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Abordagem metodológica de conservação da história e do patrimônio: o Vale do Douro
Methodological approach to history and heritage conservation: the Douro Valley
Revista Tempo e Argumento, vol. 9, núm. 21, pp. 402-428, 2017
Universidade do Estado de Santa Catarina

Artigos


Recepção: 03/03/17

Aprovação: 03/07/17

DOI: https://doi.org/10.5965/2175180309212017402

Resumo: O Patrimônio em áreas rurais ou urbanas anota a passagem do tempo e da história das comunidades. Evoca memórias locais que permitem ao visitante sentir diversas emoções e passar por várias experiências. Monumentos ou construções mais simples, mais complexos ou até desaparecidos, podem ser transformados em paisagens cênicas e atrair visitantes permitindo conhecer as diferentes perspectivas com que o homem assentou nos espaços num determinado tempo. Propõe-se capturar esses momentos históricos, sobreviventes nos territórios até aos nossos dias e expor o significado estético, social, econômico e político como parte de uma construção espacial preparada para ser visitada e conhecida em comum. Retratamos um elemento de grande relevo para a Península Ibérica – o Rio Douro – e sugerimos que esta herança histórica comum, que se apresenta hoje de formas diversas, seja incluída nos itinerários de forma a revelar cenários interpretados e levar os visitantes a lugares históricos plenos de emoção. Sugerimos como metodologia a reflexão e o debate em torno da revisão da literatura, resultantes de projetos desenvolvidos sobre o tema da água desde 1996, sob a supervisão de Isabel Del Val Valdivieso e com a colaboração de numerosos pesquisadores da Península Ibérica que produziram extensa literatura sobre a temática da presença de água na história. De acordo com os resultados desses projetos, desenvolve-se uma metodologia que possa salvaguardar e comunicar o patrimônio com uma perspectiva de preservação e manutenção da memória para as futuras gerações, em particular do patrimônio desaparecido ou ainda adormecido no subsolo.

Palavras-chave: Patrimônio, Significância, História, Visita.

Abstract: The heritage in urban or rural spaces show the path of time and the history of communities. Evokes local memories that present several emotions and experiences for visitors. Monuments or constructions simpler, more complex or even missing, can be transformed into scenic landscapes and attract visitors allowing them to know the different perspectives with which the man settled in a certain space and a certain time. It is propose to capture these historical moments, surviving in the territory up to the present day and to expose the aesthetic, social, economic and political significance as part of the places construction prepared to be visited and known in common. We have portrayed an element of great importance for the Iberian Peninsula – the Douro River – and we suggest that this common historical heritage, which presents itself today in different forms, be included in the itineraries in order to reveal scenarios and take visitors to historical places full of emotion. We suggest as methodology the reflection and debate around the literature review, resulting from projects developed around water since 1996, under the supervision of Isabel Del Val Valdivieso and with the collaboration of numerous researchers in the Iberian Peninsula that produced extensive literature on the thematic of the presence of water in history. Following the results of these projects, we are able to propose a methodology that could open a new look to the heritage with a preservation and memory maintenance for the future generation, in particular disappeared or hidden underground heritage.

Keywords: Heritage, Significance, History, Visit.

Introdução

Entende-se por conservação os princípios base da Carta de Veneza (1964) que anuncia que a conservação visa salvaguardar a obra e o testemunho histórico. A Carta de Cracóvia (2000) acrescenta que os processos de conservação e restauro devem incluir o estudo de materiais, estudo estrutural, bem como a identificação dos significados históricos, artísticos e socioculturais. A Carta de Burra (2013), que reforça que conservação se entende por todos os processos de cuidados que garantam a retenção do significado cultural e indica como processo que as obras num determinado monumento ou sítio devem ser precedidas de estudos que permitam a compreensão dos lugares através das análises e evidências documentais (quer físicas, quer orais).

Conforme refere Ashworth (2011, p. 2), o passado manifesta-se no presente através da memória, da história escrita, tradições, vestígios arqueológicos, documentação de arquivo e através de todas as categorias de patrimônio material ou sítios. Ora, neste contexto da conservação parece clara a importância desempenhada pelas ciências históricas na preservação do testemunho histórico, na identificação dos significados históricos e na sua retenção e na abertura à manifestação da passagem do tempo.

Integram o patrimônio histórico bens de valor imensurável pela sua representação, significação simbólica e experiência de um passado/presente. Construído sobre valores comunicacionais e emocionais, e, assim, deve ser entendido. As suas formas, materiais, técnicas e composição são expressões pessoais de homens, que viveram num determinado espaço e tempo e que construíram ou criaram com a intenção de explorar os sentidos de todos os observadores. “Rubens did not paint the sketches to provide future generations of art historians, restorers, and artists with lessons on materials and technique. An artist’s intent is intrinsically bound up with aesthetics considerations and how we are meant to look at and appreciate works of art” (PRICE, 1996, p. 2)[1].

A escolha do tema do Vale do Douro, que se assume como um recurso patrimonial de relevo e de grande atratividade, deve-se ao fato de ser um recurso de natureza intrinsecamente ligada à cultura, ao patrimônio e à história peninsular, mas que pode ser analisado como um caso, que por comparação, reflete o panorama internacional de situações similares. Assim, o rio Douro, como muitos outros recursos hídricos de cariz internacional, possíveis de serem trabalhados, constitui-se como um componente de relevo na vida quotidiana do homem que, como constituinte da paisagem, está constantemente a ser “usado” pela passagem do tempo e das comunidades locais.

O vale do Douro, assim como o vale de qualquer outro rio, assume-se como interlocutor de significância em torno da água (bem de primeira necessidade na vida do Homem). O seu vale apresenta patrimônio com relevo, despertando particular atenção os elementos patrimoniais classificados como Patrimônio Mundial. Surge, também, num plano de relevância por se tratar de um recurso estratégico da água que une dois países (Portugal e Espanha) e permite-nos abordar a relação histórica intrínseca que as cidades e as vilas desenvolveram no diálogo rio e homem.

Os rios surgiram como campo de estudo em Valladolid entre os cinco projetos desenvolvidos em torno do tema da água entre 1996 e 2015, coordenados por Isabel del Val Valdivieso e financiados pela DGICYT, Secretaria de Estado de Política Científica e Tecnológica, Direção Geral de Investigação, Subdireção Geral de Projetos de Investigação, Direção Geral de Investigação do Ministério de Educação e Ciência, Direção Geral de Programas e Transferência de Conhecimento, Secretaria de Estado de Universidades, Ministério de Ciência e Inovação, Ministério de Economia e Competitividade e Direção Geral de Investigação Científica e Técnica.

Finalizados estes cinco projetos, é possível, hoje, traçar espaços e arquiteturas da água e oferecer novos conteúdos de visitação e interpretação e propor a salvaguarda dos elementos da água com valor patrimonial. É importante pensar a água e olhar este recurso natural como elemento vital na paisagem. De acordo com Squatriti (2013), a água manifesta-se uma presença constante na vida econômica, social e cultural quer no passado, quer no presente, e reforça que, como elemento natural imprescindível à vida humana, a água intervém nas atividades, no imaginário e nos comportamentos do homem.

Entre os diversos recursos da água, os rios são dominantes conforme demonstrou Real Valence (2004). Vários autores estudaram os ambientes fluviais e a importância que estes detêm na História desde a Idade Média à contemporaneidade. Entre eles, podem ser citados Arízaga Bolumburo, B. (2012), Peribáñez Otero e Abad Álvarez (1998), Del Val Valdivieso (2012), Abad García e Peribáñez Otero (2006). O rio e os afluentes que circulam no seu vale e a consequente preservação, enquanto elementos fundamentais à vida, merecem a maior atenção da parte dos mais variados profissionais. Olhar este patrimônio e conservá-lo é uma forma de refletir sobre a importância da água nas nossas vidas.

Os rios podem ser grandes motores da visitação e do bem-estar quando protegidos e salvaguardados. Não restam dúvidas a quem visita as cidades e vilas históricas, surgidas ao longo das zonas ribeirinhas, que estas manifestam uma grande cumplicidade do seu traçado e da sua arquitetura com os elementos da água que o próprio rio proporciona (Navarro Palazón e Jiménez Castillo, 2012; Segura Graíño, 2003; Freitas, 2006; García Tapia, 2008). Como vias facilitadoras das comunicações, rapidamente os rios adquiriram importância vital no encontro entre povoados que usam pontes e barcas para os cruzarem, no desenho das ruas que para aí confluem, ou no embelezamento das praças e outros espaços urbanos através de construções funcionais e artísticas de recolha de água, ou como locais de implementação de atividades artesanais e comerciais que vivem e subsistem da presença da água, como é caso dos curtumes, matadouros, cerâmicas, entre outras (Falcón Pérez, 2002). Cidades e rios manifestam-se como bons exemplos para o estudo do patrimônio e para a sua conservação e salvaguarda.

O Douro, rio internacional, tem ao longo do seu percurso cidades que foram nascendo e crescendo motivados pela sua presença. Visto na Alta Idade Média como fronteira entre um mundo a norte, que descia em direção ao sul, à conquista do território muçulmano, foi explorado pelo seu caráter de vale profundo que dificultava a sua passagem e lhe conferia caráter de “Terra de Ninguém”, em grande parte do seu percurso (Linage Conde, 1997).

Chegado o povoamento ao Douro, os movimentos de colonização cristã vindos do norte, rapidamente organizaram a paisagem e conferiram-lhe características de rio navegável, com excelentes condições para que o seu “uso” crescesse e se formassem cidades de relevo que ainda hoje conservam as suas formas de medievalidade. Passada a fronteira do Douro para sul, nos séculos X e XI, o Douro perde as suas características de fronteira para assumir o seu papel de grande interventor na sociedade e na economia medieval (Teixeira, 2002). Polo de atração de povoadores, depressa o território se vai povoar e as grandes cidades vão surgindo.

É nesta relação histórica cidade/homem/rio que hoje ainda podemos destacar as cidades que se encontram nas suas margens. Esta relação de séculos instituiu-se pelo seu uso enquanto via de comunicação, como lugar fértil pela passagem da água que pode ser usada nas atividades agrícolas ou artesanais, como lugar de lazer e de encontro. Por estes motivos, formou-se uma forte rede urbana ao longo de toda a Bacia do Douro, que acompanha o rio e os seus afluentes, com grande dinamismo ecoômico e social, onde se foram concebendo elementos patrimoniais de grande relevo (Del Val Valdivieso, 2009). Surgiram cidades associadas a uma paisagem com características muito próprias e construções de valor estético e histórico, que, hoje, se constituem como lugares de visitação de relevo.

Por todos estes motivos, o Douro adquire um relevo histórico ancestral na Península Ibérica, fruto de uma história comum de grande relevo e com um patrimônio de grande significado cultural e histórico.

1. Em torno das questões metodológicas: o Vale do Douro, reflexões sobre planejamento e gestão da visita de um rio ibérico

Tendo por base como tema e o Douro como rio estratégico para o desenvolvimento do turismo e da economia local, este artigo pretende anotar a importância do trabalho interdisciplinar entre história e patrimônio através de um olhar de “uso” como forma, por um lado, de salvaguarda de recursos patrimoniais (naturais e culturais) e, por outro lado, de criação de alguma inovação nos itinerários que possam desenvolver novas abordagens à visitação dos territórios, ou seja, o desenvolvimento do turismo. Assim, este artigo pretende analisar e refletir sobre a importância das ciências históricas como eixo fundamental para o planejamento e gestão das visitas ao patrimônio do vale do Douro como rio ibérico e anotar a necessidade de uma abordagem reflexiva como metodologia desse mesmo planejamento e gestão patrimonial conjunta entre Portugal e Espanha.

Parte-se da questão base: Que contributos podem dar as ciências históricas na gestão e no planejamento das visitas de um rio ibérico com diversidade e com potencial patrimonial? Entre os objetivos que nortearam a composição deste artigo, expõem-se: i) identificar elementos patrimoniais que contribuam para um pensamento reflexivo que salvaguarde o uso de um elemento patrimonial histórico; ii) sugerir ações de planejamento e gestão face à diversidade patrimonial e espacial de um recurso histórico peninsular de relevo; iii) sugerir formas diferenciadas de olhar o patrimônio com vista a um trabalho de salvaguarda e de comunicação e ao desenvolvimento reflexivo de estratégias por parte dos decisores políticos.

Entende-se que é necessário olhar a paisagem no seu todo e orientar o seu “uso” para as questões já debatidas de conservação e comunicação de recursos, e que para preservar é necessário conhecer e é indispensável fazer um trabalho de base que envolva, num primeiro momento, historiadores e arqueólogos como recursos essenciais para o estudo e comunicação da história e do patrimônio das regiões. Parte-se do pressuposto de que quanto mais se conhece o patrimônio, mais valor ele adquire e que a promoção desse mesmo conhecimento envolve as pessoas e aumenta o interesse (Letellier, 2007).

A paisagem no seu processo temporal construtivo deixou memórias e diversas tipologias de documentos que podem ser lidos por quem conhece as suas metodologias de abordagem. A passagem do homem pelos lugares alterou-se ao longo dos séculos e, por vezes, essa passagem implicou o apagar de vestígios, marcas do uso social dos territórios[2]. Nem sempre o homem teve como preocupação salvaguardar os elementos componentes da paisagem, mas sim deixar novas marcas do andar dos tempos. São estes elementos materiais e imateriais que se afiguram de importantes para os lugares e para as sociedades independentemente da época ou da simplicidade em que foram construídos (Worthing; Bond, 2008).

Apesar de ao longo dos séculos haver mutações na paisagem, há elementos essenciais, resilientes, fundamentais à vida do homem que se mantiveram ativos, e outros que pela sua monumentalidade foram salvaguardados como elementos caracterizadores e significantes do território. Estes casos de resiliência são os casos de maior valor intrínseco para os territórios e para a sua visitação. São estes que constituem a “memória cultural” dos lugares (Assman, 1995) e os transformam em cenários de atratividade. Revelar a paisagem e os seus valores é uma tarefa que implica leitura dos seus elementos.

A análise do historiador e do arqueólogo é essencial no processo de identificação dos elementos patrimoniais resilientes nas paisagens de forma a serem visitadas e comunicadas. Se falamos de patrimônio emblemático e resiliente e de memória cultural, teremos de falar, em particular, dos estudos históricos e patrimoniais em processo de descoberta do passado.

Focando a atenção no trabalho desenvolvido por estudiosos das ciências históricas, a investigação desenvolvida baseia-se na análise documental com o propósito de dar resposta aos objetivos colocados. Os historiadores usam os arquivos e técnicas de leitura paleográfica providos de análise documental e crítica interna de documentos para identificar informações que foram sendo deixadas pela passagem dos homens nos lugares.

Historiadores e arqueólogos produzem leituras baseadas em documentos históricos que, se os soubermos ler, produzem inúmeros conhecimentos e abrem novas perspectivas à valorização do patrimônio e da sua salvaguarda. Por outro lado, uma análise da documentação histórica e a sua interpretação reforçam a significância dos lugares (Burra Charter, 2013). Permitem entender a paisagem, a passagem do tempo e preservar a memória para as gerações futuras.

A documentação histórica, seja ela escrita, cartográfica ou iconográfica, revela características de um determinado lugar, permite entender o que somos hoje, a identidade dos lugares e os motivos da resiliência dos recursos patrimoniais de um determinado sítio. Auxilia a que as futuras gerações possam compreender a construção da relação entre o passado e o presente. Permite, também, identificar elementos culturais e paisagísticos que caracterizam as regiões e outros esquecidos ou desaparecidos que merecem proteção pela sua importância para o entendimento da história e das histórias locais e entender a passagem do homem, os seus movimentos e a forma como ao longo do tempo se relacionou com a paisagem. Conforme refere Letellier (2007) o entendimento do significado dos monumentos e a decisão da salvaguarda de um monumento ou a decisão para o seu “uso”, reside no fato de conhecer a sua história.

A sinalização de casos é da máxima importância para compreendermos a variedade de patrimônio e das suas diferentes necessidades de salvaguarda perante ameaças externas que se podem proporcionar de várias formas através do seu “uso”. Entramos no domínio dos riscos provenientes do uso. Esta sinalização proporcionará o mapeamento de situações que, numa perspectiva macro, poderá canalizar mais atenções e desenvolver ações comuns e comunicantes sobre o mesmo recurso. Assim, o mapeamento poderá facilitar uma proteção mais ativa e um entendimento mais claro das medidas a tomar para cada território em particular. Por outro lado, este mapeamento de situações poderá informar os decisores políticos dos cuidados a se ter e das estratégias a seguir para a interpretação e comunicação do seu patrimóônio (Agnoletti, 2014, p. 72).

Neste processo de “leitura do passado” serão assinalados casos patrimoniais diversos que agrupamos em quatro categorias de diferentes necessidades de salvaguarda e de comunicação:

a) Patrimônio significante com grande “uso” turístico;

b) Patrimônio desconhecido sem interpretação que pode proporcionar novas experiências;

c) Patrimônio resiliente, mas que regista elementos construtivos resultantes da passagem do tempo e das deliberações de decisores históricos;

d) Patrimônio desaparecido, mas que continua vivo na imaterialidade dos lugares e na identidade das sociedades.

Essas categorizações, resultantes da identificação que foi desenvolvida no âmbito dos projetos referidos e do trabalho das ciências históricas, pretende assumir um valor importante e um pragmatismo necessário para a salvaguarda da história para as gerações futuras. Compreende-se que cada caso histórico e patrimonial é um caso e deve ser estudado individualmente no seu contexto histórico e geográfico de forma a poder ser entendido e protegido.

Para exemplificação da metodologia de abordagem ao território, na sua totalidade, sugerimos analisar quatro cidades: Segóvia, Valladolid, Medina del Campo e Porto que se desenvolveram no vale do Douro entre a Foz e a nascente e nas quais a água é um eixo vertebrador e organizador do espaço e da paisagem local, por diferentes razões.

2. Um olhar diferenciado sobre cidades com diversidade patrimonial no Vale do Douro: planejar, gerir e comunicar para visitar

Quatro cidades que marcam o percurso peninsular do Douro e apelam a experiências de visitação peninsular e que manifestam, dentro da categorização concebida, inúmeros exemplos. Outros casos poderiam ser aqui referenciados e expostos, mas selecionamos cidades que consideramos representativas, deixando para um futuro próximo outras explorações que se situem entre a comunicação da história e a sua visitação. Estas cidades contêm elementos que consideramos exemplificadores da categorização e das diferenças de interpretação que devem ser abordadas na comunicação do patrimônio.

As fontes documentais iconográficas e textuais publicadas, e originais, foram alvos de estudo através do processo de análise documental e crítica textual interna. Os documentos selecionados foram revistos de forma a identificar elementos de grande relevo relacionados com os cursos de água do vale do Douro e os resilientes no tempo e no espaço que tivessem percursos diferenciados e envolvessem historiadores e arqueólogos em processos de descobertas diferenciadas. Foram revistas as fontes documentais de arquivo e fontes bibliográficas que permitissem obter dados relativos aos elementos históricos relacionados com os rios no Vale do Douro que pudessem ser disseminados de forma a aumentar o valor e a capacidade de comunicação dos lugares.

Depois destes processos de recolha e análise de dados, uma análise reflexiva com base em análise de conteúdos permite assinalar casos e desenvolver conteúdos. Entre outros, Agnoletti (2014) efere-se à importância da investigação histórica como fundamental para construir informação e inventariação que auxilie a salvaguardar a paisagem e a sua autenticidade, bem como desenvolver o território e a economia local.

Segóvia é uma cidade localizada ao sul no Vale do Douro, marcada pela presença do magnífico aqueduto, patrimônio da humanidade, elemento resiliente no tempo e com forte expressão de visitação turística. Este elemento patrimonial está bem salvaguardado e está classificado, o que remete para um elevado “uso” turístico.

Valladolid nasce e cresce como lugar histórico em torno do Pisuerga, um dos principais rios afluentes do Douro. É uma das cidades medievais mais emblemáticas, que conta com inúmeros recursos históricos de relevo mas que, ainda, se encontram por explorar, no subsolo. A informação que dispõe para os visitantes é ainda reduzida, ou mesmo inexistente. Assume-se como patrimônio sem comunicação e sem interpretação.

Medina del Campo é um centro medieval de grande amplitude peninsular marcado pela presença do rio Zapardiel, outro dos grandes afluentes do Douro, onde a passagem da história e das decisões do homem de governo ficam claras nas transformações da paisagem urbana. Registramos nestes elementos patrimoniais, hoje ainda existentes e marcantes no traçado urbano, grandes alterações que são desconhecidas da visitação.

Por fim, Porto, que se encontra na foz do rio Douro, eixo interior/exterior caracterizado pela ligação ao interior (navegável até Barca de Alva) e ao exterior (o mar); ligações que foram criando espaços diferenciadores na cidade e impulsionando as atividades econômicas da cidade nesta relação interior/exterior, na qual o vinho é um exemplo resiliente ao tempo. Salientam-se, nesta cidade, os eixos comunicacionais, sobretudo a Ponte das Barcas, célebre elemento paisagístico da cidade que, de material, se transformou em patrimônio imaterial urbano. Inclui-se na categorização de patrimônio desaparecido que vive na imaterialidade dos lugares e das sociedades.

2.1 Segóvia: um patrimônio com grande uso turístico

Segóvia constitui um dos casos mais representativos nas questões da influência da água na configuração do patrimônio histórico. Encravada no extremo meridional da Bacia do Douro, na base da Serra de Guadarrama, num promontório natural gerado pela confluência dos rios Clamores e Eresma, a cidade é universalmente conhecida pela presença do seu majestoso aqueduto, construído, segundo investigação recente, nas primeiras décadas do Século II da nossa era, ou seja, um pouco mais tarde do que tradicionalmente se pensava. Esta construção que tinha como objetivo garantir o abastecimento de água ao primitivo assentamento romano, transformou-se no principal símbolo de identidade desta vila castelhana. Trata-se, conforme foi já referido, de um projeto monumental, de uma autêntica joia da engenharia romana, que conduzia a água desde a sua captação no açude do Rio Frio, concretamente no local conhecido como “La Acebeda”, até o interior do povoado segoviano através de uma levada com cerca de 17 km, na qual se destaca, acima de tudo, a gigantesca arquitetura formada por arcos levantados para suportar o desnível das águas existentes na Plaza del Azoguejo. A água canalizada desde a serra era recolhida em arcos menores que seguiam até o aqueduto de forma a ser distribuída pela cidade através de uma canalização principal, da qual surgiam inúmeros ramais secundários que levavam a água até aos diferentes pontos de abastecimento. Todo o sistema, no seu conjunto, estaria operacional durante o Baixo Império e seria, sem dúvida, um recurso fundamental que facilitaria o repovoamento da cidade no período da Alta Idade Média (Del Val Valdivieso, 1996).

Destruído, em parte, durante as razias muçulmanas do ano de 1072, o conjunto parecia estar de novo em funcionamento no século XIII, tal como se verifica pelas descrições do Arcebispo Ximénez de Rada De Rebus Hispaniae, (Fernández Valverde, 1989) e pela Cantiga 107 del Códice de Rico (Real Biblioteca del Monasterio del Escorial, Manuscritos, Códice Rico, Ms., T-I-1) onde se representa com todo o seu esplendor. Ou seja, apesar das importantes mudanças culturais produzidas durante esses séculos, o monumento sobrevive ao tempo e continua a desempenhar um papel ativo no desenvolvimento da cidade de Segóvia.

Será, contudo, na baixa Idade Média, em particular no século XV, que as notícias acerca do seu uso voltam a ser numerosas e dignas de relevo (Asenjo, 1986, Del Val Valdivieso, 1996). Na época, o aqueduto era conhecido como “La Puente Seca” e o canal de redistribuição de água para o centro histórico era conhecido como a “Madre del Agua”. Neste sentido, há que se destacar que desde a época de D. João II se multiplicam as intervenções dos poderes públicos para manter operacional toda esta gigantesca infraestrutura (Del Val Valdivieso, 1996). Em 1435, as obras concentravam-se na reconstrução do açude do Rio Frio e na colocação de uma ponte de madeira para facilitar o cruzamento do gado e evitar que as águas se sujassem. Um pouco mais tarde, com Henrique IV aprofundou-se a levada que canalizava as águas desde a sua origem até ao primeiro poço de sedimentação que atuava como depurador (Del Val Valdivieso, 1996). Mas é, sobretudo, no reinado dos Reis Católicos que se fazem as obras de maior envergadura, entregues em 1484 ao prior do mosteiro de Parral, Juan de Escovedo. Os trabalhos desenvolveram-se praticamente em todos os seus segmentos arquitetônicos e prolongaram-se vários anos com o objetivo de aumentar o caudal que chegava à cidade. (Asenjo, 1986; Val Valdivieso, 1996).

Nos primeiros anos do século XVI, registam-se diversas reparações em torno da “madre del agua” (Asenjo, 1986; el tramo descubierto recientemente se encuentra reproducido en la Fig. 4): ordenou-se a sua cobertura nos segmentos mais suscetíveis de padecer de contaminação pela sujidade, como por exemplo, nas imediações das vendas de pescado; melhorou-se a rede de canais secundários e arcos de derivação de suporte e multiplicou-se o número de canos e pilares (Asenjo, 1986).

Naturalmente, todas estas intervenções são caras, mas o gasto elevado demonstra a enorme importância que teria para os gestores da cidade a manutenção do sistema hidráulico, herdado de tempos romanos e graças ao qual a água se converteu num dos principais bens da cidade.

Assim, é evidente que a ação do município de Segóvia projete um outro conjunto de medidas que velem pela salubridade da água, que regule as condições do seu aproveitamento e uso, priorizando o abastecimento coletivo face às apropriações particulares que se iam mostrando, e que garanta a sua evacuação quando estas não sirvam para o consumo humano e do gado (Asenjo, 1986).

Em qualquer caso, o intenso trabalho realizado em torno da conservação e melhoria desta potente infraestrutura hidráulica na época do baixo medieval, vai ter também os seus efeitos nos restantes recursos hídricos da vila, uma vez que permite que as atividades mais contaminantes, como os curtumes ou lavadouros de panos das tinturarias, assim como os seus numerosos moinhos se localizem fora da vila nos leitos dos rios Clamores e do Eresma, contribuindo para melhorar o nível de vida da população.

Em suma, parece claro que a importância do sistema hidráulico construído em época romana, não só não passa desapercebida da população de Segóvia do baixo medieval, como também procuram esforçar-se por melhorá-la e mantê-la ao serviço, convertendo, assim, a água num vetor de desenvolvimento social da vila (Del Val VAldivieso, 2003) e sobre ele reside grande parte do prestígio da cidade.

Assim, não surpreende que no presente, os responsáveis turísticos segovianos se tenham voltado para a valorização destes ativos patrimoniais, destacando não só a herança trazida dos romanos como também as novidades introduzidas durante o período medieval. Pelo seu “uso” há que se ter em atenção os riscos que poderão daí decorrer.

Conforme refere Ursach (2015, p. 132-134), o Turismo contém um potencial enorme de desenvolvimento econômico das regiões e colabora ativamente na salvaguarda do patrimônio e da história, auxiliando a preservação da cultura e da diversidade. No entanto, como acrescenta, deve ser concretizado com equilíbrio e com uma conexão construtiva de forma a pensar as condições de vida dos residentes e o reconhecimento da importância de preservar os monumentos históricos, evitando falta de planejamento no desenvolvimento urbano, a massificação e até a destruição. Para manter protegidos estes elementos históricos é necessária uma vigilância constante de especialistas que observem e monitorem os “usos”.

2.2 Valladolid, água e patrimônio no subsolo: patrimônio desconhecido e não interpretado

A água tem um papel determinante no desenvolvimento urbano em qualquer época e localização geográfica; no caso de Valladolid, este protagonismo é ainda mais evidente. A vila de Valladolid desenvolveu-se ao longo da margem esquerda do rio Pisuerga (um dos afluentes setentrionais do Douro) e está definida por espaços criados por um dos ramais do Esgueva que conflui no Pisuerga. Assim, o primeiro espaço da vila de Valladolid ficou confinado e rodeado por rios: o ramal setentrional do Esgueva ao sul e o Pisuerga ao leste. Mais tarde (a partir do século XIII), o ramal meridional do Esgueva marcaria o desenvolvimento da urbe ao sul.

Além da determinante presença hídrica (fluvial) no nascimento e configuração da vila, a água foi uma constante fonte de riqueza e desenvolvimento patrimonial. Em primeiro lugar, existe toda uma série de construções (conservadas em maior ou menor medida) que se realizaram precisamente para salvar os obstáculos que os cursos fluviais precisavam para o desenvolvimento da vida urbana. Desde as instâncias concelhias – e assim se recorreram, entre outros documentos, aos Livros de Atas de vereação municipal – foram-se construindo pontes, sobretudo sobre o Esgueva, levantadas, primeiro em madeira, e renovadas em pedra (pela informação que temos – Domínguez Rodriguez, 1976), fundamentalmente a partir do século XV. Com o passar dos tempos, as pontes, sem manutenção, foram ficando debaixo de sedimentos. Hoje, as pontes levantadas sobre o rio Esgueva estão, na sua passagem por Valladolid, sob o asfalto, o que impede de documentá-las e contemplá-las. A monumental Ponte Maior, construída sobre o Pisuerga já em época medieval, atua ainda hoje como acesso da cidade desde as terras de Campos e Torozos e do reino de Leão.

Nos finais da Idade Média, iniciaram-se uma série de projetos que já não se incluem na salvaguarda da água, mas sim com a chegada da água à cidade quer para consumo, projetando-se construções de passagens de água e a construção de fontes em espaços públicos e privados (Del Val Valdivieso, 2003, p. 44), quer para uso doméstico e higiênico como ofereciam, por exemplo, os banhos públicos (Santo Tomás, 2002).

Na última década do século XV, o município tentou conduzir a água desde o manancial das Marinas até uma fonte, a construir, na Praça do Mercado. No entanto, só se conseguiu que chegasse às portas da cidade (Agapito y Revilla, 1907-08, p. 42-45).

Umas décadas antes, o mosteiro de S. Benito el Real construía uma conduta de água desde Argales até às suas instalações que culminariam com a construção de três fontes no seu interior. No entanto, essa construção também não se materializou, de forma que, finalmente os monges decidiram ceder a conduta à vila. Esta passagem de água viu, no tempo de Filipe II, aprovada uma provisão que projetava dar nova forma ao abastecimento de água à cidade, dotando-a de novas e mais fontes. Nesta obra, participaram mestres como Juan de Herrera, Diego de Praves e Juan de Nates, da qual se conservaram alguns vestígios da sua passagem pela rua Teresa Gil. Trata-se de uma conduta subterrânea presa com argamassa de cal e formada por uma caixa de laje em calcário (Herran Martinez; J.; Santamaria Gonzalez, J., 1991).

Para terminar com esta passagem sucinta sobre o patrimônio hídrico de Valladolid medieval, é obrigatório fazer menção às instalações artesanais nas quais a água se constitui também como um elemento ativo e protagonista. Em alguns casos, faz parte dos elementos naturais constitutivos que se necessitam para a transformação de uma matéria-prima em produto: pensamos nas olarias ou nos curtumes (VILLANUEVA, 1998); e noutros casos, em que a água intervém como força de energia: os moinhos, ferrarias, azenhas, entre outros. Todos estes tipos de instalações estiveram presentes no parcelário de Valladolid e, em muitos casos, os seus vestígios (mais ou menos monumentais) conservaram-se até os nossos dias, bem guardados no subsolo, como o caso das olarias e curtumes que a arqueologia documentou nas margens do Esgueva, mesmo que de forma parcial e muitas vezes alterada por se encontrarem à superfície, como é o caso de ruínas de moinhos e azenhas conservados sobre as águas do Pisuerga (Rucquoi, 1983).

Estes elementos encontram-se hoje sob o solo e são desconhecidos. Há uma enorme necessidade de os comunicar e de os revelar para se poderem conservar e salvaguardar. Worthing e Bond (2008) referem que a arqueologia mantida no subsolo é preciosa e a investigação resulta de um compromisso entre a intervenção e a destruição. A questão que se coloca é que nem sempre é compreendida, comunicada, gerida e preservada de acordo com os necessários cuidados de forma a manter inalterada a história e o patrimônio que, sendo conhecidos, poderão criar novas formas de atratividade de visitação.

2.3 Medina del Campo: transformação marcada pela passagem do tempo

A vila de Medina del Campo é uma das principais vilas de Castela do final da Idade Média, bem conhecida por celebrar importantes feiras que atraíram numerosos comerciantes provenientes de todo o reino e do estrangeiro. Para estudar as questões relativas à água em Medina del Campo, contamos com documentação municipal, judicial e real que se encontra no Arquivo Geral de Simancas, em particular no Registro General del Sello e nos legados que conservam documentação das cidades e vilas do reino na secção da Câmara de Castilla. O Arquivo Municipal de Medina del Campo conserva alguma documentação de interesse, em particular os livros de atas de vereação dos finais do século XV. A esta documentação, acrescentamos ainda os fundos do Arquivo da Real Chancelaria de Valladolid, tribunal do reino, onde se conservam pleitos e cartas executórias e outros documentos apresentados como provas em litígios.

Atravessada pelo rio Zapardiel, afluente do Douro, esta circunstância potenciou o crescimento urbano e converteu o abastecimento da água numa das principais preocupações do município. As questões da gestão da água associavam-se aos problemas relacionados com a higiene e com o instável caudal do rio em cujas margens se organizava o povoamento urbano e se localizavam as construções da cidade. Para cruzar o rio, desde a zona de S. Miguel na direção da praça principal, via de entrada na vila, existia uma ponte sobre a qual estavam construídas casas de ambos os lados (Del Val Valdivieso, 1992).

O Zapardiel era um rio de caudal bastante incerto, mantinha-se seco no Verão e na época das chuvas ganhava grande caudal, produzindo grandes inundações. Estas diferenças de caudal converteram o rio num foco de preocupação do governo local que procurava evitar que a água estancada no verão provocasse doenças e tentava arduamente reduzir os impactos das inundações no inverno. Para evitá-lo, o município decide reformar a ponte de S. Miguel e terminar com as habitações existentes sobre a mesma, uma vez que eram de opinião de que os postes sobre os quais assentavam as casas impediam que a água corresse livremente. Hoje, esta ponte continua a ser um elemento muito emblemático da cidade (Lorenzo Sanz, 1986).

A importância do rio para a cidade obriga-nos a fazer alusão ao edifício do matadouro, edificado em 1562, com traçado arquitetônico de Gil de Hontañón. Um edifício de grande beleza que permite que o rio arraste sujidades produzidas pela atividade, mas que em simultâneo embeleze a cidade e as margens onde se construiu (Sánchez del Barrio, 1991).

Mas as intervenções mais significativas, inventariadas em torno da água em Medina del Campo, estão relacionadas com o abastecimento da população e dos seus visitantes. Como o centro do negócio era a feira que se realizava na praça central, aí se construiu nos finais do século XV, nas imediações da Colegiada, uma fonte que tinha como finalidade garantir a disponibilidade de água (Del Val Valdivieso, 2003).

Uma outra fonte foi construída junto da igreja de S. Miguel, uma das mais importantes igrejas de Medina del Campo. Nesta igreja reuniam-se os vizinhos, e no século XV, no reinado dos Reis Católicos, construiu-se a casa municipal, fato que atesta a importância do lugar. A canalização era conduzida desde o Bairro situado no Castela da Mota, garantindo o abastecimento da área mais prestigiada da vila (Del Val Valdivieso, 2002).

Assim, é possível verificar que o rio Zapardiel é uma estrutura de relevo no traçado de Medina del Campo e estruturador das construções e canalizações. Eixo principal da cidade foi um dos grandes responsáveis pela formação de espaços decorrentes das principais atividades da sociedade e foi um dos grandes responsáveis pelas várias mudanças ocorridas na paisagem urbana, obrigando a sucessivas decisões dos seus governantes ao longo do tempo. Essas decisões mudaram o traçado urbano e as estruturas arquitetônicas.

Hoje a cidade é resultado das sucessivas mudanças da vida local e dos seus decisores. Coloca-se como fundamental comunicar e interpretar as sucessivas mudanças que abrem nova questão e permite-nos repensar a atualidade e as decisões de salvaguarda do patrimônio. Abre-se um debate que repensa que, com o passar do tempo, os restauros e as alterações urbanísticas mudaram as configurações patrimoniais e monumentais. May (2016, p. 187) é claro quando afirma que a paisagem reflete um conflito entre a preservação da paisagem histórica e a mudança da paisagem. Afigura-se que a dinâmica social e econômica sobre o patrimônio resulta em testemunho da passagem do tempo. Reforça-se que o debate está aberto e que se coloca como fundamental continuar o diálogo internacional que continue a reflexão em torno das mudanças, marcas do tempo, e da proteção que impeça a mudança para garantir que o discurso histórico se mantenha, não se esqueça ou se altere por ilações pouco fundamentadas e assentes em metodologias de análises que não partam das ciências históricas.

Hoje, encontramos monumentos de relevo, como o exposto, que resultou de várias mudanças ao nível dos processos artísticos e de engenharia. Conforme refere Larkham (2005, p. 4), os edifícios tornam-se obsoletos e perdem as suas funções, fato que de imediato gera controvérsia com as decisões do que é possível ou o que deve ser conservado. É importante conhecer esses processos, identificá-los e comunicá-los para tomar decisões.

O mundo tal qual se nos apresenta hoje é resultado de vivências acumuladas que caracterizam os Homens, condicionam os seus comportamentos e reproduzem culturas e entidades. Estas vivências são perenizadas pelos legados materiais e imateriais deixados ao longo dos tempos. O passado está em todo o lado, o passado é omnipresente (Lowenthal, 1985). Acrescentaríamos: o passado constrói-se no presente e continuará a sua construção no futuro.

2.4 Porto: patrimônio material e imaterialidade

O desenvolvimento comercial operado depois da crise do século XIV e a expansão em direção aos novos mundos, ocorrida no século XV, acentuou a relação da cidade com o rio e com o mar. O paradigma mudou nas grandes estratégias econômicas. O mar passa a ser o grande mundo dos negócios e as cidades localizadas perto dos rios, sobretudo aqueles que permitem a saída para o mar, desenvolveram a sua arquitetura urbana em função dessas grandes vias naturais. Assim o anota Cayon Cagigas (2014).

No Porto, esta situação também se vai verificar. A Foz do Douro e a fácil abertura ao mar, conduziu mercadores e artífices na sua direção. Navegável em grande extensão em direção ao interior (até o século XVIII, S. João da Pesqueira era o limite da passagem dos barcos), o rio Douro garantia uma eficaz ligação com o interior, apesar das dificuldades de navegação conhecidas através das descrições do Barão de Forrester (Cardoso, 2014).

Na Ribeira da cidade, na praça, descarregavam-se os produtos trazidos por barcos. As vereações do Porto contêm inúmeros documentos que descrevem esta atividade. Curiosas e abundantes são as referências à chegada de navios durante o dia e durante a noite, obrigando a abertura das portas da cidade mesmo que já estivessem fechadas após o bater do sino de recolher (Freitas, 1998).

As atividades econômicas foram-se desenvolvendo e comercializavam-se sal, peixe e vinho, entre outros, e construíam-se barcos nas duas margens. De forma a estabelecer a relação entre as duas margens onde as mesmas atividades se desenvolviam com grande dinâmica, foi construída uma ponte assente em barcas (Duarte, 2014). Embora a ligação se fizesse por esta ponte, as deslocações eram amplamente controladas e vigiadas pelos poderes políticos das duas margens (Duarte, 2014, p. 70).

Designada nos Livros de Vereação do século XV por – Ponte das Tábuas (VEREAÇOENS, p. 100) – era um dos eixos principais da cidade por onde se abria uma porta da muralha – Porta da Ponte das Tábuas. Era esta ponte que garantia, além dos barcos que percorriam o Douro, a ligação entre Porto e Gaia, duas cidades com grande desenvolvimento comercial desde a Idade Média. Esta ponte exerceu a sua função até a data da Invasão francesa no Porto (1809), quando a cidade viveu um dos seus momentos mais dramáticos. A população em fuga sobre a ponte das Barcas causou a sua destruição e o afogamento de inúmeros habitantes que tentavam o afastamento dos invasores.

Destruída nessa data, a ponte continua a ser um dos elementos mais significativos do patrimônio do Porto. Hoje, apenas se encontra salvaguardada a sua memória pelo altar colocado em frente ao local da sua construção e pela confraria da Igreja das Taipas, protetores das almas dos que morreram. Elemento icônico do Porto, deu lugar à ponte Pênsil e mais tarde à Ponte de Luiz I. Resta-nos a memória, mas uma memória sempre presente.

Costa e Castro (2008, p. 126) referem que os “mitos, as lendas, os contos, as cantigas são fragmentos visíveis entre acontecimentos lembrados e acontecimentos vividos pelo grupo e como registros de experiências vivenciadas, são bens simbólicos que ancoram o bem imaterial patrimonializado”. Assim como os autores citados, refira-se a importância para as sociedades de manter “vivas” as memórias que constituem a sua identidade e podem criar experiências significativas na visitação.

Conclusão

O patrimônio relacionado com a água nas cidades que vivem nos vales dos rios interfere grandemente com os traçados urbanos, regulam as atividades dos seus habitantes e têm uma influência enorme na arquitetura. No entanto, como em qualquer outro lugar, pode manifestar-se de grande fragilidade se não interpretado e comunicado de forma a ser salvaguardado da ação do homem no seu dia a dia e do uso que se experimenta na passagem do tempo.

No Vale do Douro, os casos são de grande interesse, despertados pelo fato deste rio atravessar fronteiras, sítios de grande relevo histórico e patrimonial da vida da Península Ibérica desde tempos da Idade Média e lugares de patrimônio mundial, protegidos e salvaguardados.

Os casos que apresentamos remetem para diferentes circunstâncias em que se encontra o patrimônio e anotam a passagem do tempo e as diferentes necessidades de comunicação para que seja conhecido e valorizado. Neste sentido, o papel do historiador e do arqueólogo é fundamental para revelar elementos históricos menos conhecidos, mas não menos importantes na construção das paisagens; pelo contrário, alguns elementos mais desconhecidos são os que revelam profundamente a identidade dos lugares. Esta abordagem metodológica é uma abordagem exemplificativa do que pode ser feito nos domínios do patrimônio e da criação de novas experiências e novos saberes para o turismo. Pretendemos, ainda, revelar a importância de grupos interdisciplinares na criação e disseminação de conhecimento que enriquece os lugares, pois valoriza a sua identidade.

Assim, é possível resumir que para o patrimônio significante com grande “uso” turístico é importante manter constante o estudo e monitorização no “uso” de forma a promover a sua salvaguarda e conservação. No que concerne ao patrimônio desconhecido, sem interpretação, que pode proporcionar novas experiências, impõem-se o estudo e a interpretação para concretizar novas experiências a que visita. O patrimônio resiliente mas que regista grandes alterações resultantes da passagem do tempo e das deliberações de decisores históricos merece uma atenção especial ao seu processo de transformação que poderá ajudar os decisores nas questões de planejamento e gestão do território monumental. Cabe ao patrimônio desaparecido, mas que continua vivo na imaterialidade dos lugares e na identidade das sociedades, uma ação muito concreta para que não caia no esquecimento do desgaste das sociedades que esquecem a sua história.

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Notas

[1] Rubens não pintou os seus esboços para fornecer futuras gerações de historiadores da arte, restauradores e artistas com lições sobre materiais e técnicas. A intenção de um artista está intrinsecamente ligada a considerações estéticas e como devemos olhar e apreciar obras de arte (Tradução do autor).
[2] Neste contexto, Wells e Baldwin (2012) referem que “historic preservation is widely acknowledged as an important endeavor because of the benefits it offers people through an enhanced sense of place”. (A preservação histórica é amplamente reconhecida como um esforço importante pelos benefícios que oferece às pessoas através do designado “sense of place”.)


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