artigo, é importante expor que durante o século XIX, Comte e Spencer romperam com proposições iluministas presentes na ideia de Progresso – como a concepção de progresso social de Turgot e Condorcet. Nesta perspectiva, propuseram uma leitura moralista deste conceito, difundindo-a através da academia e da religião. Neste período, a doutrina “otimista e teleológica de Progresso” de Condorcet daria lugar às “opiniões objetivas e pessimistas de Malthus” presente na filosofia biológica de Spencer e na teoria da seleção natural de Darwin (DAWSON, 2012, p. 74-75), formulando uma lei do “cego e não ético”; a fome dos menos aptos substituiu os argumentos voltados aos processos teleológicos de cooperação (DAWSON, 2012, p. 75). Sobre Comte, Nisbet aponta que, embora este tenha uma fé no progresso como os iluministas, “interessa-lhe a natureza da hierarquia e da classe governante. Comte não endossa os ideais individualistas e liberais do Iluminismo. Tem grande desprezo pelo que denomina os ‘dogmas metafísicos’ da liberdade, igualdade e soberania popular” (NISBET, 1985, p. 263). No século XIX, neste sentido, os ideais de progresso ajustaram-se à sociedade industrial, ganhando um sentido muitos mais moral do que social.
Este processo, por sua vez, foi influente no Brasil, e apontamos como hegemônico na região Oeste de Santa Catarina: a inserção dos termos “Ordem e Progresso” na bandeira nacional significaria que “no Brasil, a religião comtiana denominada 'Religião da Humanidade' torna-se então, a religião oficial do Estado” (FETSCHER, 2000, p. 258). Os movimentos nacionais de adaptação dos ideais de Auguste Comte também encontraram influente personagem em Júlio Prates de Castilhos durante a passagem do século XIX para o século XX: enquanto presidente da província por duas ocasiões, Castilhos elaborou as bases para a constituição daquele estado, difundindo a tradição Comteana em um contexto de chegada de grande número de imigrantes europeus. E isto explica, em grande parte, a inserção dos ideais de progresso na região de Chapecó, assim como em todo o Oeste Catarinense, Alto Uruguai gaúcho e regiões colonizadas por migrantes eurodescendentes.
O ponto interessante é que à época da chegada das companhias colonizadoras na região, o termo “progresso”, utilizado frequentemente pelas elites do município ao longo do século XX, e que serviu como elemento de formação hegemônica, era duramente criticado junto aos círculos intelectuais após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), como aponta o historiador norte-americano Michael Adas (2003, p. 26). Se a partir da segunda metade do século XVIII, e durante todo o século XIX, “a ideia de progresso foi dominante no ocidente” (DUPAS, 2006, p. 14), a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi um ponto fundamental na crítica aos conceitos não somente de progresso, mas também de civilização (ADAS, 2003, p. 26). Joseph T. Stuart, ao comentar o livro que Christopher Dawson escreveu após o final daquela guerra, observou que “um novo espírito” fez “com que alguns começassem a duvidar da validade da ideia de Progresso” (STUART, 2012, p. 12). O ponto de inflexão, em que a ideia de desenvolvimento se tornou predominante na retórica política após a Segunda Guerra Mundial foi, de acordo com o antropólogo colombiano Arturo Escobar, o discurso de posse do Presidente Harry Truman, proferido em 20 de janeiro de 1949. A exposição de Truman é marcada pelo entendimento de que seria necessário que os Estados Unidos fossem um elemento ativo no auxílio à modernização dos demais países, levando industrialização, urbanização, crescimento da produção material e dos níveis de vida e ideais educacionais e culturais considerados modernos (ESCOBAR, 1995, p. 20). Mais ligado aos processos biológicos, o termo desenvolvimento substituiu o termo progresso a retórica política em nível internacional.[17]
Não apenas em Chapecó, mas na região do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul, na região Oeste de Santa Catarina e nas frentes de colonização dos eurodescendentes gaúchos em outras regiões brasileiras ou mesmo no Paraguai, a noção de progresso, ainda que criticada nos círculos intelectuais nacionais e internacionais há pelo menos um século, permanece. E permanece em função de duas questões predominantes: a primeira, sua conformação histórica, ou seja, a bagagem cultural dos migrantes gaúchos e sua forma de organizar o mundo; com o interesse do Governo do Estado de Santa Catarina em consolidar um projeto de ocupação de uma região disputada com a Argentina até 1895 e com o Paraná até 1916, nomeou-se o Coronel Manoel dos Santos Maia, sócio da colonizadora Bertaso, Maia e Cia., para o cargo de Delegado de Polícia de Chapecó, em 1919: “Coube a ele cuidar da ‘ordem’ pública, uma vez que era responsabilidade dos colonizadores trazer a ordem e, consequentemente o progresso para a região”, seguindo os princípios orientadores da República (HASS, 2007, p. 41).
O segundo instrumento, neste sentido, é a utilização da noção de progresso enquanto constituição de uma hegemonia e fabricação de um consenso. Retomando o argumento de Dupas, Gramsci e Arrighi afirmam que a hegemonia é a “liderança associada à capacidade de um Estado (elite ou grupo) de se apresentar” como tradutor “de um interesse geral, e ser assim percebido pelos outros” (DUPAS, 2006, p. 16). Desta forma, na afirmação de ideais de progresso na sociedade ocidental “se ocultam interesses que são meramente hegemônicos” (Dupas, 2006, p. 16). E a construção desta hegemonia está ligada à difusão de ideais de diversas formas. No entanto, o instrumento mais eficaz e que melhor traduz a ideologia hegemônica é a propaganda, seja ela pública ou privada. De acordo com Chomsky (2013, p.11), “a propaganda para a sociedade deve ter o intuito de manipular a opinião das massas, fazendo com que os indivíduos passem por uma doutrinação, seja ela financiada pelo Estado ou por classes dominantes.” Com isso, temos um instrumento de espraiamento da ideia de progresso e desenvolvimento através de jornais semanais, publicações oficiais, revistas mensais e outras formas de divulgação dos atos que, ao parecerem ser de um governo, são, na verdade, uma mensagem das elites e de seus ideais. A hegemonia, assim, é entendida como “a competência das elites de conduzir um sistema de nações ou culturas a uma direção desejada; mas, ao assim fazer, ainda conseguem ser percebidas como se buscassem o interesse geral” (DUPAS, 2006, p. 16).
Podemos entender que o processo de construção do progresso, enquanto ideologia, produz instituições de organização da sociedade, como instrumento de “acelerar” o “progresso”. Um exemplo é a fundação da Secretaria dos Negócios do Oeste em 1963, que será debatida adiante. Para este momento, debateremos o linchamento de 1950 entendendo o mesmo como um turning point, ou seja, um evento fundamental para a reorganização política, econômica e social. Sem este evento, possivelmente o projeto colonizador teria encontrado grandes dificuldades de construção hegemônica. O ideal de progresso serviu justamente como instrumento de coesão ideológica às elites locais diante das dificuldades impostas ao projeto colonizador pela constante expressão da violência nos sertões catarinenses.
“De qualquer modo precisamos retirar Chapecó do
isolamento em que vive.” (Irineu Bornhausen,
Governador do Estado de Santa Catarina, 1951)
Em outubro de 1950, cerca de duzentos homens invadiram a cadeia pública do povoado e lincharam quatro presos, acusados de atear fogo na Igreja Matriz. Em uma época marcada por muitos incêndios de residências, clubes e comércios, e com a conivência dos poderes político, eclesiástico e econômico local (o delegado, o padre e o colonizador), organizou-se uma “turba” que trucidou os acusados por tiros, facadas e pauladas; os corpos foram arrastados para o pátio, empilhados e incinerados (HASS, 2007, p. 20).
Eventos como o linchamento ocorrido contra quatro “forasteiros” em 1950 evidenciam diversas mudanças sociais, econômicas e políticas que ocorriam desde o período Vargas (1930-1945) em Chapecó. Deste processo de declínio do poder político e econômico das companhias colonizadoras, iniciou-se um processo de rearticulação do poder local, como observaremos posteriormente. Neste sentido, se a ideia de progresso é evidente em momento anterior ao linchamento, argumentamos que tal questão ganhou centralidade nos projetos da elite ao longo da década de 1950, se consolidando na segunda metade dos anos 1960. O linchamento, neste sentido, ocupa papel central na redefinição dos rumos econômicos, políticos e sociais do município e da região:
Tais transformações se acentuaram após o crime e justificam o fato da história desse município não poder se separar da noite trágica entre 17 e 18 de outubro de 1950 [...]. O crime projetou negativamente Chapecó nas páginas de revistas e jornais regionais, nacionais e até internacionais. [...] Apesar de os reflexos do linchamento terem atingido de forma negativa vários setores da sociedade, eles colaboraram, principalmente, para uma nova orientação ao desenvolvimento regional, inserido num contexto de mudanças estruturais na economia nacional, com a intensificação do processo de industrialização. (HASS, 2007, p. 20)
O argumento desta modificação é que, “se por um lado os crimes cometidos ameaçaram por algum tempo o desenvolvimento regional, inserido na expansão do processo capitalista, e reforçaram a visão de que Chapecó era violenta”, por outro lado “estimularam o seu crescimento”. Existia um sentimento entre colonizadores e colonos, na sua maioria descendentes de italianos, expressando que “jamais admitiriam que o assassinato de quatro pessoas, acusadas de incendiar suas residências e casas comerciais para roubar, frustrasse seus sonhos de melhoria de vida” (HASS, 1997, p. 200). Desta forma,
Diante da omissão do Estado e do patrocínio do poder local, acharam nos seus maiores valores – a fé católica e o trabalho – a justificativa para fazer justiça com as ‘próprias mãos’. Eliminaram, dessa forma, as pessoas que representavam uma ameaça a essa comunidade produtiva e cristã. Foram seus próprios membros que restauraram a ordem, respaldados nos ideais de progresso e da modernização. (HASS, 1997, p. 200)
Mas quais são os instrumentos que trazem uma determinada dinâmica para as modificações na história regional e que centralizam a ideia de progresso na segunda metade do século XX? Com um pensamento político centrado na ideia de “abandono”, ou seja, a ausência do Estado na organização social e política, as elites locais constituíram um argumento forte para cobrar das autoridades da “capital” uma maior atenção ao desenvolvimento regional. É importante ressaltar que quatro anos antes do linchamento, mesmo que por um período relativamente curto, Chapecó pertenceu ao Território Federal do Iguaçu (1943-1946), apoiado por grande parte das elites locais em função do “abandono” por parte dos governos estadual e federal. O linchamento, neste sentido, colocara as elites locais em posição de cobrança de uma maior atuação do Estado na região, o que pode ser observado com a segunda visita de um Governador a Chapecó, que aconteceu entre 20 e 25 de novembro de 1951, por ocasião da chegada de Irineu Bornhausen.
Se entre 1917 e 1950 apenas Adolfo Konder visitara a região, em 1929, enquanto governador[18], um ano após os incidentes de 1950, a comitiva de Bornhausen chegou ao Oeste Catarinense e seria seguida com frequência pelos governadores do período posterior. E em sua agenda, o governador observou o andamento de obras públicas, como “a Casa de Saúde dos Irmãos Rauen, o Posto de Saúde e o Hospital Santo Antônio” e o “novo edifício do Grupo Escolar Marechal Bormann ainda em construção”; no entanto, a memória da chacina era presente e por fim, naquela ocasião, visitou a Cadeia Pública, pedindo “providências urgentes para construção de uma nova cadeia”[19] (WAGNER, 2005, p. 81). Aqui se contrapunham simbolicamente a imagem da violência e do abandono que se pretendia superar – a cadeia de onde os quatro forasteiros foram retirados antes do linchamento – e a necessidade de intensificação de uma agenda de progresso, com novos prédios escolares e de saúde. E após dias de visita à região, o deputado João Vicente Schneider destacava a confiança das elites nos projetos de futuro, saudando o governador em seu retorno: “podeis ter a certeza de que no oeste catarinense encontrastes um povo que ainda segue à risca o lema inscrito no auriverde pavilhão nacional, ‘Ordem e Progresso’” (WAGNER, 2005, p. 84).
Nos anos que se seguiram, o mandonismo chapecoense – que vinha perdendo forças desde o primeiro governo Vargas, de 1930 a 1945, acentuou seu declínio na fase de redemocratização do país,
Quando o poder local acabou sendo diluído entre vários grupos que surgem ou se fortalecem com as mudanças socioeconômicas que ocorrem na região após o final dos anos 30. Nesse contexto, evidencia-se o declínio do poder da fração política representada basicamente por colonizadores e industriais madeireiros, que possuem feição urbana e dominam na economia e na política local – nesta última, via Partido Social Democrático (PSD), – e a ascensão de estratos médios de caráter urbano/liberal/burocrático, que ocupam espaço na estrutura política do município, principalmente através de outros dois grandes partidos: a UDN e o PTB. (HASS, 1997, p. 12)
Tais grupos aceleraram a modificação da matriz econômica, embora durante a década de 1950 a indústria madeireira ainda representasse grande parte dos interesses econômicos da região, como demonstrado no filme “Vale do Uruguai: cidade de Chapecó”, produzido à época: “Alguns levam seus barcos em caminhões e outros regressam por água, certos de que deram um pouco de si para o progresso de uma região fértil e donde tiram o sustento de suas vidas, cumprindo assim um magnifico exemplo de brasilidade e patriotismo” (Vale do Rio Uruguai: cidade de Chapecó). A indústria madeireira nesta época, através da atuação do Instituto do Pinho representava também, a atuação do governo federal na região, embora de uma maneira muito mais voltada para o extrativismo econômico do que para a construção da “brasilidade”: “Uma das maiores riquezas do Vale do Rio Uruguai é sem dúvida a indústria Madeireira com a exploração das reservas naturais”, narra de forma ufanista o documentário, “e que vem dia a dia merecendo cuidado do Governo Federal” (Vale do Rio Uruguai: cidade de Chapecó).
Por outro lado, a diversificação política, que refletia o declínio do mandonismo local e a ascensão de novos grupos políticos, estava ligada ao crescimento da agroindústria local.
Com a redução das madeireiras, a agroindústria foi a nova alternativa econômica, encontrando na agricultura familiar já existente, um campo fértil para se desenvolver. Utilizando-se da integração com o pequeno produtor, encontrou nele garantia para o fornecimento de matéria-prima para o processamento industrial. (BAVARESCO, 2005, p. 204-5)
Este processo em que a agroindústria assume o protagonismo da organização econômica, a intensificação capitalista e a integração nacional, como se sabe, não nasceram com o linchamento. Na região oeste de Santa Catarina, os primeiros frigoríficos surgiram na década de 1930 com “a fundação de moinhos de trigo e os primeiros empreendimentos no sentido de processamento de suínos no Vale do Rio do Peixe” (DALLA COSTA, 1993, p. 30). Tais iniciativas associaram capital local, forjado no intercâmbio comercial com São Paulo: em 1943, Atílio Francisco Xavier Fontana iniciou o empreendimento que deu origem à S.A. Indústria e Comércio Concórdia, rebatizada, no ano seguinte como SADIA e “que veio a se tornar o maior conglomerado agroindustrial da região” (DALLA COSTA, 1993, p. 30). Desta forma, o período que vai do início da década de 40 até meados dos anos 60 caracteriza-se “como de uma efetiva integração de todo o Oeste Catarinense no espaço econômico nacional e de expansão capitalista na região”, de onde surgem empreendimentos que se tornariam nacionalizados nas décadas posteriores: Perdigão S.A. Indústria e Comércio, (Videira, 1940), Com. e Ind. Saulle Pagnoncelli (Joaçaba, 1942), S. A. Ind. e Com. Chapecó, SAICC, (Chapecó, 1952), Frigorífico Seara (Seara, 1956), S.A. Frig. Itapiranga (Itapiranga, 1962), Unifrico S.A. Ind. e Com. (Salto Veloso, 1963), Indústrias Reunidas Ouro S.A. (Ouro, década de 1960) e Cooperativa Central Oeste Cat. (Chapecó, 1969) e Frigorífico São Carlos, FRISCAR (São Carlos, 1975), assim como a já mencionada SADIA (Dalla Costa, 1993, p. 31).
Tal expansão agroindustrial, como pode ser observado com a criação de, aproximadamente, dez frigoríficos em pouco mais de três décadas, organiza o sistema produtivo da região oeste de Santa Catarina e exige novos investimentos para o crescimento e escoamento da produção. A manutenção de um ideário de progresso se inscreve, a esta altura, ainda como um movimento difuso, uma vez que a instalação da agroindústria na região não foi organizada pelo Estado, mas pela iniciativa privada, e como consequência disso, não refletiu em um projeto de desenvolvimento que reunisse diferentes interesses. Com o crescimento do potencial deste modelo de produção econômica, os governos estadual e federal iniciam um processo de incentivo importante para a produção de um modelo de desenvolvimento que unificasse as elites e produzisse um consenso, uma hegemonia, em torno da agroindústria. Exemplo disso é a eleição de Plínio Arlindo de Nês, agroindustrial fundador da SAIC para a prefeitura de Chapecó (1956-1961).
Plínio Arlindo De Nês e Serafim Enoss Bertaso exerceram a hegemonia política após 1950, com duas tendências distintas e em disputa político-eleitoral em muitas ocasiões. Representante remanescente do período do predomínio das companhias colonizadoras, o engenheiro Serafim Bertaso instituiu, como observamos anteriormente, o traçado urbano de Chapecó na década de 1930 e, como Antônio Selistre de Campos, representa o processo de modernização de Chapecó. De Nês, por sua vez, representa a ascensão dos grupos agroindustriais após 1950, em posição de conflito e consenso com as antigas elites – ambos indicavam diferentes candidatos para a disputa de eleições, como em 1965, quando De Nês apoiou Sadi José de Marco (PTB) e Serafim Bertaso indicou Dorval Cansian (UDN). Os jornais referiam-se à influência política de ambos, depois do golpe militar e da formação da ARENA, como a “ala De Nês” e a “ala Bertaso” (SILVA, 2014, p. 129), uma vez que o partido governista aglutinou tanto lideranças do PSD como da UDN. Sobre este mesmo ponto, Siqueira (2016) observa que, a partir da teoria das redes, ambos podem ser interpretados como “pontos alfa” da política local (SIQUEIRA, 2016, p. 24).
Neste sentido, observamos que os ideais propostos por diferentes grupos políticos – como De Nês e Bertaso, reunidos sob a retórica do progresso regional, ganham forma definida ao longo da década de 1960 em função de importantes instituições que surgem para viabilizar os desejos da elite local: a primeira delas é a Secretaria dos Negócios do Oeste (SNO) na primeira metade da década de 1960; outras duas ações complexas podem ser observadas na segunda metade daquela mesma década: a disputa pela construção da BR-282 e a administração Sadi José de Marco (1966-1969), momento em que diferentes tendências políticas se reúnem em busca de um “bem comum”. Estes aspectos serão debatidos no próximo subtítulo; por ora, retomaremos alguns aspectos da criação da SNO.
Diante do aumento da produção econômica da região oeste catarinense e dos contínuos clamores da elite regional, que ao final da década já demonstrava fôlego para a expansão da agroindústria, a principal solução encontrada antes do golpe de 1964 foi a criação da SNO, em 17 de agosto de 1963, pelo governador Celso Ramos. Tal solução representa, em tom otimista, um instrumento efetivo de integração do Oeste Catarinense ao restante do Estado (tanto às demais regiões do Estado de Santa Catarina quanto ao Governo do Estado), e apresentaria uma inovação administrativa ao reunir em um órgão situado fora da capital, atribuições de diferentes secretarias do governo estadual, destinado à descentralização das ações de desenvolvimento. Para os projetos da elite local, cada vez mais reunidos a partir de lideranças agroindustriais e urbanas,
Sob o impulso deste órgão estatal foram rapidamente sanados inúmeros fatores adversos ao desenvolvimento regional, como a carência quase total de energia elétrica, a falta de escolas, de meios de transporte, de estabelecimentos de saúde e de assistência social. (ROSSETO, 1995, p. 14)
Na década de 1960, período abordado neste artigo, a SNO foi ocupada por Serafim Enoss Bertaso e, ao final daquela década, por Plínio Arlindo de Nês, atuando sobre 34 municípios e abrangendo 75 mil habitantes à época de sua criação, dos quais 40 mil apenas em Chapecó. Conforme observa Siqueira (2016),
Depois de eleito, Celso Ramos nomeou Serafim Bertaso como o primeiro secretário da SNO em 1963. A escolha de Chapecó e de Serafim Bertaso em detrimento de outros municípios e líderes políticos da região deu-se num momento de disputa pela “hegemonia” econômica da região entre pelo menos três localidades: Chapecó, Concórdia e Videira. Vale observar que, nas três localidades, a atividade da agroindústria estava ainda em fase incipiente. O município vencedor dessa disputa econômica e política foi Chapecó, pois, a partir da instalação da SNO na localidade, as reivindicações provenientes de grande parte das pessoas da região passaram a contar com um interlocutor oriundo de determinado grupo político. Serafim Bertaso, pessedista, encabeçou essa pasta e assegurou o domínio local mantendo o cargo na gestão do governador Ivo Silveira (PSD/Arena), além de inserir outros políticos de sua rede de relações na SNO. (SIQUEIRA, 2016, p. 45-6)
Produzindo ações voltadas ao desenvolvimento regional, significando principalmente a infraestrutura econômica como estradas, energia, abastecimento de água e outros aspectos voltados à produção econômica, a Secretaria do Oeste tornou-se, ao iniciar a década de 1960, a possibilidade de consolidação dos sonhos de progresso ainda difusos quando da colonização e do linchamento. Ao adentrar no período da ditadura civil-militar (1964-1985), a SNO terá papel efetivo na constituição de uma aliança local voltada aos projetos de desenvolvimento. Por outro lado, não se deve desconsiderar a importância de outras formas políticas de intervenção, como as associações empresariais e a administração municipal, como veremos a seguir. Por esta época, é importante observar que, se o projeto de progresso disputava espaço com outras formas de pensamento durante as primeiras décadas de colonização, principalmente entre 1917 e 1950, as consequências do linchamento exigiram a reorganização do setor produtivo, trazendo a agroindústria para o papel de protagonista ao longo da década de 1950, no mesmo momento em que se complexificaram os estratos sociais na participação política. Ao iniciar a década de 1960, as primeiras demonstrações de rompimento com a problemática memória do linchamento tomavam forma com a instalação da SNO. Criavam-se aqui, instrumentos importantes para que os ideais de progresso se tornassem hegemônicos, traduzindo os interesses da elite local e ocultando vozes dissonantes.
“Tomando café, contou o que se passara à noite para a moça que o atendia e esta disse que se foi sonho, foi leve, que pesadelo mesmo seria quando ele começasse a contar landrace e large white. Depois de um segundo de pasmaceira e com um sorriso desbotado de quem não havia entendido, pediu mais manteiga. E o olhar escapuliu pela fresta da janela. Landrace e large white não faziam parte de seu repertório, mas passaram a fazer. Era o progresso chegando à cidade e ele havia ‘chego’ junto, sem nem ao menos saber.” (PANAROTTO, 2005, p. 24)
Seguindo o argumento deste artigo, encaminhamos o debate demonstrando como o período da administração Sadi José de Marco (1966-1969) pode ser entendido como um momento privilegiado para o entendimento do processo de estruturação dos ideais de progresso para Chapecó e região. Como afirmamos no início deste artigo, o auge deste ideário encontra-se na década de 1970, principalmente nas administrações de Altair Wagner e Milton Sander. Por outro lado, é na segunda metade da década de 1960 que se criam determinadas condições para um acordo, uma aliança entre a elite local em torno de um projeto comum, que aqui chamamos de projeto de progresso. Tal questão aponta, em primeiro lugar, para uma reflexão sobre a produção de consensos que organizam parte da história de Chapecó; mas também, buscam refletir sobre o ocultamento da memória relacionada ao prefeito da época que, mesmo servindo como importante elemento aglutinador dos interesses políticos e econômicos e sendo reconhecido como o principal prefeito do município até então, foi “esquecido” pela memória local após sua cassação pelo Ato Institucional n. 5, em 29 de abril de 1969.[20]
Em 31 de janeiro de 1966, Sadi de Marco tomou posse como prefeito de Chapecó. A solenidade contou com a realização de uma missa na Catedral Santo Antônio, celebrada às 18 horas por Dom Wilson Laus Schmidt, Bispo Diocesano. Às 19h30, o prefeito foi empossado pelo presidente da câmara de vereadores, Arnaldo Mendes. Em seguida, o Vereador João Valvite Paganela “enalteceu o governo [antecessor, entre 1962 e 1965] de João Destri e disse que todos confiam em Sadi José de Marco, o qual irá sem dúvida alguma realizar um governo baseado nos princípios da religião e da humanidade.”[21] Esta solenidade, em que estiveram presentes lideranças políticas, militares e religiosas demonstra, em certo sentido, que algumas diferenças dos tempos de campanha eleitoral estavam ainda presentes. Quando o vereador pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA) João Paganella mencionou “os princípios da religião e da humanidade”, poderia estar se referindo às acusações de “comunismo” que Sadi de Marco recebera principalmente por parte de membros da Igreja durante sua campanha eleitoral em 1965.[22] No entanto, a solenidade também simbolizou uma aliança entre diversos setores da sociedade local que estariam reunidos em torno do novo prefeito principalmente entre 1966 e 1967, na construção de projetos de inserção econômica do município e de sua disputa como polo regional. Como exemplo, a Folha d'Oeste saudou, no encerramento da matéria mencionada, o jovem prefeito que “vem demonstrando sua autoridade e energia no trato dos negócios do município.”[23]
Também visto por alguns como “inexperiente”, tendo em vista que De Marco assumiu a prefeitura de Chapecó com 27 anos de idade, a produção de um projeto de desenvolvimento para Chapecó serviu como elo entre diferentes grupos e tendências políticas, reunidos neste contexto de ditadura militar em torno de ARENA e MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Chegando ao município por volta de 1952, justamente no seu período de estagnação, Sadi de Marco estudou Direito em Passo Fundo e Porto Alegre, onde participou de agremiações estudantis e conheceu o pensamento de trabalhistas reunidos no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) durante a resistência legalista pela posse de Jango em 1961. Desta experiência, trouxe ideais de construção de escolas no interior do município, mas também uma forte tendência de organização e integração urbana a partir de pontes, canais, construção de estradas, pavimentação, iluminação e fornecimento de água e energia elétrica (SILVA, 2014, p. 67-72). Em resumo, Sadi de Marco intensificou uma agenda de progresso, entendendo que tais ações estariam voltadas para a melhoria da estrutura do município e facilitação da integração capitalista, gerando emprego e renda. E tal agenda efetivou-se nos anos seguintes, tendo como sua principal ação a realização dos festejos do cinquentenário da emancipação político-administrativa do município, em 1967, e da I EFAPI. Ocupando também o posto de presidente da Sociedade Amigos de Chapecó (SAC), o prefeito reuniu um grupo de empresários, comerciantes, lideranças políticas e entidades da sociedade civil que, com o apoio da imprensa, intensificaram o processo de mudanças na infraestrutura de Chapecó[24]. E a EFAPI, como veremos posteriormente, tornou-se o símbolo de nascimento de uma nova Chapecó: existia, nesta narrativa, um município antes e outro depois dos festejos de 1967.
A questão da luz, água e calçamento são exemplos de ações em conjunto que aproximaram a prefeitura e Secretaria dos Negócios do Oeste em torno de uma agenda comum em 1966. Também, aproximou o advogado que estudou em Porto Alegre no final dos anos 1950 (De Marco), com uma concepção de progresso semelhante a do engenheiro civil formado em Curitiba décadas antes (Serafim Bertaso), e agora dirigindo a SNO. Outra questão importante é que Bertaso era adversário político de De Marco, e apoiou a candidatura do comerciante Dorval Cansian em 1965. Em março do ano seguinte, enquanto a SNO anunciou financiamento para a Companhia Força e Luz, buscando intensificar a geração de água e energia elétrica, em conversa com “alguns Ministros do Governo Federal, entre os quais o General Ney Braga, Ministro da Agricultura”, o engenheiro Ivan Bertaso, Diretor de Planejamento, Projetos e Obras da Secretaria do Oeste, e filho de Serafim, solicitou “um auxílio e 30 milhões de cruzeiros para a construção do parque de amostras da Exposição Agropecuária e Indústria de Chapecó, a ser criada permanentemente pela Secretaria do Oeste” (Jornal Folha d'Oeste, 23 de março de 1966, p. 1). Embora o auxílio para o parque de exposições não tenha se concretizado naquele momento, a iniciativa demonstrou a vontade dos grupos locais em construir um espaço destinado à divulgação da economia local.[25]
Dentre as estratégias de modernização da região, ainda em 1966, podemos mencionar: as tratativas de estruturação de uma repetidora de televisão[26] – os chapecoenses sintonizavam apenas o Canal Piratini à época, mas somente na década de 1980, o grupo Rede Brasil Sul (RBS) concluiu tal tarefa; a passagem da BR-282 próxima ao município[27]; e em setembro de 1966 foi iniciado o processo de negociação que resultou na festa do cinquentenário e na realização da primeira Exposição-Feira Agropecuária e Industrial de Chapecó, a EFAPI. Os festejos do cinquentenário de Chapecó, previstos primeiramente para agosto de 1967, foram adiados para setembro daquele ano para não “sofrer concorrência” com os festejos também cinquentenários de Joaçaba, “bastante próxima, e à época com maior liderança regional” (Jornal da EFAPI 97, 1997, p. 2).
Em termos de construção de uma hegemonia em torno deste projeto de desenvolvimento, tendo o progresso como termo privilegiado, o jornal Folha d'Oeste narrou a tentativa do prefeito em buscar mais aliados ao projeto no início de 1967. Na posse dos vereadores em fevereiro daquele ano, Sadi de Marco teria pronunciado um “vibrante discurso” demostrando “seu entusiasmo e satisfação pela boa vontade da nova câmara em unir pra melhor produzir.” (Jornal Folha d'Oeste, 18 de fevereiro de 1967, p. 1). Em seguida, o desejo de união de setores políticos em torno de projeto de futuro era expresso pelo jornal:
Pode o leitor observar que a boa vontade e união esteve evidente na posse dos vereadores que foram eleitos a 15 de novembro, embora de partidos diversos, prometem união e solidariedade. Se isto acontecer de fato, veremos melhorias brevemente. Unir, unir para o progresso da cidade foi o tema em evidência na sessão solene que deu posse aos novos vereadores de Chapecó. (Jornal Folha d'Oeste, 18 de fevereiro de 1967, p. 1)
Também no mês de fevereiro de 1967, o governador Ivo Silveira visitou a região. Duas matérias do mesmo jornal abordam a presença do governador em Chapecó, iniciando sua caminhada pelo Oeste, na manhã do dia 24 de fevereiro, acompanhado de sua comitiva e reunindo lideranças de diversos setores da sociedade[28]. Por outro lado, a organização da feira trouxe uma série de conflitos, na maior parte protagonizados pelo então prefeito e a resistência de setores do empresariado local em investir na feira (SILVA, 2014, p. 68). Como estratégia de construção de uma ideia otimista sobre o evento, a imprensa local manteve apoio irrestrito aos festejos ao longo de 1967 e, em outubro daquele ano, ao fazer um balanço do evento, a Folha do Oeste continuava a empreender uma agenda de progresso:
A enorme expressão econômica-agro-industrial da região vem demonstrando que o Oeste Catarinense não pode parar aqui, deve prosseguir sua caminhada, realizando, em oportunidades futuras, novas demonstrações de sua pujança e com isso chamando a atenção das autoridades federais e estaduais para a equação dos problemas que ainda entravam grande parte do nosso progresso moral e material, tais como estradas, escolas de nível superior, maior assistência ao trabalhador dos campos e da cidade, e vias de comunicações condignas para o desafogamento de nossa economia. (Jornal Folha d’Oeste, 07 de outubro de 1967, p. 1)
O caráter reivindicatório exposto pelo jornal tende a aproximar as lideranças regionais, no sentido de que as críticas deveriam ser dirigidas aos elementos externos – governo estadual e federal, no sentido de exigir o aumento dos investimentos em uma agenda de progresso definida pelo jornal através de um termo generalista definido como “assistência aos trabalhadores” e outros dois pontos que se consolidaram logo no início da década de 1970, ou seja “estradas” – com a BR-282, e educação superior através da FUNDESTE (Fundação Universitária do Desenvolvimento do Oeste). E em seu discurso de encerramento da EFAPI, De Marco aproveitou o momento para agradecer os apoiadores do empreendimento em questão. Embora extenso, buscamos manter a transcrição abaixo justamente pelo fato do prefeito mencionar nominalmente lideranças políticas, empresariais e religiosas, assim como os demais setores que se envolveram na organização do evento; e por fim, o pronunciamento do prefeito busca expor uma ideia de unidade, de coesão social, de ordem em busca do progresso:
Quero agradecer ao Exmo. Sr. Governador do Estado, na pessoa de seu secretário de Estado – Dr. Serafim Bertaso; agradeço ao Revmo. Pe. Antônio Lúcio Massolini, que nos tem amparado, orientado e estimulado nas horas difíceis, como substituto eventual de sua Exa. Revma. Dom Wilson Laus Schmidt; ao DER [Departamento de Estradas e Rodagem], a Força e Luz de Chapecó, ao Comércio e Indústria, aos operários que anonimamente, dia e noite, com sol e chuva, trabalharam para a construção desta grande obra. As recepcionistas, que com sua beleza singular, engalanaram ainda mais esse belo espetáculo. Aos policiais, que se mantiveram sempre em vigília, mantendo a ordem, a paz, a tranquilidade. As empresas de transportes coletivos, que durante esses 15 dias, transportaram gratuitamente os chapecoenses e forasteiros ao Parque de Exposições. Aos homens da imprensa falada e escrita. À Radio Chapecó, que a todo o instante esteve conosco nesta luta cotidiana e árdua. Ao Jornal ‘O Nacional de Passo Fundo’, que aqui veio, como todo bom gaúcho, emprestar sua solidariedade, e fez uma cobertura digna dos melhores elogios. A Folha do Oeste, semanário de Chapecó e de todo o Oeste. Permitam-me, quero também agradecer de maneira toda especial, ao melhor e mais completo jornal do Sul do País, ‘O Correio do Povo’, que gratuitamente, cobriu toda nossa festa cinquentenária. Agradeço a todos os expositores, e aqueles enfim, que de uma ou da outra forma, colaboraram com o nosso cinquentenário. Agradeço ao Povo de Chapecó, pelo incentivo e pelo apoio, e quero publicamente assegurar, que continuarei lutando, pelo embelezamento de Chapecó, como até aqui, não haveremos de esmorecer, pela paz, pela tranquilidade, pela ordem, pelo progresso, faremos de Chapecó, a mais bela cidade de Santa Catarina.” (Jornal Folha d’Oeste, 14 de outubro de 1967, p. 1)
Festejado pela imprensa local, por políticos e empresários de Chapecó e da região, o cinquentenário do município e a realização da primeira EFAPI marcaria, como argumentamos, a ideia de rompimento com o passado. Mesmo que uma agenda de infraestrutura ainda colocasse muitos desafios, outubro de 1967 foi um ponto fundamental para o esquecimento de outubro de 1950. Aos poucos, a memória do linchamento e da violência foi colocada à margem, e embora o mandonismo local continue sendo exercido nas décadas seguintes, as ações de perseguição política passaram a ser justificadas em nome do progresso, da modernização e do desenvolvimento. Tal questão pode ser observada já no início de 1968: quando o consenso do progresso de Chapecó se consolida na retórica política, empresarial e da imprensa, e se transforma em instituições e espaços (SNO, Parque de Exposições, modificações na infraestrutura), os agentes do progresso iniciam uma disputa que, sob o contexto do regime militar, leva à exclusão de trabalhistas do jogo político.
Acima dos interesses políticos e das legendas partidárias, está, mais do que nunca, o progresso do Município e do Estado. Digo isto em tom de advertência aqueles afoitos e incautos que andam por aí, cujos interesses não se coadunam em instante nenhum, com a vida política nacional, com procedimentos altamente nocivos e prejudiciais, não apenas a um governo municipal, mas, e principalmente ao Município pujante, de destino certo, como é o Município de Chapecó. Quero dizer a esses políticos que mantenham a cautela e a cabeça fria, porque se [eles saem] de casa em casa, nas ruas de Chapecó, [e pedem] ao povo de meu Município que não paguem calçamento, impostos para que o prefeito não realize, seja patriotismo e brasilidade, eu provarei a esses políticos que não é. Eu vivo com o coração palpitante e com a consciência tranquila. Quem tem telhado de vidro que não atire pedras no telhado do vizinho. (Jornal Folha d'Oeste, 10 de agosto de 1968, p. 1)
O processo político que se segue à realização da EFAPI envolve um crescimento da popularidade de Sadi José de Marco em nível regional; por outro lado, uma série de acusações deu início a um processo de conflito entre prefeitura e câmara de vereadores, que resultou em uma CPI, em 1968, e na troca de acusações entre prefeito e vereadores. À estes conflitos, somam-se outras possíveis motivações para a cassação de Sadi de Marco pelo AI-5 em 1969: o fato de De Marco ser uma jovem liderança que poderia atrapalhar a construção de uma hegemonia da ARENA na região, os constantes discursos críticos ao governo federal, principalmente em função da demora na realização de obras como a construção da BR-282, assim como a acusação de “comunismo”. Neste sentido, se os festejos do cinquentenário podem ser considerados um ponto fundamental na narrativa de “melhoramento contínuo”, levado à cargo por uma liderança trabalhista que veio a ser cassada em 1969, o progresso do município permaneceu como projeto da elite; mas ao contrário do que afirmou o então prefeito, tal questão não estava “acima dos interesses políticos e das legendas partidárias”. O ideal de progresso se consolidou, levado adiante nas disputas pela hegemonia: desde então, diferentes grupos políticos, tanto trabalhistas oriundos do PTB quanto conservadores arenistas e udenistas, organizaram a agenda política e empresarial do município através destes pressupostos.
Sob o contexto do Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, as principais lideranças políticas oriundas do antigo PTB e afiliadas ao MDB – exceto Sadi de Marco, que permaneceu sem partido após a extinção dos partidos políticos pelo Ato Institucional nº 2, de 1965 – foram cassadas em toda a região oeste, tendência semelhante ao âmbito nacional. Sadi de Marco foi cassado em 29 de abril de 1969, após mais de um ano de intensos conflitos com membros da ARENA oriundos da antiga União Democrática Nacional (UDN) e ligados à “ala Bertaso”. Em seu lugar, tomou posse o presidente da câmara de vereadores de Chapecó, Rodolfo Maurício Hirsh, genro de Serafim Bertaso, que permaneceu até a realização das eleições municipais ainda em 1960 e que referendou um grupo moderado do MDB a conduzir a agenda de progresso no início dos anos 1970 (SILVA, 2014); foi eleito novamente o ex-prefeito João Destri (prefeito) e o então vereador Ferdinando Damo (vice-prefeito). Nesta gestão, uma ação foi fundamental para a continuidade das ações voltadas aos projetos de desenvolvimento: a instalação da maior unidade de produção da SADIA S.A, originada no município oestino de Concórdia, com incentivos da prefeitura municipal. Nas administrações posteriores, a agenda de progresso saiu da mão de trabalhistas, moderados ou não, para, em consonância com os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND), empreender um processo de modernização que consolidou, à sua forma, uma hegemonia da ideia de progresso.
Neste sentido, entendemos que o empreendimento colonizador iniciado na década de 1930, objetivando a integração da região ao estado e à nação disputou e se consolidou frente à tradição política característica da primeira república – coronéis, fazendeiros locais, patrimonialismo, e aos grupos sociais hoje chamados de tradicionais – populações indígenas e caboclas. Tal consolidação ficou evidenciada no controle social exercido pela atuação do estado em aliança com a igreja e as companhias colonizadoras, que construíram uma agenda de progresso que pode ser observada na atuação de magistrados como Antônio Selistre de Campos, no início da urbanização – o projeto de Serafim Bertaso, por exemplo – e na tentativa de construção de ordem social Católica.
Com o incêndio da igreja e o posterior linchamento de quatro “forasteiros” em 1950, o projeto colonizador foi colocado em questão. Com isto, somado ao declínio econômico da indústria madeireira e do poder político das companhias colonizadoras, coube aos diferentes setores que surgiram deste processo propor uma solução econômica para a continuidade da colonização. Buscando uma aproximação com o governo do estado para vencer o “isolamento”, o modelo agroindustrial foi escolhido pelas elites locais; sua dinâmica, que coloca em diálogo assimétrico produtores rurais e elites urbanas, favoreceu o aumento de receitas e a construção de uma agenda de crescimento, melhoramento, futuro. Instituições voltadas à resolução destas contradições de infraestrutura foram criadas, como a SNO. Neste momento histórico, argumentamos que o ideal de progresso econômico e moral ganhou centralidade – mesmo que lentamente, consolidando-se apenas após 1967, nas agendas políticas e empresariais, formando uma hegemonia. É importante lembrar que o “progresso social”, como atribuído à Condorcet, não fez parte do léxico explicativo destes ideais para a elite local, que buscou na repercussão de suas conquistas econômicas e materiais, a principal maneira de interpretar o passado e prescrever o futuro.