Dossiê

Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil

Preliminary notes on Present Time History in Brazil

Marieta de Moraes Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil

Revista Tempo e Argumento, vol. 10, núm. 23, pp. 80-108, 2018

Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepción: 15 Diciembre 2017

Aprobación: 28 Febrero 2018

Resumo: A proposta deste texto é apresentar algumas considerações iniciais acerca da introdução e legitimação da história do tempo presente no Brasil, buscando uma articulação com os diferentes contextos historiográficos que dificultaram sua afirmação ou, ao contrário, que funcionaram como estímulo para seu desenvolvimento. O ponto central do nosso argumento é destacar que, diferentemente de outros países, a história oral foi um elemento fundamental para estimular e garantir a afirmação, no Brasil, da história do tempo presente, numa primeira fase, enquanto um conceito que promove uma reflexão sobre seu estatuto, seus marcos cronológicos e sua relação com as demandas sociais. Um segundo ponto é assinalar a relação da instalação da Comissão da Verdade e da Lei de Acesso à Informação como responsáveis por imprimir uma nova dinâmica para as pesquisas da história do tempo presente.

Palavras-chave: História do Tempo Presente, Memória, História Oral..

Abstract: The proposal of this text is to present some initial considerations about the introduction and legitimization of the present time history in Brazil seeking an articulation with the different historiographic contexts that hindered its affirmation or on the contrary functioned as a stimulus for its development. The central point of our argument is to emphasize that, unlike other countries, oral history was a fundamental element to stimulate and guarantee the affirmation in Brazil of the present time history, in a first phase, as a concept that promotes a reflection on its status, its chronological frameworks and its relationship with social demands. A second point is to point out the relationship between the installation of the “Comissão da Verdade e da Lei de Acesso à Informação” as responsible for giving a new impetus to the research of the present time history.

Keywords: Present Time History, Memory, Oral History.

O tempo presente fora das lentes dos historiadores

Ancorado na tradição historiográfica do século XIX, em especial nas concepções de história de Langlois e Seignobos veiculadas pelo seu famoso manual Introduction aux études historiques (REBERIOUX, 1992) que definiu um conjunto de regras para a produção de uma história científica, ao estudo da história se atribuiu a interpretação do passado distante, tendo o passado recente sofrido uma interdição. Fundando-se numa concepção de que o afastamento temporal era uma condição para se obter uma maior objetividade na escrita da história e defendendo uma ruptura entre o passado e presente, sustentava-se que só os indivíduos possuidores de uma formação especializada poderiam executar corretamente essa tarefa.

Foi nesse quadro de afirmação dos historiadores profissionais que se formulou uma condição indispensável para se fazer uma história científica — a visão retrospectiva. A afirmação da concepção da história como uma disciplina que possuía um método de estudo de textos que lhe era próprio, que tinha uma prática regular de decifrar documentos, implicou a concepção da objetividade como uma tomada de distância em relação aos problemas do presente. Assim, só o recuo no tempo poderia garantir uma distância crítica. Se se acreditava que a competência do historiador se devia ao fato de que somente ele podia interpretar os traços materiais do passado, seu trabalho não podia começar verdadeiramente senão quando não mais existissem testemunhos vivos dos mundos estudados. Para que os traços pudessem ser interpretados, era necessário que tivessem sido arquivados. Os historiadores de profissão deveriam, portanto, rejeitar os estudos sobre o mundo contemporâneo, uma vez que nesse campo seria impossível garantir a objetividade de sua reflexão. A separação entre passado e presente proposta dessa forma radical e as competências eruditas exigidas para se trabalhar com os períodos recuados garantiram praticamente o monopólio do saber histórico aos especialistas.

No século XX, inúmeras transformações marcaram o campo historiográfico, mas interdições relativas aos estudos dos períodos recentes e dos usos das fontes orais permaneceram. Assim, poderíamos dizer que a história dominante nas últimas décadas, tendo como referência o paradigma estruturalista, sustentava que o importante era identificar as relações que, independentemente das percepções e das intenções dos indivíduos, comandavam os mecanismos econômicos, organizavam as relações sociais, engendravam as formas de discurso. Essa maneira de fazer história, ao valorizar o estudo das estruturas, dos processos de longa duração, atribuía às fontes seriais e às técnicas de quantificação uma importância fundamental. Em contrapartida, ao desvalorizar a análise do papel do indivíduo, das conjunturas, dos aspectos culturais e políticos também desqualifica o uso dos relatos pessoais, das histórias de vida e das biografias. Condenava-se sua subjetividade, levantavam-se dúvidas sobre as visões distorcidas que apresentavam, enfatizava-se a dificuldade de se obter relatos fidedignos. (FERREIRA, 2000).

Esse modelo de história estabelecia também uma desconfiança em relação ao estudo dos períodos recentes, definido por alguns historiadores como história do tempo presente. Esse tipo de história, tendo como característica básica a presença de testemunhos vivos, que podem vigiar e contestar o pesquisador, afirmando sua vantagem de ter estado presente no momento do desenrolar dos fatos, não usufruía de legitimidade.

Pautada por princípios que sustentavam a necessidade do distanciamento temporal do pesquisador perante seu objeto, por meio do que os historiadores costumam chamar de visão retrospectiva, ou seja, a possibilidade de trabalhar com processos históricos cujo desfecho já se conhece, a história criava limitações para o trabalho com a proximidade temporal, por temer que a objetividade da pesquisa pudesse ser comprometida.

No Brasil, por ocasião da criação dos primeiros cursos universitários de história na Universidade de São Paulo (USP) (1934), na Universidade do Distrito Federal (UDF) (1935) e na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi/UB) (1939), essa orientação foi dominante, sendo os currículos estruturados privilegiando o estudo dos períodos recuados, em especial o Brasil Colonial, a Antiguidade Clássica e a História Moderna (FERREIRA, 2013). Mesmo nas décadas seguintes essa forma de conceber a história era também dominante nas universidades e entre os pesquisadores brasileiros, o que evidentemente criava resistências profundas para a aceitação da história recente e mais ainda para a incorporação do uso dos testemunhos. Contudo, havia iniciativas e demandas para a incorporação da história contemporânea. A cadeira de História Moderna e Contemporânea da FNFi/UB, presidida pela catedrática Maria Yeda Linhares, abria espaços para os estudos de temas muito contemporâneos como os processos de descolonização dos países africanos, e as relações internacionais recentes (FERREIRA, 2013). Também as reformas curriculares para o ensino básico, que estavam sendo discutidas no começo dos anos 1960, destacavam a relevância de apresentar para os alunos os temas da atualidade. A criação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), também nos inícios dos anos 1970, representou um esforço de renovação e de abertura para a valorização da história contemporânea brasileira, bem como da história política e dos usos de testemunhos por meio da história oral. Ainda assim, as resistências se mantinham muito fortes, ficando a história recente às margens da historiografia ( CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA, 2003).

Uma virada na historiografia

Nas últimas décadas do século XX, registraram-se transformações importantes nos diferentes campos da pesquisa histórica. Revalorizou-se a análise qualitativa resgatou-se a importância das experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares. Paralelamente, ganhou novo impulso a história cultural, ocorreu um renascimento do estudo do político e incorporou-se o estudo do contemporâneo.

O aprofundamento das discussões acerca das relações entre passado e presente na história, e o rompimento com a ideia que identificava objeto histórico e passado, definido como algo totalmente morto e incapaz de ser reinterpretado em função do presente, abriram novos caminhos para o estudo da história do século XX. Por sua vez, a expansão dos debates acerca da memória, suas relações com a história como objeto de pesquisa pode oferecer chaves para uma nova inteligibilidade do passado.

Essa perspectiva que explora as relações entre memória e história, ao romper com uma visão determinista que elimina a liberdade dos homens, põe em evidência a construção dos atores de sua própria identidade e reequaciona as relações entre passado e presente ao reconhecer, de forma inequívoca, que o passado é construído segundo as necessidades do presente, chamando a atenção para os usos políticos do passado.

Essas transformações ocorridas na pesquisa histórica (em especial na França) trouxeram um grande dinamismo e renovação para o campo disciplinar da história, traduzidos numa grande vitalidade do movimento editorial, numa renovação dos cursos de pós-graduação, com aumento expressivo do número de pesquisadores e professores, e num interesse crescente da sociedade em geral pelos temas históricos. Todas essas mudanças criaram um espaço novo para o estudo dos períodos recentes começando a abalar as antigas resistências.

O IHTP, o estudo do século XX e a emergência da noção de história do tempo presente

A despeito desse crescente e permanente interesse no presente, e da afirmação desse novo campo de trabalho, a história do tempo presente continuava enfrentando dificuldades para se legitimar por não ter uma definição mais precisa de seu objeto, de suas metodologias e dos limites de sua investigação. Que denominação utilizar, que recortes cronológicos selecionar?

Embora até hoje não se tenha firmado plenamente uma definição consensual, a denominação formulada por François Bédarida (1993), histoire du temps présent, é a que parece melhor preencher os requisitos. Segundo o historiador alemão Hartmut Kaelble (1993), a expressão histoire du temps présent começou a entrar no vocabulário dos historiadores mais especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, a história do século XX já se mostrava cheia de turbulências e indicava que profundas mudanças estavam por ocorrer. Toda essa intensificação dos ritmos da história nas últimas décadas, trazida pelas grandes guerras e pela eclosão da Revolução Soviética, estimulou o desenvolvimento do estudo do tempo presente.

Mas foi em 1978, com a criação, na França, de um laboratório, o Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP), que o historiador contemporaneísta François Bédarida levou mais longe essa reflexão. De acordo com as palavras do próprio Bédarida (1993, p. 391-492), o IHTP nascente enfrentou muitas dificuldades. Ainda nos anos 1980, historiadores renomados reafirmavam os mesmos princípios, que estabeleciam uma série de interdições para o estudo dos períodos recentes, com vistas a garantir uma maior objetividade dos estudos, defendendo a importância da visão retrospectiva para uma boa análise histórica.

Para responder a essas questões, o IHTP organizou um seminário, que funcionou de 1988 a 1990, intitulado “O tempo presente, uma démarche histórica à luz das ciências sociais”, que reuniu especialistas de diferentes disciplinas e de períodos históricos distintos. Os resultados desses debates foram publicados especialmente em duas obras, Ecrire l’histoire du temps present (INSTITUT D’HISTOIRE DU TEMPS PRESENT, 1993) e Histoire politique et sciences sociales (PESCHANSKI, POLLAK, ROUSSO, 1991). A primeira inovação trazida pelos debates no IHTP foi colocar em pauta a discussão acerca da união e da interação do passado e do presente. O segundo ponto era a afirmação de que tal história poderia perfeitamente repousar sobre bases científicas e que era preferível que esse período histórico pudesse figurar no domínio dos historiadores do que ser objeto exclusivo de outras ciências sociais ou de jornalistas. No entanto, para garantir o sucesso dessa empreitada, era preciso assumir desafios epistemológicos e metodológicos.

Uma questão que mereceu destaque foi a própria noção de “tempo presente” em seus múltiplos aspectos e suas relações com os contemporâneos, os testemunhos, os atores, a demanda social e as outras disciplinas. Desse debate, uma questão relevante que emergiu foi a afirmação de que o “tempo presente” constitui um campo científico singular, pela sua própria definição. A primeira dificuldade é que o período histórico em questão é definido por balizas móveis. Assim, que cronologia, que evento-chave e reconhecido deve ser adotado como marco inicial da história do tempo presente? Para alguns, trata-se do período que remonta a uma última grande ruptura; para outros, trata-se da época em que vivemos e de que temos lembranças, ou da época cujas testemunhas são vivas e podem supervisionar o historiador e colocá-lo em xeque (VOLDMAN, 1993).

Mas todas essas perguntas e imprecisões não impediram o avanço e a clarificação dessa noção-chave. Peschanski, Pollack e Rousso (1991), dando continuidade a esse esforço, assumiram que o tempo presente deveria abarcar

os limites de duração de uma vida humana, e que se constitui um campo marcado pela presença de testemunhos vivos, traço mais visível de uma história em devir. O testemunho é uma presença real, […] que condiciona o trabalho do historiador, quer ele queira ou não, passa a ser uma figura reconstituída, um personagem histórico, ao qual o pesquisador, pelas necessidades da causa, lhe dá um estatuto particular, ao escolhê-lo, solicitá-lo, interrogá-lo […]. (PESCHANSKI, POLLAK, ROUSSO, 1991, p. 14)

Foi considerando essa perspectiva que Bédarida declarou que a “história do tempo presente é feita de moradas provisórias” (BÉDARIDA apud FERREIRA, AMADO, 1996, p. 221). E isso significa dizer que seu turnover é muito rápido e ela se reescreve constantemente, utilizando-se do mesmo material, mediante acréscimos, revisões e correções.

Outra singularidade do tempo presente é a valorização do evento, da contingência e da aceleração da história. O trabalho do historiador enfrenta também aí dificuldades, porque ele mesmo é também testemunho e ator de seu tempo e, muitas vezes, está sobremaneira envolvido nesse movimento de aceleração que o faz supervalorizar os eventos do tempo presente, especialmente porque os séculos XX e XXI têm sido mais ricos em grandes mudanças, em detrimento dos fenômenos de longa duração que necessitam de maior recuo. O tempo presente, definido segundo esses critérios é, portanto, um período móvel que se desloca com o desaparecimento progressivo das testemunhas.

A despeito do reconhecimento cada vez maior da história do tempo presente, os desafios permanecem, se atualizam e exigem novas respostas. Como lidar com eventos não terminados e, consequentemente, com variáveis para análise que não podem ser previstas ao se estudarem processos não finalizados?

As contribuições de Paul Ricœur a esse respeito são importantes, ao sustentar o argumento de que esse desconhecimento permite uma “desfatalização” da análise e um recurso privilegiado ante a narração e o evento. Ainda de acordo com essa linha de raciocínio, Ricœur (2003) defende que a “história do tempo presente” possui trunfos epistemológicos que permitem ao historiador estar atento “ao que permanece virtual no presente, ao que nele ainda está aberto ao possível”.

O boom da história oral nos anos 1990 no Brasil e a história do tempo presente

No caso brasileiro, essas alterações tiveram reflexos importantes no perfil dos cursos de história, que ampliaram suas linhas de pesquisa, incorporaram o estudo do tempo presente e abriram espaço para uma maior aceitação da história oral. Esse crescimento do interesse pela história recente acompanhou o retorno de Brasil à democracia. À medida que se consolidavam as instituições democráticas, um maior número de pessoas se interessava por conhecer a história do regime militar e também a trajetória dos grupos reprimidos e minorias como mulheres, negros e indígenas preocupados em resgatar suas memórias. Igualmente relevantes foram a criação das associações de bairros e o interesse de grupos étnicos de preservar suas trajetórias.

De toda forma, nos anos 1980, especialmente no período da abertura política (ou seja, quando, após 20 anos de dominação, o regime militar instaurado em 1964 começou a sair de cena), um número crescente de programas de pesquisas foi criado, em universidades ou em diferentes instituições voltadas para a preservação da memória. Igualmente, o número de pesquisadores que usavam a metodologia da história oral na elaboração de suas teses de mestrado e doutorado foi se tornando expressivo.

Por outro lado, a sociedade de modo geral também passou a demonstrar interesse pela recuperação da memória coletiva e individual e pela valorização das biografias, e a demanda das empresas em registrar o depoimento de seus fundadores como meio de preservar sua memória. Todos esses elementos funcionaram como um grande estímulo para a ampliação do uso da história oral e, por tabela, para o aumento do interesse pela história recente.

As primeiras experiências sistemáticas no campo da história oral no Brasil datam de 1975, a partir de cursos fornecidos por especialistas norte-americanos e mexicanos patrocinados pela Fundação Ford. Esses cursos foram ministrados na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e voltavam-se para um público de professores e pesquisadores de história e ciências sociais oriundos de diferentes instituições. Pretendia-se difundir o uso da metodologia de maneira a implantar programas de história oral em diferentes universidades e centros de pesquisa por todo o país, privilegiando a investigação de temas de interesse local. Pretendia-se também estabelecer canais regulares de intercâmbio entre esses pesquisadores por meio da criação de uma associação de história oral[1].

Um balanço dos resultados dessas iniciativas pioneiras, passados cerca de 20 anos, revela um saldo positivo, mas muito aquém das pretensões expressadas naquela época. Até o começo dos anos 1990, portanto, tinha-se o seguinte quadro no Brasil: a história oral não merecia figurar nos currículos dos cursos universitários, implicava pouca reflexão e não constava das programações de seminários e simpósios.

Entendo que várias ordens de fatores podem explicar essas dificuldades para a legitimação da história oral no Brasil: de um lado, questões de ordem política e econômica, e, de outro, as características da própria concepção de história dominante nos meios acadêmicos brasileiros.

A vigência de um regime ditatorial militar durante mais de duas décadas funcionou como um forte elemento de inibição para a abertura e a consolidação de programas de entrevistas. O temor de dar depoimentos, especialmente quando se tratava de opositores do regime, era um obstáculo concreto e central. Um segundo aspecto a ser considerado é que a história dominante nas últimas décadas — como também já foi fartamente assinalado, pois esse não é um fenômeno apenas brasileiro — tinha como referência o paradigma estruturalista. Ou seja, sustentava que o importante era identificar as estruturas que, independentemente das percepções e das intenções dos indivíduos, comandavam os mecanismos econômicos, organizavam as relações sociais, engendravam as formas de discurso. A introdução da história oral no Brasil ocorreu essencialmente por intermédio dos meios acadêmicos, dos centros de pesquisa e das universidades. Os programas de história oral implantados a partir dos anos 1970 procuraram formar acervos de depoimentos orais de diferentes grupos da sociedade brasileira, com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre a vida política do país e apontar os entraves que impediam o acesso da grande maioria da população aos benefícios da cidadania.

Paralelamente aos programas institucionais, a história oral difundiu-se também entre pesquisadores individuais que preparavam teses de mestrado e doutorado. Jovens pesquisadores autônomos passaram a utilizar entrevistas de história oral em suas pesquisas de ciências sociais ou de história, explorando temáticas como classe trabalhadora, minorias e grupos discriminados (como negros e mulheres), fábricas, bairros etc.(FERREIRA,1994)

O boom da história oral nos anos 1990, a que nos referimos, traduziu-se não só na incorporação, pelos programas de pós-graduação em história, de cursos voltados para a discussão da história oral, mas também pela multiplicação de seminários. Por outro lado, o estabelecimento e o aprofundamento de contatos com pesquisadores estrangeiros e com programas de reconhecido mérito internacional, propiciados por esses encontros, criaram canais importantes para o debate e a troca de experiências.

Esse quadro já em processo de mudança sofreria uma grande transformação com a criação da Associação Brasileira de história Oral (ABHO) em 1994 e, em seguida, dos três grandes encontros: o II Encontro Nacional de História Oral (Rio de Janeiro, 1994), o I Encontro Regional da Região Sul-Sudeste (São Paulo/Londrina, 1995) e o III Encontro Nacional (Campinas, 1996).

A criação da ABHO e a realização desses eventos permitiram não só uma articulação de pesquisadores de diferentes instituições e regiões no sentido de proporcionar trocas e intercâmbios, mas abriu um canal de contato para um processo de internacionalização desse campo. Passou a ser regular a vinda de pesquisadores de renomados centros de pesquisa tais como Mercedes Villanova, Michel Trebicsh, Henry Rousso, Alessandro Portelli, Ronald Greele, Allistair Thopsom, Philippe Joutard e muitos outros, trazendo, cada um a seu modo, contribuições e também se beneficiando das pesquisas aqui realizadas.

A primeira reunião, para a qual foi feita uma convocação ampla, foi realizada no Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas, em 1994, e contou com a participação de 250 pesquisadores, dos quais 60 apresentaram papers. Pôde-se constatar uma forte presença da comunidade acadêmica nos projetos de história oral em andamento no país, sendo pouco expressiva a participação de grupos sindicais, associações de moradores, empresas ou mesmo arquivistas. Entre aqueles que apresentaram trabalhos, os doutores predominaram amplamente, sendo inexpressiva a presença de estudantes da pós-graduação ou da graduação. No que diz respeito à formação, diversamente do que se observava na década de 1980, quando os pesquisadores que trabalhavam com história oral eram majoritariamente cientistas sociais, verificou-se uma maioria de historiadores. (FERREIRA,1994)

Essa nova realidade provocava inquietações, dúvidas, desafios! Os historiadores que de maneira geral trabalhavam com uma história de períodos recuados, ou mesmo quando tinham como objeto o que se costumava definir como história contemporânea, não encaravam uma reflexão sobre o que significava abandonar a premissa da relevância “da visão retrospectiva” para se engajarem na produção de uma historiografia pautada em outros referenciais. Na realidade, cada vez mais se praticava uma história recente, mas não se produziam reflexões sobre esse fazer. A urgência e a necessidade da história oral de se legitimar nos espaços acadêmicos iriam forçar um investimento em trabalhos de caráter teórico e metodológico. Foi para atender a essa demanda que as discussões relativas à memória e à noção de história do tempo presente emergiram ligadas ao campo da história oral.

No I Encontro Regional da Região Sul-Sudeste, realizado na USP, observou-se mais uma vez a predominância do meio acadêmico e, dentro dele, dos historiadores. Do ponto de vista do conteúdo dos trabalhos, pôde-se perceber um maior interesse por questões metodológicas e por temas ligados à cultura popular. No conjunto de trabalhos apresentados no III Encontro Nacional, detecta-se ainda uma vez uma maior participação de historiadores ligados à academia. (FERREIRA, 1996)

Essa grande expansão nos anos 1990 e mesmo nos anos anteriores carecia de uma reflexão teórica mais sofisticada. A problemática da memória já aparecia, mas de forma dispersa. As grandes obras de referência nesses primeiros tempos foram os livros de Paul Thompson (1992), A voz do passado, e de Ecleia Bosi (1994), Memórias de velhos. O primeiro representava um tipo de história oral militante que defendia essa modalidade de pesquisa como um meio de dar voz aos excluídos, sem ter uma preocupação com os usos da memória e todas as suas implicações e, portanto, estava longe de proporcionar ferramenta que estimulasse uma reflexão teórica sobre os usos de fontes para a escrita da história. Já o livro de Ecleia Bosi (psicóloga de formação) oferece alguns elementos para problematizar as questões referentes à memória, mas pela própria natureza do seu trabalho e seu próprio posicionamento negativo diante da história oral, terminava por reduzir o impacto da sua obra.

Nesse contexto de expansão da história oral, merece destaque a vinda ao Rio de Janeiro, em 1987, do sociólogo Michael Pollack, quando proferiu um conjunto de palestras sobre a temática da memória e das identidades. Os textos referentes às duas conferências feitas no Cpdoc foram publicados pela revista Estudos Históricos: “Memória, esquecimento e silêncio” em seu número 3 (1987) e “Memória e identidades” no número 10 (1992). Esses dois artigos, que, passados mais de 25 anos, continuam sendo citados em praticamente todos os trabalhos que têm como objeto a temática da memória e das identidades, tiveram um impacto enorme na maneira como os trabalhos de história oral passaram a ser produzidos.

Assim, a história oral passava a funcionar como um laboratório de reflexão epistemológica, na medida em que precisava dar conta da pressão das demandas dos testemunhos vivos, e as contribuições da história do tempo presente produzidas no Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP) ofereciam caminhos interessantes. Além dos artigos já citados de Polack, outra obra que teve repercussões importantes no Brasil foi Écrire l’histoire du temps présent, coletânea publicada como homenagem a Bédarida que reuniu cerca de 30 historiadores oriundos de diferentes países e áreas, resultante de um seminário dedicado a refletir sobre essa temática. Sob o selo do CNRS, em, 1992, especialistas como Paul Ricœur, René Remond, Eric Hosbsbawm, Roger Chartier e Henry Rousso, entre outros, manifestaram seu posicionamento no sentido de legitimar o estatuto da história do tempo presente. A circulação desses textos no Brasil e esse debate se deram por meio da publicação da coletânea Usos e abusos da história oral, que divulgou alguns desses textos além de outros sobre usos da memória, biografia, acervos orais. Assim como já havia dito, a discussão sobre o estatuto da história do tempo presente, diferentemente da França, entrou no Brasil pela porta da história oral. Nos anos seguintes, essa tendência seguiu adiante, com a vida de Henri Rousso para o III Encontro Nacional de História Oral na Unicamp, em 1996, e a realização de inúmeros cursos de curta duração nos programas de pós-graduação que recebiam novas levas de alunos interessados em fazer dissertações em temas da atualidade. Nesse contexto de ampliação dos debates com mesas redondas, simpósios temáticos em congressos e conferências, ofertas de disciplinas nos cursos de pós-graduação e publicações de livros e artigos, a história do tempo presente ingressou no século XXI usufruindo de um novo status no Brasil. (Ferreira, 1998).

Contudo, a grande virada que consolidou definitivamente esse campo foi a discussão dos projetos relativos ao “dever de memória” perante as vítimas da ditadura militar, e os grupos excluídos e discriminados de negros e indígenas.

A história do tempo presente e o desafio de lidar com as demandas sociais

As relações contraditórias que a história do tempo presente mantém com a demanda social têm sido objeto de análise dos historiadores que destacam a importância dessa relação, mas ao mesmo tempo apontam os riscos do envolvimento dos historiadores do tempo presente no exercício da perícia de temas traumáticos, que “tendem a transformar a história numa espécie de juiz supremo, que distribui os elogios e as reprimendas” ( NOIRIEL, 1998, p. 208-210).

No contexto de hipervalorização das memórias e de identidades na contemporaneidade, historiadores de diferentes correntes historiográficas e países têm produzido reflexões interessantes ao analisarem como, nos últimos 30 anos, o mundo mergulhou no “reino da memória generalizada”, multiplicando as comemorações e invocando permanentemente o dever de memória (JOUTARD, 2007, p. 115).

Nessa conjuntura, verifica-se uma busca por explicações sobre o passado recente no campo das ciências humanas. François Hartog e Jacques Revel (2001) consideram que “o contemporâneo tornou-se um imperativo, uma pressão […] que se exerce sobre as ciências sociais”, e noções como memória, identidade, testemunhos e genocídio permeiam as discussões dos especialistas. Na disciplina histórica esse avanço do contemporâneo pode ser percebido em múltiplas facetas dos programas acadêmicos. A chamada “história do tempo presente” passou das margens do campo historiográfico para o centro da disciplina.

Com o crescimento do interesse das sociedades contemporâneas pela história recente, os eventos traumáticos recentes se tornaram objetos prioritários de investigação e uma oportunidade ímpar de se repensar o passado. Nesse sentido, o Holocausto, o Apartheid na África do Sul, o massacre na Bósnia, as ditaduras na América Latina são temas contemporâneos que têm recebido grande atenção, pois representam embates pela memória e oferecem ao historiador do tempo presente a oportunidade de pensar sobre como as narrativas e os relatos orais estão sendo utilizados nos projetos testemunhais.

O desdobramento dessa centralidade dos eventos traumáticos, por sua vez, tem estimulado a afirmação das políticas memoriais e de dever de memória, expressão criada para designar uma espécie de culto aos mortos, vítimas de atos de repressão e de traumas políticos, culto esse que produz desdobramentos e obrigações nos domínios históricos, jurídicos, financeiros e políticos. Nesse contexto, o ato de testemunhar ganha um novo significado, e as vítimas ou seus descendentes transformam-se em agentes fundamentais para o exercício do dever de memória, entendido agora não apenas em sua dimensão de culto aos mortos, de dever de lembrança e homenagem, mas também como direito de reclamar justiça e conquistar resultados concretos nos domínios político, judicial e financeiro (LALIEU, 2001). Nesse contexto, os projetos testemunhais são alternativas implementadas no intuito de preservar a memória do que ocorreu e tentar evitar futuras manifestações de autoritarismos e desrespeito aos direitos humanos.

Os riscos da sacralização das memórias: testemunho, memória e história

No campo das reminiscências, há uma tendência a se sacralizar ou banalizar o passado (TODOROV, 1995). A sacralização está relacionada com o isolamento de uma lembrança, negando-se a possibilidade de interlocução entre o passado e o presente. Uma população que sacraliza a memória de um trauma, por exemplo, não permite a reconstrução histórica do evento e sua discussão no presente. Aquele passado fica cristalizado e passa a ser alvo de rituais relacionados com a afirmação da identidade do grupo. Esse processo impede o esquecimento, mas também pode dificultar um trabalho de reelaboração da memória. No polo inverso está uma postura de banalização. Nesse caso, o presente passa a ser lido como repetição do passado. As lembranças são trazidas a todo momento e os acontecimentos do presente são assimilados a partir do prisma de um evento do passado. O perigo da sacralização e da banalização é que essas perspectivas reforçam a perpetuação de rótulos como o do herói, da vítima ou dos moralizadores. Ao se privilegiar um dever de memória, muitas vezes acaba-se resvalando nesses extremos e passando “do dever de memória aos abusos da memória”. Qual seria outra possibilidade de relação com o passado? Em vez de uma militância pela memória, seria necessário pensar em um trabalho sobre a memória.

Rousso (2013), aprofundando esse debate, problematiza a sacralização da memória e chama atenção para a função crítica da história e a necessidade de distanciamento, que permitem aos historiadores serem menos dependentes dos objetivos políticos, comunitários e identitários que se escondem por trás do dever de memória. Partindo dessa constatação, fica evidenciada por esses autores a preocupação com o processo da “vitimização” das diferentes comunidades que sofreram no passado massacres ou perseguições, o que pode garantir, do ponto de vista simbólico, inúmeras vantagens. Nesse contexto de pressão das memórias sobre sua prática profissional é que os historiadores são questionados para redefinir sua responsabilidade ante uma demanda de fidelidade memorial. Essas análises de Rousso aliam-se às de François Bédarida (1993) e Philippe Joutard (2007), que escreve: “é necessário promover um autêntico dever de história, que parte da memória, dela se nutre, mas sabe tomar a distância necessária em relação a ela”.

Para o historiador do tempo presente esses desafios são amplificados, pois, ele lida com a memória viva dos seus contemporâneos, que influenciam fortemente seu trabalho com questões que dizem respeito à legitimidade da sociedade em que vivemos (FRANK, 1993). As instituições e os atores que buscam a legitimação de suas demandas sociais por meio da história pressionam os historiadores no sentido de referendar seus pontos de vista.

Os questionamentos propostos pelas memórias de grupos sociais que viveram eventos traumáticos tais como o Holocausto, o governo de Vichy na França, as ditaduras na América Latina demandam da “história do tempo presente” uma gestão de usos sociais e das instrumentalizações da memória ainda não arrefecida e dos passados incompletamente transformados em história.

A Comissão da Verdade e história do tempo presente no Brasil

Apresentada essa discussão que tem envolvido historiadores de diferentes países e temporalidades, cabe perguntar: como esse debate tem repercutido no Brasil? Em que medida tem estimulado e legitimado a abertura de novos temas de pesquisa? O estudo da história do tempo presente entrou na ordem do dia no Brasil, não só como objeto de pesquisa acadêmica, mas também como um tema desafiador para os historiadores do ponto de vista ético e político. A aprovação da lei que regulamenta a constituição da “comissão da verdade” para apurar crimes contra os direitos humanos indica inúmeras questões para nossa comunidade de historiadores. Qual a postura que a comunidade científica deve adotar? Esse envolvimento institucional não acaba por atribuir ao historiador o papel de juiz da história?

Esse conjunto de perguntas e questões já foi formulado em vários países, tais como França, Alemanha, África do Sul, Argentina, só para citar algumas experiências. As respostas foram produzidas de acordo com a cultura histórica de cada país e com os impactos produzidos pelos eventos traumáticos nas diferentes sociedades. No caso brasileiro, esse debate se expandiu e se aprofundou tardiamente, uma vez que as tentativas feitas pelas entidades de direitos humanos sempre encontraram resistência para avançar na revisão da lei de anistia e no julgamento dos crimes políticos contra os direitos humanos.

Somente em 18 de novembro de 2011, foi sancionada, pela presidenta Dilma Rousseff, a lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade. Na justificativa oficial, a Comissão “traz esperança de que fatos controversos ocorridos durante os anos de chumbo possam ser revisitados e recontados”. Foi assinada também a Lei de Acesso a Informações, que acaba com o sigilo eterno de documentos. Segundo o governo federal, a Comissão não tinha o objetivo de acusar nem processar os autores de violências, mas tão somente divulgar informações de documentos ultrassecretos em um relatório a ser elaborado. O documento final foi produzido por uma equipe composta por sete pessoas e apurou violações aos direitos humanos, ocorridas entre 1946 e 1988.

Esses dois eventos indicaram inúmeros desafios para os historiadores brasileiros que se dedicam ao estudo da história recente do nosso país. A Lei de Acesso à Informação abre novas possibilidades para a emergência de temas ainda não explorados, funcionando como um estímulo para o reconhecimento e a legitimidade da história do tempo presente, assim como permitindo o esclarecimento dos muitos pontos obscuros que a dificuldade de acesso às fontes criava. Por outro lado, o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade coloca uma grande questão: os historiadores profissionais deveriam se envolver diretamente nessa empreitada?

Alguns historiadores entenderam que sim e chegaram a reivindicar que a comunidade deveria indicar possíveis nomes entre seus associados para integrar a comissão com o argumento de que ela “vai tratar de questões referentes à história recente do país e que, por isso, demanda a atuação de profissionais que desenvolveram, ao longo de sua formação, habilidades referentes à crítica documental, à interpretação de testemunhos, à coleta e análise de fontes orais, entre outras”[2]. No entanto, muitos outros profissionais da história entenderam que essa iniciativa, além de criar muitos problemas de ordem metodológica e teórica para a disciplina, situaria os historiadores como juízes do passado, o que não seria o objetivo maior da nossa atividade.

A despeito das divergências, são visíveis os efeitos desses dois eventos para os estudos históricos e em especial para a história do tempo presente.Desde o final dos anos 1990, quando foram tomadas as primeiras iniciativas no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso para apurar as circunstâncias das mortes e do desaparecimento dos perseguidos políticos, pôde ser constatado o surgimento de núcleos ou linhas de pesquisa, a criação de revistas, publicações e o crescimento do número de teses dedicadas à história do tempo presente[3]. Entre os trabalhos citados, merece destaque o livro Tempo presente e usos do passado (2012), que reuniu renomados historiadores brasileiros, tais como Temístocles Cesar, Carlos Fico, Durval Muniz Albuquerque Júnior e Raquel Glezer, para discutir o estatuto da história do tempo presente e os desafios apresentados. Outra temática, objeto de atenção, e que gerou muitos estudos foram as lutas dos afro-brasileiros e indígenas para garantirem novos direitos, em virtude dos processos vivenciados de exploração e exclusão que enfrentaram ao longo da história.[4]

No entanto, foi com a instituição da Comissão da Verdade para apurar os crimes políticos contra os direitos humanos no país e da Lei de Acesso à Informação que ocorreu uma explosão de estudos e pesquisas sobre essa temática. Uma consulta localizada apenas nos programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em história no Rio de Janeiro (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade do Rio de Janeiro, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Cpdoc/Fundação Getúlio Vargas) mostra o enorme crescimento dos temas ligados à ditadura militar e à história do tempo presente[5] (ver tabela no Anexo).

Podemos afirmar que há uma expressiva correlação entre esses eventos e a expansão da história do tempo presente, que nesse contexto está fortemente marcada pelo dever de memória, não só para com as vítimas do regime militar, mas especialmente para com as populações afro-brasileiras e os grupos e indígenas que sofreram sempre processos de exploração e discriminação ao longo da nossa história.

Assim, podemos dizer que, se a história oral no início dos anos 1990 foi o elemento de estímulo para a afirmação da história do tempo presente no Brasil, no século XXI foi por meio da história política e dos desafios trazidos pelos debates acerca da memória dos grupos excluídos que de fato ocorreu um crescimento exponencial dos trabalhos nesse campo.

A interpretação dada por François Hartog (2001 e 2009), para explicar essa mudança de posição da história do tempo presente das margens para o centro da historiografia apoia-se na ideia de um presentismo que caracteriza as sociedades contemporâneas marcadas pela aceleração do tempo, pelo foco no imediatismo e pela perda de perspectiva no futuro. Se esses traços puderam ser visíveis e facilmente verificáveis na França e na Europa, no Brasil essa relação não parece tão visível e imediata, já que exatamente o período de 2000-2015 não foi um momento de descrença, mas, ao contrário, de esperança no futuro em que estavam associados crescimento econômico, ampliação dos direitos sociais e avanço da democracia. Mais recentemente esse quadro se alterou com a crise do governo da presidente Dilma Rousseff e seu impeachment; resta saber como essa nova conjuntura vai se refletir nos estudos da história do tempo presente.

Considerações finais

Resumidas as linhas gerais sobre o estatuto da história do tempo presente, e levantadas hipóteses sobre seu impacto para a historiografia no Brasil, cabem ainda algumas considerações. Uma grande valorização da memória de eventos traumáticos, de maneira geral, e do dever de memória, em particular, provocou sem dúvida desafios e inovações nesse campo, mas cabe perguntar: essa sensibilidade à demanda social, encontrada nos historiadores que lidam com o tempo recente, dá uma singularidade à história do tempo presente e cria limites para seu desejo de fazer uma história tão científica como as outras? Ou ainda: o que distingue as vozes da memória dos resultados de um trabalho que pode ser realizado a partir dessas vozes?

Essas questões não podem ser respondidas a partir de uma oposição simplista entre a memória e a história. Tal reducionismo tende a associar a memória ao falso e a história à verdade. Esse tema vem sendo discutido pela historiografia largamente e a memória foi incorporada como um problema teórico pela disciplina histórica Paul Ricœur chama atenção para o exagero na exortação da memória e para uma desvalorização do papel do historiador. De acordo com Ricœur (2003, p. 55; 2000) “a memória possui uma vantagem em relação à história, que é o reconhecimento. […] A história não reconhece, reconstrói”. O reconhecimento atrela-se, portanto, mais facilmente às verdades testemunhais, enquanto as críticas oferecidas pelos historiadores podem enfrentar um julgamento público desfavorável se propuserem leituras diferenciadas sobre as narrativas socialmente aceitas. A liberdade fica restrita quando se trabalha com acontecimentos que já foram julgados publicamente. Enquanto o juízo judicial é definitivo, o do historiador é revisionista.

A história se reescreve permanentemente, mas não aleatoriamente. A operação histórica envolve a “combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita” (CERTEAU, 1982, p. 66), e oferece procedimentos de análise próprios capazes de propor uma elaboração específica do passado. O historiador pode ser um intérprete dos equívocos políticos do passado e dos mecanismos de construção das memórias, não se deixando levar pelos rótulos fáceis da banalização ou da sacralização da memória e, inclusive, questionando a função desse passado rememorado. O compromisso do historiador com o presente no exercício do seu ofício não deveria estar associado a uma militância em prol de uma memória social específica. Com os instrumentos da história, poder-se-ia propor uma mudança de perspectiva do dever de memória para o trabalho com a memória. O historiador não tem o monopólio sobre a memória, mas ele detém os instrumentos para lidar com a sua pluralidade e fragmentação. É certo que a análise sobre os fatos ocorridos, a identificação dos episódios e a reflexão sobre esse passado recente serão resultado de um esforço de escrita da história. Um trabalho sobre o terreno da memória, mas próprio à história.

Na atual conjuntura no Brasil, na qual o processo de polarização tem se radicalizado, inviabilizando o diálogo, os historiadores da história do tempo presente têm um grande desafio e um grande papel a desempenhar. Tomara que sejamos capazes de dar conta dessa tarefa (MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G. 2016).

Referências

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Notas

1. História do tempo presente no Brasil e na França
2. Número de teses e dissertações sobre memória, ditadura militar e/ou história do tempo presente defendidas nos programas de pós-graduação do estado do Rio de Janeiro
[1] Para acompanhar a trajetória da história oral no Brasil, ver: a tese de doutorado de Ricardo Santhiago Correa (2013), Método, metodologia, campo: a trajetória intelectual e institucional da história oral no Brasil, e o artigo de Marieta de Moraes Ferreira (1998), “Desafios e dilemas da história oral nos anos 90: o caso do Brasil”.
[2] Boletim eletrônico da Anpuh, dez. 2011. Ver Ferreira, Marieta.” História do tempo presente e demandas sociais” In; Tempo Presente e usos do passado.(2012)
[3] Sem ter feito um levantamento exaustivo, podemos citar algumas iniciativas e publicações que nos permitem verificar o dinamismo desse campo: o Laboratório de História do Tempo Presente, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994); periódicos como o História Oral (1998), Tempo e Argumento (2009) e Cadernos do Tempo Presente (2010); publicações como o dossiê História do Tempo Presente, da revista Tempo da Universidade Federal Fluminense (2004); livros como Tempo presente & usos do passado (2012) e História do tempo presente (2014); além de diversos blogs e websites, como o História da Ditadura (Disponível em: . Acesso em: 1o mar. 2018).
[4] Para acompanhar esse debate, ver Abreu e Mattos (2008).
[5] A pesquisa foi feita no site da Capes usando o mecanismo de busca com as palavras-chave ditadura militar, memória e história do tempo presente para levantar o número de teses e dissertações acerca do tema.
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