Resumo: Neste trabalho, foram analisadas as competências de pensamento histórico e a presença de características de narrativa nacional entre 283 estudantes espanhóis do Grau de Licenciatura em Ensino Primário de Murcia e de Valência. Examinaram-se os seus relatos históricos sobre a expansão cristã na Península Ibérica em território muçulmano durante a Idade Média. Utilizaram-se métodos qualitativos para identificar os níveis de complexidade da exposição a partir de conhecimentos substantivos e conceitos metodológicos, e uma avaliação quantitativa para relacionar esses níveis de complexidade com os níveis cognitivos e narrativos, através da taxonomia SOLO. Também se avaliou em que medida se representam elementos discursivos próprios de uma narrativa nacional. Os resultados confirmam uma educação histórica deficiente dos futuros professores primários, tanto em conceitos históricos de segunda ordem quanto na reprodução de uma narrativa nacional já caduca pela historiografia. Também se confirmou que a presença e complexidade do pensamento histórico nas narrativas é maior quanto maior é o nível e pertinência dos conteúdos históricos substantivos.
Palavras-chave:Pensamento HistóricoPensamento Histórico, Narrativa Nacional Narrativa Nacional, Formação Inicial do Professor Formação Inicial do Professor, Educação Histórica Educação Histórica.
Abstract: This paper analyzes historical thinking skills and the presence of elements of a national narrative among 283 students at Grade of Primary Education in Murcia and Valencia, future primary teachers in Spain. It's analyzed their narratives about Christian expansion into Muslim territory in Medieval Iberian Peninsula: it's an historical content linked to the Spanish national narrative. Qualitative methods are used to determine levels of narrative complexity in substantive contents and in methodological knowledge or second order concepts. It's also used a quantitative assessment of levels of complexity and its relation to cognitive levels of written using the SOLO taxonomy. It's also assessed the presence of discursive elements of a national narrative. The results confirm a poor historical education of future teachers of Primary Education in second order concepts and in the reproduction of national narratives. It is also confirmed that the presence and complexity of historical thinking in narratives is higher the higher the level and relevance of substantive historical content.
Keywords: Historical Thinking, National Narratives, Initial Teacher Training, History Education.
Artigos
Narrativas nacionais e competência histórica na formação inicial de professores primários espanhóis[1]
Recepção: 06 Junho 2017
Aprovação: 04 Dezembro 2017
As narrativas históricas são uma importante fonte de informação para investigar o conhecimento histórico e a capacidade de lhe dar significado, tal como o demonstram numerosos estudos, tais como os de Barca (2015), Henríquez e Ruíz (2014), Kropman, Van Boxtel e Van Drie (2015), Lévesque, Croteau e Gani (2015), Sáiz e López Facal (2015 e 2016) e Sant, González, Santiesteban, Pagès e Oller (2015). Os relatos históricos dão uma imagem dos níveis de compreensão e aprendizagem dos sujeitos investigados: contribuem com um retrato substantivo do passado e informam sobre o conhecimento e o uso das competências do conhecimento histórico. Este estudo assume ambas as perspectivas para analisar relatos de professores primários em formação sobre a expansão cristã na Península Ibérica durante a Idade Média com prejuízo para os muçulmanos. Examinaram-se textos de 283 estudantes do Grau de Licenciatura em Ensino Primário de duas universidades espanholas (Valência e Murcia), aplicando uma perspetiva quantitativa e qualitativa. O objetivo é duplo: em primeiro lugar, o de estudar a organização discursiva dos trabalhos escritos destes futuros professores primários para conhecer os seus níveis de competência histórica como aptidão metodológica própria da disciplina de História (Domínguez, 2015). Em segundo lugar, o de analisar o conteúdo dos referidos relatos sobre o período medieval peninsular para comprovar o grau de mediação do que se considera como narrativa nacional espanhola, com a presença de estereótipos e marcos do relato da “Reconquista” cristã sobre os muçulmanos e o uso de marcadores discursivos de identificação nacional (Sáiz, 2015).
Este trabalho inscreve-se no paradigma de didática da história conhecido como pensamento histórico (historical thinking), assumido no Canadá e nos Estados Unidos por autores como Clark (2011), Lévesque (2008), Seixas (2011), VanSledright (2011 e 2014) e Wineburg (2001), embora a sua origem se situe na inovação e investigação em didática da história a partir dos anos 70-80 no Reino Unido (Lee, 2005). A perspectiva do pensamento histórico foi sintetizada na Espanha por Domínguez (2015), Gómez e Miralles (2015), Gómez, Ortuño e Molina (2014) Sáiz (2015) e Sáiz e López Facal (2015). De acordo com este modelo, há dois tipos de conteúdos históricos. Por um lado, os conteúdos substantivos ou de primeira ordem, conteúdos de história, ou seja, o que sabemos do passado sob a forma de dados, datas, personagens, conceitos e fatos. Por outro lado, os conteúdos estratégicos de segunda ordem, ou conceitos metodológicos, conteúdos sobre história, quer dizer, como se representa o passado e que significado lhe atribuímos; são aptidões relacionadas com as competências do historiador que consideramos competências históricas. Um dos instrumentos para as investigar, bem como para as ensinar, é recorrer às narrativas históricas. Este estudo analisa, nos 283 relatos, quatro categorias das referidas competências históricas conforme a proposta realizada por Seixas e Morton (2013) e incorporando outras (Lévesque, 2008; VanSledright, 2014; Domínguez, 2015). Em primeiro lugar, a competência de relevância histórica entendida como o grau de transcendência e valor que se concede ao fenômeno relatado na sua ligação com outros. Em segundo lugar, a de causalidade, como a aptidão para expor o fenômeno integrando as múltiplas causas que o explicam. Em terceiro lugar, a de tempo histórico, como a aptidão para descrever as alterações do fenômeno usando o tempo de forma flexível. E, finalmente, a categoria de dimensão ética ou consciência histórica, como a faculdade para valorizar o fenômeno relacionando-o tanto com o seu contexto quanto com o presente. Como complemento analítico para a organização das narrativas, também recorremos à taxonomia elaborada por J. Biggs e C. Tang (2007) conhecida por SOLO (Structure of the Learning Outcome), uma ferramenta criada para o ensino superior que categoriza os níveis de complexidade do pensamento aplicado a trabalhos escritos relativamente a um tema, partindo de níveis básicos ou de reconhecimento, até níveis de abstração profunda.
O estudo de relatos históricos também permite que nos aproximemos ao grau de mediação cultural de esquemas narrativos preexistentes. De fato, a partir da psicologia social podemos compreender as representações sociais do passado mediante a noção de “ação mediada” (Werstch, 2002): esta perspectiva baseia-se em que as referidas representações decorrem do consumo e uso que as pessoas façam de narrativas já existentes, entendidas como ferramentas culturais a modo de teoria implícitas. Werstch (2002 e 2004) distingue dois grandes tipos de narrativas: por um lado, os esquemas narrativos mestres ou narrativas mestras que operam como modelos construídos num contexto social e partilhados no seio de um coletivo que condicionam as representações sociais do passado; por outro lado, as narrativas específicas, entendidas como discursos, usos ou consumos dessas narrativas mestras geradas pelas pessoas ou pelos coletivos, podendo ser de natureza muito diversa. Este modelo teórico pode, de certa forma, aplicar-se às narrativas nacionais e aos diferentes discursos, usos e representações do passado gerados por pessoas e grupos. As narrativas nacionais, bem como a história oficial difundida por um Estado-nação, funcionam como narrativas mestras que medeiam ou condicionam as representações sociais sob a forma de narrativas específicas (com as suas personagens, eventos, etc.) criadas por indivíduos e por grupos.
Essa mediação verifica-se tanto no conteúdo quanto na forma. Na forma, segundo o sujeito narrativo atue e a primeira pessoa do plural seja utilizada revelando diferentes formas de identificação, tais como gênero ou grupo, sendo uma delas, a nacional (Barton e Levstik, 2004; Plá, 2005). Para este estudo, é importante observar o grau e a forma em que se usa a primeira pessoa do plural; quer o pronome “nós” quer o possessivo “nosso”, bem como o recurso essencial a referências explícitas à Espanha ou aos espanhóis na Idade Média. Isto constitui uma característica específica das narrativas nacionais (Carretero e Bermúdez, 2012; López, Carretero e Rodríguez-Moneo, 2015).
No que diz respeito ao conteúdo, a mediação narrativa também se constata na presença de fatos, personagens e termos próprios de uma narrativa nacional espanhola do período medieval. Consideramos aqui a existência de uma narrativa nacional sobre a história da Espanha, construída ao longo do século XIX, durante a consolidação do Estado-nação e do nacionalismo espanhol, embora difundida em grande escala ao longo do século XX. Um relato com conteúdos essencialistas que remontaria à unidade da “Espanha” (com fronteiras estáveis ou com uma unidade territorial) ou à origem de um coletivo de “espanhóis” a períodos pré-contemporâneos (López Facal e Sáiz, 2016). Entre eles, têm peso os do período medieval, pois consideram a expansão cristã em território muçulmano como um processo de gestação da Espanha, processo para o qual, no final do século XIX, se construiu o conceito de “Reconquista”, uma criação historiográfica que conferiu valor patriótico a um vocábulo já existente (Ríos, 2011). Desde então, integrou-se no relato fundacional da identidade espanhola a expansão cristã como “Reconquista”. Paralelamente, considera-se o território e o período muçulmano, o Al-Andalus, a partir de um plano secundário e como uma alteridade, mais em termos culturais, como fase de convivência multicultural e/ou de esplendor cultural. Atualmente, os manuais escolares de história privilegiam o conhecimento declarativo da mudança política, como uma sucessão de etapas e espaços de Al-Andalus aos reinos cristãos e utilizam o termo “Reconquista”, um conceito que conserva o seu conteúdo identitário (Sáiz, 2015). Na atual historiografia medieval também perdura o referido termo já que se defende a sua utilidade para caracterizar o fenômeno e período de expansão cristã medieval sobre o Islão peninsular: embora se reconheça a sua natureza de justificação ideológica a posteriori, não se criou uma denominação alternativa.
Pretendeu-se identificar nos relatos de futuros docentes do Ensino Primário os níveis de competência histórica e o grau de mediação da narrativa nacional espanhola. Esta finalidade foi abordada com quatro objetivos:
Comprovar o uso de conceitos históricos metodológicos nos seus relatos, que indicam como organizam historicamente os conteúdos.
Classificar a complexidade e a coerência do seu discurso com a taxonomia SOLO.
Determinar quais conteúdos substantivos apresentam os relatos sobre a conquista cristã do território muçulmano e, dentro destes, a presença de estereótipos próprios da narrativa nacional espanhola.
Reconhecer marcadores discursivos de identificação nacional; quer o uso da primeira pessoa do plural, quer a referência à Espanha ou aos espanhóis no período relatado.
Participaram da pesquisa estudantes do Grau de Licenciatura em Ensino Primário que frequentavam a última disciplina obrigatória da área de Didática das Ciências Sociais nas Universidades de Valência e Murcia, no ano letivo 2014/2015. Tratou-se de uma amostra probabilística: todos os grupos que frequentaram as disciplinas tiveram as mesmas possibilidades de ser escolhidos. Realizou-se uma amostragem não estratificada, pois foram escolhidos seis dos catorze grupos (num total de 283 alunos), o que significa 42% da população total.